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Para onde foram os partidos na opinião pública? As percepções sobre os partidos políticos na redemocratização no Brasil

RESUMO

Neste artigo, apresentamos a percepção dos eleitores brasileiros sobre os partidos políticos desde o processo de redemocratização nos anos 1980. Mostramos, a partir de diversos surveys de opinião pública realizados nesse período, que, desde o fim do regime autoritário, os partidos políticos não foram capazes de construir ampla legitimidade junto à sociedade como elementos fundamentais para o funcionamento do regime democrático. Argumentamos que, embora inserido em uma tendência internacional, o caso brasileiro possui elementos históricos e institucionais que dificultam a construção de bases partidárias sólidas e resultam em permanente dilema para a consolidação democrática.

PALAVRAS-CHAVE:
Partidos políticos (Brasil); Democracia; Legitimidade democrática

ABSTRACT

In this article, we discuss how Brazilian voters perceive political parties since the redemocratization process. We show, from several opinion surveys from this period, that since the end of the authoritarian regime political parties have not been able to build broad legitimacy as fundamental actors of the democratic regime. We argue that, although part of an international trend, the Brazilian case has historical and institutional elements that make it difficult to build solid party bases and result in a permanent dilemma for democratic consolidation.

KEYWORDS:
Political parties (Brazil); Democracy; Democratic legitimacy

Introdução

A percepção de que os partidos políticos estão em declínio é antiga e controversa. Desde fins da década de 1960, com a emergência de movimentos sociais e formas diversas de participação e ativismo, fincados em novos temas e agendas colocada pela sociedade em transformação, os partidos deixaram clara a sua incapacidade de articular os interesses emergentes em identidades sólidas sustentadas por lealdades perenes. A denominada democracia de público levou os partidos a uma relação conjuntural com seus eleitorados, que passaram a se envolver com a política por meio de formas de participação não institucionalizadas, paralelas à dinâmica eleitoral e à composição dos parlamentos, mas que canalizavam os posicionamentos sobre novos temas e pautas públicas (Manin, 2012MANIN, B. Principes du guvernement représentatif. 2.ed. Paris: Flammarion, 2012.).

Entretanto, velhas e novas legendas e representantes de velhas e novas pautas passaram a conviver no terreno das democracias partidárias, protagonizando a dinâmica da competição e da formação de governos. Se, por um lado, ideologias e clivagens formadas ainda na primeira metade do século XX continuaram a ocupar os espaços de articulação de grupos e interesses, por outro, os novos partidos que emergiram, sobretudo na década de 1970, refletiram as mudanças sociais e de valores, e trouxeram formas inovadoras de organização partidária, que revigoraram a imagem dos partidos frente aos eleitorados, ganhando proeminência em vários países. São exemplos desse movimento, dentre outros, os Verdes, na Alemanha, o Partido Socialista Unificado, na França, e o Partido dos Trabalhadores, no Brasil (Bürklin, 1985BÜRKLIN, W. The Geman Greens: The post-industrial non-established and the party systems. International Political Science Review, v.6, n.4, 1985.; Harmel, 1985HARMEL, R. On the study of new parties. International Political Science Review, v.6, n.4, 1985.; Hauss, 1976HAUSS, C. S. The New Left in France: The Unified Socialist Party. University of Michi- gan ProQuest Dissertations Publishing, 1976. 7619151.; Meneguello, 1989MENEGUELLO, R. PT_A formação de um partido (1979-1982). São Paulo: Paz e Terra, 1989.)

Essa movimentação própria da trajetória dos processos de sobrevivência e fortalecimento das instituições representativas não evitou que a tendência dominante da evolução dos partidos caminhasse na direção dos limites dados pela sua penetração no Estado, pela atuação tecnocrática e profissional, pelo condicionamento dado à busca por cargos públicos, que passaram a constituir-se nas bases de sua organização e de seu funcionamento, cada vez mais dependentes do financiamento e do apoio estatal, e cada vez mais distantes de suas bases de representação (Manin, 2012MANIN, B. Principes du guvernement représentatif. 2.ed. Paris: Flammarion, 2012.; Katz, 1986KATZ, R. Party government: A rationalistic conception. In: CASTLES, F. G.; WILDENMANN, R. (Ed.)Visions and realities of Party Government. Berlin: De Gruyter, 1986.; Katz; Mair, 2009).

Os partidos políticos tiveram êxito em manter sua posição predominante no funcionamento das democracias, mas é inegável a insatisfação com a sua atuação nas várias instancias da política institucional. É verdade que parte das críticas sobre a sua incapacidade e inadequação às demandas dos contextos contemporâneos resulta das deficiências congênitas do governo representativo e das limitações da representação política, que carregam uma dimensão oligárquica incontestável, e que distanciam os governantes e os governados (Manin, 2012MANIN, B. Principes du guvernement représentatif. 2.ed. Paris: Flammarion, 2012.). Por outro lado, as críticas à sua atuação resultam das mudanças estruturais da política e da sociedade contemporâneas, e seus aspectos sociais, demográficos e tecnológicos, que constituíram arenas plurais de mobilização e engajamento de segmentos da população, com as quais a política própria dos partidos ainda não teve êxito em se adequar. Resultam desse cenário a generalizada desconfiança institucional e o significativo descrédito na sua capacidade de representar interesses e de se importar com seus eleitorados, mesmo nas democracias mais antigas (Dalton; Weldon, 2005DALTON, R.; WELDON, S. Public Images of Political Parties: A Necessary Evil? West European Politics, v.28, n.5, p.931-51, November 2005.).

Esse é um fenômeno amplo, que indica apenas parte das debilidades dos regimes democráticos contemporâneos, mas no caso das democracias da terceira onda, sobretudo as latino-americanas, esse fenômeno é ainda mais acentuado. Alguns dados ilustram esse diagnóstico. Dados do Latinobarómetro sobre a proximidade dos eleitores com os partidos mostram uma queda de quase 20 pontos percentuais na média dos 18 países estudados entre 2010 e 2020, de 48% para 30%. Com exceção do caso uruguaio, com uma história partidária de bases sólidas e contínuas, e da Bolívia, com um contexto político recente bastante conturbado, a proximidade dos eleitores com os partidos políticos diminuiu nos outros 16 países.1 1 Dados disponíveis em: <http://www.latinobarometro.org>. Acesso em: 25 ago. 2022. O Gráfico 1 mostra esse cenário para cada país no ano de 2020. É importante destacar que mesmo entre os países latino-americanos, o Brasil ocupa uma das piores posições com relação à identificação partidária.

Com relação à confiança nos partidos políticos na região, os dados do Latinobarómetro não apresentam resultados melhores. Na média dos 18 países analisados, a porcentagem de eleitores que declaravam possuir “alguma” ou “muita” confiança nas instituições partidárias recuou de 27%, em 1995, para 14%, em 2020.2 2 Dados disponíveis em: “http://www.latinobarometro.org>. Acesso em: 25 ago. 2022. O Gráfico 2 mostra as taxas de confiança nos partidos para cada país no mesmo ano de 2020. O Brasil aparece na média da região. A constituição de patamares razoáveis de confiança nas instituições representativas é um desafio permanente das democracias recentes, sobretudo em contextos de transições incompletas em que legados autoritários persistem (Letki, 2018LETKI, N. Trust in Newly Democratic Regimes. In: USLANER, E. (Ed.) The Oxford Handbook of Social and Political Trust. Oxford University Press, 2018.). No caso latino-americano, fica evidente a dificuldade de construir índices de confiança razoáveis em um contexto de forte flutuação econômica e crises institucionais recorrentes.

Gráfico 1
Existe algum partido político do qual você se sente mais próximo? (2020)

Gráfico 2
Confiança nos Partidos Políticos (2020)

Antecedentes do atual sistema partidário brasileiro

O contexto de desconfiança e distanciamento geral com relação aos partidos políticos é também o que caracteriza o Brasil desde o início do processo de redemocratização na década de 1980. Se o Brasil não é singular diante da crise geral das instituições representativas, a trajetória republicana de seu desenvolvimento partidário é repleta de fragilidades, com legendas e sistemas partidários variados e descontínuos. Mesmo assim, a organização da vida política por meio de partidos é uma constante para os cidadãos brasileiros ao longo de sua história. O interregno da ditadura do Estado Novo de Vargas (1937-1945) foi o único período em que partidos deixaram de funcionar, retornando sob um novo sistema partidário com a democratização de 1946. Mesmo na ditadura militar (1964-1985), ainda que oscilando entre a artificialidade do bipartidarismo, criado em 1965, opondo a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e a reforma partidária de 1979, que traduziu as pressões políticas e sociais para a abertura do sistema, os partidos constituíram uma referência decisiva para a organização da política e dos posicionamentos políticos e ideológicos na direção da construção democrática.

Em específico, a composição de cinco partidos estabelecida na Reforma de 1979, com o surgimento do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do Partido Democrático Social (PDS), do Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT), não apenas reacomodou a velha classe política limitada ao anterior desenho bipartidário, mas canalizou preferências eleitorais novas que se consolidariam durante o processo de redemocratização. Em 1982, o ano de eleições diretas para os governos estaduais já no processo de abertura política e antes da implantação do governo civil, em 1985, em pesquisa realizada em seis capitais brasileiras, aproximadamente 60% dos entrevistados consideravam que os partidos políticos tinham uma atuação positiva (“prestavam um bom serviço” contra a alternativa de que eram instituições “inúteis”), e 71% se identificavam com algum dos cinco partidos à época. Essa alta porcentagem de identificação partidária indicava o elevado grau de mobilização e envolvimento político no eleitorado dos grandes centros urbanos no período final da ditadura militar. A mesma pesquisa mostrava que mais de 76% dos entrevistados se identificavam durante o bipartidarismo com a Arena ou com o MDB. Esse dado corrobora a natureza regulada da mobilização política naquele período, em que partidos e eleições delinearam os caminhos da distensão, mas também ressalta o reconhecimento dos partidos pelo eleitorado como canais de organização dos conflitos entre o governo e a oposição ao regime militar, definindo novas perspectiva de desenvolvimento partidário (Lamounier, 1985LAMOUNIER, B. Apontamentos sobre a questão democrática. In: ROUQUIÉ, A.; LAMOUNIER, B.; SCHVARZER, J. (Org.) Como renascem as democracias. São Paulo: Brasiliense, 1985.).

Esses são dados valiosos para dimensionar a percepção pública da importância das instituições representativas para a transição democrática brasileira. Entretanto, não devem camuflar as dificuldades de institucionalização dos partidos na história política do país. A definição de vários sistemas de partidos e as muitas formações partidárias descontinuadas que caracterizam o período republicano, à diferença de sistemas partidários de países vizinhos, como o uruguaio e o argentino, que possuem legendas atuantes como referências da política há muitas décadas, constituíram entraves para o desenvolvimento de lealdades políticas e patamares mínimos constantes de identificação com as instituições. Além disso, embora tenhamos conhecimento de que o período democrático pós-1946 apresentou caminhos para o fortalecimento da relação do eleitorado com os partidos, a drástica ruptura política com o golpe militar de 1964 e a extinção dos treze partidos que então estavam em funcionamento também romperam com as referências de identificação (Soares, 1973SOARES, G. A. D. Sociedade e Política no Brasil. São Paulo: Difel, 1973.; Nicolau, 2004NICOLAU, J. Partidos na República de 1946: velhas teses, novos dados. Revista DADOS, v.41, n.4, 2004., Lamounier; Meneguello, 1986LAMOUNIER, B.; MENEGUELLO, R. Partidos Políticos e Consolidação Democrática. São Paulo: Brasiliense, 1986.; Lavareda, 1991LAVAREDA, A. A democracia nas urnas. O processo partidário eleitoral brasileiro. S. l.: Ed. Rio Fundo, 1991.).

No período bipartidário de 1965 a 1979 e, na sequência, o período do novo sistema de cinco partidos de 1979 a 1985, a proximidade com as legendas e a percepção pelo eleitorado de seu papel central para a redemocratização do país devem ser consideradas, sobretudo, como resultantes das limitações à participação e à organização das ações de massa, e na qual a arena representativa adquiriu centralidade e importância para a formação do novo regime.

Marcada pela sua natureza negociada e incompleta, a transição priorizou um processo de construção institucional pautado pela agenda eleitoral e partidária. Logo após a constituição do governo civil, em março de 1985, a emenda constitucional n.25 redefiniu a legislação dos partidos, flexibilizando regras e ampliando as possibilidades de organização, inclusive dos partidos comunistas. A lei também definiu eleições diretas para as prefeituras de capitais estaduais e municípios de segurança nacional, e, principalmente, universalizou o sufrágio, inserindo os analfabetos ao corpo eleitoral do país. Os marcos institucionais da construção democrática estabelecidos no âmbito do sistema representativo foram importantes para que o eleitorado constituísse nos partidos e no Congresso referenciais para o funcionamento do novo regime.

A imagem dos partidos

De fato, a perspectiva de que a atuação das instituições representativas em geral é a forma correta da democracia funcionar constituiu para o período parte das bases da adesão à democracia, mas esse foi, no entanto, um frágil limite normativo que circunscreveu a visão positiva dos partidos para a opinião pública (Moisés; Meneguello, 2013MOISÉS, J. A.; MENEGUELLO, R. Os efeitos da desconfiança política para a legitimidade democrática. In: ___. (Org.) A desconfiança política e os seus impactos na qualidade da Democracia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.). Desde a eleição presidencial de 1989 os partidos carregam de forma persistente as mais baixas porcentagens de avaliação de desempenho pelo eleitorado dentre as várias instituições democráticas, assim como as mais baixas porcentagens de confiança, aspectos centrais para a garantia da legitimidade do próprio sistema político (Moisés, 2010; Meneguello; Del Porto, 2022).

A presença de um quadro partidário fluido e muito fragmentado, atualmente com mais de 30 legendas, e poucas dentre elas com bases localmente estruturadas; uma intensa migração das elites, e uma legislação flexível às possibilidades de acesso à representação de pequenas estruturas nos parlamentos, são alguns dos aspectos presentes em quase todo o período democrático que colaboram para explicar o ceticismo e o forte distanciamento dos eleitores das organizações partidárias.

Ademais, o período democrático testemunhou sérias crises econômicas com reflexos institucionais e graves escândalos de corrupção envolvendo políticos e partidos, como o escândalo do Mensalão, em 2005, e as denúncias da Operação Lava-Jato, iniciada em 2014, assim como as crises políticas que culminaram em dois impeachments de presidentes da República, em 1992 e em 2016.

Dessa maneira, não surpreende encontrarmos opiniões sobre os partidos como instituições que apenas servem aos políticos, e não à população em geral. O contexto de crises políticas e escândalos sucessivos ajudam a compreender as porcentagens significativas observadas. É o que mostram as opiniões no amplo período de 30 anos desde 1989 até 2019, sobre a percepção do papel dos partidos, com os destaques para os anos de 1993, um ano após o impeachment do presidente Collor, e em 2006, um ano após a eclosão do escândalo do Mensalão (Gráfico 3).

Gráfico 3
Percepção de que partidos não representam eleitores, apenas representam os políticos (%)

Essa percepção é um dos fatores que explicam as baixas avaliações sobre a sua atuação em boa parte do período. Entre 2002 e 2018, segundo dados da coleção Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), a percepção de que partidos funcionam bem tem uma tendência decrescente clara, indicando as insatisfações com a política partidária e com o papel das legendas no funcionamento político do período (Gráfico 4).

Um dos mais importantes indicadores de avaliação do papel dos partidos para o funcionamento da democracia é a confiança institucional. Novamente, não surpreendem as baixas taxas observadas em todo o período. A confiança é um atributo formado pelos cidadãos que traduz a noção de que as instituições atuarão e produzirão resultados esperados segundo as preferências depositadas, e ela resulta das experiências que os cidadãos têm com elas (Warren, 1999WARREN, M. Democratic theory and trust. In: WARREN, M. (Ed.) Democracy and Trust. Cambridge University Press, 1999.; 2018). Os dados entre 1989 e 2020 mostram que, à exceção de apenas um ponto no tempo, o ano 2002, as porcentagens de confiança não seguiram muito além dos 30%, e mesmo assim, em 2002, pouco ultrapassou 40%. Também cabe salientar que o ano 2018, ano das eleições gerais que redefiniram a correlação entre forças partidárias e a composição das elites eleitas, a confiança nos partidos chegou à menor taxa de 12% (Gráfico 5).

Gráfico 4
Avaliação positiva dos partidos políticos (%)

Gráfico 5
Confiança nos partidos políticos (%)

Esses dados apontam para uma preocupação mais ampla com o papel dos partidos além de seu desempenho específico. Embora a desconfiança política seja observada inclusive nas democracias de longa data, nos regimes recentes ela está associada ao desengajamento e ao desinteresse que sustentam a ideia de que as democracias podem funcionar sem partidos (Booth; Seligson, 2009BOOTH, J.; SELIGSON, M. Legitimacy Puzzle in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2009.; Moisés; Meneguello, 2013MOISÉS, J. A.; MENEGUELLO, R. Os efeitos da desconfiança política para a legitimidade democrática. In: ___. (Org.) A desconfiança política e os seus impactos na qualidade da Democracia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.; Meneguello; Del Porto, 2022). Em pesquisa realizada pelo Barômetro das Américas, em 2010, com 26 países da região, os dados mostram que a média de eleitores da região que consideravam que a democracia não necessitava de partidos era de 41%, com o Brasil próximo à média (Ahern; Cotter; Hall, 2012AHERN, P.; COTTER, N.; HALL, D. ¿Puede existir una democracia sin partidos políticos? Perspectivas desde el Barómetro de las Américas, n.83, 2012. IO883es.pdf (vanderbilt.edu)). No caso brasileiro, no curso do período democrático, a noção de que a democracia não pode prescindir dos partidos mostrava apenas moderadas porcentagens, alcançando uma proporção apenas próxima à metade da população ao final do período, em 2018 (Gráfico 6). O que parece estar em jogo aqui, é a adesão a compreensão de uma democracia sem pilares básicos da representação política.

Gráfico 6
Eleitores que afirmam que partidos são indispensáveis à democracia (%)

Partidos e eleitores na Nova República

Após 35 anos de reconstrução democrática, em um terreno político repleto de siglas localizadas em diferentes pontos do espectro ideológico, e com uma dinâmica eleitoral intensa, que a cada dois anos pede ao eleitorado seus posicionamentos diante de instâncias distintas da governança democrática, qual a relação de proximidade dos eleitores brasileiros com as legendas?

A frequência eleitoral a que o cidadão brasileiro é exposto seria, teoricamente, um terreno potencial para a constituição de patamares razoáveis de engajamento com os processos políticos. No entanto, a relação dos cidadãos com os partidos é mais complexa. Embora a identidade partidária suponha um envolvimento dos eleitores com a política, as legendas brasileiras não conseguiram constituir, no seu conjunto, atalhos para os cidadãos organizarem sua visão sobre os processos políticos e definirem suas escolhas. Os dados de identificação partidária geral para todo o período democrático mostram proporções abaixo de 50% da população com alguma preferência por alguma legenda.

Estamos falando de um sistema partidário com um volume numeroso de escolhas, composto majoritariamente por legendas ideologicamente indistintas e pequenas com a função de abrigar movimentações oportunistas de elites. Após quase 40 anos de disputa partidária constante, o país conta com 32 partidos registrados na Justiça Eleitoral. A forte fragmentação do quadro partidário é um dos principais fatores explicativos do distanciamento dos cidadãos com as legendas, dificultando a criação de bases de representação e identificação.

Como a literatura sinaliza (Amaral; Power, 2016AMARAL, O. E. do; POWER, T. The PT at 35: Revisiting Scholarly Interpretations of the Brazilian Workers’ Party. Journal of Latin American Studies, v.48, n.1, 2016.; Samuels; Zucco, 2018SAMUELS, D.; ZUCCO, C. Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.), a única legenda que conseguiu construir vínculos sólidos com a sociedade nesse período democrático foi o PT. Com forte base social desde a sua fundação (Meneguello, 1989MENEGUELLO, R. PT_A formação de um partido (1979-1982). São Paulo: Paz e Terra, 1989.), o partido passou os primeiros anos de sua existência apostando na construção de uma marca clara de apelo programático progressista, apesar das transformações pelas quais passou no período (Ribeiro, 2010RIBEIRO, P. F. Dos sindicatos ao governo: A organização do PT de 1980 a 2005. São Carlos: EdUFSCar, 2010.; Amaral, 2013).

No final dos anos 1990, o PT se transformou no partido com maior identificação entre os brasileiros, superando o PMDB. Desde então, a legenda foi a única a manter níveis de preferência significativos, chegando a 30% em 2012. Após a eclosão dos escândalos de corrupção da Operação Lava-Jato, a identificação com o partido, entre os anos de 2015 e 2016, chegou a cerca de 10%, e voltou a se recuperar desde então, mostrando a resiliência de suas raízes junto ao eleitorado brasileiro.

Diferentemente do PT, o PMDB e o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) não conseguiram sustentar níveis de preferência substantivos ao longo do tempo. O PMDB se beneficiou do início do processo de redemocratização, herdando a memória de partido de oposição ao regime autoritário. No entanto, apesar de sua capilaridade no território nacional, não demonstrou condições de deitar raízes junto ao eleitorado, em parte porque se transformou, progressivamente, em um partido cada vez mais fracionado e sem lideranças competitivas em âmbito nacional. O PSDB, por sua vez, experimentou crescimento durante as administrações de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e manteve uma pequena, porém constante, preferência partidária até a crise que se abateu sobre o sistema partidário como um todo entre 2015 e 2018, não conseguindo retomar os níveis anteriores.

Em que pese os baixos níveis de identificação partidária registrados no Brasil desde a redemocratização, os dados ajudam a compreender por que o PT se transformou no principal ponto de referência do sistema partidário, inclusive contando com persistentes níveis de rejeição no período, algo que nenhum outro partido também obteve (Samuels; Zucco, 2018SAMUELS, D.; ZUCCO, C. Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.).

Gráfico 7
Identificação Partidária (1989-2022) (%)

Considerações finais

Voltamos à afirmação colocada anteriormente, de que o fenômeno do declínio dos partidos e do seu distanciamento dos eleitores é amplo e atinge as democracias partidárias de forma generalizada. A crise da democracia representativa é o palco dos processos de desconfiança institucional, da constituição das imagens negativas da política e dos políticos, e das insatisfações com os governos partidários. O caso brasileiro não torna singular a percepção negativa do sistema representativo, tampouco toma para si a dificuldade dos partidos e do sistema partidário estruturarem lealdades e posicionamentos sólidos junto à população.

O caso brasileiro, no entanto, possui elementos que trazem mais dificuldades para que os partidos sejam percebidos de maneira positiva pela opinião pública. As regras eleitorais e a permissividade na criação de legendas, bem como as robustas fontes de financiamento e as possibilidades de trocas de partidos por representantes eleitos incentivam a fragmentação e a fluidez do sistema.

Apesar da presença e do funcionamento de legendas que organizam a política e os governos desde o início da democratização, elas não foram capazes criar referências sólidas para os cidadãos. Cabe o destaque ao PT, como legenda capaz de construir uma identificação duradoura, contrapondo a debilidade do terreno das adesões partidárias.

O antipartidarismo a que nossa democracia vem sendo exposta nos últimos anos também dificulta a formação de percepções positivas sobre os partidos no eleitorado. O movimento de desconstrução da política e dos partidos estimulado pelas crises institucionais e escândalos de corrupção nos últimos 20 anos predominaram sobre a opinião pública e constituíram um terreno propício às adesões populistas, como testemunhamos no período do governo Bolsonaro.

Sabemos que o partidarismo proporciona uma ancora para as crenças que sustentam a legitimidade democrática, além de conferir previsibilidade aos atores políticos. As construções de percepções positivas sobre os partidos e as instituições representativas são um elemento fundamental para o funcionamento da democracia. A ausência dessa percepção é um dos dilemas da crise de representatividade nos governos democráticos contemporâneos, ainda mais agravada no caso brasileiro.

Referências

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Notas

  • 1
    Dados disponíveis em: <http://www.latinobarometro.org>. Acesso em: 25 ago. 2022.
  • 2
    Dados disponíveis em: “http://www.latinobarometro.org>. Acesso em: 25 ago. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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