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O Museu de Arte Sacra de São Paulo: História de um acervo

RESUMO

O presente artigo traz alguns elementos da pesquisa de mestrado que visa compreender a formação do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) e investigar qual a importância de sua coleção, de modo a contribuir com o debate historiográfico e de preservação do patrimônio na cidade de São Paulo. A história da criação deste museu está profundamente conectada ao “colecionismo institucional” de arte sacra promovido de modo pioneiro no Brasil por Dom Duarte Leopoldo e Silva, primeiro arcebispo de São Paulo, ainda durante o início do século XX. Divergindo um pouco dos outros artigos desta publicação, não trataremos aqui da decoração dos espaços religiosos, contudo, abordaremos a institucionalização e as relações históricas de importante parcela do patrimônio que um dia pertenceu a esses espaços.

PALAVRAS-CHAVE:
Museu de Arte Sacra de São Paulo; Acervo; Patrimônio; Dom Duarte Leopoldo e Silva; São Paulo

ABSTRACT

This article presents elements of our Master’s research to understand the constitution of the collection of São Paulo’s Sacred Art Museum (MAS-SP) and investigates its importance, thus contributing to the historiographic and heritage preservation debate in the city of São Paulo. The history of the creation of this museum is deeply connected to the pioneering “institutional collection thrust” of sacred art promoted in Brazil by Dom Duarte Leopoldo e Silva, the first archbishop of São Paulo, in the early 20th century. Differing somewhat from the others articles in this publication, we will not deal here with the decoration of religious spaces; however, we will address the institutionalization and historical relations of an important part of the heritage that once belonged to these spaces.

KEYWORDS:
São Paulo’s Sacred Art Museum; Collection; Heritage; Dom Duarte Leopoldo e Silva; São Paulo

Dom Duarte - gosto pela arte e pela história

É impossível falar desse acervo sem esbarrar na figura de seu idealizador, o primeiro arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva, cuja biografia está intimamente ligada às motivações da criação do referido museu.

A iniciativa isolada de criação de um museu nomeadamente voltado para a salvaguarda da arte sacra e religiosa em São Paulo surgiu como inédita no país, graças ao trabalho visionário empreendido pelo arcebispo durante as quatro primeiras décadas do século passado, quando esteve à frente do governo da Arquidiocese de São Paulo (1907-1938). Dessa forma, torna-se importante compreender as aspirações desta figura que culminaram na criação de um dos maiores e mais importantes acervos de arte sacra do país.

A “carreira”, por assim dizer, de Dom Duarte (Figura 1) começou em São Paulo na igreja de Santa Cecília. Ali, ainda enquanto padre, ele permaneceu por um curto período no qual organizou a vida social e pastoral da região. Naquela paróquia, que se lhe tornou tão cara,1 1 “Todos sabem com quanto cuidado e solicitude me devotei a essa grandiosa empresa [...]. Não existe aí um único tijolo que me seja desconhecido. No interior dessas largas muralhas, desde os primeiros alicerces até o alto da elevada cúspide, não se encontrará um punhado de argamassa que não tivesse cuidadosamente examinado. Como as palmas das minhas mãos, conheço todas as linhas, todas as curvas, todos os pequeninos segredos dessa mimosa edificação” - Trecho de sua eloquente carta de despedida aos paroquianos de Santa Cecília (Assis, 1967, p.44). ele iniciou - seguindo as ordens os projetos de Dom Arcoverde - a edificação de sua primeira igreja, que atualmente dá nome ao largo que o abriga.

Alguns fatos como ter “levantado” a Paróquia de Santa Cecília (material e espiritualmente) e criado ali um minucioso arquivo paroquial fizeram com que, à época, aquela fosse considerada uma das mais bem organizadas da diocese e até mesmo do país - um prenúncio do que seria seu trabalho enquanto bispo.

Um aspecto interessante da figura de Duarte que pode ser relacionado ao colecionismo é o seu papel de mecenas. Isso fica muito claro na especial relação que ele cultivou durante toda a vida com a Igreja de Santa Cecília (Philippov, 2016PHILIPPOV, K. A obra religiosa de Benedito Calixto de Jesus através do mecenato de Dom Duarte Leopoldo e Silva na Igreja de Santa Cecília. Campinas, 2016. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.). Para a decoração da igreja, foi realizado um belíssimo programa iconográfico, encomendado por Dom Duarte a Benedito Calixto, que executa a maior parte das pinturas e convida outros artistas2 2 Oscar Pereira da Silva (1867-1939), Carlo De Servi (1871-1947) e Gino Catani (1879-1944). a tomarem parte do projeto.

O arcebispo foi, inclusive, retratado no interior da igreja, na galeria dos primeiros bispos de São Paulo. Ali ele figurava como o último bispo paulista (no momento da realização da obra) e também o único a usar o pálio, numa referên- cia a seu título de metropolita, até então inédito nessa sede episcopal. Anos mais tarde, foi ereto um monumento na frente daquela igreja a fim de homenagear o seu primeiro e mais ilustre vigário. Naquele, são retratadas as construções que marcam seu legado na cidade: a Igreja de Santa Cecília, a Catedral da Sé e o Seminário Central do Ipiranga.

A fama do padre Duarte o levou a ser indicado para o episcopado. Assim, em 1904 Duarte é sagrado bispo em Roma e assume a diocese de Curitiba.3 3 Essa diocese foi criada em 1892 e, à época, compreendia todo o território dos estados do Paraná e de Santa Catarina. Apesar de curto, seu governo à frente daquela diocese é muito elogiado pela dinamicidade com que realizou seu trabalho pastoral e administrativo. Organizou os patrimônios de sua diocese, do seminário e da nascente diocese de Santa Catarina.

Na passagem para o ano de 1907, após ter permanecido dois anos à frente da diocese de Curitiba, Dom Duarte é escolhido para ser bispo de São Paulo4 4 Sua nomeação é publicada em 18 de dezembro de 1906 e sua posse ocorre em 14 de abril de 1907. após seu predecessor em Curitiba, que naquele momento ocupava o sólio paulista, falecer tragicamente.5 5 Dom José de Camargo Barros falece em 4 de agosto de 1906, vítima do naufrágio do navio “Sírio” na costa espanhola. O famoso episódio é, inclusive, retratado em uma tela do acervo do MAS-SP executada por Benedito Calixto. No ano seguinte, é nomeado arcebispo da mesma diocese.

Já como arcebispo, é possível identificar outras de suas ações ligadas ao patrimônio artístico. Ainda na região central da cidade, mais duas igrejas parecem abrigar frutos do interesse do arcebispo mecenas. A popularmente chamada Igreja de Santa Ifigênia abriga obras dos conhecidos de Dom Duarte em Santa Cecília: Benedito Calixto e Gino Catani, além de Carlos Oswald (1882-1971) e Henri Bernard (1868-1941), outro artista que também correspondia ao gosto do prelado. A igreja Nossa Senhora da Consolação, por sua vez, tem o seu interior também decorado por Benedito Calixto, desta vez acompanhado de Oscar Pereira da Silva.

Além de seu visível apreço pela arte, um dos fatores que mais pode ter impulsionado Duarte à criação do museu foi sua participação no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, instituição pela qual tinha muito apreço. Sua ligação com o Instituto era tamanha que chegou a tornar-se vice-presidente durante a gestão de Altino Arantes, no triênio 1919-1921. Nesse período, porém, foi ele que dirigiu a maioria dos trabalhos do Instituto, visto que seu companheiro de cargo exercia a presidência do Estado naquele momento.

Dom Duarte parecia alimentar uma grande vontade de realizar contribuições significativas no campo da História, mas o ofício eclesiástico lhe tomava a maior parte do tempo. Ainda assim, ele conseguiu publicar alguns estudos onde resgata e analisa importantes fontes históricas. O mais conhecido de seus trabalhos é fruto de sua pesquisa intitulada “O Clero e a Independência” (1923), que busca narrar e documentar o apoio do clero brasileiro às lutas pela independência, numa grande defesa da ação da Igreja católica no Brasil.

Nessa e em outras obras, Duarte torna visível o seu caráter de historiador através de uma ampla pesquisa nas fontes eclesiásticas e historiográficas da época, deixando claras as dificuldades que enfrentou em sua investigação documental como a falta de dados completos e a preocupação com a origem e veracidade das fontes.

Figura 1
Dom Duarte Leopoldo e Silva, XII bispo de São Paulo.

A modernização paulista e o apagamento do passado colonial

Na passagem do século XIX para o XX a cidade de São Paulo passa por diversas e rápidas transformações ligadas principalmente ao crescimento da economia cafeeira. A antiga cidade construída em taipa de pilão era considerada provinciana demais e não se adequava aos interesses do projeto “civilizador” da elite cafeeira que buscava construir uma imagem “moderna” para a crescente metrópole.

Em outro âmbito, após um longo período de estreita ligação entre Igreja e Estado, com a proclamação da República ocorre a separação entre as duas instituições. Esse “divórcio”, celebrado logo no início do governo provisório,6 6 O governo republicano publicou o decreto de separação entre Igreja e Estado em 7 de janeiro de 1890. mudou completamente o panorama da Igreja no Brasil, que deu início ao processo chamado de “romanização” do catolicismo nacional. Somado a isso, após a separação, percebeu-se a necessidade de uma construção institucional da Igreja católica no Brasil (Miceli, 1988MICELI, S. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., p.139-41). Fazia-se necessário definir um modelo organizacional para a instituição que pudesse garantir a sua autonomia material, financeira e institucional frente à nova esfera política estabelecida.

Grande parte da nova geração de prelados brasileiros sagrados no início do século XX (como é o caso de Dom Duarte) assumiu uma espécie de programa básico de empreendimentos a desenvolver em suas dioceses, isto incluía a construção do palácio episcopal (sede da cúria), do seminário diocesano (para uma formação local do clero), da catedral e de estabelecimentos de ensino com orientação católica.

Durante o episcopado de Dom Duarte (e até por ordem sua, inclusive, como foi o caso da sé paulista) acontece um processo de demolição dos edifícios antigos e sua substituição por novos, desta vez adequados não apenas à renovada cidade que se erguia a partir do enriquecimento da elite paulista, mas, como é o caso dos templos, também ajustados aos desejos romanizadores que norteavam as práticas da igreja naquele momento.

Simultaneamente a essa “modernização” ocorrida em São Paulo no início do século XX, os paulistas assistem à destruição de uma grande parcela de seu patrimônio colonial. Frente a isso, Dom Duarte demonstrou possuir uma sensibilidade histórica muito aguçada e é possível destacar duas das criações de seu governo como reflexo desta preocupação: o Arquivo Geral do Arcebispado e o Museu de Arte Sacra.

Arquivo da cúria

Para entender a criação do Museu da Cúria, é importante tratar da repartição da Cúria ao qual ele foi subordinado em sua primeira fase: o Arquivo.

Durante os primeiros anos de seu governo à frente da arquidiocese, Dom Duarte percebeu vários problemas causados pela falta de um sistema de arquivo centralizado que unificasse e preservasse os documentos e livros espalhados pelas então 122 paróquias do vasto território sob sua jurisdição e mantidos, em sua maioria, em péssimo estado de conservação (Souza, 2005_______. Um histórico do Arquivo da Cúria de São Paulo. In: VILHENA, M. A.; PASSOS, J. D. (Org.) A igreja de São Paulo: presença católica na história da cidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p.337-51., p.338). Disso surge outra iniciativa marcante de seu governo, a criação do arquivo geral do arcebispado em 1918. Com a criação do novo espaço físico, ele determina que todos os livros e documentos avulsos fossem recolhidos dentro de um prazo determinado (Paula, 1966PAULA, M. R. C. R. S. As fontes primárias existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (Capital). Revista de História, São Paulo, v.32, n.66, p.437-93, abr./jun. 1966., p.438).

Apesar de sua publicação ser posterior, também é possível que as dificuldades de acesso aos documentos encontradas pelo arcebispo durante a elaboração de sua série de conferências reunidas sob o título “O Clero e a Independência”, tenham motivado ainda mais seu projeto de arquivo eclesiástico.

O arcebispo também escreveu, ele próprio, o regulamento do Arquivo, onde fica claro o desejo de preservação de toda aquela documentação para a posteridade. Suas preocupações, inclusive, estavam muito avançadas ao considerar não apenas a guarda daqueles materiais, mas também a sua desinfecção antes da entrada no acervo e o funcionamento de uma oficina especializada para o restauro e encadernação.

Os bens da antiga catedral

Movido por seu impulso de colecionador7 7 Sua coleção particular de numismática, por exemplo, é ainda hoje de grande valor, devido ao volume de itens e sua amplitude temporal. e admirador de arte, logo após assumir a diocese de São Paulo, Dom Duarte começou a recolher diversas peças das antigas igrejas e capelas paulistas, com o intuito de evitar que estas sumissem ou fossem destruídas perante o avanço do “progresso” da época, salvaguardando-as (Neto, 1973NETO, P. A. O. R. Museu de Arte Sacra de São Paulo. São Paulo: Gráficas Brunner, 1973., p.5).

Infelizmente, ainda não foi encontrada documentação segura relativa à data de criação do Museu da Cúria. Entretanto, através das políticas de preservação dos bens da igreja adotadas pelo prelado de São Paulo antes da demolição da antiga Sé em 1911, já é possível reconhecer seu anseio embrionário pela criação de uma coleção. Aqui, é importante lembrar que ele foi o “idealizador” da nova catedral - a ideia já existia desde o século anterior, mas foi Dom Duarte quem possibilitou a sua materialização na atual construção.

As tratativas para a construção da nova catedral de São Paulo iniciaram em reunião da Assembleia Provincial, realizada a 21 de março de 1888, onde foi votada a Lei n.54 que concedia 2 mil contos para a empreitada. A história daquela igreja, porém, sofreu um revés quando, exatamente, no dia 15 de novembro de 1889, após uma reunião convocada por Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho para discutir a nova catedral, teve fim o regime monárquico. Com isso, os planos da nova igreja também ficaram no passado, já que não seria mais possível contar com o aporte anteriormente assegurado pela Assembleia.

Os sucessores de Dom Lino na cátedra paulista não conseguiram retornar ao assunto. Dom Antonio Candido de Alvarenga teve seu bispado marcado pelo conflito judicial entre a Cúria e o Estado que envolvia a antiga igreja do Colégio. Dom José de Camargo Barros, por sua vez, teve um governo abreviado por seu falecimento no naufrágio citado anteriormente e não houve tempo de retomar a questão.

Apenas com Dom Duarte a discussão sobre a sé paulista é reiniciada. Diante de todas as transformações urbanísticas que estavam ocorrendo em São Paulo, o bispo viu-se na obrigação de aproveitar o momento para modernizar e aumentar a principal igreja da cidade. Assim, em 25 de janeiro de 1912, Dom Duarte convoca representantes das famílias mais influentes de São Paulo para uma reunião no Palácio São Luiz e, desse encontro, nascem a Comissão Executiva e o Conselho Geral da Nova Catedral de São Paulo, equipes responsáveis por levantar fundos e coordenar a construção da nova catedral.

Nessa reunião, Dom Duarte realiza um memorável discurso, onde deixa bem clara a retórica por detrás da construção (a fala é também um exemplo da escrita e oratória tão elogiadas do arcebispo):

[...] nós, católicos e paulistas, queremos uma catedral que seja uma escola de arte e um estímulo a pensamentos mais nobres e mais elevados, queremos uma catedral opulenta, que, testemunhando a fartura dos nossos recursos materiais, seja também um hino de ação de graças a Deus [...] Por uma lei histórica e fatal, São Paulo há de sempre caminhar na vanguarda, tem a cumprir uma grande missão política e social, e a sua hegemonia, civil e religiosa, já não pode ser contestada. Pois bem, o monumento artístico e religioso que breve se há de erguer [...] há de ser o selo dessa imensa e poderosa grandeza [...] (Dantas, 1974DANTAS, A. Dom Duarte Leopoldo. São Paulo: Sociedade Impressora Pannartz, 1974., p.42-43)

Pouco antes da demolição da antiga catedral, Dom Duarte já determinara a distribuição das obras de arte e objetos sacros da igreja que seria demolida para serem custodiados por outras igrejas, conventos, membros do clero e pessoas de sua confiança, já com o intuito de reuni-los (ao menos sua maioria) posteriormente em uma coleção unificada.

Um museu de Arte Sacra

É bem provável que uma parte dessa primeira parcela inicial do acervo, durante a década de 1910, tenha sido incorporada à decoração do Palácio São Luiz8 8 O Palacete foi comprado pela Cúria Metropolitana em 1909 por ordem de Dom Duarte, e passou a ser conhecido como Palácio São Luiz ou Palácio Episcopal. (Figura 2), que se tornou a residência episcopal após a venda do Solar da Marquesa de Santos9 9 O Palacete foi comprado pela Cúria Metropolitana em 1909 por ordem de Dom Duarte, e passou a ser conhecido como Palácio São Luiz ou Palácio Episcopal. (que funcionava como cúria e palácio episcopal na época) para a “The San Paulo Gas Company”.

O primeiro edifício a abrigar a coleção de forma unificada e institucional foi o novo prédio da Cúria (Figura 3), oficialmente inaugurado em 1920 e situa- do na época à Rua Santa Thereza, n.17, no bairro da Sé. Inicialmente, o Museu Histórico da Mitra ou Museu de Arte Sacra do Arcebispado funcionava em uma sala nos fundos do Arquivo da Cúria. Entretanto, com o rápido crescimento da coleção, Dom Duarte constrói um novo edifício ao lado do Arquivo para abrigá-la (Soares, 1954SOARES, J. C. M. Fontes da História da Igreja Católica no Brasil. Rio de Janeiro: Separata da Revista do IHGB, 1954., p.308).

O órgão foi criado pelo prelado paulista como uma dependência do Arquivo da Cúria e administrado à época também pelo Comendador Francisco de Sales Collet e Silva (Souza, 2004SOUZA, N. (Org.). Catolicismo em São Paulo: 450 anos de presença da Igreja Católica em São Paulo. 1554-2004. São Paulo: Paulinas, 2004., p.434). Assim como o Arquivo, o Museu não possui uma data oficial de abertura conhecida. Entretanto, fica evidente que seu surgimento como órgão da Cúria se dá concomitante ao Arquivo, visto que os bens já vinham sendo coletados há certo tempo e com a ordem por recolher os documentos de toda a arquidiocese, esta coleção deve ter aumentado consideravelmente.

Assim como ocorreu com o patrimônio da antiga Catedral da Sé, quando de sua demolição a golpes de picareta, os bens de diversas outras igrejas coloniais teriam sido previamente resgatados (Godinho, 1983GODINHO, A. O. (Org.). O Museu de Arte Sacra de São Paulo. São Paulo: Banco Safra/Melhoramentos, 1983., p.5) e depositados em local indicado pelo arcebispo (palácio episcopal ou edifício da cúria) passando, depois, a fazer parte do acervo do museu.

Assim, o museu que visava salvaguardar artefatos de uso religioso, litúrgico e civil foi constituído pelo arcebispo com o objetivo de preservar parte importante da memória histórica e artística da cidade, do estado e do próprio país por meio da formação de um rico acervo constituído de arquitetura, mobiliário, pinturas e desenhos, imaginária, prataria e ourivesaria, indumentária e alfaias, livros e documentos raros, presépios e numismática procedentes de São Paulo e diversas partes do Brasil e de outros países.

Figura 2
Fachada do Palácio São Luiz [s.d.]

Figura 3
Edifício da Cúria Metropolitana em 1920.

Com o museu, todas as peças foram reunidas num espaço seguro, porém muito pequeno, o que não facilitava sua visitação pública, fato inclusive atestado por Mário de Andrade numa de suas correspondências (1943ANDRADE, M. de. [Correspondência]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. São Paulo, 12 mar. 1943. f.2. Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, cód. do documento: MA-SPHAN-151.) a Rodrigo Melo Franco de Andrade após visita realizada à instituição cinco anos depois da morte de Dom Duarte. Nessa carta-relatório o pesquisador elenca as dificuldades que encontrou ao tentar fotografar algumas telas do acervo posicionadas no alto, em lugar de difícil acesso, e a falta de disposição dos funcionários em ajudá-lo.

Por outro lado, como lembrado no artigo de Silva-Nigra (1954, p.31) publicado na edição especial do jornal O Estado de S. Paulo para as comemorações do IV centenário da cidade, na década de 1950, o Museu da Cúria já era famoso como o mais importante do gênero no país e eram reconhecidos o interesse e os esforços de Dom Duarte no recolhimento daquelas peças que teriam sido dispensadas ou destruídas.

A nova sede no Convento da Luz

Mais tarde, a transferência do museu para uma nova sede - necessária para o correto armazenamento, exposição e possibilidade de ampliação do acervo - foi negociada entre o estado de São Paulo e a Mitra durante a gestão do governador Abreu Sodré e do cardeal Dom Agnelo Rossi. A criação da instituição se deu em 1969 e, a inauguração da nova sede, no ano seguinte.

Com isso, a atual instituição, chamada de Museu de Arte Sacra de São Paulo, passa a ser sediada no Convento da Luz10 10 Edifício tombado pelo Sphan em 1943 e cuja construção foi iniciada em 1774 por Frei Galvão. (Figura 4), um histórico edifício setecentista construído em taipa de pilão e que, anteriormente, já abrigava o Mosteiro das Irmãs Concepcionistas, na Avenida Tiradentes, bairro da Luz.

O deslocamento do acervo para o antigo conjunto do Convento da Luz é um acontecimento muito relevante - que, apesar de posterior ao falecimento de Dom Duarte, pode ser compreendido como consequência de seus esforços. Tanto o edifício do convento, como o acervo recolhido por Dom Duarte, são testemunhos materiais da história colonial paulista e raros exemplares da preservação do patrimônio histórico frente ao crescimento da cidade: “O Mosteiro da Luz é o mais eloquente documento da arquitetura colonial que sobreviveu em São Paulo, e sobreviveu com toda a sua integridade. Quem conhece a permanente mutação desta cidade constata que este fato é realmente extraordinário, para não dizer um milagre” (Bonanni; Schmidt, 1987BONANNI, H.; SCHMIDT, C. V. (Coord.) Museu de Arte Sacra, Mosteiro da Luz. São Paulo: Ed. Artes, 1987., p.37-8).

Do ponto de vista da preservação, também é interessante perceber que a partir de 1969 aquele patrimônio torna-se compartilhado com o governo estadual, que proporciona a sua salvaguarda e a ampliação do acervo. Somado a isso, há também a influência que a decisão causou na própria paisagem paulistana, pois, a restauração daquele edifício com a preocupação de preservar suas condições originais lhe deu a possibilidade de voltar a ser um organismo de significado histórico vivo dentro da cidade (Mascarenhas, 2020MASCARENHAS, C. Dom Duarte Leopoldo e Silva, o Museu da Cúria e a Preservação da Arte Sacra em São Paulo. Piratininga, São Paulo, v.2, p.12-16, 2020., p.15).

Figura 4
Fachada do Museu de Arte Sacra de São Paulo em 1971.

Conclusão

Mediante a biografia de Duarte, é possível perceber o forte interesse histórico que caracteriza a maioria de suas atitudes no governo da igreja paulista. Além de sua participação ativa no IHGSP, com estudos e conferências, o seu profundo interesse pela preservação da memória através do recolhimento e catalogação de documentos e bens que contam a história de São Paulo e do Brasil atestam sua preocupação com a transmissão cultural. Mesmo que o progresso não pudesse ser freado, o arcebispo conseguiu, de alguma maneira, com a transferência e salvaguarda dos objetos da antiga catedral, preservar importantes documentos materiais da religiosidade e da história paulista.

É interessante notar que o processo de “modernização” da São Paulo colonial - onde a taipa é substituída por tijolos - tratou-se, na verdade, de uma tentativa de ocultamento e negação daquele passado histórico. Nesse contexto, deve ser valorizada a atitude de Dom Duarte frente ao patrimônio religioso e cultural que vinha sendo destruído ou esquecido.

A decisão de recolher aquelas peças e criar um museu de tipologia sacra e religiosa, constituiu um marco importante na cultura do início do século passado ao apresentar uma mudança de atitude em relação ao tema da conservação do patrimônio sacro que merece ser exaltada por seu pioneirismo. Através de um pensamento original nos campos do colecionismo e da preservação, o projeto do prelado paulista foi precursor e ia de encontro à reflexão moderna sobre o que deveria ou não ser preservado da destruição e do esquecimento.

Por muito tempo, a própria Igreja, por vezes através de decisões precipitadas de seu clero, demoliu os edifícios coloniais para reconstruí-los numa forma considerada mais adequada às exigências modernas, ao “gosto” moderno, por vezes negligenciando seu patrimônio. Com a migração do museu da cúria para o mosteiro da luz, essas peças são devolvidas a um edifício que pertence à memória do passado colonial.

Nas atitudes de Dom Duarte, pode-se ver um projeto inovador para a época e coerente com a modernização da cidade. Assim, a história da formação do Museu de Arte Sacra de São Paulo abre caminho para a reflexão sobre a história da preservação durante o processo de modernização e a relação desse patrimônio sacro com a própria paisagem paulista.

Referências

  • ANDRADE, M. de. [Correspondência]. Destinatário: Rodrigo Melo Franco de Andrade. São Paulo, 12 mar. 1943. f.2. Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, cód. do documento: MA-SPHAN-151.
  • ASSIS, V. R. Dom Duarte Leopoldo e Silva, 1º Arcebispo de São Paulo. São Paulo: Catanduva, 1967.
  • BOLETIM ECCLESIASTICO: Orgam Official da Diocese de São Paulo. São Paulo, jan./mar. 1907.
  • BONANNI, H.; SCHMIDT, C. V. (Coord.) Museu de Arte Sacra, Mosteiro da Luz. São Paulo: Ed. Artes, 1987.
  • DANTAS, A. Dom Duarte Leopoldo. São Paulo: Sociedade Impressora Pannartz, 1974.
  • GODINHO, A. O. (Org.). O Museu de Arte Sacra de São Paulo. São Paulo: Banco Safra/Melhoramentos, 1983.
  • MASCARENHAS, C. Dom Duarte Leopoldo e Silva, o Museu da Cúria e a Preservação da Arte Sacra em São Paulo. Piratininga, São Paulo, v.2, p.12-16, 2020.
  • MICELI, S. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
  • NETO, P. A. O. R. Museu de Arte Sacra de São Paulo. São Paulo: Gráficas Brunner, 1973.
  • PAULA, M. R. C. R. S. As fontes primárias existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (Capital). Revista de História, São Paulo, v.32, n.66, p.437-93, abr./jun. 1966.
  • PHILIPPOV, K. A obra religiosa de Benedito Calixto de Jesus através do mecenato de Dom Duarte Leopoldo e Silva na Igreja de Santa Cecília. Campinas, 2016. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.
  • SILVA, D. L. O Clero e a Independência: Conferências Patrióticas. Rio de Janeiro: Centro D. Vital, 1923.
  • SILVA-NIGRA, C. M. Sobre as artes plásticas na antiga capitania de São Vicente. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 25.1.1954. p.31.
  • SOARES, J. C. M. Fontes da História da Igreja Católica no Brasil. Rio de Janeiro: Separata da Revista do IHGB, 1954.
  • SOUZA, N. (Org.). Catolicismo em São Paulo: 450 anos de presença da Igreja Católica em São Paulo. 1554-2004. São Paulo: Paulinas, 2004.
  • _______. Um histórico do Arquivo da Cúria de São Paulo. In: VILHENA, M. A.; PASSOS, J. D. (Org.) A igreja de São Paulo: presença católica na história da cidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p.337-51.

Notas

  • 1
    “Todos sabem com quanto cuidado e solicitude me devotei a essa grandiosa empresa [...]. Não existe aí um único tijolo que me seja desconhecido. No interior dessas largas muralhas, desde os primeiros alicerces até o alto da elevada cúspide, não se encontrará um punhado de argamassa que não tivesse cuidadosamente examinado. Como as palmas das minhas mãos, conheço todas as linhas, todas as curvas, todos os pequeninos segredos dessa mimosa edificação” - Trecho de sua eloquente carta de despedida aos paroquianos de Santa Cecília (Assis, 1967, p.44).
  • 2
    Oscar Pereira da Silva (1867-1939), Carlo De Servi (1871-1947) e Gino Catani (1879-1944).
  • 3
    Essa diocese foi criada em 1892 e, à época, compreendia todo o território dos estados do Paraná e de Santa Catarina.
  • 4
    Sua nomeação é publicada em 18 de dezembro de 1906 e sua posse ocorre em 14 de abril de 1907.
  • 5
    Dom José de Camargo Barros falece em 4 de agosto de 1906, vítima do naufrágio do navio “Sírio” na costa espanhola. O famoso episódio é, inclusive, retratado em uma tela do acervo do MAS-SP executada por Benedito Calixto.
  • 6
    O governo republicano publicou o decreto de separação entre Igreja e Estado em 7 de janeiro de 1890.
  • 7
    Sua coleção particular de numismática, por exemplo, é ainda hoje de grande valor, devido ao volume de itens e sua amplitude temporal.
  • 8
    O Palacete foi comprado pela Cúria Metropolitana em 1909 por ordem de Dom Duarte, e passou a ser conhecido como Palácio São Luiz ou Palácio Episcopal.
  • 9
    O Palacete foi comprado pela Cúria Metropolitana em 1909 por ordem de Dom Duarte, e passou a ser conhecido como Palácio São Luiz ou Palácio Episcopal.
  • 10
    Edifício tombado pelo Sphan em 1943 e cuja construção foi iniciada em 1774 por Frei Galvão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2020
  • Aceito
    05 Mar 2021
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