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Notícias de uma assembleia tempestuosa: a ecologia política segundo os kaiowa e guarani

RESUMO

A partir do relato etnográfico sobre uma assembleia Aty Guasu, dos kaiowa e guarani de Mato Grosso do Sul, o artigo propõe uma aproximação entre as formulações indígenas e as reflexões da ecologia política, a fim de encontrar parâmetros para melhor descrever a proposta política desse povo indígena e seus embates com o setor ruralista e o governo federal. O objetivo é discutir, a partir de um caso emblemático, limites e alcances da aproximação de nosso debate democrático com os movimentos indígenas latino-americanos.

PALAVRAS-CHAVE:
Kaiowa e guarani; Ecologia política; Natureza; Democracia; Cosmopolítica

ABSTRACT

Based on the ethnographic account of an Aty Guasu assembly of the Kaiowa and the Guarani of Mato Grosso do Sul (Brazil), this article proposes an approximation between indigenous formulations and reflections of political ecology to find parameters that better describe the political proposal of these indigenous peoples and their clashes with local landowners and the federal government. The objective is to discuss, based on an iconic case, the limits and scope of our democratic debate as it pertains to the Latin American indigenous movements..

KEYWORDS:
Kaiowa and Guarani; Political ecology; Nature; Democracy; Cosmopolitics

Figura 1
Árvore derrubada pela tempestade, sobre barracas do acampamento na Aty Guasu de outubro de 2009.

Outubro de 2009. Já é noite quando desembarco na rodoviária de Iguatemi, cidade sul-mato-grossense que fica no extremo-sul do estado, a poucas dezenas de quilômetros do estado do Paraná e também da fronteira com o Paraguai. O tempo parece estar fechando enquanto eu janto e procuro saber como posso chegar até a aldeia, mas não poderia imaginar o que aconteceria depois.

Logo descubro que táxis ou mototáxis não percorrem à noite os cinco quilômetros de estrada arenosa que separam a cidade de Porto Lindo. “É perigoso, já houve assaltos, você não vai encontrar quem te leve lá. É melhor deixar para ir amanhã de manhã...”, dizem-me. Entendo o clima de reticências. Estivera ali pela última vez em dezembro de 2003, exatamente quando os guarani deflagraram a ocupação de fazendas instaladas sobre terras que eles reivindicavam como parte de suas terras tradicionais. Chamada de Yvy Katu - terra boa, em guarani -, a área retomada já foi identificada e declarada Terra Indígena por meio de portaria do Ministério da Justiça (com 9,4 mil hectares), mas, até hoje, parte dela encontra-se sob disputa judicial.1 1 Segundo o Instituto Socioambiental, Yvy Katu é uma das 41 terras indígenas kaiowa e guarani em Mato Grosso do Sul, povo que contava com 46 mil pessoas no Censo do IBGE de 2010, sendo o segundo maior do país. Além disso, há mais de trinta acampamentos aguardando regularização das terras, segundo o Conselho Indigenista Missionário (apud Pimentel, 2012a).

Até antes dessa ação, os guarani da comunidade (3,9 mil pessoas, segundo o Censo do IBGE de 2010) dispunham de cerca de 1.650 hectares, de um total de 2 mil reservados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1928 (Cimi-MS et al., 2001). Mesmo a área então destinada a eles havia sido parcialmente ocupada por colonos karaí - como eles costumam chamar os não indígenas.2 2 Yvy Katu é uma terra com presença quase exclusiva de falantes da variante nhandeva, que se intitulam guarani no contexto de MS. Na maior parte das localidades, os guarani convivem com os kaiowa. Por isso os indígenas preferem falar “guarani e kaiowa” em vez de usar o termo “guarani-kaiowa”. As Aty Guasu expressam a aliança entre os dois grupos (cf. Pimentel, 2012a).

Lembro-me, ainda, da grande variedade de máscaras e pinturas usadas pelos guarani naquela ação. Vivendo tão perto da cidade, à qual é sempre necessário recorrer para fazer compras, sacar dinheiro e articular apoio público à aldeia, era necessário resguardar-se. As imagens eram impressionantes. Na ponte entre a cidade e a terra indígena, poucos dias antes de minha visita, um quase confronto entre os fazendeiros locais e os guarani mascarados, muitos deles a cavalo, portando arcos e flechas e seus típicos yvyrapara (“varas listradas”, sempre usadas nesse tipo de ação), fora filmado por um repórter em visita à região.

Até hoje, nas reuniões políticas, essas imagens são sucesso nas sessões noturnas após o jantar, durante as quais sempre se apresentam produções relativas à luta pela terra. O tal vídeo é uma espécie de prova de uma violência que é quase sempre negada pelos fazendeiros - mas não apenas isso, como veremos.

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Foi entre os anos 1960 e 1970 que emergiu em diversos pontos do mundo uma reflexão profunda sobre os limites do capitalismo industrial e do chamado “desenvolvimento” (Furtado, 1974FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1974.), ensejando o campo conhecido como ecologia política. Alimonda (2015ALIMONDA, H. Una introducción a la Ecología Política latinoamericana (pasando por la historia ambiental). Buenos Aires: Clacso, 2015.) e Souza (2019SOUZA, M. L. de. Territórios e ambientes - uma introdução à ecologia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.) demonstram como, em diferentes tradições acadêmicas - anglo-saxã, francófona, hispanofalante ou latino-americana -, o termo envolveu diversas configurações, variações, ênfases. Seguramente dialogando com a expressão “economia política”, em diversas ocasiões, mas sempre buscando ultrapassá-lo, o que se destaca, em comum, é que a chamada natureza, ou recursos naturais, sejam definitivamente levados em conta nas discussões políticas e no estudo das desigualdades econômicas.

Acselrad (2004) mostra como se espalham pela América Latina os exemplos de movimentos sociais envolvidos nos chamados “conflitos ambientais” cujas ações vão ao encontro do esboçado por essa proposta teórica, chamando a atenção para a necessidade de não separar natureza e economia - ao contrário do que diversos governos, empresas e outros atores no debate público no continente buscaram e buscam fazer.

Porto-Gonçalves (2006) apontou, à época, uma das decorrências desse novo cenário, em que questões sociais e ambientais já não se opõem, mas tornam-se correlacionadas. Ele alerta que, no estágio atual do debate público global, não faz nenhum sentido considerar as populações indígenas, camponeses ou quilombolas “atrasadas”, como apareciam, anteriormente, no discurso dos apóstolos do “progresso” e do “desenvolvimento”, por um lado, ou dos adeptos da teleologia marxista, por outro, para os quais os “coveiros” do capitalismo - os grupos sociais destinados a questionar e superar o sistema - estariam nas cidades. No cenário brasileiro, os movimentos indígenas ganharam especial visibilidade nos últimos anos, em razão de escancararem, com seus testemunhos, os efeitos do avanço de setores como o agronegócio e a mineração sobre seus territórios. Foi nesse contexto que os kaiowa e guarani ganharam crescente visibilidade internacional, desde 2012.

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Mas, voltando à noite em Iguatemi: diante da impossibilidade de chegar à terra indígena, e com o avançado da hora, resigno-me e procuro um hotel para logo dormir e tentar madrugar, no dia seguinte, a fim de chegar até o local da reunião. É o tempo de registrar-me no hotel, e o céu despenca. Uma tempestade forte, típica da primavera na região, com direito a granizo, vento e muitos raios. Parte do hotel vai se alagando rapidamente, e até me mudam o quarto para escapar ao dilúvio. Eu certamente teria tido problemas se tivesse insistido em ir à aldeia.

Cansado, adormeço rapidamente, para acordar bem cedo no dia seguinte. Após o café, saio à rua e, sem dificuldades, consigo o mototáxi para levar-me até Yvy Katu. Pelo caminho, vou admirando os danos causados pela tormenta. Em meio às antigas pastagens das fazendas de gado, vejo pequenas casas espalhadas, bem ao gosto guarani, nos lugares ocupados em 2003. A certa altura, a estrada está interrompida, e não há como passar, em função do atoleiro.

Sigo a pé, por cerca de um quilômetro, até o posto fiscal ao lado do qual está armada, bem perto da estrada, a estrutura da assembleia da Aty Guasu. Bem... Onde deveria estar armada. A força do vento levara várias das lonas pretas sob as quais os convidados dormiam. Muitos têm seus pertences encharcados. A tenda central, sob a qual deveria acontecer a assembleia, também fora vencida pela tempestade. Desde cedo, é árduo o trabalho para remontar tudo, em meio à lama.

Percorro a área do evento, cumprimentando as pessoas e inteirando-me do que ocorrera na noite anterior. Tinha sido mesmo enorme a força dos ventos. Uma árvore inteira fora arrancada, pelas raízes, caindo sobre uma das barracas de lona montadas para os convidados (Figura 1). Pelo menos uma pessoa, segundo informações, fora atingida no incidente e já estava sendo medicada. Com um pouco de atraso, a reunião começa a céu aberto. Como sempre, são os xamãs, ou rezadores, nhanderu e nhandesy (“nosso pai”, ou “nossa mãe”) que abrem o evento, com os cantos porahei, inicialmente kaiowa e, depois, guarani, como que evidenciando a aliança política entre os dois grupos no âmbito das Aty Guasu.

Os cantos saúdam a chegada de todos e também a vinda das entidades celestes para a assembleia, especialmente nosso irmão maior, o Sol, Kuarahy. Num evento dessa magnitude, com centenas de convidados, dúzias de pessoas que sabem entoar os cantos se reúnem com seus mbaraka e takuapu (maracás e taquaras, essas percutidas no chão durante os cantos, marcando o ritmo) em punho para formar um imenso coro, sejam rezadores reconhecidos ou aprendizes (yvyraija).

Oficialmente aberta a reunião, começam os informes a respeito da questão pública por excelência entre os kaiowa e guarani que participam do movimento Aty Guasu: as disputas pela terra. É para informar-se, ouvir e falar com as autoridades sobre a disputa de seu grupo em particular e para chegar a conclusões sobre a conjuntura política geral que as lideranças se deslocam de suas casas até o local da assembleia, às vezes a até 300 quilômetros de distância. Da forma como são praticadas hoje, reunindo lideranças das dezenas de grupos locais com a finalidade de discutir a questão da terra, as Aty Guasu surgiram em meados dos anos 1980, no período em que o movimento indígena se organizava por todo o país, durante a redemocratização (Pimentel, 2015_______. Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowá e guarani: os indígenas de MS e a luta pela redemocratização do país. In: CHAMORRO, G.; COMBÉS, I. (Org.) Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul. Dourados: Ed. UFGD, 2015.; Benites, 2014BENITES, T. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Rio de Janeiro, 2014, Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional do Rio de Janeiro.).

No final dos anos 1970, dois grupos de apoiadores começavam a trabalhar em Mato Grosso do Sul (MS): o Projeto Kaiowa Nhandeva (PKN), iniciativa não governamental dirigida por antropólogos ligados, então, à Universidade de São Paulo, e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), grupo católico fundado em 1972, oriundo da renovação das pastorais que resultara da influência da Teologia da Libertação e, até hoje, órgão oficial da Igreja Católica, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (Pimentel, 2015_______. Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowá e guarani: os indígenas de MS e a luta pela redemocratização do país. In: CHAMORRO, G.; COMBÉS, I. (Org.) Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul. Dourados: Ed. UFGD, 2015.; Silva, 2015SILVA, M. A. Missões católicas contemporâneas em Mato Grosso do Sul: dilemas e tensões entre a Pastoral Indigenista e o Conselho Indigenista Missionário. In: CHAMORRO, G.; COMBÉS, I. (Org.) Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul. Dourados: Ed. UFGD, 2015.).

O ambiente de abertura política permitia que reverberassem nacionalmente as denúncias feitas pelos grupos kaiowa e guarani sobre processos de expulsão de suas terras de ocupação tradicional, praticados por colonos brancos que, muitas vezes, haviam aproveitado por décadas a abundante e barata mão de obra indígena, antes de literalmente despejarem famílias inteiras dentro das oito antigas reservas demarcadas pelo SPI entre 1915 e 1928, muitas vezes, segundo testemunhos, contando com apoio oficial da própria Funai e outros órgãos públicos (Kehl et al., 2014KEHL, M. R. et al. Violações de direitos humanos dos povos indígenas. In: Comissão Nacional da Verdade - Relatório - Volume II - Textos Temáticos (5). Brasília, 2014.).

Uma vez que os kaiowa e guarani perceberam as mudanças no cenário político, foram aproveitando o oportuno apoio que chegava, pouco a pouco direcionando os esforços do PKN e do Cimi para seus próprios objetivos. Eles tomaram a iniciativa de inverter a pauta das discussões, levando o PKN a encarar a necessidade de ampliar as terras demarcadas e impedir a expulsão das famílias de áreas tradicionalmente ocupadas, em vez de concentrar esforços no aumento da produção agrícola nas terras já disponíveis - consideradas insuficientes pelos indígenas (Almeida, 2001ALMEIDA, R. T. Do Desenvolvimento Comunitário à Mobilização Política - O Projeto Kaiowa-Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contracapa, 2001.).

Após vitórias em duas áreas de onde se conseguiu impedir a expulsão dos grupos que ali habitavam - Paraguassu, em Paranhos, e Rancho Jakare, em Laguna Carapã -, as lideranças foram, cada vez mais, ganhando confiança. Em Campo Grande, um grande evento, em 1980, lançou as bases para uma organização indígena de projeção nacional, a União das Nações Indígenas (UNI). Marçal de Souza, enfermeiro guarani que trabalhava na Funai e tinha proximidade com os grupos católicos e antropólogos, se projetava como porta-voz da causa kaiowa e guarani.

A grande mobilização inaugural do movimento, que lançaria as bases para as Aty Guasu, aconteceu em 1985, na área conhecida como Pirakuá, justamente após a morte de Marçal, assassinado na Vila Campestre, em Antonio João, em novembro de 1983. O crime ocorrera logo após Marçal denunciar publicamente que recebia pressão de fazendeiros para ajudar a convencer um grupo kaiowa a deixar voluntariamente a área que ocupavam, uma morraria à beira do rio Apa (Pimentel, 2015_______. Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowá e guarani: os indígenas de MS e a luta pela redemocratização do país. In: CHAMORRO, G.; COMBÉS, I. (Org.) Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul. Dourados: Ed. UFGD, 2015.; Pereira, 2003PEREIRA, L. M. O movimento étnico-social pela demarcação das terras guarani em MS. Tellus, v.3 n.4, 2003.).

A morte de Marçal deu combustível à ideia de unir esforços na luta pela demarcação de terras. Vindos de todos os cantos, centenas de kaiowa e guarani reuniram-se no Pirakuá, na região do Rio Apa, para ajudar o grupo local a resistir. Em 1985, Pirakuá era interditada aos fazendeiros e identificada como terra indígena pelo governo federal, tornando-se um marco histórico da resistência.

O episódio fortaleceu definitivamente a ideia de realizar mobilizações para apoio mútuo entre as dezenas de grupos kaiowa e guarani. Como já sublinharam atores como Celso Aoki, outro dos antropólogos do PKN, recentemente falecido, e o xamã Atanásio Teixeira, foi decisivo o impulso dado pelos xamãs, enfatizando o significado cosmológico da luta pela terra. As reuniões começam primeiro como Jeroky Guasu (grandes rezas), para depois tornarem-se Aty Guasu (apud Pimentel, 2015_______. Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowá e guarani: os indígenas de MS e a luta pela redemocratização do país. In: CHAMORRO, G.; COMBÉS, I. (Org.) Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul. Dourados: Ed. UFGD, 2015.).

Estritamente, a associação entre cantos e política já aparecia em reuniões promovidas pelo PKN em 1979 (Benites, 2014BENITES, T. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Rio de Janeiro, 2014, Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional do Rio de Janeiro., p.190-1). Vale observar, contudo, que os episódios do Pirakua marcam a história do movimento, segundo várias testemunhas, em função de que ali os rezadores passaram a efetivamente ditar os rumos das Aty Guasu, num momento em que os capitães e lideranças familiares - lideranças temporais - pareciam espiritualmente (cosmologicamente) desnorteados.

A partir dos episódios no Pirakuá, apareceu a ideia de associar os Jeroky Guasu às reuniões políticas - essa é, até hoje, a receita básica de uma Aty Guasu. O momento dessa passagem foi marcante, como registra um texto de Almeida (1991ALMEIDA, R. T. O fortalecimento dos Aty Guasu. In: Aconteceu Especial 18 - Povos Indígenas no Brasil 1987-1990. São Paulo: Cedi, 1991. p.544-6., p.546) sobre o período imediatamente posterior aos fatos ocorridos na aldeia de Bela Vista: “A cada quatro ou cinco semanas realizam-se, num tekoha 3 3 Tekoha: Teko - modo de ser, ha - lugar, ou, na tradução corrente, “o lugar onde podemos viver conforme nosso modo de ser”. No âmbito das discussões indigenistas em MS, utiliza-se o termo para traduzir a expressão “terras de ocupação tradicional” (cf. Pimentel, 2012a). previamente combinado, dois dias de encontro, onde discutem durante o dia e rezam à noite”.

* * *

Em primeiro lugar, é possível dizer que, conforme os veteranos do movimento com quem dialogamos, foi no Pirakuá que as características cosmopolíticas do movimento Aty Guasu estabilizaram-se no formato até hoje predominante. Atanásio e outros rezadores como Delosanto Centurião, a partir do Pirakuá, estabeleceram de forma definitiva que havia um vínculo necessário e incontornável entre xamanismo e luta pela terra: sem uma aliança das lideranças políticas e os nhanderu e nhandesy, a luta não avançaria. Nesse sentido, falou-se, alhures, em uma “cosmopolítica indígena”: uma proposta política que não é pensada sem o cosmos (Pimentel, 2012b_______. Cosmopolítica kaiowa e guarani: uma crítica ameríndia ao agronegócio. R@u, v.4 n.2, 2012b.).

O termo “cosmopolítica” tem sido usado pela etnologia no Brasil a partir das sugestões de autores como Viveiros de Castro, entre outros. É tomado do contexto francês, em que foi disseminado entre antropólogos por Latour, a partir de sua utilização na obra de Stengers. Em pelo menos duas das obras em que maneja o conceito, Latour (2001, p. 347) apresenta definições dele em glossários. Num deles, aponta que se referiria à “nova política, não mais enquadrada no acordo modernista da natureza e da sociedade. Hoje existem diferentes políticas e diferentes cosmos”. No outro, diz o seguinte.

Cosmo, cosmopolítica: leva-se em conta aqui o sentido grego de arranjo, de harmonia, ao mesmo tempo que aquele, mais tradicional, de mundo. É então um sinônimo do bom mundo comum, o que Isabelle Stengers chama cosmopolítica (não no sentido multinacional, mas no sentido metafisico de política do cosmo). (Latour, 2004_______. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc, 2004., p.374)

O fato é que, embora Latour (2004_______. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc, 2004.) empregue o termo, adotado por etnólogos brasileiros como resposta ao desafio contemporâneo da Antropologia de “politizar a natureza” (Viveiros de Castro, 1999), ele também discute amplamente com a ecologia política, tomando-a como um campo a partir do qual diversos atores de fato já se mobilizavam em torno desse mesmo desafio havia algumas décadas.

Em que sentido, então, Latour questiona a ecologia política e sua aparente incapacidade de superar uma posição mais marginal nas discussões políticas nacionais? Ora, como alerta Alimonda (2015ALIMONDA, H. Una introducción a la Ecología Política latinoamericana (pasando por la historia ambiental). Buenos Aires: Clacso, 2015.), o sentido dessa “politização da natureza” varia de acordo com o contexto em que esse debate emerge. É possível entender, portanto, que o autor francês esteja se referenciando no cenário europeu e, em particular, o de seu país - governado por uma coalizão encabeçada pelos socialistas e apoiada pelo Partido Verde entre 1997 e 2002.

O Partido Verde (PV) francês, portanto, assumiu, em alguma medida, posição semelhante à endossada por grande parte dos ecologistas - filiados ou não ao PV - no Brasil, em relação à coalizão encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) que governou o país entre 2003 e 2016. Sintomaticamente, em 2010, o PV francês declarou apoio oficial a Dilma Rousseff no segundo turno das eleições. Pois foi justamente nesse governo de 2011 a 2014 que se consolidou um rompimento do PT com grupos ecologistas, a partir de projetos como a emblemática Usina Hidrelétrica de Belo Monte (Fleury; Almeida, 2013FLEURY, L. C.; ALMEIDA, J. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desenvolvimento. Ambiente & Sociedade, v.16 n.4, 2013.). Esse processo de ruptura teve um marco em 2008, com a saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente. Em 2010, ela foi adversária de Dilma, concorrendo à presidência pelo PV brasileiro.

Deputado do Partido Verde no Parlamentou Europeu de 1999 a 2009, Alan Lipietz foi um nome destacado da ecologia política na França. Em artigo publicado originalmente em 2000, ele se referia ao marxismo, hoje em crise, como “guia para uma ação social transformadora” e apontava a ecologia política como “o único movimento que realmente pode reivindicar este tipo de agenda para transformar a realidade, com base na análise teórica, por meio da militância e da luta política” (Lipietz, 2003, p.9).

Considerando a forma como Lipietz propõe entender a ecologia política, é possível compreender melhor como a crítica de Latour a seus limites é, de certa maneira, uma crítica aos limites da ação política dos ecologistas. Ele, por sinal, enumera, a certa altura, as contradições entre o que a “ecologia militante” acredita fazer e o que faz, na prática (Latour, 2004, p.45-7).

Jogando a partir das regras da ciência, a ecologia se vê incessantemente arrastada a infindáveis controvérsias, diz Latour. É preciso, então, reconhecer que não se trata de enfrentar uma crise da natureza, e sim da própria objetividade científica, segundo o autor. A ecologia, como os povos retratados pela etnologia, traça os mais diversos vínculos entre humanos e não humanos, transcendendo as limitações impostas pela ciência moderna. Latour aponta que vivemos uma era em que os “objetos limpos” outrora estabelecidos pela ciência estão em xeque. Analogamente, o movimento indígena traz questões impertinentes ao debate público brasileiro. O modo de produção do agronegócio pode ser considerado “sustentável” pela cadeia internacional de compradores - a carne brasileira é “saudável” porque nossos bois só se alimentam de pasto; o álcool é um “combustível limpo” diante do petróleo; a soja é uma alternativa frente à “crueldade com os animais”; a carne branca do frango não tem o colesterol da carne vermelha etc. Os kaiowa e guarani protestam: tudo isso acontece à custa do extermínio de seu povo e modo de vida. Como em tantas discussões propostas pela ecologia política, trata-se de enxergar os “custos ocultos” (Acosta, 2016ACOSTA, A. Extrativismo e neoextrativismo - duas faces da mesma maldição. In: DIGER, G.; LANG, M.; PEREIRA FILHO, J. Descolonizar o imaginário. São Paulo; F. Rosa Luxemburgo; Autonomia Literária; Elefante, 2016.). Como o amianto - antes visto como seguro e barato -, os produtos do agro “não são pop”. “Nosso sangue irriga a soja consumida na Europa”, disse o líder kaiowa Eliseu Lopes recentemente.4 4 Disponível em: <https://tinyurl.com/y7uycx59>. Acesso em: 1 jun. 2020.

Para além desses questionamentos que levam à aproximação entre Latour e a etnologia brasileira, observemos que, para o autor francês, a ecologia política é uma “montanha que pariu um rato” e foi incapaz de sair de um papel marginal porque “a quiseram colocar no tabuleiro político sem redesenhar as casas, sem redefinir as regras, sem remodelar os peões” (Latour, 2004, p.17).

O cenário francês guarda certas similitudes com o brasileiro - e, por extensão, latino-americano. Enfrentamos pouco mais de uma década e meia de “governos progressistas” com programas neodesenvolvimentistas surgidos a partir, entre outras coisas, de uma proposta de democratização na distribuição dos benefícios advindos da exploração de recursos naturais - lembremo-nos do debate sobre o gás boliviano, o petróleo na Venezuela ou o pré-sal no Brasil (Boito, 2018BOITO, A. Reforma e crise política no Brasil - os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Ed. da Unicamp; Ed. Unesp, 2018.).

Ora, apesar de o caráter inovador de certas formulações ter alcançado até mesmo as reformas constitucionais, o fato é que, em vários desses contextos, os conflitos envolvendo o chamado neoextrativismo se impuseram (Schavelzon, 2015SCHAVELZON, S. Plurinacionalidad y vivir bien/buen vivir - dos conceptos leídos desde Bolívia y Ecuador post-constituyentes. Quito: Abya-Yala, 2015.; Acosta, 2016ACOSTA, A. Extrativismo e neoextrativismo - duas faces da mesma maldição. In: DIGER, G.; LANG, M.; PEREIRA FILHO, J. Descolonizar o imaginário. São Paulo; F. Rosa Luxemburgo; Autonomia Literária; Elefante, 2016.). O “redesenho” do jogo pouco serviu quando conflitos relacionados à queda de receita dos governos em razão da baixa nos preços das commodities deram a senha para que grupos opositores pusessem abaixo diversas realizações em países como Bolívia, Brasil e Equador. A Venezuela, por sua vez, permanece sob sítio, neste momento, mas com um governo que mantém pouco do brilho de outrora, quando o chamado “ciclo progressista” vivia seu auge, há dez anos.

Foi no quadro desse ciclo, ora esgotado, que os diversos países da América Latina sustentaram um cenário em que foi possível, em maior ou menor medida, que viessem à luz as propostas indígenas para novas políticas. Em parte, foi possível superar um histórico de invisibilidade sustentado por uma visão de que indígenas, camponeses ou quilombolas representariam socialmente um “atraso a ser superado”, “expressões do localismo” ou do “atavismo conservador” (Porto-Gonçalves, 2006, p.458). Pelo contrário, na América Latina, esses grupos, foram, muitas vezes, portadores de propostas novas e surpreendentes, inclusive para os ambientalistas incapazes de superar visões estanques sobre temas como “proteção ambiental” ou “desenvolvimento” (Souza, 2019SOUZA, M. L. de. Territórios e ambientes - uma introdução à ecologia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.).

Batismo

Desde os episódios no Pirakuá, entre 1984 e 1985, o movimento Aty Guasu já passou por diversas fases, desde um período em que as assembleias eram praticamente clandestinas, até momentos em que sua pauta era definida de fora para dentro, pela Funai, desviando-se dos delicados temas ligados à luta pela terra para encarar assuntos mais convenientes ao poder público, como o trabalho de indígenas nas usinas de cana-de-açúcar.5 5 A referência a esse histórico foi feita por Celso Aoki (apud Pimentel, 2015).

O período de nosso trabalho de campo, entre 2009 e 2012, foi marcado pelos conflitos em torno dos seis grupos de trabalho lançados em julho de 2008 para identificação e delimitação de 39 áreas reivindicadas pelos kaiowa e guarani como terras de ocupação tradicional, ou, no jargão do movimento indígena, tekoha. Esses Grupos de Trabalho (GT) foram fruto de uma longa discussão entre o Ministério Público Federal, a Funai e o movimento Aty Guasu, com a participação de diversos antropólogos, e seu objetivo era tentar atender, de uma vez por todas, as reivindicações por terra na região.6 6 Para uma síntese sobre os conflitos nesse período (cf. Pimentel; Moncau, 2011). Um compilado sobre a situação das demarcações de terra em MS, desde os anos 1980, é oferecido por Cavalcante (2016).

Figura 2
Os xamãs kaiowa e guarani batizam o documento final da assembleia.

O establishment ruralista recebeu o anúncio da criação dos grupos de trabalho em 2008, literalmente, declarando guerra aos indígenas, como se viu estampado, na época, na capa do principal jornal do estado (Pimentel, 2012aPIMENTEL, S. K. Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani. São Paulo, 2012a. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.2). Autoridades locais emitiam declarações publicas de que não permitiriam que os indígenas conseguissem “nem um palmo de terra”. As disputas não se restringiram à Justiça ou às arenas da política em Brasília. Vários artifícios emperraram os trabalhos de identificação das terras, e, àquela altura, mais de um ano e meio depois do lançamento dos GT, diversos grupos guarani e kaiowa resolviam dar um basta. Essa foi a tônica daquela Aty Guasu.

Àquela assembleia de Yvy Katu também esteve presente a então senadora Marina Silva (PV), que veio se inteirar da situação dos kaiowa e guarani. Chegou de helicóptero, cedido pelas Forças Armadas, foi recebida com cantos e tratada com deferência. Publicou artigos na imprensa a respeito da situação no Mato Grosso do Sul e chegou a enviar uma carta ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula, por sinal, pouco mais de dois meses depois dessa assembleia chegou a assinar a homologação da Terra Indígena Arroio Korá, também em Paranhos. Poucos dias depois, uma liminar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a validade do decreto presidencial, e quase 700 indígenas da área até hoje esperam pelo julgamento da ação. Meses depois, em visita a Dourados, ele renovaria seu compromisso de resolver a situação na região, mas acabou mesmo deixando o cargo em 2010 sem apresentar nenhuma novidade.

* * *

Intitula-se Semente de Sonhos o documentário que chama a atenção nas Aty Guasu por registrar o confronto entre os guarani de Yvy Katu e os fazendeiros, durante as retomadas de 2003. O vídeo também mostra o exato momento em que uma forte tempestade se abate sobre os grupos que se enfrentavam na ponte entre a cidade e a terra indígena. “Os fazendeiros e seus capangas não resistiram à tempestade que caiu”, diz a legenda do vídeo, montado pelo Cimi a partir das imagens cedidas por um jornalista. Os indígenas comentam que a tempestade certamente havia sido convocada pelos rezadores, a fim de “esfriar” os ânimos e impedir um confronto mais violento, no qual os indígenas seriam prejudicados, por não portarem armas de fogo. A tormenta não foi “fenômeno natural”, e sim resultado da ação dos deuses, aliados dos guarani.

Na manhã em que eu chegava à Aty Guasu de Yvy Katu, contaram-me depois, acontecia, em uma casa um pouco afastada do local da reunião, um encontro entre algumas das lideranças que organizavam o evento e os principais rezadores presentes. Atanásio Teixeira, nhanderu kaiowa que é referência para o movimento, explicou, na ocasião, que aquela tempestade não deveria deixar as pessoas assustadas, pois era obra dos Tupanguéry, ou Tekojára (forma genérica de se referir aos deuses, ou como o plural - kuéry - de Tupã, ou a partir de teko, modo de ser, e jára, dono, ou mestre, ou seja, literalmente, “os donos do nosso modo de ser”) e tinha o objetivo de “batizar” os participantes da reunião. Os deuses chegavam para apoiar a luta, mas, muitos dos que vinham eram guerreiros, jovens, por vezes “exagerados” em seus modos, no afã da luta, e isso explicava o fato de terem acontecido alguns danos, como as árvores caídas. É que chegavam com muito ímpeto, diante da situação dramática que enfrentavam os kaiowá e guarani.

Batizar, entre os kaiowa e guarani, é frequentemente a tradução que os indígenas fazem para as práticas de ñemongarai (ñe-mõ-karai - fazer-se bendito ou sagrado)7 7 Ñemongarai é um termo utilizado pelos três subgrupos de língua guarani existentes no Brasil - kaiowa, nhandeva e mbya, para cerimônias de nominação. ou hovasa (abençoar, bendizer).8 8 O Hovasa, ou jerovasa, está normalmente associado a gestos como para afastar a fumaça da frente de alguém, jogando-a para os lados. Costuma ser feito ao final de um conjunto de cantos, seja durante uma cerimônia coletiva, como a Aty Guasu, seja num momento de cura individual. Desde que os europeus pisaram estas terras, seus esforços concentraram-se em batizar os indígenas. De modo que o termo “batismo” tem ressonâncias muito fortes e, mais uma vez, os xamãs foram mestres em “guaranizar” as novidades. Desde suas primeiras rebeliões, registradas pelos cronistas espanhóis, no século XVI, eles realizavam as cerimônias de “desbatismo” ou “contrabatismo” (Meliá, 1993MELIÁ, B. El Guaraní Conquistado y Reducido - Ensayos de Etnohistoria. 3.ed. Asunción: Ceaduc, 1993.). Como registra o padre Montoya, em 1639, referindo-se aos que seguiram um desses grandes líderes subversivos da era colonial:

Construíram eles igrejas, nelas colocaram púlpitos, faziam as suas práticas e chegavam a batizar. Era esta a fórmula de seu batismo: “Eu te desbatizo!” E com isso lavavam todo o corpo dos “batizandos”. As práticas endereçavam-se ao descrédito da fé e da religião cristã, ameaçando aos que a recebessem e aos que, tendo-a recebido, não a detestassem, pois seriam devorados pelos tigres. Além disso haveriam de sair de suas cavernas os fantasmas formidáveis, armados de ira e munidos de espadas amplíssimas de pedra, a fim de tomarem vingança. (Montoya, 1985MONTOYA, A. R. (Pe.) A conquista espiritual. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985., p.237)

É também com o batismo ou bênção do documento final daquela Aty Guasu, executada com cantos, gestos, toques de mbaraka e a presença do chiru, a cruz-divindade levada por Atanásio, que termina a assembleia, no dia seguinte. Mais uma vez, os kaiowa e guarani avisavam, como fazem há tanto tempo quanto se revelou a ingratidão dos karai, os brancos (esses que deveriam ter sido sagrados ou benditos em suas atitudes): eles se cansaram de esperar. “Se dentro de um mês não estiverem identificando e demarcando nossas terras, nós vamos fazê-lo”, dizia o comunicado aprovado ao final da Aty Guasu. E assim foi feito.

O grupo que reivindica o tekoha de Mbaraka’y9 9 Parte da Terra Indígena Iguatemipeguá (41,5 mil hectares), cujo relatório de identificação foi publicado em Diário Oficial em 8 jan. 2013. veio a pé de Amambai para expressar seu descontentamento com a demora na demarcação de suas terras. Adélio, o líder, não poupou retórica para avisar aos representantes da Funai presentes à reunião que se cansara de esperar por providências. Em poucas semanas, o coletivo, efetivamente, entraria na área reivindicada por eles, entre os municípios de Iguatemi e Tacuru.

Segundo os relatos, um grupo de homens armados, a mando dos fazendeiros, amarrou e vendou mais de 50 pessoas, inclusive idosos e crianças, espancando-os e jogando à beira de uma estrada da região. Entre as vítimas, o xamã Atanásio Teixeira. Em razão das sequelas desse ataque, um homem de pouco mais de 50 anos faleceria, cerca de um ano e meio depois. Em 2011, o grupo voltou a entrar no local, agora aliado com os de outro tekoha próximo, Pyelito Kue. Resistem até hoje, em condições precárias e, em certos períodos, tendo sofrido ataques constantes de seguranças armados. Em julho de 2012, Adelio faleceu, também, segundo a família, em razão de sequelas desses confrontos.

Em outubro de 2012, esse mesmo grupo divulgaria na internet, por meio das lideranças da Aty Guasu, um manifesto em que declaravam sua intenção de resistir naquele acampamento até a morte diante de uma ordem de despejo decretada pela Justiça Federal - e logo revogada. A carta, que teve repercussão nacional e internacional, tornaria famoso o nome Pyelito Kue e gerou uma onda de mobilização nunca antes vista em prol dos kaiowá e guarani (Pimentel, 2012b_______. Cosmopolítica kaiowa e guarani: uma crítica ameríndia ao agronegócio. R@u, v.4 n.2, 2012b.).

Apenas duas semanas depois da Aty Guasu em Yvy Katu, o grupo que reivindica o local conhecido como Ypo’i, em Paranhos, também deu um basta e resolveu ocupar a terra de onde havia sido expulso décadas antes. Foram atacados por um grupo de pistoleiros que capturou dois professores guarani, Jenivaldo Vera e Rolindo Vera. O corpo do primeiro foi encontrado dias depois, num córrego, com sinais de espancamento e tiros. O corpo de Rolindo jamais foi encontrado (Pimentel; Moncau, 2011PIMENTEL, S. K.; MONCAU, J. A. Guarani Kaiowá - Genocídio Surreal. In: RICARDO, B.; RICARDO, F. (Org.) Povos Indígenas no Brasil 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. p.692-6.).

Precedida por uma tempestade, a assembleia foi também prenúncio de novas tormentas. Daquela Aty Guasu até 2016, quando aconteceu o impeachment de Dilma Rousseff, só uma terra indígena kaiowa e guarani foi homologada (Arroio Korá). Três relatórios de identificação foram aprovados e publicados pela Funai, e uma portaria de demarcação foi emitida pelo Ministério da Justiça (Takuara), não implicando ocupação total das áreas reconhecidas (Panambi, Dourados/Amambaipeguá I, Iguatemipeguá I). Até hoje, grande parte dos kaiowa e guarani basicamente ocupa terras em caráter provisório, a partir de liminares da Justiça Federal. Mais de uma centena de processos se arrastam em diversas instâncias do Judiciário, e o país basicamente não consegue dar uma resposta para a crise humanitária que esse povo enfrenta.

Conclusões

Não está clara a forma como a ecologia pode superar seu papel marginal na política, mesmo quando se é capaz de “modificar as regras” do jogo político, como aconteceu durante o chamado ciclo progressista na América Latina. A emergência de conceitos sofisticados para dar conta dos desafios enfrentados pelas populações indígenas não foi capaz de superar a situação de “colonialidade” vivida no continente (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005., p.107).

Se, por um lado, o avanço da democratização na América Latina permitiu que formulações políticas originais emergissem, é bem verdade, por outro, que elas não foram capazes, muitas vezes, de superar impasses surgidos em sociedades profundamente desiguais e onde os frágeis sistemas políticos permanecem sujeitos a “colapsos democráticos” constantes (Levitsky; Ziblatt, 2018LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.).

Diversos autores vinculados à ecologia política latino-americana apontaram, nos últimos anos, que a vinculação das economias nacionais no continente ao chamado neoextrativismo foi responsável, em grande parte, por esse paradoxo. O ciclo progressista sustentou-se na crítica à apropriação dos recursos do extrativismo pelas multinacionais, mas não a extração em si, que se continuou a realizar com a justificativa de “interesse nacional” (Acosta, 2016ACOSTA, A. Extrativismo e neoextrativismo - duas faces da mesma maldição. In: DIGER, G.; LANG, M.; PEREIRA FILHO, J. Descolonizar o imaginário. São Paulo; F. Rosa Luxemburgo; Autonomia Literária; Elefante, 2016., p.67).

No caso brasileiro, e especificamente em relação a Mato Grosso do Sul, esse paradoxo se expressou na dependência dos governos petistas em relação à bancada ruralista para alcançar a chamada “governabilidade” e o agronegócio como um dos setores da economia que, por anos consecutivos, mantiveram o superavit na balança comercial do país (Boito, 2018BOITO, A. Reforma e crise política no Brasil - os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Ed. da Unicamp; Ed. Unesp, 2018., p.108). A estreita relação do governo Bolsonaro com figuras oriundas do ruralismo sul-mato-grossense expressa a enorme dificuldade do país de alcançar uma solução para os conflitos relacionados às terras indígenas no estado. O fato de grande parte dos kaiowa e guarani se manter, hoje, nas terras que reivindicam por força de liminares da Justiça escancara essa tensão entre uma base constitucional avançada, efetivamente capaz de compreender o Brasil como um Estado plurinacional (Souza Filho, 1998; Albuquerque, 2019ALBUQUERQUE, A. A. U. L. Princípio constitucional da ecodignidade pluralista: introdução aos caracteres do processo de etnodemocratização. Direitos Fundamentais & Democracia, v.24, n.1, p.91-125, jan./abr. 2019.) e uma estrutura econômica e política incompetente para superar os impasses e contradições herdados de nossos 520 anos de colonialidade.

Referências

  • ACOSTA, A. Extrativismo e neoextrativismo - duas faces da mesma maldição. In: DIGER, G.; LANG, M.; PEREIRA FILHO, J. Descolonizar o imaginário. São Paulo; F. Rosa Luxemburgo; Autonomia Literária; Elefante, 2016.
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  • Spensy K. Pimentel é doutor em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (Cesta-USP); professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). O trabalho de campo em que se baseia este artigo foi financiado pela Capes e pela Fapesp (processo 2011/11.200-5).

Notas

  • 1
    Segundo o Instituto Socioambiental, Yvy Katu é uma das 41 terras indígenas kaiowa e guarani em Mato Grosso do Sul, povo que contava com 46 mil pessoas no Censo do IBGE de 2010, sendo o segundo maior do país. Além disso, há mais de trinta acampamentos aguardando regularização das terras, segundo o Conselho Indigenista Missionário (apud Pimentel, 2012aPIMENTEL, S. K. Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani. São Paulo, 2012a. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.).
  • 2
    Yvy Katu é uma terra com presença quase exclusiva de falantes da variante nhandeva, que se intitulam guarani no contexto de MS. Na maior parte das localidades, os guarani convivem com os kaiowa. Por isso os indígenas preferem falar “guarani e kaiowa” em vez de usar o termo “guarani-kaiowa”. As Aty Guasu expressam a aliança entre os dois grupos (cf. Pimentel, 2012aPIMENTEL, S. K. Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani. São Paulo, 2012a. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.).
  • 3
    Tekoha: Teko - modo de ser, ha - lugar, ou, na tradução corrente, “o lugar onde podemos viver conforme nosso modo de ser”. No âmbito das discussões indigenistas em MS, utiliza-se o termo para traduzir a expressão “terras de ocupação tradicional” (cf. Pimentel, 2012aPIMENTEL, S. K. Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani. São Paulo, 2012a. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.).
  • 4
    Disponível em: <https://tinyurl.com/y7uycx59>. Acesso em: 1 jun. 2020.
  • 5
    A referência a esse histórico foi feita por Celso Aoki (apud Pimentel, 2015_______. Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowá e guarani: os indígenas de MS e a luta pela redemocratização do país. In: CHAMORRO, G.; COMBÉS, I. (Org.) Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul. Dourados: Ed. UFGD, 2015.).
  • 6
    Para uma síntese sobre os conflitos nesse período (cf. Pimentel; Moncau, 2011PIMENTEL, S. K.; MONCAU, J. A. Guarani Kaiowá - Genocídio Surreal. In: RICARDO, B.; RICARDO, F. (Org.) Povos Indígenas no Brasil 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. p.692-6.). Um compilado sobre a situação das demarcações de terra em MS, desde os anos 1980, é oferecido por Cavalcante (2016CAVALCANTE, T. L. V. Colonialismo, território e territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.).
  • 7
    Ñemongarai é um termo utilizado pelos três subgrupos de língua guarani existentes no Brasil - kaiowa, nhandeva e mbya, para cerimônias de nominação.
  • 8
    O Hovasa, ou jerovasa, está normalmente associado a gestos como para afastar a fumaça da frente de alguém, jogando-a para os lados. Costuma ser feito ao final de um conjunto de cantos, seja durante uma cerimônia coletiva, como a Aty Guasu, seja num momento de cura individual.
  • 9
    Parte da Terra Indígena Iguatemipeguá (41,5 mil hectares), cujo relatório de identificação foi publicado em Diário Oficial em 8 jan. 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    16 Jun 2020
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