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Estética e política: contribuições para a elaboração de casos clínicos em psicanálise

Aesthetics and politics: contributions to the elaboration of clinical cases in psychoanalysis

Estética y política: aportes a la elaboración de casos clínicos en psicoanálisis

Esthétique et politique: contributions à l’élaboration de cas cliniques en psychanalyse

Resumo

Este artigo foi desenvolvido com o objetivo de pensar que a escrita de um caso clínico em psicanálise precisa considerar os elementos estéticos e políticos para se manter precisa em relação à ética da psicanálise. Para tanto, faremos aproximações entre o conceito de Inconsciente de Sigmund Freud e de Inconsciente Estético, proposto pelo filósofo francês Jacques Rancière. Assim, num primeiro momento será apresentado, de forma breve, o inconsciente estético e a psicanálise. Em um segundo momento, vamos apresentar os apontamentos de Rancière sobre estética e promover possíveis articulações entre o filósofo e Freud, a partir do que eles conceituam sobre o inconsciente. Finalmente, vamos pensar como o caso clínico pode ser observado a partir dessa ótica, investigando a respeito das articulações entre Inconsciente e Inconsciente Estético.

Palavras-chave:
psicanálise; estética; arte; inconsciente; clínica

Abstract

This article aims to think that the writing of a clinical case in psychoanalysis needs to consider the aesthetic and political elements to remain accurate regarding the ethics of psychoanalysis. To this end, we will make approximations between the concept of the Unconscious of Sigmund Freud and the Aesthetic Unconscious, proposed by the French philosopher Jacques Rancière. Thus, first we will present a brief presentation on the aesthetic unconscious and psychoanalysis. In a second moment, we will present Rancière’s notes on aesthetics and promote possible articulations between the philosopher and Freud, from what they conceptualize about the unconscious. Finally, we will consider how the clinical case can be observed from this perspective that we propose, of investigating about the articulations between the Unconscious and the Aesthetic Unconscious.

Keywords:
psychoanalysis; aesthetics; art; unconscious; clinic

Resumen

Este artículo tiene por objetivo discutir que la escrita de un caso clínico en psicoanálisis necesita considerar los elementos estéticos y políticos para permanecer fiel a la ética del psicoanálisis. Para ello, se realizará una breve presentación sobre el concepto de inconsciente, de Sigmund Freud, y el inconsciente estético propuesto por Rancière. Primero, se presenta de forma breve el inconsciente estético y el psicoanálisis. Después, se expone los planteamientos de Rancière acerca de la estética y se hace posibles articulaciones entre el filósofo y Freud desde sus ideas sobre el inconsciente. Por último, se discutirá cómo se puede observar el caso clínico desde esta perspectiva que se propone investigar las posibles articulaciones entre el inconsciente y el inconsciente estético.

Palabras clave:
psicoanálisis; estética; arte; inconsciente; clínica

Résumé

Cet article a le but de penser que l’écriture d’un cas clinique en psychanalyse doit tenir compte des éléments esthétiques et politiques pour rester juste par rapport à l’éthique de la psychanalyse. Dans ce but, nous ferons des approximations entre le concept d’Inconscient de Sigmund Freud et l’Inconscient Esthétique, proposé para the philosophe français Jacques Rancière. Donc, dans un premier temps, nous ferons un bref exposé sur l’inconscient esthétique et la psychanalyse. Deuxièmement, nous présenterons les notes de Rancière sur l’esthétique et nous soutiendrons les articulations possibles entre le philosophe et Freud, à partir de ce qu’ils conceptualisent sur l’inconscient. Enfin, nous réfléchirons comment le cas clinique peut être observé dans la perspective que nous proposons, d’étudier sur les articulations de l’Inconscient et l’Inconscient Esthétique.

Mots-clés:
psychanalyse; esthétique; art; inconscient; clinique

Introdução

A relação entre psicanálise e arte se apresenta de inúmeras maneiras, sendo tema disparador de várias discussões e análises. Podemos perceber como Freud investigou a arte de diferentes aspectos, utilizando-a para a elaboração de constructos teóricos psicanalíticos. Em textos como O Moisés de Michelangelo (1914Freud, S. (1914). O Moisés, de Michelangelo. In Arte, literatura e os artistas (pp. 183-219). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1897).), Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910), Personagens psicopáticos no palco (1942/[1905-1906]), entre outros, podemos notar que Freud considera, nas manifestações artísticas, elementos próprios do psiquismo humano, de modo que faz uso desses elementos para a construção da própria teoria (Chaves, 2015Chaves, E. (2015). O paradigma estético de Freud: Prefácio. In S. Freud, Arte, literatura e os artistas (pp. 7-39). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.).

Seguindo tais pressupostos, nosso objetivo é pensar que a construção de um caso clínico em psicanálise precisa considerar os elementos estéticos e políticos para manter-se preciso em relação à ética da psicanálise. Para isso, faremos aproximações entre o conceito de Inconsciente Estético, proposto pelo filósofo francês Jacques Rancière, e o Inconsciente de Sigmund Freud. Assim sendo, partimos das concepções artísticas e estéticas analisadas por Freud e, considerando as contribuições das obras artísticas e literárias para a construção da teoria psicanalítica, este artigo propõe possíveis relações entre o conceito central da psicanálise, o inconsciente, com novas proposições contemporâneas, como é o caso do conceito de Inconsciente Estético.

A partir disso, procuramos analisar as aproximações entre esses dois autores, estudando primeiramente os aspectos estéticos levantados por Freud e suas formulações com respeito ao Inconsciente, para depois pensarmos no que Rancière apresenta referente à estética e ao Inconsciente Estético. Desse modo, acreditamos ser possível relacionar estudos artísticos e estéticos com a prática analítica, a partir da metodologia utilizada por Freud da escrita dos casos clínicos. Levando em conta as construções realizadas, este trabalho permite concluir que o caso clínico pode ser considerado como estratégia literária que propõe uma outra estética de relação com o sofrimento psíquico.

Para tanto, apresentaremos as discussões levantadas por Jacques Rancière a respeito de suas concepções estéticas, para que, dessa maneira, possamos investigar mais a fundo as aproximações possíveis entre o conceito de Inconsciente Estético e o Inconsciente em Freud e suas aplicações na clínica psicanalítica, a partir da escrita dos casos clínicos.

Sobre o inconsciente estético e o inconsciente

Jacques Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) apresenta a estética não apenas como uma disciplina que trabalha com diferentes conceituações do que é o belo, mas como causadora de uma ruptura intelectual que inaugura outras formas de pensar a relação entre subjetividade e arte (Baigorria, 2005Baigorria, M. (2005). El inconsciente estético, de Jacques Ranciere. Araucaria: Revista Iberoamericana de filosofía, política y humanidades, 9(18), 306-311. Recuperado de https://revistascientificas.us.es/index.php/araucaria/article/view/1179/1075
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). Rancière também difunde inovações no campo da estética ao relacioná-la com a política, mostrando como as práticas estéticas se unem a práticas políticas de acordo com o que o autor denomina “partilha do sensível”:

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outras tomam parte nessa partilha. (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 15)

Rancière nos mostra como há um comum partilhado por todos a partir do momento que cada um toma para si partes exclusivas dessa partilha. Assim, também vislumbramos o aspecto político que se apresenta nisso que Rancière nos mostra. Não se trata de uma “estetização da política”, mas na concepção da política enquanto experiência, enquanto aquela que “ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34., p. 17). Ao citar Platão, Rancière apresenta duas formas de efetividade sensível da palavra, o teatro e a escrita, as quais se tornaram estruturantes das artes em geral (p. 17-18). Essas formas também se comprometem com um regime político, a própria democracia, a partilha do espaço e do tempo (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34.).

Essa partilha do sensível “convoca os sujeitos para uma dimensão coletiva (comum partilhado) e a dimensão individual (partes exclusivas) nas quais tempo e espaço são delimitados para se tomar parte desse sensível ou a exclusão desses sujeitos dessa partilha” (Lara Junior, 2017Lara Junior, N. (2017). O Ato Estético-Político: uma interpretação psicanalítica (1a ed.). Curitiba, PR: Appris., p. 68). Dessa forma, a estética em Rancière não pode ser reduzida simplesmente ao estudo do belo ou à teoria da arte, ela assume outra posição, na qual os sujeitos são reposicionados na partilha do sensível (Lara Junior, 2017Lara Junior, N. (2017). O Ato Estético-Político: uma interpretação psicanalítica (1a ed.). Curitiba, PR: Appris.).

Nesse sentido, a estética “não designa a ciência ou a disciplina que se ocupa da arte” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 11):

Estética designa um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento. De modo mais fundamental, trata-se de um regime histórico específico de pensamento da arte, de uma ideia do pensamento segundo a qual as coisas da arte são coisas do pensamento. (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 12).

O que podemos analisar dessa concepção de estética defendida só é possível por se fundamentar no que ele chama de revolução estética. O que Rancière defende é que as teorizações de Freud acerca do inconsciente provocaram uma revolução na ciência positivista da época; contudo, ela só foi possível porque outra revolução a antecedeu: a revolução estética.

A estética, para Rancière, tem tanta importância justamente porque ela é considerada como causadora de uma “ruptura intelectual”, isto é, a estética propicia um regime de pensamento, abre espaço para novas e diferentes maneiras de pensar, refletir e produzir conhecimento. Ou seja, a arte assume um papel revolucionário (Sarmento-Pantoja, 2005Sarmento-Patoja, T. (2013). Pensar sobre a dissidência. Inconsciente estético de Jacques Rancière. Revista Margens, 7(9), 283-287. Recuperado de https://periodicos.ufpa.br/index.php/revistamargens/article/viewFile/2782/2913
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). E é justamente nesse cenário que, segundo Rancière, a psicanálise encontra espaço para emergir, porque há algo na estética da ordem do “pensamento inconsciente”.

A revolução estética é chamada por Rancière de revolução silenciosa, porque se manifesta ao abrir espaços para a elaboração de novas ideias sobre o pensamento e a escrita. E essa ideia é fundamentada pela afirmação de que há pensamento que não pensa e, além disso, que também há não pensamento que se infiltra no que é pensado. A respeito dessa nova concepção de pensamento, também há, correspondentemente, uma nova concepção de escrita, em que “não quer dizer simplesmente uma forma de manifestação da palavra. Quer dizer uma ideia da própria palavra e de sua potência intrínseca” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 34).

A respeito da escrita e da palavra, Rancière trabalha com o conceito de palavra muda, que também se mostra importante para pensarmos as relações entre Freud e o filósofo. Esse conceito aborda a palavra que é viva, que se transforma em ato, e não se restringe a um significado único. É sobre a palavra que se cala, mas que diz, que nos mostra a própria capacidade que as coisas mudas carregam de também expressarem. Tudo fala, tudo diz e carrega em si a potência da linguagem, inclusive o que é mudo. Contudo, há algo que escapa à significação, que diz de outra faceta da palavra muda, “aquela que não fala a ninguém e não diz nada, a não ser as condições impessoais, inconscientes, da própria palavra” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 39).

O autor apresenta essas duas facetas da palavra muda: “de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 41); e de outro a palavra surda, aquela que escapa a toda consciência e significado, e é diante dessa polaridade que se manifesta o que Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) nominou como Inconsciente Estético.

A exposição desses constructos é importante para que possamos compreender melhor que caminho foi percorrido pelo filósofo para que esse novo conceito fosse criado, o qual será objeto de nossa investigação.

Em sua obra O inconsciente estético (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.), Rancière sinaliza que seu interesse não está pautado simplesmente no estudo da relação psicanálise e arte, o autor mesmo nos diz que não tem competência teórica suficiente para falar partindo da teoria psicanalítica. Seu questionamento diz respeito ao lugar estratégico ocupado pelas obras literárias e artísticas “na demonstração da pertinência dos conceitos e das formas de interpretação analíticas” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 9). Desse modo, a articulação mais direta com relação aos constructos teóricos postulados por Rancière e a teoria psicanalítica é o que propusemos realizar neste trabalho.

O que Rancière defende, em sua obra, é que os materiais artísticos estudados por Freud não serviam para provar a capacidade da prática analítica na interpretação cultural. Antes disso, os materiais artísticos serviram como próprios testemunhos do Inconsciente (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.). É importante salientar que a ideia de inconsciente não é inaugurada por Freud, contudo, é ele que concebe um Inconsciente como determinante do funcionamento psíquico e cria uma teoria centrada nesse conceito (Freud, 1915/2010Freud, S. (2010). O inconsciente. In: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (P. César de Souza, trad., Vol. 12, pp. 99-115). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915)).

Com isso, compreendemos que o Inconsciente não é um lugar caótico, desordenado e livre de determinação. Ao contrário disso, Freud trabalha justamente para mostrar como o Inconsciente também opera de acordo com leis e determinações; ele é estruturado e, de acordo com Lacan (2008Lacan, J. (2008). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. (V. Ribeiro, trad., pp. 101-187). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1953)), é estruturado como linguagem. “O inconsciente não é o mais profundo, nem o mais instintivo, nem o mais tumultuado, nem o menos lógico, mas uma outra estrutura, diferente da consciência, mas igualmente inteligível” (Garcia-Roza, 2009Garzia-Roza, L. (2009). Freud e o inconsciente (24a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 173).

Freud também nos chama atenção para o entendimento grosseiro que pode ser feito ao se conceber que o aparelho anímico se divide em distintos lugares e que é possível encontrar sua localização em elementos orgânicos. Por isso, o autor salienta que o aparelho psíquico funciona de maneira dinâmica, e que se expressa a partir dos pensamentos. Segundo Freud:

Desse modo, podemos falar num pensamento inconsciente que procura transmitir-se para o pré-consciente, de maneira a poder então penetrar na consciência. O que temos em mente aqui não é a formação de um segundo pensamento situado num novo lugar, como uma transcrição que continuasse a existir junto com o original; e a noção de irromper na consciência deve manter-se cuidadosamente livre de qualquer ideia de uma mudança de localização. Do mesmo modo, podemos falar num pensamento pré-consciente que é recalcado ou desalojado e então acomodado pelo inconsciente. (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos (II). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 5, pp. 371-647). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900), p. 632)

Seguindo com esse mesmo raciocínio a respeito de pensamento inconsciente, também podemos abordar o que Quinet (2008Quinet, A. (2008). A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) comenta em seu livro A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. Nele, o autor faz alusão ao sujeito que advém da ciência moderna, o qual é pautado pela razão e pelo pensamento. Com isso, esse autor nos diz que esse também é o sujeito que será operado pela psicanálise, já que “para a psicanálise, o sujeito é também sujeito do pensamento - pensamento inconsciente. Pois o que Freud descobriu é que o inconsciente é feito de pensamento” (Quinet, 2008Quinet, A. (2008). A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 12). Sendo assim, o que esse autor nos mostra é um sujeito fundado por outro tipo de razão, não conforme a teoria cartesiana, mas uma razão inconsciente, que será alcançada pelo método psicanalítico (Quinet, 2008Quinet, A. (2008). A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Com isso, fica claro como Freud rompe com o saber da ciência moderna, pois, ainda que trabalhe com um sujeito que é pautado pelo pensamento, para o autor o pensamento é originalmente inconsciente (Freud, 1911/2010Freud, S. (2010). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (P. César de Souza, trad., Vol. 10, pp. 108-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911), p. 114). Portanto, a psicanálise subverte a lógica racionalista da época. E, para registrar essas manifestações do inconsciente de seus pacientes, Freud (1996/1895Freud, S. (1996). Casos clínicos. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 2, pp. 57-209). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895)) passa a conceber e registrar os casos clínicos como uma forma peculiar o que o levou a desenvolver a psicanálise, como ele descreve nos Estudos sobre a Histeria.

Já no que diz respeito à proposta de Rancière, o filósofo defende a ideia de que foi a estética que criou um terreno que possibilitou a Freud inventar o conceito de Inconsciente psicanalítico. Portanto, as obras de arte e a literatura seriam âmbitos em que se manifesta o Inconsciente e, baseado nesses pressupostos que Rancière elabora, o conceito de Inconsciente Estético. Portanto, passaremos a discutir no próximo tópico as relações que pensamos com respeito a esses pressupostos teóricos discutidos pelos dois autores.

Articulações possíveis entre Rancière e Freud

Exposta a discussão a respeito dos constructos teóricos sobre o Inconsciente Estético postulados por Rancière, desenvolvemos agora as possíveis aproximações com a psicanálise freudiana.

Primeiramente, destacaremos aqui que Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) nos mostra como a estética possibilita que o sujeito se reposicione na partilha do sensível, ou seja, onde ele é convocado em suas dimensões coletivas e individuais. Nesse sentido, o sensível liga o sujeito a si mesmo e à cultura que ele está vivendo; dessa forma, esse filósofo francês concebe um sujeito que está ligado à política em que compartilha, com os demais sujeitos, os valores e bens estéticos da sua cultura. Assim como a própria estética da psicanálise, não concebe um sujeito reduzido às funções orgânicas, mas o concebe em todos os seus dramas coletivos e individuais, da mesma maneira que Freud demonstra em suas obras sobre a cultura e formação dos sujeitos. Pensamos, portanto, que essa primeira aproximação se liga pela via da política.

O segundo aspecto que podemos pensar é que essa aproximação entre as duas propostas de inconsciente se dá pela via de que ambas não desprezam os restos de linguagem, as palavras mudas, os silêncios etc. Assim sendo, Lara Junior (2017Lara Junior, N. (2017). O Ato Estético-Político: uma interpretação psicanalítica (1a ed.). Curitiba, PR: Appris., p. 69) irá afirmar que Rancière “se aproxima da ideia de inconsciente freudiano porque delega à estética algo que está nos detalhes, nas minúcias daquilo que não se pronunciou totalmente”. Como podemos notar, essa inovação no campo da estética apontada por Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) se alinha com o que Freud irá propor com relação ao inconsciente, ao afirmar que “a grande regra freudiana de que não existem ‘detalhes’ desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 36).

Em seu texto O Moisés de Michelangelo (1914Freud, S. (1914). O Moisés, de Michelangelo. In Arte, literatura e os artistas (pp. 183-219). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1897).), Freud comenta sobre Ivan Lermolieff, um russo conhecedor de arte que ensinou a diferenciar as obras originais de cópias, a partir da análise de pequenos detalhes, por exemplo, os lóbulos das orelhas. Freud se mostra ainda mais interessado por esse trabalho artístico, ao saber que Ivan era um pseudônimo adotado por Morelli, um médico italiano. O autor afirma, ao se referir ao “método morelliano”, o seguinte: “Acredito que seu procedimento está muito próximo da técnica da psicanálise praticada por médicos. Também a psicanálise está acostumada a partir de traços subestimados ou não observados […] para intuir o misterioso e o escondido” (Freud, 1914Freud, S. (1914). O Moisés, de Michelangelo. In Arte, literatura e os artistas (pp. 183-219). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1897)., p. 197).

A respeito disso, em seu livro Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, Carlo Ginzburg (1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (pp. 143-179). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) afirma, a partir do método morelliano e de suas proximidades com Sherlock Holmes e a psicanálise, um novo paradigma chamado pelo autor de Paradigma Indiciário. Isso devido às características do método morelliano, em que, para se desvendar a verdadeira autoria de um quadro e saber distinguir as obras originais das cópias, se deve atentar não às características mais evidentes, longe disso, deve-se “examinar os pormenores mais negligenciáveis” (Ginzburg, 1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (pp. 143-179). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 144). O autor comenta sobre a aproximação desse método ao trabalho realizado pelo detetive Sherlock Holmes, visto que o detetive descobre a autoria de crimes baseado em detalhes imperceptíveis para a grande maioria. E aí também se apresentam as aproximações com o Inconsciente freudiano, de tal modo que Freud - como dito anteriormente - nos conta sobre as influências de Morelli para a construção do método psicanalítico (Ginzburg, 1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (pp. 143-179). São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

Ao afirmar um novo paradigma, pensamos que Ginzburg está abordando algo próximo ao que Rancière chama de estética, pois se trata justamente de uma mudança paradigmática no método de ver o mundo e produzir conhecimento, oposto ao paradigma positivista. Também podemos perceber que Freud, ainda um pouco distante da consolidação da psicanálise, encontra na leitura dos textos de Morelli “a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (Ginzburg, 1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In C. Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (pp. 143-179). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 149). Isto é, a partir de sinais geralmente considerados irrelevantes, é possível alcançar verdades humanas.

Com isso, notamos a estreita relação da proposta de estética em Rancière - ao trabalhar aquilo que comumente é considerado mero detalhe desprezível - com o que Freud trabalha a partir do Inconsciente. Dessa maneira, o conceito de Inconsciente Estético nos parece de grande utilidade para prosseguirmos com muitas das discussões que já são feitas articulando o campo da psicanálise com o campo artístico.

Na terceira aproximação, tanto Rancière quanto Freud consideram que a estética são coisas produzidas na relação entre o pensamento e o não-pensamento, assim abre-se espaço para se pensar e produzir conhecimento. As figuras literárias e artísticas foram temas centrais nas construções teóricas freudianas e o que Rancière nos diz sobre elas é que “essas figuras servem para provar isto: existe sentido no que parece não ter, algo de enigmático no que parece evidente, uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe anódino” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 10). O autor demonstra que as figuras provam a “existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido do insignificante” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 11). Ou seja, inverte-se a noção de que desde a psicanálise poderíamos interpretar obras artísticas. A partir do que nos apresenta Rancière, entendemos que é a psicanálise que encontra nas obras artísticas a materialidade do que seria próprio das manifestações inconscientes.

Nesse sentido, segundo Quinet (2008Quinet, A. (2008). A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) a respeito do pensamento inconsciente, podemos notar que, em Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.), o conceito de “não-pensamento” se articula com o que ele mesmo irá chamar de inconsciente do pensamento, devido às aproximações que o autor faz com a psicanálise. Desse modo, apontamos a possibilidade de relacionar o conceito de Inconsciente freudiano com outras construções teóricas, justamente por ser um conceito que se apresenta de diversas maneiras, manifestando-se em novas articulações teóricas, como no caso do conceito de inconsciente estético.

Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) procura mostrar como o “não-pensamento” também se infiltra no que é pensado, assim como Freud estudou aquilo que aparenta não ter sentido e encontrou, nesses conteúdos, ‘rastros’ de pensamento. É justamente pelo interesse ao campo do sensível e, portanto, aos estudos sobre a estética que Rancière direciona sua atenção a Freud, considerando que “a proposta analítica de Freud só é possível porque há uma transformação no regime de pensamento capaz de movimentar os elementos que estão no domínio do ‘não pensamento’ e passá-los ao território do ‘pensamento’” (Sarmento-Pantoja, 2013Sarmento-Patoja, T. (2013). Pensar sobre a dissidência. Inconsciente estético de Jacques Rancière. Revista Margens, 7(9), 283-287. Recuperado de https://periodicos.ufpa.br/index.php/revistamargens/article/viewFile/2782/2913
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, p. 285). Assim, podemos ver a importância da teoria psicanalítica para pensarmos essas questões assinaladas por Rancière e, dessa maneira, refletir acerca das relações entre pensamento e não-pensamento, desenvolvida de modo predominante no âmbito da estética (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.).

Desse modo, o trabalho de Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) se baseia em “pensar os estudos ‘estéticos’ de Freud como marcas de uma inscrição do pensamento analítico da interpretação no horizonte do pensamento estético” (p. 11). Portanto, o que Rancière apresenta enquanto revolução estética e as mudanças que ela provoca na materialidade do sensível se alinham com a própria prática analítica freudiana, em que é atribuído valor e sentido aos detalhes e às minúcias da vida.

Contrário à ciência positivista da época, Freud realiza o que Rancière chamou de algumas alianças com a crença popular: basta pensar em como a mitologia serviu de amparo para fundamentações freudianas, por exemplo. Para o filósofo, isso só foi possível porque o espaço entre a ciência e as crenças populares não estava vazio, mas ocupado pelo domínio do inconsciente estético. Esse inconsciente é que “redefiniu as coisas da arte como modos específicos da união entre o pensamento que pensa e o pensamento que não pensa” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 44). Ou seja, o campo estético cria uma espécie de ponte entre a ciência e as crenças populares, ponte pela qual Freud atravessa e realiza um percurso subversivo.

Por fim, apresentamos uma aproximação teórica entre Freud e Rancière por meio da ideia de experiência psíquica do paciente que o analista, como um arqueólogo, se põe a decifrar os vestígios de sua história pessoal (Freud, 2017/1937Freud, S. (2017). A análise finita e a infinita. In Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 315-356). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937)); e para Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.), de colocar em palavras por meio da fala aquilo que ele denomina não-pensamento.

Em seu texto Construções na análise (1937), Freud nos conta sobre a análise evidenciando o papel fundamental da construção para que o sujeito analise o recorte de eventos que recalcou e, assim, trabalhe com eles. Freud (2017/1937Freud, S. (2017). Construções na análise. In: Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 365-381). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937)) distingue a construção da interpretação, dizendo que: “interpretação se refere àquilo que fazemos com um único elemento do material, a exemplo de uma ocorrência, um ato falho ou assemelhado. Mas falamos em construção quando apresentamos ao analisando um pedaço de sua história pregressa esquecida” (Freud, 2017/1937Freud, S. (2017). Construções na análise. In: Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 365-381). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937), p. 370). Com isso, Freud (2017/1937Freud, S. (2017). Construções na análise. In: Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 365-381). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937)) aproxima o trabalho de construção do(a) analista com o trabalho de reconstrução de um(a) arqueólogo(a) que escava construções antigas e destruídas (Freud, 2017/1937Freud, S. (2017). Construções na análise. In: Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 365-381). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937)).

Seguindo com esse raciocínio, partimos novamente para as contribuições teóricas de Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.), que nos apresenta uma função semelhante para o(a) artista:

O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 36)

É justamente por isso que, para Rancière, a revolução estética inaugura um novo regime de pensamento, no qual não existe mais distinção de importância nas temáticas artísticas. E, como a arte - em suas mais diversas expressões - serviu de base para muitos conceitos da psicanálise, é possível relacionar as propostas freudianas como inauguradoras de novas maneiras de pensar o sujeito, em que os detalhes julgados insignificantes seriam justamente o que nos colocariam no caminho da verdade. Como explicado pelo autor:

Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios. Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo. (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 36-37)

Depois dessas aproximações possíveis entre esses dois autores, podemos notar inúmeras correspondências no que Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) nos apresenta a respeito das obras de arte e daquilo que Freud nos explica sobre as experiências psíquicas e o trabalho do analista. Freud rompe com um fazer científico positivista, e aproxima sua prática do fazer artístico. Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) se refere aos(às) artistas e, em especial aos(às) poetas, da seguinte maneira: “em matéria de psyche, de conhecimento e das formações singulares do psiquismo humano e seus mecanismos ocultos, o saber deles está mais avançado que o dos cientistas” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 47). Nessa mesma linha, Freud (2017/1937Freud, S. (2017). Construções na análise. In: Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 365-381). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937)) ainda associa a própria prática analítica com um fazer artístico, ele escreve que “analistas são pessoas que aprenderam a exercer determinada arte” (Freud, 2017/1937Freud, S. (2017). Construções na análise. In: Fundamentos da clínica psicanalítica (Ernani Chaves, trad., pp. 365-381). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1937), p. 355).

Como vimos, para Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.), a estética representa um modo de pensar as coisas da arte como sendo coisas do pensamento. Portanto, a “estética” não é uma nova maneira de falar sobre o domínio artístico, mas, sim, uma configuração singular desse domínio. Apresentando tais postulações, Rancière (2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34.) aponta sua hipótese como sendo a de “que o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da ideia do pensamento que lhe é imanente” (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). O inconsciente estético. São Paulo, SP: Editora 34., p. 14).

Expostas tais articulações, nos propomos a analisar, em seguida, como o conceito de Inconsciente Estético e as concepções de Rancière referentes ao que ele denomina “revolução estética” nos auxiliam a pensar a própria clínica psicanalítica, principalmente a partir de uma importante metodologia utilizada por Freud em sua prática e pesquisa: a escrita do caso clínico.

O caso clínico em psicanálise: estética e política

Além de entender a arte como uma importante contribuição para a ciência, Freud destaca a importância das habilidades literárias para a escrita de casos clínicos em psicanálise porque, como vimos anteriormente, é uma estética que toma o sujeito em toda sua singularidade e se propõe a ouvi-lo e analisá-lo distante de qualquer paradigma organicista ou positivista. Nesse sentido, veremos que alguns autores vão indicar gêneros literários em que os casos clínicos poderiam ser escritos e produzidos, afastando-se sobremaneira de qualquer ordenamento ou aproximação com o discurso da psicologia ou da psiquiatria que reduz o sujeito a uma enfermidade pré-estabelecida nos códigos internacionais de doenças.

Nesse sentido, pode-se fazer uma aproximação entre a forma dos casos clínicos com o gênero policial. Em seu livro Escrever a clínica (1998Mezan, R. (1998). Escrever a clínica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), Renato Mezan apresenta uma série de indicações a respeito da escrita em psicanálise, especificando a escrita do caso clínico. O autor nos diz que a escrita do(a) psicanalista se baseia naquilo que é necessário ser dito e afirma: “o que um analista tem a dizer é, essencialmente, fruto do . . . ‘raciocínio analítico’” (Mezan, 1998Mezan, R. (1998). Escrever a clínica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 10). Com isso, percebemos elementos importantes para a escrita de um caso clínico em psicanálise, trata-se de um trançado que incluiu a interpretação do(a) analista, daquilo que o(a) analisante expôs na sessão, e do efeito disso no campo teórico (Mezan, 1998Mezan, R. (1998). Escrever a clínica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). A partir disso, o autor comenta que, para além dos aspectos formais da escrita em psicanálise, há aspectos ligados ao que ele denomina “dimensões pulsionais da escrita” (p. 371), ou seja, há um investimento de si na escrita, “tanto investimento numa obra não é muito diferente do que acontece com o criador artístico” (p. 372).

De acordo com Dunker (2011Dunker, C. I. L. (2011). Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo, SP: Annablume., p. 566), há três tradições que se combinam na escrita freudiana dos casos clínicos: a cura, a psicoterapêutica e a clínica. Portanto, o autor defende que é preciso relativizar a tensão entre literatura e ciência na discussão acerca da construção dos casos clínicos em psicanálise, visto que não se trata de qualquer literatura, nem de qualquer ciência. Para Dunker (2011Dunker, C. I. L. (2011). Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo, SP: Annablume.), a fusão entre ambas “não se dá em qualquer terreno literário, mas em uma forma bem definida: o romance” (p. 566). Assim, as habilidades literárias se combinam com aspectos conceituais e de diagnóstico da própria ciência.

Ainda pensando na escrita dos casos clínicos, percebemos que eles são contemporâneos a uma forma específica de romance: o romance policial (Dunker, 2011Dunker, C. I. L. (2011). Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo, SP: Annablume.). Para Mezan, é possível pensar em semelhanças entre a escrita do caso clínico e o gênero policial a partir de dois lados: um lado formal que diz respeito à analogia com a investigação e a descoberta de sentidos ocultos, e por outro lado a motivação da escrita, baseada em um movimento pulsional do agir do sujeito (Mezan, 1998Mezan, R. (1998). Escrever a clínica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

Investigar as possíveis correspondências entre a literatura policial e a escrita do caso clínico “nos ajudaria a compreender a formação discursiva na qual a psicanálise emerge e, portanto, algo sobre sua própria condição de possibilidade histórica e cultural” (Dunker, Assadi, Bichar, Gordon, & Ramirez, 2002Dunker, C. I. L., Assadi, T. C., Bichara, M. A. M., Gondon, J., & Aragão e Ramirez, H. H. (2002). Romance policial e a pesquisa em psicanálise. Interações, 7(13), 113-126. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-29072002000100008&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 114). De acordo com os autores, analisar as semelhanças entre Sherlock Holmes e Freud implica pensar na criação de métodos investigativos que não são passíveis de uma simples replicação. Trata-se, portanto, da descoberta de uma singularidade do pesquisador em questão (Dunker et al., 2002Dunker, C. I. L., Assadi, T. C., Bichara, M. A. M., Gondon, J., & Aragão e Ramirez, H. H. (2002). Romance policial e a pesquisa em psicanálise. Interações, 7(13), 113-126. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-29072002000100008&lng=pt&nrm=iso
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).

Embora saibamos da solidez epistemológica dos conceitos psicanalíticos, diversas críticas são feitas à construção do caso clínico em psicanálise, com argumentos de que não há evidências que possam comprovar, de fato, a verdade narrada. Acontece que a psicanálise procura integrar diversos fatores heterogêneos, não utilizando evidências isoladas, “a teoria psicanalítica emprega o caso clínico como parte de sua teoria da verificação levando em conta a variedade de formas concorrentes para postular a unidade de sua teoria” (Dunker & Ravanello, 2017Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2017). Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 39(36), 87-102. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100005&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 88-89). Dessa maneira, o caso clínico para a psicanálise depende de suas versões, as quais exigem interpretações e métodos de construções específicos.

As semelhanças entre o estilo em que os casos clínicos em psicanálise são escritos com os gêneros literários são alvos de diversas críticas por aqueles que menosprezam a literatura. Lacan faz diversas análises a partir de sua dedicação a Hamlet e Signe de Coûfontaine, por exemplo; ao relacionar casos clínicos a casos literários. As críticas realizadas sugerem que a literatura é meramente ficcional e, portanto, “capaz de inventar qualquer coisa, uma liberdade manipulativa que se presta a corroborar qualquer tese . . . . Ora, isso é falso. A literatura captura a verdade de uma época” (Dunker & Ravanello, 2017Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2017). Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 39(36), 87-102. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100005&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 91).

Além disso, recorremos novamente a Lacan (1953/2008Lacan, J. (2008). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. (V. Ribeiro, trad., pp. 101-187). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1953)) para pensarmos na própria fundação da cadeia significante como uma ficção, isto é, trata-se de uma criação: “pela palavra que é já uma presença feita de ausência, a ausência mesma vem a nomear-se em um momento original de que o gênio Freud apreendeu no jogo da criança a recriação perpétua” (Lacan, 1953/2008Lacan, J. (2008). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. (V. Ribeiro, trad., pp. 101-187). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1953), p. 140). Com isso, deste a partir dessa dupla presença e ausência que o universo de sentido de uma língua se coloca e toma corpo, já que: “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (Lacan, 1953/2008Lacan, J. (2008). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. (V. Ribeiro, trad., pp. 101-187). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1953), p. 141).

Seguindo com o apresentado pelos autores, salientamos que, de acordo com a concepção por eles exposta: “a literatura é uma forma de pensamento, não apenas uma expressão emocional de estados de ânimo ou uma intriga psicológica sobre relações humanas” (Dunker & Ravanello, 2017Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2017). Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 39(36), 87-102. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100005&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 96). Sendo assim, os casos clínicos e os casos literários são homólogos, pois o que está em questão não é apenas o conteúdo em si, mas sua forma. Os casos clínicos seriam também uma maneira de intervir e, portanto, dar forma “para delimitar existências” (Dunker & Ravanello, 2017Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2017). Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 39(36), 87-102. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100005&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 97).

A forma literária se distingue da concepção de gênero, visto que a primeira estrutura mundos em intensão e a segunda aproxima discursos por similaridades (Dunker & Ravanello, 2017Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2017). Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 39(36), 87-102. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100005&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 97): a forma literária se nutre da realidade; todavia, é uma realidade autônoma. Com isso, os autores salientam como esta concepção nos possibilita pensar no caso clínico como “pertencente a um gênero, porém, como afirmação de uma forma literária de desestabilização do que poderia ser a reificação deste” (Dunker & Ravanello, 2017Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2017). Gênero e forma literária: considerações sobre a estrutura ficcional dos casos clínicos em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 39(36), 87-102. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100005&lng=pt&nrm=iso
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 97).

Nesse sentido, Rancière (2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34.) explica a revolução estética como aquela que se manifesta na “glória do qualquer um”. Ele aponta para uma nova maneira de relacionar temas e modos de representações que quebra com determinada hierarquia estabelecida, na qual - por exemplo - tragédia era para os nobres e a comédia para a plebe (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34.). Segundo o autor, essa primeira ruptura acontece na literatura, justamente o campo em que nos propomos analisar juntamente com a dimensão do caso clínico em psicanálise.

Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes íntimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstruir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes de ser científico. (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34., p. 49)

Seguindo com esse raciocínio, ainda que os casos clínicos em psicanálise não sejam obras literárias, mas possuam suas especificidades, sua narrativa apresenta dimensões da estética proposta por Rancière. A literatura foi o primeiro campo artístico em que a revolução estética se concretiza, sendo aquela que reconstrói mundos a partir de vestígios e que se atenta aos detalhes do ordinário e banal. A proposta freudiana estaria mais próxima a esse campo literário do que ao próprio saber científico da época, e ao pensar na proposta lacaniana da estruturação do inconsciente como linguagem (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. (V. Ribeiro, trad., pp. 101-187). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1953)), podemos também reafirmar a proposta de Rancière, de que o humano é um “animal literário” (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34.. p. 59).

Ao considerar que, na clínica psicanalítica, temos a “cura pela fala”, a palavra é elemento central. A linguagem é, justamente, o que possibilita ao sujeito desviar-se do que seriam os instintos naturais em outros animais. É sobre esses corpos atravessados pela linguagem que Rancière também localiza os efeitos do sensível partilhado, já que, para o filósofo, por serem animais literários, o ser humano também é animal político. A dimensão política para Rancière apresenta-se aí, ao recolocar “em causa a partilha já dada do sensível” (Rancière, 2005Rancière, J. (2005). A partilha do sensível. São Paulo, SP: Editora 34., p. 60).

Por isso o caso clínico em psicanálise requer uma política em que o sujeito não seja tomado como um objeto da ciência a ser investigado. Essa estética supõe que a narrativa do sujeito compõe sua história de vida, portanto, seus dramas, angústias, alegrias etc. Somado a isso, há a experiência do próprio analista na posição de objeto a (Lacan, 1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro XVII: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1969-1970)), que contracena, por meio da transferência e contratransferência com o analisante, portanto, sua escuta e experiência diante do analisante irão compor essa construção clínica. Diante da fala do sujeito, o analista não pode ser pego pelo discurso da ciência, nesse caso representados pela psicologia e psiquiatria em que essa fala precisa ser enquadrada numa sintomatologia definida pelos códigos internacionais de doenças e assim corroboram o estabelecimento dos lugares prescritivos (Lara Junior et al., 2017Lara Junior, N., Kist, A. U., Oliveira, F. C., & Boardmann, J. (2017). A contribution: on the “prescriptive place” to lacanian discourse analysis. Annual Review of Critical Psychology, 13, 1-15. Recuperado de https://thediscourseunit.files.wordpress.com/2017/08/arcpnadirl.pdf
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) que são as formações discursivas que determinam onde e quando o sujeito pode se manifestar na sociedade, justificando assim todo tipo de estigma e exclusão social.

Pensamos que há algo da política da psicanálise na construção do caso clínico, pois possibilita que o sujeito possa se reposicionar em relação ao Outro e aos outros que estão no mesmo laço social. No discurso da psicanálise (Lacan, 1992/1969-1970Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro XVII: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1969-1970)), o sujeito é aquele que deseja e que encontra uma margem de liberdade para buscar a construção de suas próprias cadeias significantes. O analista se torna seu companheiro de travessia da fantasia. Portanto, escrever um caso clínico não é somente apontar as estruturas (neurose, psicose e perversão), mas é indicar como o analisante fica preso em lugares prescritivos (Lara Junior et al., 2017Lara Junior, N., Kist, A. U., Oliveira, F. C., & Boardmann, J. (2017). A contribution: on the “prescriptive place” to lacanian discourse analysis. Annual Review of Critical Psychology, 13, 1-15. Recuperado de https://thediscourseunit.files.wordpress.com/2017/08/arcpnadirl.pdf
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) gerados por um laço social em que o discurso do capitalista (Lacan, 1972) se torna hegemônico e, assim, impulsiona o sujeito a produzir um sofrimento e sintoma para si mesmo e para aqueles que estão à sua volta.

Algumas considerações finais

Como vimos até aqui, o Inconsciente Estético não pode ser reduzido a uma mecânica positivista ou uma descrição organicista que reduz o sujeito a seu sintoma, portanto a elaboração de um caso clínico em psicanálise se coloca politicamente e epistemologicamente contrária a esse tipo de elaboração. Nesse sentido, narrar a experiência do sujeito em análise é estar preparado para pensar e falar distante desse discurso hegemônico de ciência; é estar apto a respeitar uma ética em que o sujeito é considerado na relação consigo, com o Outro e com as demais pessoas no laço social.

A estética da psicanálise resgata o belo da experiência humana, seus dramas, amores, desamores, alegrias e frustrações. Por isso, esse sujeito não pode ser reduzido a uma psicopatologia. Portanto, a estética em Rancière reposiciona o sujeito na partilha do sensível e, assim, convoca as pessoas para a dimensão coletiva da vida em sociedade. Dessa forma, construir o caso clínico sem considerar o laço social, pois ele posiciona o sujeito em relação ao seu desejo, sofrimento e sintoma, seria um erro, uma vez que esse laço precisa ser entendido e considerado nessa elaboração do caso clínico.

Com isso, notamos uma estreita relação entre o fazer artístico com o próprio fazer analítico, lançando um olhar específico para o ato da escrita. De acordo com Morais (2006Morais, M. B. L. (2006). Poesia, psicanálise e ato criativo: uma travessia poética. Estudos de Psicanálise, (29), 45-56. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372006000100008
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):

Assim como o analisando no final da análise faz de seu complicado romance familiar um conto esteticamente mais elegante e moderno, através das pontuações do analista que interroga, exclama, corta, coloca um ponto e vírgula . . . talvez possa algum analisando descobrir, ou reencontrar, através da análise, o seu dom poético e realizar uma travessia poética, criar das sobras, dos resíduos, restos de desejos, um poema”. (p. 54)

A mudança que ocorre no campo estético, isto é, a reconfiguração do conceito de beleza próprio da modernidade, muito se assemelha com as mudanças propostas pela perspectiva freudiana com relação à beleza e à própria vida. Em seu texto A transitoriedade (1996/1916Freud, S. (1996). Sobre a transitoriedade. In: Obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 317-319). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).), podemos perceber como Freud lança outro olhar sobre o belo, enquanto seu amigo lamenta que as coisas belas se findam, Freud “via no movimento do tempo uma afirmação da vida” (Mourano, 2010Maurano, D. (2003). Para que serve a psicanálise? (Psicanálise - passo a passo, Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 22). Para Freud, o verdadeiro valor das obras artísticas não estaria no seu valor temporal, mas “apenas por meio do seu significado para nossa vida sensível” (Freud, 2015/1916Freud, S. (2015). Arte, literatura e os artistas (1a ed., Ernani Chaves, trad., pp. 344). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1897), p. 222). Com isso, podemos compreender melhor porque, por vezes, a psicanálise é melhor recebida pela arte do que pela própria ciência positivista.

Como vimos demonstrando até aqui, o caso clínico também tem algo da política em sua construção, pois esse não se coaduna com um modelo de ciência que toma o sujeito como objeto e assim reduz sua experiência a uma sintomatologia que beira o estigma, por isso sua aproximação com o campo das artes. Nesse sentido, Parker (2007Parker, I. (2007) Revolution in psychology: Alienation to emancipation. London: Pluto Press.) mostra que está ocorrendo um processo de psiquiatrização e psicologização das relações humanas, pois essas ciências reduzem a complexidade da realidade humana a categorias psicológicas e, dessa forma, perdem de vista as dimensões social, política e econômica, que compõem o raciocínio clínico. Com isso, esse saber científico passa a funcionar como uma ideologia que irá trabalhar como um aparato ideológico do Estado.

Baseados em Freud e Rancière, podemos entender que um caso clínico deve se fundar em indícios, rastros, elementos negligenciáveis pelo analisante e, a partir disso, construir uma narrativa literária capaz de compreender a relação estabelecida entre analista, analisante e o próprio inconsciente. Dessa maneira, a escrita de caso clínico quer demonstrar que, por um lado, o que se faz em análise é também artístico e, por outro, é ainda uma política contrária a qualquer reducionismo do sofrimento do sujeito a uma psicopatologia, propondo assim uma outra estética de relação com o sofrimento psíquico.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Dez 2022
  • Aceito
    19 Set 2023
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