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Direito, violência e movimentos sociais: reflexões a partir do caso do movimento pela remoção de estátuas

Resumo

Valendo-se do instrumental epistemológico do materialismo histórico dialético, consubstanciado na crítica da forma jurídica de Pachukanis, com a modalidade procedimental que lhe atribuiu Edelman, consistente em formular desenvolvimentos teóricos a partir da crítica imanente de decisões judiciais, o artigo investiga as relações entre direito e violência, especialmente à luz de sua incidência na atuação de movimentos sociais, a partir do estudo de caso da disputa judicial em torno da remoção da estátua de um general confederado na cidade de Richmond, Virginia. Ao final, conclui-se que, ainda quando o estado alberga o interesse de um movimento social crítico, como no caso em exame, o faz de forma a reafirmar os mecanismos de reprodução da forma jurídica que aprisiona os movimentos contestatórios e impede que avancem em direção à transformação do modo de produção.

Palavras-chave:
Crítica do direito; Forma jurídica; Violência; Forma política; Movimentos sociais

Abstract

Using the epistemological instrument of historical and dialectical materialism, embodied in the critique of the legal form of Pachukanis, with the procedural modality attributed to it by Edelman, consisting of formulating theoretical developments from the immanent critique of judicial decisions, the article investigates the relations between law and violence, especially in light of its impact on social movements, from the case study of the legal dispute surrounding the removal of the statue of a Confederate general in the city of Richmond, Virginia. In the end, it is concluded that, even when the state welcomes the interest of a critical social movement, as in the case in question, it does so in order to reaffirm the mechanisms of reproduction of the legal form that imprisons the contesting movements and prevents them from advancing towards the transformation of the mode of production.

Keywords:
Critique of law; Legal form; Violence; Political form; Social movements

Introdução

Em 13 de julho de 2013, quando o policial branco George Zimmerman foi absolvido da acusação de ter assassinado o adolescente negro Trayvon Martin em Sanford, Flórida, o intenso uso de uma hashtag em redes sociais, #blacklivesmatter, deu origem ao movimento homônimo (DAY, 2015DAY, Elizabeth. #BlackLivesMatter: the birth of a new civil rights movement. The Guardian, 19.07.2015. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2015/jul/19/blacklivesmatter-birth-civil-rights-movement>. Acesso em 18.03.2022.
https://www.theguardian.com/world/2015/j...
). Algum tempo depois, o movimento Black lives matter, “vidas negras importam” em português, acabou ganhando projeção nacional nos Estados Unidos da América com as manifestações de rua convocadas para protestar contra os assassinatos de outros dois homens negros por policiais brancos: Eric Garner, em Staten Island, New York, morto por Daniel Pantaleo em 17 de julho de 2014; e Michael Brown, em Ferguson, Missouri, baleado por Darren Wilson no dia 09 de agosto de 2014 (LUIBRAND, 2015LUIBRAND, Shannon. How a death in Ferguson sparked a movement in America. CBS News. 07.08.2015. Disponível em: <https://www.cbsnews.com/news/how-the-black-lives-matter-movement-changed-america-one-year-later/>. Acesso em: 18.03.2022.
https://www.cbsnews.com/news/how-the-bla...
). Estes últimos protestos, especialmente os de Ferguson, sofreram violência policial e, por isso, se arrastaram por meses. Seis anos mais tarde, o movimento Black lives matter ficaria várias semanas em destaque no noticiário internacional, rompendo definitivamente as fronteiras estadunidenses quando Derek Chauvin, um policial branco de Minneapolis, Minnesota, matou, em 25 de maio de 2020, o homem negro George Floyd.

Neste mais recente capítulo1 1 É importante explicitar que, evidentemente, a questão é muito antiga, remontando à escravização de pessoas negras e à forma pela qual ela foi abolida nos Estados Unidos, no contexto da Guerra de Secessão. Desde este momento, a questão nunca foi efetivamente superada e houve várias ondas de escaladas de tensões, sendo esta apenas a mais recente delas. A esse respeito, ver a surpreendente semelhança dos fatos aqui tratados com os episódios ocorridos cem anos antes, conforme relatado por JANNEAU (2021: especialmente pp. 71-75). de escalada de tensões da questão racial estadunidense, ganhou relevo uma nova discussão: a remoção de monumentos e estátuas erigidos em homenagem a generais que comandaram o exército confederado durante o conflito armado que opôs estados do norte e do sul entre 1861 e 1865, conhecido como Guerra de Secessão. Como se sabe, um dos principais motivos que moviam os estados do sul dos Estados Unidos da América nesse conflito era a manutenção da escravização de pessoas negras, a que se opunham os estados do norte2 2 Trata-se, evidentemente, de uma simplificação cujo desenvolvimento pleno transborda em absoluto o objeto do trabalho. Havia estados em que a escravização era legalizada e que jamais consideraram deixar a União para juntar-se à Confederação, como Delaware, bem como estados profundamente divididos, como Maryland e Virginia - sendo que este último será abordado com mais profundidade na sequência do texto. De todo modo, para os fins do breve relato introdutório a esta investigação, o que importa é o simbolismo pró-escravização - e, consequentemente, racista - que permanece ligado à Confederação até os dias de hoje. . O fato de a Confederação ter sido reincorporada à União em 1865 em razão de uma derrota militar propiciou a manutenção de um sentimento revanchista que até os dias de hoje cria tensões, especialmente no sul estadunidense. Esta celebração extemporânea da Confederação, bastante presente nos movimentos conhecidos como alt right3 3 Trata-se de movimentos que, após muitos anos confinados ao subterrâneo da rede mundial de computadores, foram trazidos para os holofotes e empoderados por Donald Trump (KRIEG, 2016). , é tradicionalmente associada ao racismo e ao supremacismo branco, justamente pelo fato de a escravização de pessoas negras ter ocupado papel proeminente no conflito entre União e Confederação.

Em meio a todo esse contexto, o debate sobre a retirada de monumentos teve sua origem em 2015, quando Dylann Roof, um supremacista branco obcecado pelos símbolos confederados, assassinou nove pessoas negras em uma igreja em Charleston, Carolina do Sul (FAUS, 2015FAUS, Joan. Atirador mata nove em igreja afro-americana nos Estados Unidos. El País Brasil. 18.06.2015. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/18/internacional/1434603566_610899.html>. Acesso em: 21.03.2022.
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06...
). O episódio despertou a atenção das autoridades para a relação íntima entre supremacismo branco e os símbolos confederados, iniciando uma atuação no sentido da retirada das estátuas4 4 “O debate sobre as estátuas e símbolos confederados explodiu nos Estados Unidos após Dylann Roof, um jovem supremacista fascinado pela Confederação, assassinar em junho de 2015 nove paroquianos em uma igreja de Charleston, na Carolina do Sul. As autoridades começaram então a retirar algumas das estátuas e símbolos da Confederação que existem em grande quantidade nos Estados sulistas. É calculado que ainda restam por volta de 1.500 de pé” (EL PAÍS BRASIL, 2017). .

A tomada de atitude por parte das autoridades levou a duas ordens de consequências. De um lado, acirrou os conflitos raciais que, a esta altura, como narrado acima, já tomavam as ruas dos Estados Unidos, sendo que houve inclusive protestos violentos convocados por grupos racistas que se opunham à retirada das estátuas (DE LLANO, 2017DE LLANO, Pablo. Três mortos na jornada de violência provocada por grupos racistas norte-americanos. El País Brasil. 13.08.2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/12/internacional/1502553163_703843.html>. Acesso em: 22.03.2022.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08...
). O fato, evidentemente relevantíssimo, será certamente objeto de investigações sociológicas e antropológicas, mas, para este texto, que pretende fazer uma investigação de ciência do direito, não será objeto de consideração. Este artigo se concentrará na segunda ordem de consequências das retiradas de estátuas por parte de autoridades públicas: as disputas judiciais que se seguiram em torno dos atos administrativos determinando a remoção dos aludidos monumentos. Com efeito, as decisões administrativas que determinaram as remoções de estátuas foram objeto de questionamento judicial e as decisões judiciais daí advindas serão objeto de exame neste artigo.

Uma vez introduzidos os fatos, passa-se a delimitar o objeto de estudo. O objetivo deste artigo será investigar teoricamente as relações entre direito e violência, especialmente à luz de sua incidência na atuação de movimentos sociais, a partir de um estudo de caso, baseado na decisão judicial a respeito da disputa judicial em torno da remoção da estátua do general confederado Robert Lee da cidade de Richmond, Virginia. Faz-se necessário, a partir daí, explicitar algumas circunstâncias envolvidas na escolha deste tema e do procedimento de sua abordagem.

Antes de tudo, é importante deixar marcado que este texto parte da premissa metodológica, estabelecida por Bernard Edelman (1976EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976. e 2016), segundo a qual a forma apropriada de dar concretude à descoberta epistemológica de Evgeni Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.) é a crítica imanente de decisões judiciais. Depois de Pachukanis ter estabelecido epistemologicamente o modo de fazer ciência do direito nos marcos do materialismo histórico-dialético, trabalhando de forma crítica com as abstrações fundamentais da dogmática jurídica da mesma forma que Marx fez com as da economia política, Edelman acrescentou-lhe importantes refinamentos procedimentais. Nesse sentido, em suas duas principais obras, Edelman trabalhou com decisões judiciais de tribunais franceses versando sobre direito autoral na fotografia, no primeiro caso (1976), e direito coletivo do trabalho, no segundo (2016). A partir da crítica de tais decisões, Edelman pode fazer inferências teóricas que lhe permitiram apresentar importantes contribuições para a assim chamada crítica marxista do direito, corrente de pensamento na qual pretende se inserir a presente produção.

Justifica-se, assim, a forma escolhida para a redação do texto: ele será iniciado com comentários a uma decisão da Suprema Corte do Estado da Virgínia, a partir dos quais serão feitas as considerações teóricas acerca da relação entre direito e violência. O fato de a decisão comentada ser da Suprema Corte da Virgínia impõe, ainda, a necessidade de explicitar as circunstâncias que cercam essa escolha.

É preciso ressaltar, de início, que os Estados Unidos da América são o lugar em que, de longe, o debate a respeito da remoção de monumentos de conteúdo racista mais avançou. Especificamente no caso do Brasil, lugar em que este texto é produzido, o debate foi muito tímido e, ainda mais relevante na perspectiva metodológica adotada neste texto, não alcançou a via judicial, não tendo sido, portanto, articulado por meio de categorias jurídicas. Convém, ainda assim, destacar ao menos dois episódios envolvendo monumentos erigidos na cidade de São Paulo em homenagem aos bandeirantes, homens historicamente ligados à escravização e ao genocídio de pessoas negras e indígenas. Em 2016, o Monumento às Bandeiras, de autoria de Victor Brecheret, um importante escultor modernista ítalo-brasileiro, localizado nas imediações do Parque do Ibirapuera, um lugar nobre da cidade de São Paulo, amanheceu manchado com tinta colorida, assim como a estátua do bandeirante Manoel da Borba Gato, localizada na Avenida Santo Amaro. Esta última estátua voltou a ser alvo de protestos em 2021, quando foi incendiada por dois dos líderes do movimento de Entregadores antifascistas. Nos dois casos, a resposta do estado foi penal, buscando-se a prisão dos envolvidos, mas sem avanço na esfera judiciária. Além disso, embora os casos possam ser considerados isolados, é fato que houve o início de um debate, na forma de apresentação de projetos de lei, mas nenhuma medida concreta foi tomada nessa direção, ao contrário do que houve no cenário estadunidense, sendo que aparentemente se caminha para uma solução conciliadora - e, na opinião dos autores deste texto, absolutamente insuficiente - consistente na inserção de mensagens explicativas nas adjacências dos monumentos.

De outro lado, dentre as inúmeras decisões judiciais estadunidenses tratando do tema, foi bastante difícil encontrar uma que fosse ao cerne do problema. As pesquisas exploratórias para a delimitação do tema deste artigo revelaram que, exatamente como ocorre aqui no Brasil, o poder judiciário dos Estados Unidos da América é tomado por filigranas e pequenas questões processuais das mais absurdas, que acabam transformando importantíssimos debates jurídico-políticos como este em decisões sobre taxas judiciárias, direito intertemporal ou interpretações sobre o sentido gramatical de tal ou qual palavra. Não é este o caso da decisão da Suprema Corte da Virgínia sobre a estátua de Robert Lee em Richmond, como se verá. Esta decisão aborda efetivamente os fundamentos jurídico-políticos do debate, permitindo formular uma paráfrase do exercício edelmaniano para compreender, a partir da crítica da atuação do estado no caso das estátuas confederadas, se é possível confirmar a hipótese a ser testada na presente investigação: a de que o direito, por sua própria forma, age violentamente perante aqueles que criticam a ordem instituída.

Assim, passa-se, na seção seguinte, a tratar do julgamento da Suprema Corte da Virgínia, que, em suas próprias palavras, avalia “se a linguagem em uma escritura de 1890, assinada pelo então Governador da Virgínia (...), proíbe o Governador da Virgínia de ordenar a remoção de um monumento de propriedade do estado de uma propriedade do estado” (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 1)5 5 A partir daqui e na seção seguinte, todas as citações do acórdão serão feitas em tradução livre para o português, de responsabilidade dos autores, a partir do original em inglês mencionado nas referências. Não será trazido o original em inglês para evitar inflar demasiadamente as dimensões do texto, e tendo em vista a simplicidade de encontrar o original na rede mundial de computadores a partir da referência. A circunstância será observada apenas nesta ocasião para evitar comprometer a fluência da leitura do texto. .

I. O caso da estátua de Robert Lee em Richmond, Virginia

O substrato fático da questão da estátua do general Robert Lee em Richmond, Virgínia, é, no mínimo, pitoresco6 6 Convém observar, de passagem, que Richmond, Virginia, foi considerada desde o século XIX, e até recentemente por seus entusiastas, a “capital da Confederação”. Aliás, duas das filhas de Robert Lee compareceram à inauguração da estátua de seu pai na cidade em 1890. . O monumento equestre foi erguido entre 1888 e 1890 por uma associação denominada Lee Monument Association, a partir de doações - de recursos e do pedaço de chão em que seria localizada a estátua - feitas pelos herdeiros de William C. Allen, um arquiteto e construtor de importância local que projetou parte da modernização da cidade no século XIX. Em 19 de dezembro de 1889, a Assembleia Geral da Virgínia não só autorizou - sob o argumento de que “seu propósito patriótico é altamente apreciado e aprovado pela Assembleia Geral” (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 2) - como solicitou ao Governador do estado que aceitasse a doação da estátua e de seu respectivo terreno, bem como que desse a garantia de que o estado manteria o monumento “perpetuamente consagrado ao monumental propósito ao qual ele foi devotado” (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 2). Diante disso, após a conclusão da construção da estátua, em 17 de março de 1890, Philip W. McKinney, na dupla condição de Governador da Virgínia e presidente da Lee Monument Association, assinou consigo mesmo uma escritura consumando a doação.

Cento e trinta anos mais tarde, em junho de 2020, Ralph Northam, o então Governador da Virgínia, aprovou um plano para a remoção da estátua atendendo ao sentimento popular de contrariedade à sua manutenção, conforme já tratado na introdução, o que motivou o ajuizamento de uma ação judicial por parte de um grupo de proprietários de imóveis no distrito histórico de Richmond, adjacente ao monumento. Chama atenção que, como parte da fundamentação de sua ação, os autores invocam a “doutrina da separação de poderes”, já que o ato do Governador violaria a Constituição da Virgínia e os poderes legislativos de definir a política pública do estado, na forma adotada pela Assembleia Geral na resolução de 1889 (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 3). Para eles, o fato de a escritura de 1890 estabelecer a obrigação de manter a estátua em seu lugar perpetuamente poderia ser defendida por meio do direito de propriedade.

Um dado importante na controvérsia, a respeito da manutenção ou não da defesa da perpetuidade do monumento como política pública válida no estado da Virgínia, acabou tendo uma reviravolta durante a tramitação do processo, quando a própria Assembleia Geral, em outubro de 2020, emendou o orçamento público para incluir uma dotação para a remoção e armazenagem da estátua (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 5). A partir daí, o Governador Northam passou a defender no curso do processo que a política pública do estado não apenas sustentava como, de forma “indisputavelmente evidente”, determinava a remoção do monumento em questão.

Pode parecer estranha uma apreciação crítica a respeito da decisão da Suprema Corte da Virgínia, que, afinal de contas, sustentou como válida a decisão do Governador Northam de remover a estátua e que, portanto, referendou a garantia do direito das pessoas negras em não viver em uma cidade cujo governo, ao manter o monumento homenageando um general confederado, celebrasse o modo de vida sulista pré-1865, ou seja, a escravização de pessoas negras e a supremacia racial branca. Trata-se, portanto, de uma decisão na linha do que se convencionou chamar de “progressismo”. Essa estranheza se dissipa quando se nota que foi exatamente o que fez Bernard Edelman em sua principal obra, A legalização da classe operária (2016EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.). Também ali, ao contrário do que se poderia esperar, seu diálogo crítico não se estabelece com representantes do direito do trabalho empresarial, dispostos a defender no âmbito do direito trabalhista os interesses do capital, mas com o que ele próprio denomina de “juristas progressistas” (2016: 150), humanistas, alegadamente partidários dos interesses da classe trabalhadora. É exatamente aqui que se deve buscar a crítica do direito, porque é exatamente neste espaço que ele não poderá oferecer espaço para uma crítica de conteúdo, mas deixará entrever em sua própria forma a especificidade histórica de sua vinculação ao modo de produção capitalista.

É o que ocorre na decisão aqui investigada, em que, a rigor, não se ingressa no mérito da decisão acerca da retirada da estátua. Ao contrário, de maneira “progressista”, e com amparo no substancioso parecer trazido ao processo pelo Governador Northam, a Suprema Corte de Virginia toma como dado que o sentimento passadista em relação à Confederação é racista e que a manutenção da estátua do General Lee seria uma atitude racista. Este aspecto do conteúdo da decisão não é colocado em questão em nenhum momento ao longo do debate jurídico da questão.

Cabe aqui uma digressão para explicitar que, tratando-se de uma decisão exarada no sistema judicial estadunidense, o fato de não adentrar no mérito da decisão pela retirada da estátua expressa uma virtude do julgamento da Suprema Corte de Virginia, e não um seu limite. A decisão analisada exemplifica com bastante propriedade a distinção que Ronald Dworkin, em seu clássico estudo Levando os direitos a sério, cunha entre princípios e políticas, identificando que os primeiros seriam propriamente jurídicos e, portanto, poderiam ser tomados como razões de decidir pelo poder judiciário, enquanto as segundas, em geral, não (2007: 36). Assim, um bom julgador anglo-saxão jamais poderia perscrutar os motivos pelos quais a estátua deveria ou não ser exibida na avenida central de Richmond, a partir do momento em que fosse reconhecido o conteúdo da política pública a esse respeito adotada pelas autoridades constituídas. É exatamente o que afirma a Suprema Corte de Virginia em dado momento do julgamento (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 18):

O papel dominante na articulação da política pública na comunidade da Virgínia permanece com os poderes eleitos. O papel do judiciário é restrito. Nosso papel não é julgar se são aconselháveis ou sábias as escolhas políticas. Os poderes Executivo e Legislativo são diretamente responsáveis perante o eleitorado, e é nesses foros políticos que a política pública deve ser formatada.

Feita essa constatação, toda a fundamentação jurídica do julgamento ficará concentrada fundamentalmente em três pontos, como se verá: demonstrar a vinculação entre o monumento, o discurso governamental e a política pública municipal; demonstrar a transformação da política pública municipal nos cento e trinta anos que separam a construção da estátua e sua retirada; e demonstrar a legitimidade jurídica da transformação de tal política pública. É neste trajeto que pode ser encontrado o segredo da violência na própria forma do direito enquanto manifestação da organização do estado, como se pretende demonstrar na sequência do texto.

A Suprema Corte da Virgínia esforça-se em apresentar uma aproximação bastante íntima entre as demonstrações visuais, como estátuas e monumentos, e o que é reiteradamente chamado no caso julgado de “discurso governamental”, algo como uma opinião política de fundo que orienta a formulação de políticas pública por determinados ocupantes de cargos políticos em certas localidades. Nesse contexto, ao comentar a permanência, ainda no ano de 2020, de uma estátua equestre de um general confederado na cidade de Richmond, observa aquele tribunal que (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 12-13):

“Monumentos permanentes exibidos em propriedade pública tipicamente representam discurso governamental” (...). O discurso governamental é um poder vital da comunidade, cujo exercício democrático é essencial ao bem-estar de nossa sociedade organizada. Efetivamente, seria difícil imaginar um governo que pudesse funcionar sem esta liberdade.

Este assim chamado “discurso governamental” é a chave para compreender a violência inerente à “democracia progressista” da Suprema Corte de Virgínia, já que ele “não precisa ser de ponto de vista neutro”, uma vez que “inevitavelmente, ‘o governo adotará e buscará programas e políticas [que podem ser] contrárias às crenças profundas e convicções sinceras de alguns de seus cidadãos’”. Assim, numa concepção de democracia eleitoral majoritária, ainda que episodicamente, neste caso, a política pública tenha favorecido de maneira “progressista” o interesse de igualdade racial da população negra, não é possível que o poder judiciário interfira no conteúdo das políticas públicas. “Em última instância, ‘é o processo eleitoral democrático que primeiro e acima de tudo fornece um controle sobre o discurso do governo’” (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 13). A corte vai ainda mais longe, ao reconhecer, impotente, que “‘não há regras fixas pelas quais se possa determinar o que é política pública’. Com efeito, ‘o exato oposto do que é política pública num dado momento pode tornar-se política pública em outro’” (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 18).

A mensagem transmitida aos cidadãos da Virgínia é bastante explícita: assim como o Governador McKinney tinha o direito de homenagear o General Lee e convidar suas filhas para a inauguração de uma estátua em 1890, o Governador Northam tem o direito de removê-la, e nada impede que o atual Governador Glenn Youngkin - que, diga-se, milita no partido oposto ao de Northam - retroceda em sua decisão. Afinal,

a essência da nossa forma republicana de governo é que o povo soberano eleja representantes, que então traçam a política pública da comunidade ou da Nação. A democracia é inerentemente dinâmica. Os valores mudam e a política pública muda também. O Governo da comunidade tem o direito de selecionar os pontos de vista que apoia e os valores que deseja expressar (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 23).

Se um determinado grupo, como a população negra, nos cento e trinta anos que antecederam a remoção das estátuas, tem seus direitos ou sua dignidade violados por uma determinada política pública ou discurso governamental, não pode esperar guarida do poder judiciário de um estado que funciona apenas em torno de argumentos de princípios e não de políticas. O governo democraticamente eleito pode tomar suas decisões, “mesmo que alguns membros da cidadania discordem, porque, em última análise, o controle do discurso governamental da comunidade deve ser o processo eleitoral, não as crenças contrárias de uma parcela da cidadania” (JUSTICE S. BERNARD GOODWYN, 2021: 24).

O pano de fundo do argumento da Suprema Corte da Virgínia, portanto, é a própria forma jurídica da democracia eleitoral, na qual, assim como na esfera do direito privado os possuidores de mercadorias aparecem como sujeitos de direitos, na condição de iguais proprietários, os cidadãos aparecem como iguais titulares de suas porções de propriedades do estado na igualdade de seus direitos de voto.

Assim, veja-se que a leitura de políticas públicas da Suprema Corte de Virginia constitui o ápice da sofisticação, adequada ao discurso filosófico jurídico progressista do século XXI, das conhecidas teorias do contrato social, segundo as quais apenas de acordo com suas próprias manifestações de vontade contratuais, ainda que hipotéticas, os seres humanos poderiam estar sujeitos à autoridade estatal. É óbvio que, sabendo-se que se trata de uma aparência fetichizada que transfere aos seres humanos características que, a rigor, pertencem às mercadorias no processo de trocas que impulsiona o modo de produção capitalista, fica evidente que não há qualquer possibilidade de concordância contratual ou efetiva manifestação de vontade, mas apenas uma essencial e violenta dominação de classe que se apresenta na forma contratual típica do modo de produção capitalista, como, aliás, se dá com todas as formas sociais neste momento histórico. A forma estatal, como forma derivada da forma jurídica no modo de produção capitalista, e que adota a forma de uma democracia eleitoral igualitária e majoritária, é a forma de uma violenta dominação de classe com uma aparência “progressista”. É a partir daqui que é possível desenvolver, com este pano de fundo, diversas implicações da relação entre direito e violência, especialmente em sua incidência sobre a atuação de movimentos sociais, como se fará nas seções seguintes.

II. Forma jurídica, ideologia e violência

Como foi supramencionado, critica-se a decisão da Suprema Corte de Virginia não por seu conteúdo, mas por sua forma; isto é, não por sua aparência progressista, mas pela forma que opera a violência sistêmica. O fundamento primeiro da referida decisão é nítida expressão da forma jurídica, ou seja, constitui-se a partir da noção de encarar os indivíduos como “iguais”, “livres” e proprietários (sujeitos de direito), reduzindo-os a meros cidadãos das democracias burguesas que não podem extrapolar seus limites temáticos. A aparente livre manifestação de vontade acerca da permanência ou retirada da estátua revela-se como um mecanismo sofisticado da forma contratual, essencial à dominação de classe.

Ocorre que a base da sociabilidade capitalista está plasmada pelas relações de produção que determinam - em última instância - as forças produtivas (TURCHETTO, p. 9); entretanto, sobre a base se erguem dois andares da superestrutura: o ideológico e o jurídico-político. O direito, então, aparece aqui como uma forma social que pode conformar as demais formas, ou seja, lhes dá um formato condizente com a base. Portanto, a forma jurídica - como se verá a seguir - circunscreve a gramática do poder político, circunscreve o próprio estado. Daí a necessidade de plasmar a especificidade do direito como a única análise que pode esclarecer o modus operandi do estado no caso em tela, que reduz a demanda dos trabalhadores a uma mera discussão sobre um suposto “interesse coletivo”, que ao fim, só alarga a forma da subjetividade jurídica. Os potenciais revolucionários das demandas dos trabalhadores esmorecem quando são fagocitados por uma aparente demanda sobre “cidadania”.

Necessário, assim, para entender a forma jurídica, é analisar, de modo um pouco mais detido, o pensamento do jurista soviético Evgeny Pachukanis, capaz de perceber o direito como a “forma específica que as relações sociais têm de assumir no capitalismo, dado que a circulação mercantil só opera na medida em que todos são constituídos como sujeitos jurídicos” (AKAMINE JR., 2022AKAMINE JR., Oswaldo. Extinção da forma jurídica. In: AKAMINE JR., Oswaldo et. al. Introdução a Pachukanis, Marília: Lutas Anticapital, 2022, pp. 51-70.: 62-63).

Pachukanis afirma que “a sociedade capitalista é antes de tudo uma sociedade de proprietários de mercadorias” (2017: 119); portanto, a relação entre os indivíduos na produção ocorre através das mercadorias (forma fetichizada do produto do trabalho), que se relacionam umas com as outras pelo seu valor de troca e independentemente da vontade daquele que a produziu. No entanto, a concretização do valor de troca depende de um ato voluntário do proprietário da mercadoria, ou seja, um desejo de alienar seus bens. Nesse sentido, demonstra Marx:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se uma pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. (MARX, 2011: 159).

Dessa maneira, Pachukanis conclui que, ao mesmo tempo em que o produto do trabalho se materializa em mercadoria, o ser humano passa a ser sujeito de direito, tornando-se portador de direitos e de vontade. Isso aconteceria, segundo o russo, pois para a manutenção das dinâmicas de troca é necessário que as pessoas se reconheçam como livres proprietários, possuindo, ao mesmo tempo, autonomia de vontade, “de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.: 159).

Dessa sorte, Pachukanis conclui que o direito é, em sua forma, burguês, já que pressupõe a existência do sujeito de direito, abstração capaz de cristalizar uma sociedade pautada na exploração do trabalho como produtora de valor. Ao narrar o processo de transição do trabalho concreto para o trabalho abstrato7 7 Acerca disso, Marcus Orione: A transformação do trabalho concreto para o trabalho abstrato refere-se ao momento histórico em que o trabalhador deixa de ter uma relação direta com o fruto de seu trabalho, pois o objeto produzido não se destinava à escala de troca. “Na mudança para o capitalismo, o trabalho deixa de ter essa concretude e passa a se abstrair. Não há mais uma ligação direta entre o produtor/trabalhador e o que é produzido, uma vez que se produz de forma generalizada para a troca.” (2017: 144). , o teórico demonstra que o direito tem, essencialmente, um papel de garante da reprodução do capital. A abstração do sujeito do direito é basilar para a reprodução da sociabilidade capitalista, sendo a partir dela que a relação entre explorados e exploradores se torna um vínculo contratual entre “iguais”. Nesse sentido, Julia Lenzi Silva (2019SILVA, Julia Lenzi. Para uma crítica além da universalidade: forma jurídica e previdência social no Brasil. 2019. Tese (Doutorado em Direito do Trabalho) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/T.2.2019.tde-28082020-030856.
https://doi.org/10.11606/T.2.2019.tde-28...
: 67) afirma que a forma jurídica é imprescindível “para a configuração da categoria do ‘guardião de mercadorias’ (proprietário) que comparece ao mercado para efetivar as trocas”. Tal converge com o magistério de Marcus Orione:

Portanto, a figura do sujeito de direito é fundamental, para que se possa completar o processo de abstração do trabalho. Não é sem razão que a norma jurídica é constituída de elementos como a generalidade, a impessoalidade e a abstração (é válida de forma igual para todos, sem distinções, além de não ser concebida para um caso concreto). A liberdade e a igualdade, na realidade, são os elementos indispensáveis, no capitalismo, para que a propriedade se realize. (2017: 144)

No entanto, a forma jurídica deve ser estudada a partir de suas duas faces basilares: a forma sujeito de direito e a sua necessária produção ideológica. Nesse sentido, deve-se ter em mente que a ideologia jurídica opera para que a constituição das relações sociais através da forma jurídica se dê através da formação de uma percepção de mundo individual que não escape aos parâmetros do próprio direito; por outras palavras, opera como uma espécie de ordem linguística limitante da percepção do Eu, não pela sua concretude biológica, mas como esse sósia abstrato sem paralelos com o real que é o sujeito de direito. Em sentido correlato, Nicole Édith-Thévenin (2010THÉVENIN, Nicole-Édith. 2010. Ideologia jurídica e ideologia burguesa. In: NAVES, Márcio Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, pp. 53-76.: 57) demonstra, por seus termos, que:

A lógica jurídica é, portanto, uma lógica que deve poder se materializar, se exercitar. Significa mostrar igualmente que o funcionamento do direito e, portanto, das categorias jurídicas só se define por sua função: a reprodução das relações de produção, o que exige, ao mesmo tempo, um papel de mistificação [...] e de coerção.

Da mesma forma, Edelman demonstra que a ideologia jurídica é elemento essencial à cristalização da forma jurídica na sociabilidade capitalista (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.: 148).

Além disso, para Althusser, a ideologia não é uma falsa consciência da realidade, isto porque, para o francês, a ideologia não está restrita às mentes, mas é dotada de uma existência material. Em outros termos, a ideologia não pode ser uma mera falsa concepção do real, já que permeia a vida das pessoas no que tange à relação do sujeito com a realidade:

[T]oda ideologia representa, na sua deformação necessariamente imaginária, não as relações de produção existentes (e as outras que delas derivam), mas antes de mais a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e com as relações que delas derivam (ALTHUSSER, 1980: 82).

Ideologia, dessa sorte, é algo materialmente concretizado pela prática, ou seja, a ideologia é material, na medida em que se revela por meio das ideias e crenças dos sujeitos, são práticas materiais. “Só existe ideologia pelo sujeito e para sujeitos. Entenda-se: só existe ideologia para sujeitos concretos, e esta destinação da ideologia só é possível pelo sujeito: entenda-se, pela categoria de sujeito e pelo seu funcionamento” (ALTHUSSER, 1980: 93). A ideologia traduz a forma pela qual os indivíduos percebem as relações sociais e constituem-se, assim, como sujeitos (MCLELLAN, 1986: 32-33). Em uma palavra, a ideologia é a forma de reconhecimento de si, dos outros e das relações sociais que os cercam.

Desse modo, o indivíduo é interpelado pela ideologia, constituindo-se, “por si mesmo”, um sujeito de direito, ou seja, “toda a ideologia tem por função (que a define) ‘constituir’ os indivíduos concretos em sujeitos” (ALTHUSSER, 1980: 94). Nesse sentido, a interpelação constrói sujeitos no duplo sentido da palavra: (i) como sujeitos “livres”, proprietários e “iguais”; e (ii) como assujeitados, submissos à estrutura social existente independentemente de suas escolhas (KASHIURA JR., 2015KASHIURA, JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e interpelação ideológica: considerações sobre a ideologia jurídica a partir de Pachukanis e Althusser. Revista Direito e Práxis, vol. 6, n. 10, 2015, pp. 49-70. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944513003>. Acesso em 10.04. 2022.
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: 61). Em suma, a ideologia se operacionaliza a partir da prática - aparentemente autônoma - do sujeito em se assujeitar ao recrutamento do papel social a ele atribuído estruturalmente. Logo, no pleno exercício de sua “igualdade” e “liberdade”, o sujeito concretiza o papel essencial à manutenção do capital: submeter-se - mediado pelo contrato e, logicamente, pela forma jurídica - à compra e venda da força de trabalho. Como demonstra Sampedro:

se faz também sob o disfarce da autonomia, de maneira que o sujeito não percebe como imposta a função-suporte. O sujeito, segundo Althusser, unicamente é livre para submeter-se livremente à ocupação do posto e do lugar que a divisão técnico-social do trabalho (máscara da divisão em classes) lhe atribui na produção, assegurando o mecanismo de reprodução das relações de produção (SAMPEDRO, 2010SAMPEDRO, Francisco. A teoria da ideologia de Althusser. Trad. Márcio Bilharinho Naves. In: NAVES, Márcio Bilharinho (org.). Presença de Althusser. Campinas: IFCH-Unicamp, 2010, pp. 31-52.: 52).

Tendo isso em mente, pode-se afirmar que a forma jurídica é, par excellence, elemento essencial ao capitalismo, isto é, ela não existe sem este e vice-e-versa. O direito, portanto, funciona a partir de sua aparência de liberdade e igualdade a fim de cristalizar - de modo oculto, já que em seu conteúdo aparenta ter um caráter progressista e dignificante - a exploração da força de trabalho. É a forma jurídica que garante a contratualização do mundo, que permite a violenta dominação de classe, que sustenta o modo de produção capitalista, baseado, fundamentalmente, na compra e venda “voluntária” da força de trabalho. Portanto, a maior violência do direito não está na sempre presente ameaça de sanção no descumprimento das normas, mas sim na violência mítica capaz de manter e instaurar o próprio direito; está, assim, na manutenção e reprodução da sociabilidade capitalista.

Ora, se os direitos ditos progressistas - como a decisão sob análise - constituem uma das bases necessárias à manutenção e à reprodução do capital, há neles um quantum vultoso de violência mítica, nos termos de Walter Benjamin. Em outras palavras, se a concessão desses direitos e o próprio reconhecimento dos sujeitos como iguais entre si são necessários à reprodução do modo de produção capitalista, para que eles se afirmem como tal, há uma necessária violência instauradora dessa ordem; e para eles continuarem válidos, há uma necessária violência mantenedora.

Para esclarecer a violência intrínseca ao direito, é preciso tomar o magistério de Walter Benjamin em Crítica da Violência. O autor esclarece que, para o juspositivismo, a legitimidade da violência é dada às instituições, ou seja, são as instituições que estabelecem as condições legais de uso da violência. Portanto, partindo do juspositivismo, a questão crucial para Benjamin é identificar quais são as formas de violência legitimadas e quais são expulsas do campo da legalidade e da legitimidade.

Dessa sorte, Walter Benjamin percebe que a ordem jurídica não admite que fins naturais (objetivos naturais de cada indivíduo) sejam alcançados por eles mesmos com o uso de violência. Em seus próprios termos, temos:

Nessas relações jurídicas, e no que concerne ao indivíduo enquanto sujeito de Direito, a tendência dominante é a de não admitir fins naturais em todos os casos nos quais a realização desses fins pudesse eventualmente ser alcançada adequadamente pelo uso da violência. Ou seja: essa ordem jurídica empenha-se em instituir, em todos os domínios nos quais os fins de pessoas individuais possam ser alcançados adequadamente pelo uso da violência, fins de Direito que apenas o poder judicial pode concretizar desse modo (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. O anjo da história, Belo Horizonte: Autêntica, 2012.: 63).

Assim, o direito entende toda violência externa ao direito como ameaça, como “perigo de subversão à ordem estabelecida” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. O anjo da história, Belo Horizonte: Autêntica, 2012.: 63). A explicação para essa monopolização da violência por parte do direito não é dada com a justificativa de garantir os fins da ordem jurídica, mas, antes, pela necessidade de garantir o próprio direito. Para elucidar a constatação, Benjamin utiliza dois exemplos presentes no direito de greve. Segundo o autor, há a greve geral política, que é um movimento de luta por conquista de mais direitos - o que acaba fortalecendo o estado e, aplicando Pachukanis, ampliando a subjetividade jurídica -; no entanto, há também a greve geral proletária, que se trata de uma greve desejante da aniquilação do poder do estado, porque se configura como greve contra o trabalho enquanto regime de produção de valor.

Diante disso, a positivação do direito à greve tem sua aplicação limitada, isto é, o direito de greve é garantido até o ponto em que seu exercício não prejudique a reprodução do capital. Logo, se a greve é política e pleiteia a instauração de mais direitos, o direito de greve é respeitado; no entanto, se a greve é proletária e os trabalhadores se colocam como força politicamente ofensiva para a destituição do próprio direito, o direito de greve é limitado. Em suma, o direito de greve só existe enquanto violência mantenedora - ou instauradora - do Direito, mas nunca como desintegradora da ordem jurídica.

Todavia, se os movimentos sociais passam a plasmar sua atuação à lógica jurídica, todo seu potencial revolucionário se esvai, na medida em que a luta pelo fim do direito se metamorfoseia em luta por mais direitos, em uma luta que advoga, ao fim e ao cabo, o próprio modo de produção capitalista. Edelman, em A Legalização da Classe operária, afirma que a estrutura dos direitos “progressistas”, inclusive no próprio direito do trabalho, lança as “conquistas” dos movimentos sociais à forma jurídica e, a partir dela, só se atinge a reprodução do próprio capital (EDELMAN, 2016EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.: 76-78).

Portanto, na visão de Benjamin, há a violência instituinte e mantenedora - aglutinadas na violência mítica -, porém, há a violência pura, que age como uma força destituinte do direito. Nesse sentido, para o autor, não há como desvincular a violência da esfera ético-histórica da ação, pois toda ação mobiliza uma potência para a realização de seus fins, uma vez que os fins não podem se afirmar sem força - seja ao nível atual, seja em caráter potencial, ou seja, possibilidade real do uso da violência. Destarte, a crítica do poder não pode se limitar a questionar leis ou costumes jurídicos, visando sua exclusão ou substituição por outros; a crítica potente deve perceber que há uma violência ameaçadora inerente a toda a ordem jurídica, uma violência instauradora e mantenedora do direito que garante a própria sociabilidade capitalista, que assegura a violenta dominação de classe.

Dessa sorte, é mister que se tenha em mente que há uma ameaça constante de violência invisível e não física presente no sistema capitalista para que as coisas aconteçam como são - a violência mítica -, mas que pode se concretizar como uma violência sangrenta caso as ações ultrapassem os limites do capital.

Portanto, a decisão da Suprema Corte da Virgínia, na medida em que é permeada pela subjetividade jurídica e é garantidora de sua expansão e manutenção, é basilar para a reprodução da sociabilidade capitalista. Justamente por expandir e garantir a figura do sujeito de direito - base para a reprodução capitalista - é violenta, pois faz uso da ameaça necessária para manter o sistema; é violenta, assim, por instaurar e manter a ordem do poder. Desse modo, as lutas sociais que se pautam pela defesa e ampliação dos direitos humanos acabam advogando, em última análise, a manutenção da violência, a permanência do direito, e, portanto, da reprodução do modo de produção capitalista. Logo, os movimentos sociais - interpelados pela ideologia jurídica, ao passo que se reconhecem como representantes de sujeitos de direitos - acabam tomados por reivindicações meramente jurídicas, as quais não conseguem extrapolar a lógica do capital.

As contradições do capitalismo, assim, não podem ser resolvidas no interior de sua sociabilidade. As “soluções” jurídicas de conflitos são, na verdade, perpetuações da ordem violenta e exploradora. A ampliação e a defesa de direitos progressistas - como a decisão - não podem resolver os problemas de classe, pelo contrário, apenas os reforçam na medida em que reafirmam a reprodução do capital, independentemente do conteúdo de suas normas. Não à toa, já há mais de um século e meio Engels e Kautsky concluíam seu clássico sobre O socialismo jurídico declarando que “não ocorreu a nenhum dos partidos socialistas existentes fazer uma nova filosofia do direito a partir do seu programa, e possivelmente não lhes ocorrerá no futuro” (2012: 48).

Destarte, não se pode cessar a violência do capitalismo com mais direito, antes, a solução não violenta é aquela que não instaura nem mantém o direito, é aquela que o destitui. O fim do direito, segundo Walter Benjamin, é alcançado pela violência divina, isto é, o poder que vem das classes de baixo não para preservar, mas para dissolver a sociedade de classes. A violência divina libera a vida do direito e, por isso, não está comprometida com a reprodução das violências que são base da estrutura material da sociedade capitalista; de tal sorte que, por não permitir essa violência, ela se torna não violenta, mesmo que faça uso de processos revolucionários que impliquem mortes ou outros atos sangrentos. A não violência da violência divina não está no caráter físico, mas sim no seu caráter libertador das violências típicas do capitalismo.

Isto posto, fica patente que a ampliação e a luta por direitos só poderão implicar o reforço da violência mantenedora e instauradora do direito. Na medida em que os movimentos sociais são reduzidos aos termos da ideologia jurídica, eles são tolhidos de seu potencial revolucionário, são desprovidos de sua violência divina; se tornam, assim, incapazes de ler as mazelas do capitalismo a partir do olhar de classe, mas sim com o olhar individualizante do sujeito de direito.

III. Estado e o mito do “interesse coletivo”

Uma vez mais: a decisão da Suprema Corte da Virgínia ocupou-se, no caso em tela, de legitimar a política pública “progressista” no sentido de sustentar a remoção da estátua do general confederado - símbolo que adquire, no devir histórico, conforme dito, uma conotação supremacista branca - valendo-se, mormente, dos paradigmas do estado e de sua forma política. Tal se deu através da alegação de que na essência de um governo republicano reside a soberania do povo, o qual, através do voto individualizado, elege representantes, os quais devem mover a ação estatal no sentido de promover o bem-estar geral; nesse sentido, deveria o governador Ralph Northam dar ouvidos às demandas das ruas. Por esses termos, a reivindicação trazida à baila pelos movimentos populares passou a ser tratada, não só pelo Tribunal, mas também pelo governo, pela opinião pública média e pela grande mídia, como um mero problema de política pública. Configura-se, assim, finalizada a “contratação" da luta social pelo estado. Expliquemos melhor.

A Corte retoma a questão do estado para conferir validade à ação do governador da Virgínia. Tal torna imprescindível a esta análise o estabelecimento dos paradigmas teóricos da teoria derivacionista acerca do estado e da forma política, ambos derivados da forma jurídica. Isso porque, na medida em que se quer estabelecer os laços entre o direito e a violência subjetiva supramencionada, deve-se afirmar que a forma jurídica e o estado, em seu movimento real, a fim de assegurar a continuidade das relações e condições de produção capitalistas, fagocitam os conflitos e antagonismos da sociedade; e mais, ao mesmo tempo em que traduzem tais conflitos por seus próprios termos, circunscrevem-nos em seus limites temáticos, assegurando que eles sejam estéreis na produção de movimentações disruptivas.

Por outras palavras, quer-se dizer que, enquanto parte daquelas abstrações político-jurídicas necessárias à sedimentação das relações de produção, tanto o direito quanto o estado são formas típicas do modo de produção capitalista e operam, no nível das relações humanas, a garantia da perpetuação de tais condições de produção. Destarte, trata-se de formas muito eficientes na gestão dos conflitos e antagonismos sociais. Seu modus operandi, para tanto, consiste na “contratualização” desses “problemas”, para que sejam operados pelos parâmetros próprios da acumulação de capital. Ou seja, na medida em que veiculam a continuidade das relações produtivas capitalistas, operam a manutenção da violência inerente à exploração econômica da classe trabalhadora.

No caso dessa análise, é possível ver claramente o movimento do estado para, através do direito e da ideologia jurídica, circunscrever o “interesse coletivo” no sentido de promover um alargamento da subjetividade jurídica ao mesmo tempo em que completa o processo de abstração das classes. Pontualmente, vê-se a apreensão pelo estado das demandas da classe trabalhadora concernentes à sua dimensão monumental, simbólica e identitária. Ao fazê-lo, o estado é capaz de transformar, em toda a sua extensão qualitativa, tais reivindicações, de tal sorte a reduzir a questão ao substrato ideológico do modo de produção capitalista, ou seja, aos institutos da ideologia jurídica, a igualdade, a liberdade, a propriedade e, por fim, a cidadania.

Cumpre, porém, voltar essa análise à questão específica do estado para bem demonstrar o modo pelo qual esse ente desenvolve a reprodução da violência sistêmica. Isso nos conduz (i) à definição, materialidade e origem histórica do estado para a teoria derivacionista; (ii) à forma ideologizada pela qual o estado se apresenta ao corpo da sociedade; e, por fim, (iii) ao conceito de “autonomia relativa”. Vejamos.

Inicialmente, é imprescindível destacar que, diferentemente das sociedades pré-capitalistas, a dominação de classe na sociedade burguesa não se desenvolve de forma direta e imediata; pelo contrário, sob o capitalismo, a dominação política exige um aparelho de poder que se apresente como impessoal, distante das classes sociais, que se posta, pois, como autoridade pública, que atua para a promoção do bem-estar comum e dos interesses coletivos da sociedade (POULANTZAS, 2015POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015.: 24). Tal é o que permite a Flávio Batista e Marcus Orione concluírem que:

São aspectos como a concorrência e a liberdade de contrato que não permitem que a dominação por um poder chamado público no contexto da autocompreensão da sociedade burguesa se confunda com o poder tido como privado, nos moldes em que isso se dava na dominação feudal. A forma jurídica estabelece a separação entre público e privado e exige a existência da forma Estado assegurando-a e sancionando-a coercitivamente (2022: 106).

O político aparentemente apartado da relação de exploração econômica atende, conforme se demonstrará, à necessidade material, ideologicamente sustentada, de reprodução das relações de produção capitalistas.

Isso porque a organização social no capitalismo separa produtores diretos dos meios de produção, estabelecendo, pois, uma rede de trabalho assalariado. Assim, deve-se notar que o caráter público do estado só pode ser imaginado numa sociedade organizada sob o princípio da troca de equivalentes, na medida em que esta pressupõe a presença de sujeitos proprietários que se relacionem voluntariamente, sem, pois, a presença de coação de qualquer parte (NAVES, 2000NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.: 79-80).

Tal é o que conduz Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.: 168), nesse sentido, a apontar que o “poder público” opera “atuando como fiador dessas relações [relações mercantis de troca]”, representando a perseguição do interesse impessoal. Isso porque, conforme o autor afirmará, “o poder do homem sobre o homem é realizado como poder do próprio direito, ou seja, como poder da norma objetiva e imparcial” (2017: 175). O estado, desse modo, surge como um terceiro na relação capital-trabalho; em sua forma, aparece, assim, como um garante dos contratos, das trocas e circulação de mercadorias e, mormente, da exploração da força de trabalho sob forma assalariada.

Expliquemos melhor. Na medida em que há a separação dos trabalhadores de seus meios diretos de produção, manufatura-se a necessidade de explorar a força de trabalho, único meio de produção que resta ao trabalhador, através da forma do contrato de trabalho. O contrato de trabalho, de sua parte, porém, apenas detém a validade material e ideologizada que possui na medida em que opõe dois “sujeitos” proprietários, livres e iguais, numa relação de troca de mercadorias (salário-força de trabalho). Para que essa relação seja bem construída, existe a necessidade de que esses “sujeitos de direito”, iguais e proprietários, submetam-se a um terceiro “imparcial”, que garanta a “lisura e probidade” do cumprimento do contrato; destarte, a força da exploração do ser humano sobre o ser humano produz-se, de modo fetichizado, na forma jurídica e no estado.

O mesmo ocorre com todas as demais trocas mercantis. Na medida em que a sociedade capitalista se representa como uma sociedade de trocas massificadas de mercadorias, há a necessidade de estabelecimento deste “terceiro garante” para que a circulação de mercadorias seja factível. Assim, o estado, mais do que condensar as dinâmicas de poder - que, sob o modo de produção capitalista, são sempre dinâmicas de poder entre classes -, o estado capitalista deve ser capaz de funcionalizar o econômico, que, em última instância, o determina.

É, pois, pela estrutura de reprodução do capital que se deve entender o estado - bem como o aparato político do qual se serve -, tal como este se apresenta hodiernamente.

Antes de avançar, deve-se dizer que a materialidade do estado, em suma, responde, para a teoria derivacionista, por ser o fator de condensação das diversas contradições da sociedade capitalista; mais que isso, a materialidade do estado reside no fato de ser ele o organizador do projeto hegemônico da classe dominante e das formas que lhe são necessárias. Além disso, é imperioso esclarecer que a classe hegemônica é aquela que concentra em si, no nível político, a dupla função de representar o interesse geral do povo-nação e de manter uma dominação específica entre as classes e as frações dominantes. Ou seja, a coesão almejada pelo estado diante dos antagonismos sociais latentes do capitalismo, não é senão a coesão da ordem hegemônica burguesa.

Enfim, o estado, organizador da luta da classe dominante, apresenta-se, em sua materialidade ideologizada, como gestor do “interesse coletivo” de todo o corpo da sociedade.

Justamente aqui reside a forma ideologizada do estado capitalista que se quer destacar. Isso porque, muito embora opere o interesse político da classe hegemônica, a burguesia, o estado é capaz de favorecer-se de sua condição material de existência, qual seja, a de postar-se, no seio da sociedade, como o poder público impessoal, que persegue o bem-estar comum, o “interesse coletivo”, retroalimentando a dominação exposta. Tal é decorrência do fato mencionado supra, de ser o estado aquele “terceiro garante”, fundamental às relações recobertas pela forma jurídica. Lembre-se: enquanto terceiro garante deve, indispensavelmente, ser impessoalizado, perseguidor do bem-estar coletivo. O favorecimento, entretanto, deriva do fato de que, no curso de seu projeto hegemônico, consegue obnubilar sua natureza classista, apresentando-se, ao corpo da coletividade, como ente supraclassista, que opera em favor de todos - individualmente.

Nesse sentido, para que bem exerça suas funções, o estado necessita operar a sua forma ideologizada, a qual está, de modo evidente, necessariamente vinculada à sua materialidade. Em uma palavra, a necessidade material que acarreta uma dominação política mediata, indireta, implica o surgimento de formas ideológicas próprias que sustentem a hegemonia do estado burguês.

A “autonomia relativa” - para ficarmos com termo próprio da tradição teórica na qual nos alicerçamos, termo este que condensa a noção do distanciamento aparente do estado das relações econômicas - é, por tudo isso, indispensável à sua materialidade. Acerca disso, Poulantzas:

a autonomia específica do Estado capitalista e das relações de produção do M.P.C. [modo de produção capitalista] reflete-se, no campo da luta de classes, em uma autonomia da luta econômica e da luta explícita de classe; isto exprime-se através do efeito de isolamento nas relações sociais econômicas, revestindo o Estado, a seu respeito, uma autonomia específica na medida em que se apresenta como o representante da unidade do povo-nação, corpo político estabelecido sobre o isolamento das relações sociais econômicas. (POULANTZAS, 1986POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1986.: 131)

Mais uma vez, a ideologia jurídica faz-se presente para legitimar a continuidade das relações de produção. Assim, é também através da forma “sujeito de direito” que a dominação política da classe hegemônica oculta a si própria. A dominação é, desse modo, para Pachukanis, “ideologicamente duplicada”, pois:

Em primeiro lugar, porque existe um aparato especial, separado dos representantes da classe dominante, e esse aparato ergue-se acima de cada capitalista individual e figura como uma força impessoal. Em segundo lugar, porque essa força impessoal não media cada relação separada de exploração, pois o trabalhador assalariado não é coagido política e juridicamente a trabalhar para um determinado empresário, mas aliena a ele sua força de trabalho, formalmente, com base em um contrato livre. Na mesma medida em que a relação de exploração é realizada formalmente como relação de dois possuidores de mercadorias “independentes” e “iguais”, dos quais um, o proletário, vende a força de trabalho, e o outro, o capitalista, compra-a, o poder político de classe pode assumir a forma de poder público. (2017: 172)

Cabe, entretanto, ressaltar que, para realizar em absoluto sua forma ideologizada, a qual funcionaliza suas operações diretamente materiais, o estado, a fim de demonstrar que, verdadeiramente, é perseguidor do “interesse coletivo”, autoriza os indivíduos a acessá-lo. Contudo, esse acesso só é permitido a eles de forma isolada, através da condição de “cidadão”, impossibilitando, destarte, a organização da classe trabalhadora enquanto grupo de interesse classista, o que é compreendido pelo projeto hegemônico da burguesia. A esse respeito, Márcio Bilharinho Naves é conclusivo ao apontar que:

Ao só franquear o acesso ao Estado aos indivíduos na condição de cidadãos, a ideologia jurídica permite que se constitua o vínculo que possibilita a passagem da sociedade civil ao Estado, ou melhor, a ideologia jurídica vai permitir que se estabeleça o meio de expressão do Estado, sob a forma do interesse geral, dos diversos e contraditórios interesses particulares que se chocam na sociedade civil, e que por força dessa “ultrapassagem” negam a sua determinação particular. Tudo se passa, portanto, como se o Estado, anulando as classes, anulasse com isso a própria condição, se erigindo em lugar da não-contradição, onde se realiza o “bem comum”. (NAVES, 2000NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.: 83-84) [Grifo nosso]

Mais que isso: deve-se observar, nesse sentido, que a noção de “interesse coletivo” denota, necessariamente, como toda produção ideológica, um “fato real”. Tal pois, segundo Poulantzas (1986POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1986.: 185), “esse Estado permite, pela sua própria estrutura, as garantias de interesses econômicos de certas classes dominadas, eventualmente contrárias aos interesses econômicos a curto prazo das classes dominantes, mas compatíveis com os seus interesses políticos, com a sua dominação hegemônica”.

Essa dinâmica, imprescindível observar, é regida pelas compressões e descompressões da luta política e econômica da classe trabalhadora. As garantias - leia-se, concessões - realizadas pela classe hegemônica, desse modo, buscam assegurar, dentro da lógica de um projeto político de longo prazo, a perpetuação de sua hegemonia. Até mesmo, portanto, a presença e as “conquistas” de membros das classes populares na forma política do capitalismo contribuíram para a reprodução das relações de produção, na medida em que articula e estende a ideologia hegemônica.

Em suma, não se pode perder de vista, destarte, que, dentro do estado, “a função central de seu aparelho de força consiste na garantia da propriedade privada dos meios de produção como precondição da exploração mercantil da força de trabalho” (HIRSCH, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.: 29)

A conceituação de estado tal como o faz Joachim Hirsch, sugere, nesse sentido, que o estado é um complexo de relações sociais fetichizadas, “expressão de uma socialização antagônica e contraditória” (HIRSCH, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.: 20), sendo que possui um campo de ação com condições e dinâmicas próprias, não se tratando, pois, de um mero fato superestrutural. Em outros termos: “[O] Estado é a expressão de uma forma social determinada que assume as relações de domínio, de poder e de exploração nas condições capitalistas” (HIRSCH, 2010: 24). Trata-se, pois, de um aparelho impessoal de poder público, que se vincula à socialização capitalista, sendo ela mesma parte integrante das relações de produção. Em suma:

Ele não é nem a expressão de uma vontade geral, nem o mero instrumento de uma classe, mas a objetivação de uma relação estrutural de classes e de exploração. Ele só pode manter-se enquanto esteja garantido o processo de reprodução econômica como processo de valorização do capital. [...] O Estado não é um instrumento neutro que se encontra fora da “economia”, mas está ligado às relações de produção capitalistas, das quais é parte. (HIRSCH, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.: 32-33).

Por todo o exposto, pode-se perceber que, em verdade, o franqueamento da entrada no estado à universalidade dos indivíduos, na condição de “cidadãos”, ao invés de promover o interesse coletivo da classe trabalhadora enquanto classe para si - expresso sim, com sinceridade, nos atos dos movimentos sociais que reivindicaram, nas ruas, a derrubada de monumentos racistas - promove uma “individualização coletivizada” das demandas das classes populares, que - assim como no caso em questão - ao serem fagocitados pelas formas do capital, passam a ser regidas como simples questões de política pública. Trata-se de reduzir enormes convulsões sociais a irrisórias discussões jurídicas.

Ou seja, o estado e a forma política apropriam-se de demandas coletivas, internalizam tais conflitos, digerem-nos e regurgitam-nos sob a forma da ideologia jurídica, responsável por atomizar os indivíduos e, portanto, por impedir a formação de grupos de interesse classistas. O processo de individualização promovido pela dialética das formas do capital, é, pois, de absoluta importância, uma vez que impede o funcionamento lógico da questão a partir de uma perspectiva de classe (ORIONE, 2018ORIONE, Marcus. Vamos brincar de esconde-esconde? Em Manipulações capitalistas e o direito do trabalho (pp. 33-42). Belo Horizonte: RTM, 2018.: 38). Justamente o que sugere Carolina Catini (2013CATINI, Carolina de Roig. A escola como forma social: um estudo do modo de educar capitalista. 258f. Tese (Doutorado em educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.: 206) ao destacar que “[...] a contradição entre Estado e sociedade civil exige que esta seja considerada politicamente, isto é, seja posta sob uma forma jurídica apreensível pelo poder estatal, a forma da cidadania - que rechaça a completa privatização da vida civil a favor do “bem comum”.

As políticas públicas da democracia social burguesa, nesse sentido, ao representarem agir no interesse geral, com vistas a promover o bem-estar da totalidade da sociedade, em verdade, perseguem, tão somente, a perpetuação do projeto político hegemônico da burguesia. As políticas do estado capitalista, destarte, não podem operar em favor dos interesses da coletividade da classe trabalhadora enquanto tal; tão somente podem produzir formas sociais que aparentem o agir coletivo - o que, na realidade, trata-se de um agir classista da própria classe hegemônica, a burguesia; agir esse que retroalimenta sua dominação.

Conclusão

O artigo expôs o movimento dialético da incidência das formas do capital sobre uma determinada reivindicação dos movimentos populares. Nele, viu-se o modo pelo qual a forma jurídica e o estado atuaram, no seio das contradições e dos antagonismos produzidos pela sociabilidade capitalista, para refrear o potencial revolucionário das ações dos movimentos sociais. Nesse sentido, quis-se mostrar que a disputa em tela é, em verdade, uma metonímia do fático operacional para a continuidade das condições de produção capitalistas. Por outras palavras, o caso analisado, que versa sobre as disputas na espacialidade urbana, no que diz respeito à sua ordem monumental, demonstra a relação de força e poder existente entre a atuação dos movimentos da classe trabalhadora e a burguesia, esta aparelhada e munida de seus instrumentos de dominação, o direito e o estado.

Assim, a violência subjetiva, mítica, sistêmica, ou qualquer outro termo que o valha, pois, subsiste, aqui, operada pelo direito e pelo estado. O conflito social provocado pela ação das massas, assume, desse modo, contornos de resolução e pacificação na medida em que são incorporadas pela circunscrição do interesse coletivo, do “bem-estar”, passando a figurar tão somente como uma questão de alargamento da subjetividade jurídica e da cidadania, a qual dissolve a perspectiva classista dos trabalhadores. O potencial revolucionário da ação da classe trabalhadora, assim, é erodido pelas formas do capital. É essa a maior manifestação da violência - oculta, é verdade - que alguns podem vislumbrar nos dias correntes. Denunciemo-la.

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  • 1
    É importante explicitar que, evidentemente, a questão é muito antiga, remontando à escravização de pessoas negras e à forma pela qual ela foi abolida nos Estados Unidos, no contexto da Guerra de Secessão. Desde este momento, a questão nunca foi efetivamente superada e houve várias ondas de escaladas de tensões, sendo esta apenas a mais recente delas. A esse respeito, ver a surpreendente semelhança dos fatos aqui tratados com os episódios ocorridos cem anos antes, conforme relatado por JANNEAU (2021JANNEAU, Rémy. Estados Unidos 1918-1920: luta de classes e medo dos vermelhos. Cadernos do movimento operário, nº 1, segundo semestre de 2021, pp. 60-103.: especialmente pp. 71-75).
  • 2
    Trata-se, evidentemente, de uma simplificação cujo desenvolvimento pleno transborda em absoluto o objeto do trabalho. Havia estados em que a escravização era legalizada e que jamais consideraram deixar a União para juntar-se à Confederação, como Delaware, bem como estados profundamente divididos, como Maryland e Virginia - sendo que este último será abordado com mais profundidade na sequência do texto. De todo modo, para os fins do breve relato introdutório a esta investigação, o que importa é o simbolismo pró-escravização - e, consequentemente, racista - que permanece ligado à Confederação até os dias de hoje.
  • 3
    Trata-se de movimentos que, após muitos anos confinados ao subterrâneo da rede mundial de computadores, foram trazidos para os holofotes e empoderados por Donald Trump (KRIEG, 2016KRIEG, Gregory. Clinton is attacking the 'Alt-Right' -- What is it?. CNN. 25.08.2016. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2016/08/25/politics/alt-right-explained-hillary-clinton-donald-trump>. Acesso em: 21.03.2022.
    https://edition.cnn.com/2016/08/25/polit...
    ).
  • 4
    “O debate sobre as estátuas e símbolos confederados explodiu nos Estados Unidos após Dylann Roof, um jovem supremacista fascinado pela Confederação, assassinar em junho de 2015 nove paroquianos em uma igreja de Charleston, na Carolina do Sul. As autoridades começaram então a retirar algumas das estátuas e símbolos da Confederação que existem em grande quantidade nos Estados sulistas. É calculado que ainda restam por volta de 1.500 de pé” (EL PAÍS BRASIL, 2017).
  • 5
    A partir daqui e na seção seguinte, todas as citações do acórdão serão feitas em tradução livre para o português, de responsabilidade dos autores, a partir do original em inglês mencionado nas referências. Não será trazido o original em inglês para evitar inflar demasiadamente as dimensões do texto, e tendo em vista a simplicidade de encontrar o original na rede mundial de computadores a partir da referência. A circunstância será observada apenas nesta ocasião para evitar comprometer a fluência da leitura do texto.
  • 6
    Convém observar, de passagem, que Richmond, Virginia, foi considerada desde o século XIX, e até recentemente por seus entusiastas, a “capital da Confederação”. Aliás, duas das filhas de Robert Lee compareceram à inauguração da estátua de seu pai na cidade em 1890.
  • 7
    Acerca disso, Marcus Orione: A transformação do trabalho concreto para o trabalho abstrato refere-se ao momento histórico em que o trabalhador deixa de ter uma relação direta com o fruto de seu trabalho, pois o objeto produzido não se destinava à escala de troca. “Na mudança para o capitalismo, o trabalho deixa de ter essa concretude e passa a se abstrair. Não há mais uma ligação direta entre o produtor/trabalhador e o que é produzido, uma vez que se produz de forma generalizada para a troca.” (2017: 144).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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