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Gestão escolar para uma escola mais justa 1 1 Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Edital Universal Processo 444372/2014-8.

School Administration for a fairer school

RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de pesquisa que discute a justiça com incidência nas práticas de gestão e organização escolar, visando tornar visíveis as injustiças que a compõe. O estudo de casos em quatro escolas de ensino médio do Brasil e Portugal apoia-se na análise de conteúdo, focalizando concepções e práticas de sujeitos escolares sobre justiça, injustiça, violência, indisciplina. Dentre os resultados destaca-se que a democracia é percebida com referências à participação legal-formal, no Brasil, e à participação como condição para envolvimento de estudantes em vivencias pedagógicas, em Portugal. Conclui-se que as soluções propostas para a redução das injustiças escolares são relacionadas às concepções de democracia, seja formal, seja substantiva, o que reflete as culturas locais e nacionais e decorre de práticas organizacionais preventivas em Portugal, em contraponto a práticas paliativas no Brasil.

Palavras-chave:
Gestão escolar; Justiça; Brasil; Portugal; Democracia formal.

ABSTRACT

The article presents research results that debate justice, with an impact on school administration and organizations practices, in order to make visible the injustices that compose it. The case study in four high schools in Brazil and Portugal is based on content analysis, focusing on the conceptions and practices of school subjects on justice, injustice, violence, indiscipline. Among the results, it is worth noting that democracy is perceived with references to legal-formal participation in Brazil, and with participation as a condition for student involvement in pedagogical experiences in Portugal. The conclusion is that the proposed solutions to the reduction of school injustices are related to the conceptions of democracy, whether formal or substantive, which reflects local and national cultures, and occurs as a result of preventive organizational practices in Portugal, as opposed to palliative practices in Brazil.

Keywords:
School Administration; Justice; Brazil; Portugal; Formal Democracy.

Introdução

Esta é uma abordagem da gestão escolar que propõe reflexão a respeito da justiça na escola. Toma-se como referência central de análise não a justiça, pelo prisma do Direito (legal-formal), mas aquela alusiva às práticas concernentes ao ato do julgamento, bem como os princípios e valores envolvidos.

O interesse emerge em meio ao debate democrático, que tem seus princípios da participação e da autonomia pautados na legislação brasileira a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Desde então, estudiosos vêm intensificando esforços para compreender seus desdobramentos nas escolas de educação básica, que tem se deparado com diversas dificuldades em termos do desenvolvimento de práticas correlatas. Neste artigo, problematizamos a gestão escolar, considerando os desafios postos pela naturalização das violências, conflitos e indisciplinas escolares, que afastam a escola dos princípios mencionados, com particular enfoque no que diz respeito ao afrontamento das injustiças.

Trata-se de lançar nova abordagem sobre o conceito de escola justa, observando casos escolares em Portugal e no Brasil. Destacamos que, nas duas realidades analisadas, a operacionalização dos conceitos de indisciplina e violência apresenta limites e dificuldades não apenas referentes às respectivas realidades socioeducacionais, mas também, particularmente, em conformidade com as distintas culturas ali presentes.

Autores como Dubet (2004DUBET, F. O que é uma escola justa? Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./dez. 2004.) e Derouet (2002DEROUET, J.-L. A sociologia das desigualdades em educação posta à prova pela segunda explosão escolar: deslocamento dos questionamentos e reinício da crítica. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 21, p. 05-16, set./dez. 2002.) já vêm levantando o debate a respeito das possibilidades de uma escola justa, o que coloca a democracia em cheque, especialmente em sociedades com desigualdades desproporcionais, como é o caso do Brasil. Entre os brasileiros, Eyng (2011EYNG, A. M. (Org.). Violências nas escolas. Perspectivas históricas e políticas. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011.) e Schilling (2004SCHILLING, F. I. A sociedade da insegurança e a violência na escola. São Paulo: Summus Ed., 2004.) analisam a realidade e nos auxiliam a compreender alguns limites do modelo democrático de gestão da educação, considerando o contexto sócio-político-econômico-cultural.

Assmar (1997ASSMAR, E. M. L. A experiência de injustiça na vida diária: uma análise preliminar em três grupos sociais. Psicol. Reflex. Crit., v. 10, n. 2, p. 335-350, 1997. ) examina as formas como as pessoas usam o termo injustiça na vida diária e aponta que a injustiça mais frequente relatada por sujeitos, baseada nas experiências de injustiças, foi a acusação injustificada, e a reação mais frequente foi a não reação e a resignação. A autora esclarece que os valores e procedimentos que definem a justiça passam por processo de negociação e, portanto, afetam sempre grupos, não apenas os indivíduos. Os dados coletados pela autora foram sistematizados em categorias, das quais destacamos a dos contextos sociais de ocorrência da injustiça, em que adolescentes apontam que injustiças ocorreram principalmente na escola. Dentre as reações de adolescentes às situações de injustiças, a mais relatada foi de raiva, revolta e indignação, ou seja, passividade diante das injustiças.

A literatura recente mostra ainda preocupação com os direitos humanos em tempos de ausência destes e aponta para questões referentes à justiça legal-formal. Abordagens alternativas específicas relacionadas a programas de governos, a exemplo da justiça restaurativa (SANTOS; GOMIDE, 2014SANTOS, M. L.; GOMIDE, P. I. C. Justiça restaurativa na escola. Aplicação e avaliação do programa. Curitiba: Juruá Ed., 2014.) demonstram o quanto o tema tem gerado inquietações.

O que nos intriga é a persistência de uma cultura escolar permeada por um discurso organizacional democratizante, mas orientado por práticas burocráticas de gestão, pautadas em princípios gerencialistas cujo foco recai na produtividade aferida por métodos quantitativos, para as quais falta certo bom senso em termos de sua aplicação. Isso se reflete numa experiência escolar que tem sido, para a grande maioria dos estudantes, nada educativa do ponto de vista da cidadania e dos direitos.

Nesses termos, uma importante referência para a compreensão da organização democrática é Rancière, para quem a democracia é “o reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna.” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 8), o que nos remete ao individualismo liberal como valor em oposição ao princípio coletivista democrático, contradição fundamental da sociedade contemporânea.

Conforme Lelo e Marques (2014LELO, T.; MARQUES, Â. C. S. Democracia e pós-democracia no pensamento político de Jacques Rancière a partir das noções de igualdade, ética e dissenso. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 15, p. 349-374, set./dez. 2014. ), Rancière também se refere à democracia como uma relação desigual entre interlocutores, em que a essência da política é o dissenso:

Assim, interessa a Rancière identificar como a democracia se constitui como forma de agir político por meio da inscrição e enunciação dos sujeitos em uma cena de dissenso, que se cria e se recria por meio de suas ações (LELO; MARQUES, 2014LELO, T.; MARQUES, Â. C. S. Democracia e pós-democracia no pensamento político de Jacques Rancière a partir das noções de igualdade, ética e dissenso. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 15, p. 349-374, set./dez. 2014. , p. 350).

Se o conflito é parte inerente da democracia, há que se indicar formas de restabelecimento de certa ordem para a convivência. Assim, Rancière esclarece que a organização democrática exige também “controlar a desordem democrática”, refletindo a respeito da necessária organização social para a vida coletiva, em meio à crise da democracia, mencionando o “aumento irresistível de demandas que pressiona os governos, acarreta o declínio da autoridade e torna os indivíduos e os grupos rebeldes à disciplina e aos sacrifícios exigidos pelo interesse comum” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 14).

O autor nos faz refletir a respeito da disciplina, não numa perspectiva autoritária, mas organizadora e referente às possibilidades de uma sociabilidade minimamente harmônica; ou seja, pensamos na disciplina como um conjunto de regras formatadas num coletivo determinado a fim de potencializar o convívio social. Indisciplina seria, nesta lógica, o não seguimento às regras sociais, diante da qual o melhor caminho a adotar seria o esclarecimento sobre as liberdades e os limites de cada um. É justamente aí que localizamos uma das dificuldades da gestão democrática, uma vez que sujeitos escolares não conhecem bem ou não aplicam as regras de convivência, ultrapassando fronteiras, gerando conflitos que frequentemente incidem em violências. Daí a dificuldade de distinguir fatos cotidianos comumente designados como violências e que nada mais são do que falta de normas claras e o zelo para que as mesmas sejam seguidas. Assim também violências verbais ou físicas são dissimuladas, desde que tratadas como simples brincadeiras entre estudantes, tornando-se invisibilidades.

Ocorre que a ausência de tratamento adequado em cada tipo de situação pode vir a amplificar suas consequências, o que tem gerado um aumento de demandas sobre os conselhos tutelares e defensorias públicas. A esse respeito, estudos têm mostrado as implicações das políticas de acesso à justiça sobre o crescimento da judicialização da educação (CURY; FERREIRA, 2009CURY, C. R. J.; FERREIRA, L. A. M. A judicialização da educação direito constitucional. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 45, p. 32-45, abr./jun. 2009.; XIMENES et al., 2017XIMENES, S. B.; OLIVEIRA, E.; SILVA, M. P. Judicialização da educação infantil: efeitos da interação entre o sistema de justiça e a administração In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 38, São Luís, 2017. Anais... São Luís, 2017.), bem como “a inoperância da rede de proteção social da criança e do adolescente” (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2017OLIVEIRA, R. R. A.; TEIXEIRA, B. B. Judicialização da educação infantil: direito e desafios. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 38, São Luís, 2017. Anais... São Luís, 2017 (GT05 - Estado e Política Educacional - Trabalho 121).). Esses e outros estudos focalizam a justiça do ponto de vista do Direito, já que tratam da intervenção do Poder Judiciário nas questões educacionais (CURY; FERREIRA, 2009CURY, C. R. J.; FERREIRA, L. A. M. A judicialização da educação direito constitucional. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 45, p. 32-45, abr./jun. 2009.) e das relações escolares como referentes àquela ação da justiça (CHRISPINO; CHRISPINO, 2008CHRISPINO, Á.; CHRISPINO, R. S. P. A judicialização das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores. Ensaio: Avaliação de Políticas Públicas da Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 58, p. 9-30, jan./mar. 2008.). Apesar de relacionarem a judicialização da educação com a democratização dos instrumentos de defesa dos direitos da criança e do adolescente com intencionalidade protetiva, não discutem possíveis formas de prevenção dos problemas que se avolumam nas escolas enquanto ausência de direitos.

Esses aspectos nos conduzem a refletir a respeito da dinâmica organizadora, conturbada entre ações paliativas e resignação, uma vez que a gestão escolar é pautada numa racionalidade tutelar, protetiva. Com vistas a refletir sobre tal direção, procuramos identificar concepções de escolares a respeito de escola justa, justiça e injustiças na escola e as soluções apontadas para resolvê-las. Antes, no entanto, apresentamos alguns aspectos conceituais.

Gestão escolar, justiça formal e justiça substantiva

Procuramos esclarecer a relação entre a justiça e a educação a partir da distinção entre a justiça formal, referente ao Direito legal/formal, identificada com a balança que simboliza a equidade, o equilíbrio, a ponderação, a igualdade das decisões aplicadas pela lei, por um lado, e, por outro, a justiça substantiva, que remete à realização da justiça nas práticas sociais, bem como às estruturas de opressão e dominação, de não reconhecimento do outro.

Encontramos em Walzer (2003WALZER, M. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes , 2003.) um caminho interessante, uma vez que esse autor concebe a justiça como local, ou seja, é vivida consoante às compreensões partilhadas dos seus membros: a teoria pluralista da justiça social é baseada na igualdade complexa (diversidade de procedimentos e de critérios conforme o significado do bem social em causa). O autor esclarece que a distribuição de bens segue diferentes critérios, próprios às distintas esferas, a exemplo do bem-estar, com base na necessidade, ou do emprego, com na base na igualdade de oportunidades. Entendemos, assim, que as experiências vividas impactam nas concepções de justiça e nas práticas decorrentes.

Na mesma linha de raciocínio, Assmar compreende que os pensamentos, sentimentos e comportamentos das pessoas são afetados por julgamentos que fazem sobre suas experiências, especialmente de situações de injustiças vividas. Assim, conforme a autora, “Os sentimentos das pessoas sobre justiça constituem base importante para suas reações aos outros” (ASSMAR, 1997ASSMAR, E. M. L. A experiência de injustiça na vida diária: uma análise preliminar em três grupos sociais. Psicol. Reflex. Crit., v. 10, n. 2, p. 335-350, 1997. , p. 337). Ela esclarece que ora se focaliza o indivíduo, ora a interação social, na qual a justiça emerge. Explica ainda que a experiência da injustiça é aspecto relacional, pois se refere não apenas a um indivíduo, mas a um conjunto valorativo social-moral de um coletivo. A autora afirma que muitas pessoas tendem a se resignar diante da injustiça. Elas não negam a ocorrência da injustiça e nem sua importância, mas simplesmente não consideraram a hipótese de intervir diretamente contra ela: “A resignação ao próprio destino parece ser uma alternativa viável de restauração da justiça, além das ações compensatórias ou das distorções cognitivas” (ASSMAR, 1997ASSMAR, E. M. L. A experiência de injustiça na vida diária: uma análise preliminar em três grupos sociais. Psicol. Reflex. Crit., v. 10, n. 2, p. 335-350, 1997. , p. 338).

Sposito (1998SPOSITO, M. P. A instituição escolar e a violência. Cadernos de Pesquisa , Fundação Carlos Chagas, n. 104, p. 58-75, jul. 1998.), por sua vez, afirma que a violência e os conflitos são a “negação da possibilidade de diálogo”, ou seja, a ausência de diálogo leva ao sentimento de injustiça. Nesses termos, abre-se espaço também para a obstinação por soluções simples e contundentes, gerando sentimentos como aversão ao outro, ao diferente, o que ocorre por vezes por meio de reações impetuosas e grosseiras.

Esses aspectos nos levam a refletir a respeito da justiça na escola em termos dos sentimentos que afloram em sua ausência, o que relacionamos à falta de clareza sobre regras de comportamento e disciplina. Assim, compreendemos que o descumprimento de regras (indisciplinas) se relaciona ao sentimento de injustiças vividas, o que se pode perfeitamente prevenir com a definição e esclarecimento de regras no coletivo local, ou seja, estabelecer disciplina. Esta palavra, no entanto, parece ter sido abolida no momento em que se determinou formalmente, por força da lei, a democracia, como se fosse seu oposto. Mas não é. Este é um ponto importante para se refletir quando analisamos a justiça na escola, já que frequentemente se confunde indisciplina com violência, ao que se aplica soluções deslocadas. Disciplina pode ser compreendida como relação de subserviência hierárquica, numa lógica foucaultiana (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), mas pode também ser observância a regras estabelecidas de forma colegiada, desde que elaboradas em processo coletivo de argumentação livre e substantiva.

Em outras palavras, entendemos que disciplina pode ser associada à escuta ao outro, uma vez que o diálogo seja estabelecido para a obtenção de acordos para o reconhecimento comum de limites aos comportamentos, o que é, sim, democrático. Disciplina em referência às normas de conduta de um coletivo, obtidas em comum acordo, é restringir a liberdade dentro de padrões de aceitabilidade do grupo. Quando as normas de conduta não são ali esclarecidas, aí, sim, emergem conflitos, quando interesses antagônicos de duas partes nas relações interpessoais não são inteligíveis. Nesses termos, disciplina não é necessariamente uma ação autoritária de uma parte, com prejuízo ao outro.

A esse respeito, Bauman (2003BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.) esclarece que a noção de comunidade implica as ideias de autonomia e de identidade, o que inclui uma contradição inerente entre a liberdade e a segurança, desde que a opção genuína abre perspectivas a riscos. A reflexão nos faz pensar a comunidade escolar como ambiente profícuo às contradições , principalmente em tempos de produtivismo na educação, quando indicadores e medidas, escalas e gráficos comparativos são utilizados para representar a posição da instituição educacional no universo do coletivo local, regional, nacional, algo nada justo se relacionado às diversas condições reais. A desigualdade social gera, portanto, o desequilíbrio característico da balança que representa a justiça, indicando o questionamento sobre a possibilidade da igualdade. Reforçamos, portanto, a associação entre a justiça e as injustiças inerentes às escolas singulares que temos.

Essas referências nos auxiliam a caracterizar a estruturação da experiência escolar no sentido de tornar visíveis as injustiças que a compõem, bem como ampliar a compreensão sobre as concepções de justiça por parte de sujeitos escolares em termos de sua gestão. Em 2015, coletamos dados em duas escolas em Recife, e, em 2016, em duas escolas de Braga, sempre uma localizada em região central e outra em região periférica, todas de ensino médio. Neste artigo optamos por selecionar extratos que nos permitem relacionar a compreensão de escola justa à sua organização democrática , o que faremos com o auxílio de alguns trechos de entrevistas realizadas com vistas a oportunizar ao leitor a percepção dos valores externados pelos sujeitos. A pesquisa qualitativa do tipo estudo de casos utilizou um roteiro semiestruturado de entrevistas aplicadas a gestores, professores, alunos e funcionários. A análise de conteúdo nos permitiu destacar variáveis empíricas, as quais relacionamos ao marco teórico em tela.

Dentre os eixos em destaque, neste artigo apresentamos um recorte que denota como as concepções de justiça e injustiça na escola se confundem com as experiências vividas, tal como afirma Assmar (1997ASSMAR, E. M. L. A experiência de injustiça na vida diária: uma análise preliminar em três grupos sociais. Psicol. Reflex. Crit., v. 10, n. 2, p. 335-350, 1997. ), o que relacionamos a distintas perspectivas democráticas de gestão, bem como associamos às sugestões apontadas pelos sujeitos como solução ou amenização dos conflitos, das indisciplinas e das injustiças. Elencamos alguns dados que são, a seguir, registrados tendo a democracia e os valores como fundamento da organização escolar e, em seguida, as soluções sugeridas para seu tratamento. Para efeito de sua apresentação, os extratos aparecem identificados com siglas como EC/EP (Escola de Centro/Escola de Periferia) e Pt/Br (Portugal/Brasil), seguidas do segmento e respectiva numeração.

Democracia: valores vividos e práticas de gestão

Procuramos identificar valores imbuídos nas práticas de gestão escolar, para além das concepções exteriorizadas, já que justiça “representa uma relação entre interesses em conflito, que oscilam de um estado ideal de equilíbrio a um de desalinho” (LEITE; DIAS, 2016LEITE, M. C. L.; DIAS, R. D. Diálogos entre imagens, justiça e educação jurídica. Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 1, p. 5-20, jan./abr. 2016., p. 14). Em geral, as respostas são repletas de exemplos, o que nos auxilia a perceber os caminhos encontrados para solucionar os conflitos no cotidiano.

Assim, questionamos a respeito dos conflitos existentes nas escolas portuguesas, o que, de antemão, já havia sido ali enfatizado como pontual, quase inexistente, por parte de alunos e professores. A gestora esclareceu:

ECPt Gestora 1:Eu sempre digo que não é preciso gritar para nos ouvirem. E outro dia esteve aqui um aluno e uma mãe, um aluno que se comportou mal, e eu lhe disse: não imagina como está a custar-me dizer que vai ser suspenso. Porque não estou aqui pra isso, nem eu gosto, mas, quando é preciso, é preciso para reconhecer que estava a comportar-se mal e faltou com o respeito. Mas, não é isso que eu gosto de fazer. Neste fim de semana tivemos uma aluna eleita em Lisboa para ir à China, num trabalho de mandarim, da cultura chinesa, que nós temos também, que é o mandarim como extracurricular. Vamos ter as olimpíadas (...). Portanto, tudo isto... No outro final de semana, ganharam em primeiro lugar na utilização dos drones no parque de exposição. Quer dizer, cada final de semana tenho uma novidade! (risos) Portanto, de fato, nós valorizamos tudo isso, quer dizer, não é só resultados escolares e acadêmicos e eu friso bastante isso quando converso, em outros contextos, como quando tivemos a história da avaliação externa feita pela inspeção geral de educação. E... nós sabemos que de fato é necessário resultados acadêmicos, mas, também o resto é necessário. Valorizamos - e muito - a participação, na escola, na horta que estamos ali a desenvolver.

Destacamos nesse extrato que pedimos para nos falar sobre os conflitos, ao que a gestora não se cansa de apresentar resultados pedagógicos interessantes, que elevam o nome da escola e demonstram seu entusiasmo com o fazer pedagógico do coletivo escolar. Revelam o envolvimento da gestão com a atividade fim da escola, seu objetivo maior: a educação para além dos aspectos administrativos ou financeiros, secundarizando as divergências porventura existentes. Revela a valorização do aluno e do trabalho do professor, o que colabora para uma experiência escolar saudável.

Ao questionarmos a respeito do sentimento de injustiça na escola, a exemplo de notas com as quais os alunos eventualmente não concordam, a gestora da escola de centro em Braga esclareceu:

ECPt Gestora 1: Sentimento de injustiça, às vezes temos, sim! Não há muito, mas há. Muitas vezes tentam mesmo logo com o professor questionar e perceber o que aconteceu. É... nós sabemos que nota final, do último período, que é no final do ano ou pouco antes, claro, é mais complicado, porque a avaliação final é a que conta. Apesar de que muitas vezes essas questões são levantadas antes, no meio do período em relação a algum teste ou ficha de avaliação, aí tenta-se perceber. Depois, no último período, de uma maneira geral, vai de encontro àquilo que ele (o aluno) expectava. Depois, pontualmente, há reclamações, sim! Pontualmente! E argumentam, em função dos critérios, em função dos níveis que o aluno apresentou. (As reclamações) são vistas, analisadas em termos de contexto novamente no conselho de turma, com todos os professores e, no caso de se manter uma decisão, será visto no conselho pedagógico. O conselho tem importante papel na decisão, mas tem também o coordenador de turma, mas seu lugar não é vinculativo. O diretor pode ter uma opinião diferente. O coordenador de turma, na maior parte dos casos, dentro do possível, muitas vezes continua por três anos. Mas, não são todos eles. E... agora, nem sempre é possível por motivos diferentes, por causa das disciplinas que são só dois anos, por exemplo, outras são um ano, outras mudam o professor por qualquer motivo. Mas, já há casos em que são três anos.

Percebemos que os processos relativos às reclamações de alunos que consideraram suas notas injustas são tratados em primeira instância diretamente com o professor da disciplina, como é comum acontecer em escolas brasileiras e portuguesas. Em casos em que o problema se estende, podendo chegar ao final do ano e ser levado ao conselho de turma, como também ocorre no Brasil, há uma instância intermediária para dirimir os casos e julgar o fato avaliação. O que as escolas portuguesas acrescentam aos demais níveis de diálogo é o lugar ocupado por um professor coordenador de turma, que parece funcionar como um tutor. É alguém pertencente ao quadro da escola em quem os alunos depositam confiança e com quem podem contar para as diversas situações em que se sentem ultrajados, desrespeitados. Essa pode ser vista como uma estratégia de gestão para distribuir sujeitos que intermedeiam relações e auxiliam alunos e professores a atingirem certo consenso, o que reduz o sentimento de injustiça e oferece mais conforto nas relações interpessoais características das escolas.

Um diálogo entre alunos da escola de centro em Recife a respeito das regras ali experimentadas em sala de aula mostra a distinta forma de ação docente no mesmo ambiente, em que alguns professores são rigorosos em relação ao seguimento às regras e outros simplesmente desistiram de se ocupar com a indisciplina em sala de aula, o que os leva a relacionar ao fato de alguns serem respeitados e outros não:

ECBr Estudante1: (Na aula de Português, os alunos) ficam dormindo, mexendo no celular, e eu acho que ela (a professora) já tá cansada de pedir pra não fazerem isso, então ela só tenta explicar pra os alunos que querem assistir. Agora, o de Física, todo mundo já fica...

ECBr Estudante 2: Todo mundo quieto.

ECBr Estudante 1:Eu acho que é mais medo. A professora de História mesmo falou um dia: Se você quiser ter, se quiser que os outros tenham respeito, é mais fácil você ter através do medo do que do amor, porque às vezes as pessoas te amam, mas não te respeitam, mas todos que tem medo te respeitam, eu acho que é mais o medo.

A instauração do medo como mecanismo de manutenção da ordem em sala de aula não modifica padrões de comportamento com vistas a uma democracia substantiva, apenas coíbe a indisciplina em alguns contextos específicos. Assmar (1997ASSMAR, E. M. L. A experiência de injustiça na vida diária: uma análise preliminar em três grupos sociais. Psicol. Reflex. Crit., v. 10, n. 2, p. 335-350, 1997. ) apresenta categorização das emoções suscitadas pela vivência de injustiças, dentre as quais o medo aparece como resposta a experiências de eventos injustos, além de revolta, indignação, tristeza, desamparo, perplexidade. Não se observa um mecanismo que integre formas de cobrança de disciplina, ou seja, não se revela preocupação com certa padronização dos comportamentos tendo em vista um ambiente colaborativo, sintonizado, consensual.

Observemos agora um extrato de fala de uma professora da escola de periferia em Recife, quanto às situações de injustiças:

EPBr Professora1: [O material] demora demais a chegar e, às vezes, não vem. Tem uma questão aqui de uma impressora braile que tá em outra escola porque tem uma sala multifuncional lá. Mas o aluno cego tá aqui, e ela está lá lacradinha porque não tem ninguém pra instalar, e o aluno tá aqui sem material. A máquina dele quebrou, aí o diretor já pagou pra consertar. Isso é uma injustiça!

O aspecto levantado diz respeito não apenas ao tipo de problemas referentes à inclusão que estão ainda longe de serem resolvidos, mas também a problemas burocráticos que impedem as soluções de chegar onde são necessárias, o que entendemos como má gestão, não necessariamente restrita à escola, podendo ser compreendido também como problema inerente ao sistema educacional. A lógica organizativa do sistema, que reverbera nas escolas, é procedimental e tem como fundamento a universalização via homogeneização, perdendo de vista os objetivos de seu próprio funcionamento. Dessa forma, estruturas físicas escolares revelam-se carentes de equipamentos básicos, nem sempre por falta de recursos financeiros, mas por problemas de gestão. Esses aspectos nos auxiliam a analisar as soluções apontadas pelos entrevistados às injustiças escolares, conforme o que se segue.

Solucionando conflitos na escola: atendimento diferenciado no sentido afirmativo

Ao ser questionada a respeito de sua compreensão de escola justa, a gestora portuguesa apresenta soluções para problemas relativos a conflitos e injustiças no ambiente escolar, dentre as quais destaca as ações afirmativas cotidianas com certo sentido preventivo:

ECPt Gestora 1:Uma escola justa é aquela que vai de encontro às expectativas criadas, por um lado do próprio aluno, das famílias, daquilo que pretende em termos de escola, do ambiente, do seio escolar. E que não diferencie os alunos no acesso igual pra todos. Agora, quando se atribui algo que não costuma ser da realidade, seja com uma avaliação, quando não se respeita o outro, isso é uma injustiça, quer dizer, todos têm direito a tratamento igual. Mas esse atendimento diferenciado é para os protegerem, para ajudá-los a evoluírem, é outra coisa. Portanto, não considero isso mal. É para eles corresponderem e melhorarem naquilo que estão “menos bem”. Nós tentamos muito envolver projetos com os alunos. Claro, que há sempre um problema, pois nós cumprimos os conteúdos programáticos, não é? Mas há aqueles conteúdos transversais, cidadania, por exemplo. Mesmo ao nível de diferentes disciplinas, há conteúdos que podem ser adquiridos em outros contextos, em visitas de estudos, muitas visitas de estudos, em projetos. Tem um o chamado Parlamento Jovem, em que nós temos alunos que vão a Lisboa, à Assembleia Publica representar o distrito. Foram eleitos, foi uma seleção, começou aqui na escola, fizemos isso em vários anos, depois a nível regional, o distrito, foram eleitos. Portanto, tem essas idas, também têm encontros com alunos estrangeiros, vamos ter na próxima semana alunos e professores que vêm da Itália e da Bélgica. Essas trocas de experiências, mesmo sendo uma semana, acabam por ser muito ricas pra conhecer outra realidade e valorizar mais aquilo que temos ou o que pode ser melhor. E vemos isso quando nos dizem que, de fato, temos uma escola boa, com boas instalações, com estar bem, onde as pessoas gostam de estar.

A gestora portuguesa evidencia uma abordagem democrática substantiva, cujos critérios de validez a legitimam, não necessariamente revelada como participação em decisões, como ocorre na concepção brasileira de democracia formal. Ela observa as singularidades e a diversidade, focalizando o sentimento do estudante de maneira que ele seja envolvido e se identifique com a escola. Já nas escolas brasileiras, dentre as soluções apontadas para minimizar as injustiças, encontramos num diálogo entre alunos o que consideram uma injustiça na escola e a sua perspectiva de solução:

ECBr Estudante 3: O que eu acho injusto, assim, não em pessoas, mas no governo, é que eu acho que eles tiram muito dinheiro, aí não dão muito dinheiro pra investir nas coisas, tipo aqui na escola, eu acho que é por falta de dinheiro que a gente só tá usando um refeitório. Aí tá primeiro, segundo e terceiro (anos) em um só refeitório e ninguém fez nada pra (organizar melhor): a diretora não aumentou o horário do lanche, então tem pessoas que não almoçam.

ECBr Estudante 4: Tinha gente que ainda tava terminando de almoçar e o professor já tava na sala!

ECBr Estudante 3: É muita gente e também as vezes falta comida!

ECBr Estudante 4: Suco! É, falta mais suco, porque tem pessoas que repetem, entendeu, aí falta pra outros. E eu acho que podia aumentar também, já que tá todo mundo usando o mesmo refeitório, aumentar o horário do lanche, nem que aumentasse o horário da aula assim do dia, que a gente ficasse um pouquinho mais tarde, mas pra todo mundo poder almoçar tranquilo.

Os alunos explicam que a falta de recursos fez com que um dos salões de refeitório fosse fechado naquela escola, sobrecarregando o espaço que permaneceu aberto para uma demanda muito maior. Apontam como expectativa de solução uma melhor organização/gestão que julgam necessária para uma justa convivência. Compreendemos que a ausência de uma ação planejada limita as possibilidades de uma escola justa, abrindo espaço para conflitos.

Esses aspectos referentes à escola brasileira nos levam a observar certa distinção entre ações cotidianas paliativas, pós-problema instalado e ações preventivas, como denotamos no extrato anterior em que gestora portuguesa apresenta diversos projetos vividos com o intuito de mobilizar os alunos e gerar uma identificação maior com a escola, valorizando-a. Reforçamos esse argumento com os extratos em que sujeitos em Recife apresentam soluções para situações de injustiças:

EPBr Professor1: Tudo que ocorrer você tem que registrar [...] Se você não souber como chegar no processo, acaba piorando a situação, gerando um conflito maior.

EPBr Professor 2: No nosso caso, ou é a transferência, ou a ajuda do conselho tutelar e ele não é só punição, lá tem psicólogo, o conselho encaminha para fazer cursos, e outras coisas que eu acho excelente.

ECBr Coord 2: A educação integral desde pequeno, porque com ele (aluno) na escola evita-se a violência fora e os pais podem trabalhar tranquilos.

O registro é o caminho encontrado para lidar com os conflitos, como uma norma que parece, por si só, amenizar desavenças ocorridas. Há também alusão às instâncias externas à escola como solução para seus problemas internos, ambas soluções para mediação de conflitos após estes terem ocorrido, além da oferta de educação integral, vista como solução, caminho já assumido em Portugal.

Soluções são reveladas ainda na expressão de um aluno em Recife, em que verbaliza a responsabilização individual por problemas escolares, expondo a lógica meritocrática e o valor individualista, apesar da reverência à educação, o que é corroborado por uma professora, que aponta como solução para os conflitos a sensibilização de alunos para com a escola como espaço privado de cada um:

ECBr Aluno 7: As pessoas falam que o mundo deveria ser socialista, eu não concordo: eu gosto do capitalismo, porque o capitalismo te dá uma oportunidade de crescer, e cresce quem quer, essa é a minha visão. Então, pra que acabasse a violência, tudo deveria ser com base na educação porque, se tivesse educação, não teria roubos, teríamos uma boa economia, uma boa saúde, uma boa infraestrutura, tudo.

EPBr Professor 3: A gente tenta fazer com que eles percebam que o ambiente só funciona se tiver organização e o mínimo de planejamento e se tiver um grupo de pessoas que façam com que as coisas aconteçam. E também parte deles, pois eles são as pessoas mais importantes da escola, que são eles que estão aqui na escola, e a gente só faz acompanhar e orientar eles. Tudo isso aqui é deles. Sempre coloco isso, que se percebam num ambiente que é deles. É dessa forma que a gente tenta diminuir as agressões, as possíveis desavenças, pois boa parte deles mora próximo.

Conforme Campbell (1996CAMPBELL, T. Justiça. In: OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE, T. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1996.), a cultura individualista da escola é pautada no critério de justiça formal. Tal perspectiva convive com uma outra, que revela a divergência entre a escola universal e a escola plural, o que nos ajuda a compreender a afirmação de um estudante quando questionado a respeito de como mudaria a situação de indisciplinas, injustiças, violências:

ECBr Aluno 5: Estudar aluno por aluno. Porque tem gente que é diferente, é uma coisa que não devia ser levada em conta, mas já que é, que seja: tem gente que mora na favela, tem gente que mora na zona sul, tem gente que conhece a vida de um outro modo, eu não posso dizer que conheço a vida de muita gente. Tem coisas que eles fazem, mas é costume deles, não que seja diferente, mas aqui acabam sendo diferente! Então, que fosse estudado aluno por aluno e adapta-se a ele. Por exemplo, tu já foi no banheiro? É tudo pichado, tudo quebrado, não é possível que uma pessoa em sã consciência vá fazer aquilo, simplesmente pegar um negócio e pichar, um negócio que ele usa, pode ser que ele já tenha visto. [...] Muito provavelmente, pra ele aquilo é normal.

Para além da proposta de uma escola plural, onde as singularidades sejam observadas e cuidadas, o extrato acima mostra o conflito existente entre diferentes culturas, no interior de cada realidade, revelando certa concepção de justiça complexa. Além disso, compreendemos que conflitos são gerados pela diferença de conceito ou de valor que se dá ao mesmo ato, já que professores e alunos, muitas vezes, dão valores diferentes à mesma ação e reagem diferentemente. A diversidade de culturas é observada pela gestora da escola de centro em Braga, que aponta sua proposta para a minimização dos conflitos escolares:

ECPt Gestora 1: Tentar perceber por que é que isso acontece, trabalhar com as famílias, trabalhar com os alunos, envolver os alunos na tomada de decisão. É possível que isso melhore, que se perceba por que que isso acontece e tentar mostrar o quanto estão errados e que, se melhorarmos o ambiente, se envolver o sentimento de pertença da organização, todos veem com outros olhos o ambiente onde estão.

O aspecto cultural é visto como fundamento para a argumentação junto aos alunos: ajuda a compreender o lugar do aluno e estabelecer a ponte de ligação com a escola, para buscar estreitar seu sentimento de pertença. Compreendemos que o sujeito se constrói a partir das relações entre um mundo externo, estruturado pela cultura e pelas condições históricas; bem como por um mundo interno, não somente no aspecto cognitivo, mas também afetivo, o que envolve desejos, pulsões, sentimentos e emoções. Portanto, essas relações devem ser observadas na prática educativa e conectadas às desigualdades e às singularidades.

Conclusões

O artigo teve por objetivo problematizar a justiça com incidência na gestão e organização escolar, com vistas a tornar visíveis as injustiças que a compõe. Por meio de um recorte de pesquisa que coletou dados em Brasil e Portugal, observamos as estratégias utilizadas para solucionar conflitos e interagir com os diversos sujeitos sociais por meio do levantamento a respeito de conceitos inerentes, o que envolve os processos de gestão coletiva.

Considera-se a ideia de que a justiça deve ser capaz de produzir segurança e bem-estar, estimular a socialização cidadã e se voltar para o contexto, com base no diálogo sistemático que considere as tradições locais. Assim, a ideia de justiça é associada às razões que justificam as ações em determinado coletivo, indo além da resolução de conflitos, o que relacionamos a certa concepção de democracia.

Os relatos revelam que a democracia ora é percebida com referências à participação legal-formal, principalmente no Brasil, ora à participação como condição para envolvimento de estudantes em vivências pedagógicas, mais declarado em Portugal. Relacionamos esta distinção conceitual à compreensão dos conflitos presentes nas escolas e às alternativas utilizadas para sua resolução. Assim, os sujeitos em ambos os países esclarecem que nas ocorrências de conflitos nas escolas não há falta de respeito à cidadania, bem como há afirmação crítica por parte dos alunos a esse respeito, tratando-se efetivamente de conflitos, mas não de violências.

No entanto, entre as estratégias organizacionais para lidar com os conflitos, notamos que as escolas portuguesas, além de utilizarem o diálogo com os segmentos para tratar das divergências do cotidiano, destacam o papel de um professor coordenador de turma que intercede de maneira mais imediata nas demandas de alunos e professores, como um mediador de conflitos antes de sua irrupção, propriamente, contribuindo para o estabelecimento de uma relação de confiança interpessoal. Denotam valorização do aluno e do trabalho do professor e apontam como soluções para os conflitos ações afirmativas com sentido preventivo. A gestora portuguesa concebe a democracia escolar numa perspectiva social que respeita as singularidades e a diversidade, levando o estudante a se envolver e a se identificar com a escola.

Já nas escolas brasileiras, a instauração do medo parece ser um mecanismo de manutenção da ordem em sala de aula e, dentre as soluções encontradas para resolver conflitos, percebemos ações paliativas, emergenciais diante de problemas já instalados, mas não observamos procedimentos preventivos e planejados de forma a evitá-los. Assim, valoriza-se procedimentos padrões de cunho individualista, pautados numa concepção de democracia formal e numa racionalidade burocrática, a exemplo da importância dada ao registro de ocorrências.

Ao tratarem de concepções de escola justa, justiça e injustiças na escola, a gestão democrática esteve em pauta, bem como suas alternativas para solucionar problemas referentes às divergências escolares. Os dados mostram que injustiças não se limitam à escola e nem sempre se relacionam a violências, mas esta tem condições de minimizar em seu contexto seus efeitos e isso se faz quando conflitos são evitados e apaziguados à medida que a gestão escolar desenvolve uma ação planejada e preventiva, tendo em vista que a democracia inclui interesses em conflito, ora em condição de equilíbrio consensual, ora de efervescência, repercutindo em uma condição de justiça organizacional.

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  • 1
    Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Edital Universal Processo 444372/2014-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2018
  • Aceito
    30 Jan 2018
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