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Pesquisa documental histórica e pesquisa bibliográfica: focos de estudo e percursos metodológicos 1 1 Editor responsável: André Luiz Paulilo. https://orcid.org/0000-0001-8112-8070 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br. 3 3 Apoio: CNPq. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Bolsa produtividade e pesquisa A2.

Resumo

O presente artigo, de caráter teórico, apresenta uma discussão sobre as metodologias de análise documental e a pesquisa bibliográfica, ambas na área da Educação, percorrendo os seus diferentes focos de estudo e percursos metodológicos. Para uma melhor organização da discussão, o artigo está dividido em quatro seções: na primeira seção, apresentamos algumas notas introdutórias sobre o tema; na segunda, discorremos sobre a noção de documento histórico e sobre como trabalhar com ele nas pesquisas em Educação; na terceira, apresentamos os percursos metodológicos adotados em pesquisas bibliográficas; e na quarta, estabelecemos algumas considerações finais. As reflexões são apresentadas de modo a confrontar essas duas perspectivas, trazendo os elementos teóricos e metodológicos que as distinguem.

Palavras-Chave
Metodologia; Pesquisa bibliográfica; Documento

Abstract

This theoretical essay discusses documentary analysis and bibliographic research methodologies, both in the context of Education, briefly approaching different study subjects and methodologies. The article is divided into four sections: in the first section, we present some introductory notes on the subject; in the second section, we approach the notion of historical documents and the way they can be included in Education research; in the third section, we present the methodologies adopted in bibliographical research; in the fourth section, we make some final remarks. The reflections on the matter are presented in order to contrast these two fields, exposing the theoretical and methodological elements that distinguish them.

Keywords
Methodology; Bibliographic research; Document

Sobre o artigo

O presente artigo tem como objetivo discutir a pesquisa documental, por meio da metodologia de análise documental de cunho historiográfico e da pesquisa bibliográfica — ambas na área da Educação —, com vistas a abordar as etapas teórico-metodológicas de cada uma delas. Consideramos que tal discussão é fundamental, pois, além de a pesquisa bibliográfica como opção metodológica ser frequentemente confundida com revisão de literatura ou com revisão bibliográfica, muitos estudos que deveriam ser considerados bibliográficos, em função do seu corpus empírico e dos percursos teórico-metodológicos adotados, têm sido caracterizados como pesquisa documental. Assim, o aprofundamento de tais discussões tenciona provocar avanços nas formas de compreender e de desenvolver pesquisas na área da Educação. Importa ainda ressaltar que as questões que aqui discutimos podem não fazer sentido para os historiadores de ofício, uma vez que nesse campo de pesquisa, via de regra, a metodologia parte de uma análise documental.

Desse modo, o artigo apresenta uma discussão de caráter teórico acerca de duas metodologias na área da Educação, a análise documental histórica e a pesquisa bibliográfica, a partir de um conjunto de autores e pesquisas já realizadas sobre o tema. Convém destacar que as reflexões descritas neste artigo só foram possíveis pelo entendimento de que a História da Educação, nosso campo de pesquisa, situa-se em uma zona de fronteira entre a Educação e a História. Operamos com teóricos, conceitos, empirias e metodologias que abarcam esses dois territórios, o que desencadeou alguns questionamentos que são mote de nossas reflexões.

Ressaltamos que não temos como intenção aqui defender uma ou outra modalidade de pesquisa. O nosso objetivo, como já dito, é contribuir para as discussões metodológicas das pesquisas em Educação. Para tal, dividimos o artigo em quatro seções. Na primeira, apresentamos algumas notas introdutórias sobre o tema. Na segunda, discutimos a noção de documento histórico e abordamos como trabalhar com ele nas pesquisas em Educação. Na terceira seção, apresentamos os percursos metodológicos adotados em pesquisas bibliográficas. E na quarta e última seção, estabelecemos algumas considerações finais.

Notas introdutórias

Neste artigo, optamos por acrescentar o termo “histórica” ou “arquivística” à terminologia “análise documental”. Tal complementação se justifica porque, no campo da Educação, as pesquisas cuja metodologia se caracteriza como análise documental nem sempre são de cunho historiográfico. Pode-se analisar documentos legais contemporâneos como uma lei vigente, um projeto político-pedagógico (PPP) de determinada instituição, uma portaria, uma circular, ou seja, um sem-fim de documentos escolares ou não, cuja análise se configura como análise documental — mas o objetivo da pesquisa e seu resultado não são historiográficos.

O que diferencia um documento histórico de uma fonte bibliográfica quando tais materiais são tomados como material empírico? Uma fonte bibliográfica pode ser tomada como documento em uma pesquisa? Os documentos são utilizados apenas em pesquisas de caráter histórico? Quando uma pesquisa pode ser compreendida como histórica? A partir dessas e de outras questões, construímos o presente artigo. Nesse âmbito, partimos do entendimento de que a problematização central de uma pesquisa é o fio condutor para a escolha dos procedimentos metodológicos e para a forma de tratamento dos dados encontrados.

No campo da Educação, percebemos que aquilo que se chama de pesquisa documental nem sempre tem caráter historiográfico. Veyne (1998, p. 60)Veyne, P. (1998). Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Editora Universidade de Brasília. nos diz que o desenvolvimento do conhecimento histórico está delimitado “[…] pelo aparecimento de dois princípios […] O primeiro vem dos gregos e diz que a história é conhecimento desinteressado e não lembranças nacionais ou dinásticas; o segundo, de nossos dias, afirma que todo fato é digno de história”.

Várias pesquisas têm como intuito compreender determinadas temáticas em uma perspectiva histórica, ou seja, visam observar que condições possibilitaram que algumas coisas fossem ditas e pensadas em determinado momento histórico, e não em outro. Para tal, procuram mapear as “[…] ascendências (Herkunft), na forma de condições de possibilidade para a emergência (Entestehung) do que hoje é dito, pensado e feito” (Veiga-Neto, 2003Veiga-Neto, A. J. (2003). Foucault & a Educação. Autêntica., p. 70). Isso nos leva a refletir que “[…] a história torna-se história daquilo que os homens chamaram as verdades e de suas lutas em torno dessas verdades” (Veyne, 1998Veyne, P. (1998). Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Editora Universidade de Brasília., p. 268).

Já é sabido que foi a partir dos anos de 1929/1930 que se iniciou o declínio da história política, também conhecida como história tradicional. Foi com a publicação, em 1929, do primeiro número dos Annales, sob a direção de Marc Bloch e Lucien Febvre, que se ampliou o domínio historiográfico, processo que abrangeu a busca pela redefinição de conceitos como documento, fato histórico e tempo.

A nova tendência insistiu na longa duração e centrou a atenção na atividade econômica, na organização social, na psicologia coletiva e na aproximação da História com outras ciências. Os anos de 1950 e 1960, sobretudo, desbravaram terrenos da geografia histórica, da história econômica e da demografia histórica (Burke, 2005Burke, P. (2005). O que é história cultural? Jorge Zahar Editora.). Aproximadamente na década de 1970, constituiu-se uma vertente teórica que ficou conhecida como história das mentalidades, permeada por muitas discussões e concepções distintas em diferentes países, que culminou com a nomenclatura de Nova História, ou Nova História Cultural — que, nos dias atuais, é chamada de História Cultural. Dessa abordagem, emergiram novos objetos, novos temas e novos problemas (Le Goff, 1996Le Goff, J. (1996). História e Memória. UNICAMP.). Esse processo ampliou a noção de documento, trazendo à tona a problematização de fontes visuais, orais e estatísticas; e de paisagens e artefatos escritos não oficiais, como cadernos escolares, diários íntimos, escrita epistolar, entre outras fontes da ordem do comum, até então negligenciadas pela Historiografia.

Nas discussões metodológicas realizadas no processo de construção de teses e dissertações em Educação, há sempre um problema para selecionar textos que digam respeito à metodologia de pesquisa que aqui denominamos de análise documental histórica. Tal campo também é referido na literatura acadêmica como análise documental arquivística, ou simplesmente análise documental.

Diante disso, enfatizamos novamente a opção pelo termo “análise documental histórica”. Embora, na área da História, baste o nome “análise documental” — uma vez que, no ofício de historiador, um documento sempre será analisado na perspectiva histórica —, na área da Educação, a análise de um documento compõe uma infinidade de possibilidades e perspectivas. Assim, o termo documento é empregado para diferentes materialidades que podem, ou não, relacionar-se a uma pesquisa historiográfica.

Uma vez que as fronteiras disciplinares se encontram mais borradas a cada dia e que os limites entre os campos de pesquisa vêm se tornando menos específicos, alguns esclarecimentos são necessários quanto às pesquisas nas chamadas ciências humanas, sem a intenção de mantê-las em “guetos”, mas com o propósito de sustentar o necessário rigor de uma investigação acadêmica. Nesse sentido, o objetivo desta discussão é delimitar as possibilidades de entendimento do que é um documento histórico, compreender o que é uma operação historiográfica e ampliar as discussões relacionadas à “análise de documentos históricos” nas pesquisas em Educação, de modo geral, e na História da Educação, com algumas questões pontuais.

Além disso, discutimos a pesquisa bibliográfica na área da Educação e seu percurso metodológico. Poderíamos citar aqui um conjunto de pesquisas que tratam as fontes bibliográficas como documentos por terem um caráter historiográfico, o que responde a uma das questões realizadas por nós anteriormente: “sim, fontes bibliográficas podem ser tomadas como documentos históricos”. Porém, quando uma pesquisa, independentemente do seu recorte temporal, não tem uma dimensão historiográfica e trabalha com fontes bibliográficas, como o próprio nome já diz, trata-se de uma investigação bibliográfica — questão ainda pouco tematizada[LG1] na área da Educação. Conforme já mencionado, nas próximas seções, discutiremos de forma mais detalhada ambas as metodologias — a análise documental histórica e a pesquisa bibliográfica.

Mas afinal, o que é um “documento histórico” e como mobilizá-lo nas pesquisas em Educação?

A análise documental histórica é uma perspectiva metodológica que se constituiu como uma das principais vias de construção do conhecimento histórico-acadêmico desde o século XIX. Entretanto, da mesma forma que as concepções teóricas e correntes interpretativas vinculadas à produção historiográfica vêm se transformando e se reconfigurando, as noções de documento e suas formas de análise têm passado por decisivas modificações. Como lembra o historiador André Cellard (2012, p. 302)Cellard, A. (2012). A análise documental. In J. Poupart. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp.295-316). Vozes., até o “[…] final do século XIX a noção de documento se aplicava quase que exclusivamente ao texto, e, particularmente, aos arquivos oficiais”. Essa definição ligava-se à concepção de estudo da história praticada pela maioria dos autores da época, ou seja, “[…] uma abordagem conjuntural, focada, sobretudo, nos fatos e gestos dos políticos e das elites” (Cellard, 2012Cellard, A. (2012). A análise documental. In J. Poupart. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp.295-316). Vozes., p. 299).

Ao longo do século XX, ao alargar os limites da análise historiográfica à totalidade das ações e das relações dos indivíduos e grupos humanos, “[…] a história social ampliou consideravelmente a noção de documento. Tudo o que é vestígio do passado, tudo o que é considerado como testemunho, é considerado como documento” (Cellard, 2012Cellard, A. (2012). A análise documental. In J. Poupart. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp.295-316). Vozes., p. 296). Nesse sentido, Meneses (2003, p. 29)Meneses, U.T. B. (2003). Fontes visuais, cultura visual, História visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, 23(45), 11-36. define documento como “[…] aquilo capaz de fornecer informações a uma questão do observador, qualquer que seja sua natureza tipológica, material ou funcional”. Por sua vez, Certeau (1982, p. 18)Certeau, M. (1982). A Escrita da História. Forense Universitária. afirma que, “em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar assim em ‘documentos’ determinados objetos repartidos de outra maneira”. Desse modo, no campo da teoria da história, encontramos variadas noções do que é um documento histórico, embora essas noções tenham se ampliado e/ou complementado desde as últimas décadas do século XX.

O procedimento de análise documental é aquele em que o pesquisador não participa diretamente da construção das informações e dos dados analisados no decorrer da pesquisa — excetuando-se o contexto da História Oral. Cabe ao procedimento de análise documental, entretanto, circunscrever o que será considerado documento e com que arcabouço epistemológico realizará sua abordagem.

Deve-se considerar, ainda, as já clássicas advertências de Jacques Le Goff de que o documento “[…] é, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, das sociedades que o produziram, e das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio” (Le Goff, 1996Le Goff, J. (1996). História e Memória. UNICAMP., p. 538). Assim, não se pode esquecer que “o documento é monumento”, ou seja, que ele “[…] resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro — voluntária ou involuntariamente — determinada imagem de si próprias” (Le Goff, 1996Le Goff, J. (1996). História e Memória. UNICAMP., p. 538). Ou, dito de outra forma, “[…] os documentos podem ser interessantes tanto pelo que deixam de fora assim como pelo que contêm. Eles não refletem simplesmente, mas também constroem a realidade social e as versões dos eventos” (May, 2004May, T. (2004). Pesquisa documental: escavações e evidências. In Pesquisa social: questões métodos e processos (pp.206-230). Artmed., p. 213).

Desse modo, cabe ao(à) pesquisador(a) “[…] analisá-los desmistificando-lhes o seu significado aparente”; para isso, será necessário “[…] começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos” (Le Goff, 1996Le Goff, J. (1996). História e Memória. UNICAMP., p. 538). Essa não é uma tarefa simples, e os procedimentos para alcançá-la variam de acordo com as condições e definições de cada pesquisa.

Cellard (2012)Cellard, A. (2012). A análise documental. In J. Poupart. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp.295-316). Vozes. propõe a existência de algumas dimensões inter-relacionadas do processo de análise documental; entre elas destacamos: o exame do contexto social global no qual foi produzido o documento, para assim compreender a conjuntura política, econômica, social e cultural que propiciou a sua produção; conhecer — por meio da análise dos dados biográficos, das ideias, motivações, posições sociais e redes de relações dos que escrevem — os produtores dos discursos analisados; identificar a importância do estabelecimento do tipo e da origem do documento, ou seja, sua procedência; realizar uma leitura preliminar para observar a lógica interna e os conceitos-chave do texto, para assim identificar os sentidos e a historicidade dos termos empregados pelos autores; e, por fim, realizar uma análise interpretativa que se constitua em um processo de reunião, classificação e comparação das informações preliminares e interpretação dos textos, com base na problemática e nos referenciais teóricos da pesquisa.

Vale pontuar que Cellard (2012)Cellard, A. (2012). A análise documental. In J. Poupart. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp.295-316). Vozes., assim como outros historiadores que trabalham na perspectiva de uma história metódica, faz uma distinção com relação à importância dos documentos, separando-os em fontes primárias ou secundárias — aspecto com o qual não concordamos, uma vez que as vertentes contemporâneas da historiografia têm procurado evitar a hierarquização dos documentos, pois a “[…] narrativa histórica começa com o estabelecimento de um corpus coerente, inteligível sob o ponto de vista de uma investigação precisa, e não sob o ponto de vista de um passado que se pretendia simplesmente restituir em sua verdade recôndita” (Rousso, 1996Rousso, H. (1996). O Arquivo ou o Indício de uma Falta. Estudos Históricos, 9(17), 85-91., p. 88). Isso implicaria separar os documentos pelo seu grau de comprovação da verdade.

Com essas reflexões, por outro lado, corroboramos com a proposta de Cellard (2012)Cellard, A. (2012). A análise documental. In J. Poupart. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp.295-316). Vozes., pois acreditamos que outras questões, por ele propostas, se configuram como centrais e podem auxiliar no delineamento de um processo de pesquisa que inclui o uso de fontes documentais:

  1. As condições de produção do documento: Quem o escreveu? Para quem? Com que finalidade? Em que época? Quais são as relações de poder contidas no documento?

  2. Os procedimentos internos: Quais aspectos da escrita do texto contribuem para seu significado?

  3. As condições de circulação do documento: Em que lugar foi localizado, para onde foi enviado?

  4. As materialidades do documento: Qual o material utilizado? O que diz ou deixa de dizer? O que é possível perceber ao analisar o material?

  5. A preservação: Existem marcas no texto do documento que remetem a outras leituras? Que possibilidades, ao analisar o documento, permitem perceber os usos que dele foram feitos? Em que local estava guardado? Por quem foi preservado? Por quais motivos?

Pensemos, a título de exemplo, em um panfleto alusivo a uma festa de igreja:

Figura 1
Exemplo de fonte documental

Esse panfleto não é um documento oficial, não foi produzido para ser documento. Apresenta, inclusive, um alto grau de efemeridade, uma vez que pode ser de descarte imediato. Após a festividade, perde sua função — a de divulgar um evento —; e sua utilidade como artefato cultural só é importante na medida em que acontece a festividade.

Ao se utilizar o panfleto como documento, instaura-se, no entanto, uma transposição, um deslocamento, na tentativa de traduzir um artefato “[…] de uma linguagem cultural para outra”, transformando assim uma “produção social” em um “objeto da história” (Certeau, 1982Certeau, M. (1982). A Escrita da História. Forense Universitária.). “Esse gesto consiste em ‘isolar’ um corpo, como se faz em física e em ‘desfigurar’ as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto proposto a priori” (Certeau, 1982Certeau, M. (1982). A Escrita da História. Forense Universitária., p. 80). A ideia é recompor esse objeto — panfleto do cinquentenário — fora do seu universo de uso, tentando desenvolver um processo histórico de “reemprego coerente” (Certeau, 1982Certeau, M. (1982). A Escrita da História. Forense Universitária., p. 80). Nas pesquisas em História da Educação, o mesmo processo pode acontecer ao analisarmos cadernos escolares, diários de professores, boletins, atas escolares e um sem-fim de produtos da cultura material da escola.

O ofício de historiador, diz Duby (1989, p. 161), consiste em fazer perguntas sobre o homem de hoje, “[…] tentar dar-lhes respostas tendo em conta o comportamento de nossa própria sociedade numa etapa anterior de sua duração. Para isso interpreto vestígios. Esses materiais chegam-me já tratados pela erudição e tenho de afiná-los ainda mais. Mas quando os manipulo tenho de respeitar algumas regras […]”. Nesse sentido, Borges (1994, p. 61)Borges, V. P. (1994). O que é História. Brasiliense. esclarece: “[…] as fontes ou documentos não são um espelho fiel da realidade, mas são sempre a representação de uma parte ou momento particulares do objeto em questão. Uma fonte representa muitas vezes um testemunho, a fala de um agente, de um sujeito histórico; devem ser sempre analisadas como tal”.

Assim, atualmente, tem-se consciência de que, entre outros exemplos, “[…] uma caderneta de despesas de uma dona-de-casa, um programa de teatro, um cardápio de restaurante, um folheto de propaganda são documentos históricos significativos e reveladores de seu momento” (Borges, 1994Borges, V. P. (1994). O que é História. Brasiliense., p. 61). São também exemplos de artefatos escolares que podem se transformar em documento: fotografias escolares, livros de matrícula, listas de matrícula dos alunos, livros atas de exames, questionários contendo informações sobre o prédio da escola, decretos, leis, ofícios e portarias, cartas, cadernos, diários, imagens, relatórios dos inspetores de ensino, notas de compras da Secretaria da Fazenda, livros tombo de paróquias, termos de compromisso de funcionários, entre tantos outros artefatos produzidos por e/ou para instituições de ensino, escolares ou não.

Na mesma direção dos autores supracitados, Samara e Tupy (2010, p. 70)Samara, E. M., & Tupy, I. S. S.T. (2010). História & Documento e metodologia de pesquisa. Autêntica Editora. também afirmam que o trabalho com um documento histórico deverá suscitar questões como: “Qual a forma material que o documento apresenta; qual o conteúdo que disponibiliza para pesquisa e quais seus objetivos ou os propósitos de quem o elaborou e de quem o lê ou o interpreta”. As respostas encontradas dependem do uso de um documento como fonte de pesquisa histórica.

Nesse âmbito, Bacellar (2005)Bacellar, C. (2005). Uso e mau uso dos arquivos. In C. B. Pinsky (Org.). Fontes históricas (pp.23-79). Contexto. esclarece que o início de uma pesquisa exige a localização de fontes. É preciso verificar, ao se propor um tema qualquer de investigação de cunho historiográfico, quais documentos podem ser localizados na busca de dados. No Brasil, sobretudo, são poucos os repositórios de arquivos que disponibilizam via internet — a exemplo do Arquivo Nacional — a lista, as palavras-chave e as datas dos documentos.

Contextualizar o documento identificado é fundamental para o ofício do historiador. Além disso, entender que um documento não é neutro, que sempre carrega consigo a concepção da pessoa ou do órgão que o escreveu, faz parte da construção da pesquisa histórica. Nas palavras de Ragazzini (2001)Ragazzini, D. (2001). Para quem e o que testemunham as fontes da História da Educação? Educar, 18, 13-28., a fonte é uma construção do pesquisador, isto é, um reconhecimento que se constitui em uma denominação e em uma atribuição de sentido. A fonte “[…] é o contato possível com o passado, mas está inscrita em uma operação teórica produzida no presente, […] provém do passado, mas não está mais no passado quando é interrogada” (Ragazzini, 2001Ragazzini, D. (2001). Para quem e o que testemunham as fontes da História da Educação? Educar, 18, 13-28., p. 14). Assim, em uma metodologia centrada na análise documental histórica, todo o esforço de exame das fontes relaciona-se à implantação de um trabalho historiográfico, isto é, tem como objetivo a “escrita de uma História possível”, no contexto daquilo que Hartog (2013)Hartog, F. (2013). Regimes de historicidade: presentismo e experiências do texto. Autêntica. denomina de “regime de historicidade”.

Na década de 1970, ainda era pequeno o número de trabalhos que se valia de impressos não oficiais como fonte documental. A introdução e a difusão da imprensa no país, incluindo o itinerário de jornais e jornalistas, já contava com bibliografia significativa. No campo da História, no Brasil, Tânia de Luca é uma das precursoras em problematizar e utilizar impressos como jornais e revistas em suas pesquisas, bem como em escrever a história da imprensa. Segundo ela, “reconhecia-se a importância de tais impressos e não era nova a preocupação de se escrever a História da imprensa, mas relutava-se em mobilizá-los para a escrita da História por meio da imprensa” (Luca, 2005Luca, T. R. (2005). História dos, nos e por meio dos periódicos. In C. B. Pinsky (Org.). Fontes históricas (pp.111-153). Contexto., p. 111).

No campo da História da Educação, foi em meados de 1990 que manuais didáticos, revistas pedagógicas estudantis e outros impressos, de modo geral, passaram a ser utilizados como documentos. Nesse sentido, o cenário urbano do final do século XIX e do início do século XX abrigava uma infinidade de publicações periódicas: almanaques, jornais de associações recreativas, folhas editadas por ligas e sindicatos operários, e revistas com distintos enfoques. No cenário relacionado à educação, considerada de forma ampla, proliferam livros didáticos, manuais de civilidade, folhetos e opúsculos de prescrições morais e religiosas. Essa diversidade de publicações, com o passar dos anos, torna-se fonte de pesquisa porque, pela operação historiográfica, transforma-se em documento, uma vez que permite visibilizar o outro da história, incluindo grupos como as mulheres, a pessoa comum, o homem negro, os povos indígenas, o sujeito sem fama que habita o panorama social.

Para pensar nos produtos da indústria cultural, no caso específico dos impressos, é fundamental estar alerta para os aspectos que envolvem a sua materialidade: a gráfica que os imprimiu, o número de páginas, o tipo de capa, o tipo de papel, o tamanho, o número de edições etc. Entre outros aspectos, são esses que nos remetem ao passado, aos usos que se fez do impresso, à circulação, às formas de apropriação. No caso de impressos como jornais, Luca (2005)Luca, T. R. (2005). História dos, nos e por meio dos periódicos. In C. B. Pinsky (Org.). Fontes históricas (pp.111-153). Contexto. chama a atenção para a necessidade de identificação do grupo responsável pela linha editorial, bem como de quem eram os colaboradores mais assíduos, além de se considerarem as escolhas dos títulos. Esses aspectos fornecem pistas a respeito da leitura de passado e de futuro compartilhada pelos editores.

Conforme já mencionado no início do artigo, a questão de pesquisa é um fio condutor na escolha dos procedimentos metodológicos a serem adotados. No caso da pesquisa documental, já discutimos ao longo da seção o que são “documentos históricos” e como podemos trabalhar com tais fontes nas pesquisas desenvolvidas no campo educacional. Na próxima seção, abordaremos a pesquisa bibliográfica e seus percursos metodológicos.

Percursos metodológicos da pesquisa bibliográfica

Pesquisas bibliográficas não devem ser confundidas com revisão de literatura ou com o estado da arte. A revisão de literatura é apenas uma etapa da pesquisa bibliográfica, cujo percurso metodológico é apresentado nesta seção. Essa etapa contribui para a delimitação do tema; a identificação e a reiteração de aportes significativos das teorias sobre o tema da pesquisa; o reconhecimento dos limites e lacunas na disseminação de pesquisas sobre o tema; e a busca de espaços potenciais para novas pesquisas no respectivo campo e para a construção do argumento sobre a importância da investigação. Particularmente, na constituição das estratégias investigativas, a revisão de literatura é essencial para a identificação dos principais referenciais teóricos que sustentam os estudos na área investigada e para a identificação de obras potenciais para a pesquisa bibliográfica. Além disso, contribui para a compreensão de como os pesquisadores se apropriam de epistemologias para pensar a educação.

A revisão de literatura é, portanto, uma etapa do processo investigativo. Já o estado da arte tem como objetivo principal fazer um balanço da produção existente sobre uma temática específica em uma área de conhecimento. Segundo Romanowski e Ens (2006, p. 39)Romanowski, J. P., & Ens, T. R. (2006). As pesquisas denominadas do tipo “estado da arte” em educação. Diálogo Educacional, 6(19), 37-50.,

Estados da arte podem significar uma contribuição importante na constituição do campo teórico de uma área de conhecimento, pois procuram identificar os aportes significativos da construção da teoria e prática pedagógica, apontar as restrições sobre o campo em que se move a pesquisa, as suas lacunas de disseminação, identificar experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução para os problemas da prática e reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área focalizada.

No que diz respeito às fontes bibliográficas, elas podem ser utilizadas tanto em pesquisas bibliográficas, propriamente ditas, quanto em pesquisas documentais históricas. Nesse sentido, poderíamos citar, como exemplo de uso de fontes bibliográficas na qualidade de documento histórico, as investigações cuja produção está centrada na operação historiográfica. De outro modo, importa pontuar que a bibliografia é considerada uma

[…] área do conhecimento que tem por objeto a descrição e classificação de textos impressos, mediante critérios de sistematização definidos (autoral, histórico, geográfico, cronológico, temático etc.), de modo a viabilizar e facilitar o acesso a eles” e uma “relação de obras editadas sobre determinado assunto”.

(Michaelis, 2015Michaelis (2015). Bibliografia. In Michaelis Online. Recuperado em 25 mar. 2022 de https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/bibliografia/
https://michaelis.uol.com.br/moderno-por...
)

Assim, livros, artigos em periódicos e reportagens diversas com produção autoral podem ser considerados fontes bibliográficas.

Em um estudo realizado com o propósito de compreender que pressupostos podem contribuir para a constituição de currículos multirreferenciais, Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
http://www.repositorio.jesuita.org.br/ha...
adotou a metodologia pautada na pesquisa bibliográfica. Essa metodologia possibilitou o mapeamento de estudos no campo do currículo que dialogassem com a multirreferencialidade e que, por meio de uma bricolagem4 4 A noção de bricolagem é desenvolvida na quinta etapa metodológica apresentada nesta seção. Importa observar que esse conceito foi adotado a partir dos caminhos metodológicos percorridos por Pereira (2018), mas que não se trata necessariamente de uma etapa da pesquisa bibliográfica. de referências, pudessem compor uma produção rica em possibilidades de constituição de currículos. O estudo realizado por Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
http://www.repositorio.jesuita.org.br/ha...
apresenta o passo a passo metodológico da pesquisa bibliográfica; e a autora deixa claro que optou por essa metodologia — e não pela pesquisa documental — por dois motivos já explicitados na introdução: o primeiro está relacionado ao fato de o estudo realizado não ser historiográfico e de as fontes não terem sido trabalhadas a partir de sua monumentalidade, ou seja, enquanto documentos-monumentos que precisariam ser desconstruídos, desmontados, no sentido de se compreenderem as condições que possibilitaram a sua construção. O segundo motivo concerne ao fato de não se tratar de uma análise de documentos oficiais ou legais. Em síntese, as fontes que compuseram o material empírico foram tratadas como bibliográficas. Além disso, os conceitos-ferramenta de leitura do material foram estipulados de acordo com o referencial teórico adotado na investigação.

A pesquisa bibliográfica é muito utilizada no campo da Filosofia e tem como foco: a leitura do texto; sua compreensão, que passa pelo entendimento do texto propriamente dito; sua análise, que implica uma retradução semântico-gramatical, uma retradução técnica, uma taxonomia semântica e uma retradução lógica; a modalização veritativa da tradução alcançada; e o entendimento e a interpretação para uma nova versão do texto (Porta, 2014Porta, M. A.G. (2014). A Filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do estudo filosófico. Edições Loyola.). Segundo o autor,

É necessário ir além do texto para compreendê-lo, e isso em vários sentidos e de várias formas. É óbvio que toda boa leitura o respeita, pretendendo explicitar o seu sentido sem deformá-lo, sem lhe acrescentar nem subtrair nada. Uma boa leitura, no entanto, não é jamais um mero espelho do texto. Existem diferentes maneiras de “estar no texto”. Há muitas coisas que “estão” nele ainda que não sejam propriamente “ditas” (e, em consequência, não possam ser, em sentido literal, lidas). Elas só são acessíveis na medida em que, distanciando-nos do texto, assumimos uma posição ativa diante dele.

(Porta, 2014Porta, M. A.G. (2014). A Filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do estudo filosófico. Edições Loyola., p. 73-74)

Em sua pesquisa, Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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chegou à conclusão de que nenhum referencial teórico sobre pesquisa bibliográfica como metodologia — questão ainda pouco discutida nas pesquisas em Educação — traria uma receita prescritiva do percurso investigativo. Desse modo, tornaram-se imperiosas a análise e a reflexão para a construção de um caminho que foi sendo desenhado ao longo do processo, sempre marcado por um movimento de (re)construção a partir de decisões resultantes de um rigor científico e de registros na reconstrução do conhecimento. De acordo com Campos e Ribeiro (2017, p. 6)Campos, L. R.G., & Ribeiro, M. R. R. (2017). O método da bricolage em pesquisas em saúde e enfermagem – construindo o caminho ao caminhar. Texto & Contexto-Enfermagem, 26(4), 2-8., “[…] as decisões são tecidas ao longo de todo o estudo, e estão contidas em cada elemento, desde a escolha e delimitação do objeto a ser investigado, às considerações finais elaboradas a partir das interpretações do autor”.

Para a construção dos procedimentos e etapas da pesquisa bibliográfica, as ideias de Salvador (1986)Salvador, A. D. (1986). Métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica. Sulina. sobre essa metodologia são de grande relevância. Além disso, mesmo assumindo a flexibilidade necessária para a adequação do estudo bibliográfico em relação ao problema e aos objetivos propostos, o mapeamento das obras se fundamenta nos critérios elaborados a partir da revisão de literatura, do referencial teórico da investigação e do problema apresentado como fio condutor da pesquisa, (Pereira, 2018Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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). A autora reforça que as palavras-chave selecionadas na revisão de literatura e os termos delas desdobrados também devem ser considerados.

Portanto, a primeira etapa da pesquisa bibliográfica consiste no levantamento de obras diversas sobre o tema investigado, procedimento que envolve a avaliação cuidadosa da potencialidade de cada texto selecionado, de modo a sustentar as proposições do estudo (Pereira, 2018Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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).

Conforme já mencionado, o parâmetro utilizado por Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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para a seleção bibliográfica foi o aspecto temático, em consonância com as palavras-chave iniciais identificadas na revisão de literatura, quais sejam, “currículo” e “multirreferencialidade”. Também se levou em conta o desdobramento dessas palavras-chave, considerando outros termos e expressões convergentes aos aportes teóricos e que surgiram ao longo das leituras realizadas a partir da revisão de literatura. Esses desdobramentos, ainda que estivessem semanticamente ligados às palavras-chave, ampliaram as possibilidades de diálogo e de identificação de estudos que contribuíram para a investigação.

A segunda etapa consiste no estudo da biografia de cada autor e no levantamento de suas obras potenciais sobre o tema investigado, o que permitirá a definição de critérios para a seleção das fontes bibliográficas que comporão o corpus empírico da pesquisa (Pereira, 2018Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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). Considerando esse resultado inicial, faz-se necessário ler a apresentação, o resumo ou a introdução de cada texto, para confirmar quais serão mais produtivos para o estudo. A partir daí, para o amadurecimento desse material empírico e a construção de um quadro final mais refinado, identificam-se as produções mais adequadas de cada autor já selecionado.

Após o primeiro contato com cada obra, cujo objetivo é localizar os termos-chave principais e os termos que surgiram nos desdobramentos das leituras, parte-se para uma leitura analítica, exploratória e seletiva. A partir daí, ocorre um estudo crítico de cada texto selecionado, analisando-se os aspectos temáticos, identificando-se o ponto de vista de cada autor e mapeando-se as ideias apresentadas. Nesse processo, as ideias sumarizadas podem ser organizadas de acordo com a relevância das informações, com o problema e com os objetivos da pesquisa.

Desse modo, a terceira etapa consiste na análise detalhada de cada obra a partir de um roteiro de leitura. Após o teste de produtividade e assertividade desse roteiro — que pode ser realizado a partir da seleção de uma obra —, esse instrumento metodológico pode ser utilizado também para a análise e a sistematização dos outros textos selecionados. Vale pontuar que o roteiro é o produto da prática de leituras sucessivas e da análise criteriosa de cada material, realizando-se um fichamento, sem perder de vista a problematização principal da pesquisa. Seguem os aspectos que compuseram o roteiro de leitura descritivo que foi elaborado por Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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:

  1. Critérios utilizados para a seleção bibliográfica:

    1. Palavras-chave;

    2. Termos resultantes do desdobramento das palavras-chave;

    3. Epistemologia;

    4. Principais fontes sobre o tema.

  2. Detalhes bibliográficos e localização das obras.

  3. Caracterização das obras ou dos artigos:

    1. Tema principal;

    2. Principais conceitos utilizados;

    3. Perspectiva teórica e convergência/aproximação entre os referenciais teóricos propostos pela pesquisa;

    4. Referencial teórico utilizado por cada autor e aproximações com o referencial teórico da pesquisa.

  4. Ideias de cada obra que contribuem para o encaminhamento do problema proposto na pesquisa e para os objetivos apresentados.

Nas obras compostas por muitos artigos ou ensaios de um mesmo autor ou de autores diversos, os quatro aspectos do roteiro (critérios para a seleção, detalhamento bibliográfico, caracterização da obra e ideias que contribuem para a resolução do problema da pesquisa) podem ser trabalhados a partir de uma análise geral da obra.

Após a elaboração dos roteiros de leitura, parte-se para a quarta etapa da pesquisa, a qual consiste na elaboração de um quadro analítico que organize, sistematize e evidencie as singularidades de cada pesquisador/obra (Pereira, 2018Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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). Os quadros analíticos são recursos metodológicos fundamentais para dar maior clareza ao processo e garantir que as especificidades de cada estudo, de cada pesquisador, sejam preservadas em suas irredutibilidades. Os aspectos que compõem os quadros analíticos (Pereira, 2018Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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) são:

  • autor e obra;

  • aspectos temáticos;

  • descritores principais;

  • concepções/conceitos mais importantes;

  • principais referências teóricas;

  • possíveis contribuições/diálogos/aproximações com a problemática central da pesquisa;

  • teses ou hipóteses centrais.

O grande desafio da pesquisa realizada por Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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foi aproximar os estudos e as teses dos pesquisadores selecionados, respeitando as suas especificidades, aquilo que cada um trouxe de contribuição, sem reduzi-los ou amalgamá-los. Essa análise foi além da identificação de características constitutivas da multirreferencialidade enquanto uma teoria da Educação: ela se propôs a compreender as tensões e os conflitos dessa bricolagem como produtivos e positivos, no âmbito da tessitura desse estudo.

Desse modo, durante o estudo bibliográfico, Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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incluiu uma etapa que consistiu na bricolagem entre epistemologias e teorias, considerando propósitos, sentidos e usos para cada referencial teórico apresentado, em um movimento contínuo de entretecimento — próprio do bricoleur — que abarca os seguintes princípios: auto-organização, condições longe do equilíbrio, realimentação, aleatoriedade, espontaneidade e bifurcações (Kincheloe & Berry, 2007Kincheloe, J. L., & Berry, K. S. (2007). Pesquisa em educação: conceituando a bricolagem. Artmed.). Cabe lembrar que o processo de bricolagem não diz respeito a uma simples colagem de epistemologias, compondo uma colcha de retalhos — trata-se, antes de tudo, de um entrelaçamento de significados, considerando suas especificidades e formas a partir das quais eles são produzidos.

Seguindo a lógica dessa concepção, Kincheloe e Berry (2007, p. 102)Kincheloe, J. L., & Berry, K. S. (2007). Pesquisa em educação: conceituando a bricolagem. Artmed., autores que auxiliaram Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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a incorporar a bricolagem ao estudo apresentado, lembram que o ato de pesquisa rigorosa envolve:

  • conectar o objeto de investigação aos muitos contextos em que ele está inserido;

  • apreciar o relacionamento entre o pesquisador e o que está sendo pesquisado;

  • conectar a produção de sentido à experiência humana;

  • usar formas textuais de análise ao mesmo tempo em que não se perde de vista que os seres humanos que vivem e respiram são as entidades em torno das quais e com as quais o sentido está sendo produzido;

  • construir uma ponte entre essas formas de visão e ação informada.

A bricolagem exige o mapeamento de ideias que, em diálogo com esses princípios, vai além deles. Assim, com base nos estudos de Kincheloe e Berry (2007)Kincheloe, J. L., & Berry, K. S. (2007). Pesquisa em educação: conceituando a bricolagem. Artmed., que tratam da “estrutura da complexidade e do rigor” (p. 128) nessa metodologia, os princípios da multirreferencialidade foram tratados por Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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como “porta de entrada” (Kincheloe & Berry, 2007Kincheloe, J. L., & Berry, K. S. (2007). Pesquisa em educação: conceituando a bricolagem. Artmed., p. 128) para a bricolagem, o que possibilitou formas de (re)significar o currículo.

Nessa compreensão de bricolagem, a quinta etapa consistiu na elaboração de um mapa conceitual. As múltiplas referências de cada autor foram cruzadas e transversalizadas a partir das aproximações possíveis. Esse recurso deu maior visibilidade às conexões dos estudos e das teses, permitindo um olhar detalhado diante da realidade complexa que começava a se bricolar. A etapa também possibilitou um olhar detalhado para cada ideia, tese ou teoria, dando maior clareza de onde e por que elas poderiam ser entrelaçadas ou não, respeitando-se sempre as particularidades de cada uma.

Tal processo se mostrou rico em possibilidades dialógicas. Isso só comprova a riqueza e a complexidade da bricolagem de referenciais que, por si só, são abertos aos dialogismos e trazem em sua concepção uma abordagem complexa sobre os fatos e fenômenos educacionais.

Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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diz que a pesquisa bibliográfica envolve uma série de etapas que podem ser combinadas ou não com a bricolagem. As etapas sugeridas pela autora na pesquisa bibliográfica são: a) primeira etapa: levantamento de obras potenciais para a realização do estudo e avaliação cuidadosa da potencialidade de cada texto selecionado, de modo a sustentar as proposições do estudo; b) segunda etapa: estudo da biografia de cada autor e definição do corpus empírico a partir do estabelecimento de critérios de seleção das fontes bibliográficas encontradas; c) terceira etapa: análise detalhada de cada obra a partir de um roteiro de leitura; d) quarta etapa: elaboração de um quadro analítico que organize, sistematize e evidencie as singularidades de cada pesquisador/obra; e) quinta etapa: mapeamento, a partir dos diálogos possíveis, de categorias de análise, pressupostos (resultantes das convergências das teorias), teses e hipóteses.

Considerações finais

Retomando os objetivos deste artigo, justificamos a opção por abordar duas metodologias — análise documental e pesquisa bibliográfica — no mesmo espaço de discussão. Conforme já mencionado, fontes bibliográficas podem ser tomadas enquanto documentos quando tratadas a partir de sua monumentalidade, tendo como objetivo uma produção historiográfica. Já a pesquisa bibliográfica tem outras especificidades nas formas de tratar as fontes.

As discussões sobre a pesquisa bibliográfica são, ainda, muito tímidas na área da Educação; tal metodologia é muitas vezes confundida com revisão de literatura ou estado da arte. Dada a escassez de fundamentação metodológica sobre o tema, priorizamos, ao longo da seção, a apresentação de uma pesquisa bibliográfica que explicita o passo a passo percorrido durante a investigação.

O objetivo, portanto, foi o de confrontar essas duas perspectivas, trazendo os elementos teóricos e metodológicos que as distinguem, que guardam relação direta com o problema de pesquisa — o fio condutor das escolhas do investigador, inclusive em relação às ferramentas analíticas e aos modos de operar com elas.

Finalizamos o artigo esperando ter contribuído com as discussões sobre pesquisa documental e pesquisa bibliográfica na área da Educação, com a convicção de que muito ainda pode ser dito e pensado sobre o tema.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br.
  • 3
    Apoio: CNPq. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Bolsa produtividade e pesquisa A2.
  • 4
    A noção de bricolagem é desenvolvida na quinta etapa metodológica apresentada nesta seção. Importa observar que esse conceito foi adotado a partir dos caminhos metodológicos percorridos por Pereira (2018)Pereira, A. P. M. (2018) Constituição de um currículo multirreferencial: caminhos possíveis [Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio Sinos]. Repositório Digital da Biblioteca da Unisinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7658
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    , mas que não se trata necessariamente de uma etapa da pesquisa bibliográfica.

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Editado por

1
Editor responsável: André Luiz Paulilo. https://orcid.org/0000-0001-8112-8070

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2020
  • Aceito
    22 Fev 2021
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