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Machado de Assis e a paródia do romance policial

RESUMO

O ensaio propõe uma releitura do conto “Os óculos de Pedro Antão”, de Machado de Assis, publicado no Jornal das Famílias em 1874. Como ele não foi incorporado por Machado em suas coletâneas, o drama acabou recebendo pouca atenção. Sugere-se que o texto decompõe, de forma paródica, o gênero do romance policial, em possível diálogo com a produção literária de Edgar Allan Poe. Além disso, ao indicar a inépcia analítica do narrador, o Bruxo de Cosme Velho explicita a artificialidade da literatura.

PALAVRAS-CHAVE:
Machado de Assis; “Os óculos de Pedro Antão”; Romance policial; Edgar Allan Poe

ABSTRACT

The essay proposes a retelling of the short story “Os óculos de Pedro Antão”, by Machado de Assis, published in Jornal das Famílias in 1874. As Machado did not incorporate the narrative into his compilations, the drama received unimpressive attention. It is suggested that the text parodically decomposes the detective story genre, in a possible dialogue with the literary production of Edgar Allan Poe. Furthermore, by indicating the narrator’s analytical ineptitude, “Bruxo de Cosme Velho” makes explicit the artificiality of literature.

KEYWORDS:
Machado de Assis; “Os óculos de Pedro Antão”; Detective story; Edgar Allan Poe

“Os óculos de Pedro Antão”

Publicado em 1874 no Jornal das Famílias, o conto “Os óculos de Pedro Antão” propõe a deformação de gêneros literários muito apreciados no século XIX. Sua trama pode ser reconstituída a partir de dois planos: o primeiro corresponde a um caso inusitado, ocorrido dez meses após o falecimento de Pedro Antão, quando José Mendonça, seu sobrinho, recebe uma mansão como herança e convida o colega, também chamado Pedro, para visitá-la. A narrativa, escrita pelo amigo do herdeiro, foi formulada três anos após a experiência. O plano secundário, por sua vez, decorre de um esforço, por parte do narrador, de reconstituir os últimos acontecimentos da vida do defunto. Isso acontece enquanto realiza um tour pela residência e analisa os cômodos, a mobília e os vestígios que encontra pelo caminho.

Em princípio, afetando discernimento de perito e recorrendo à autoridade do poeta português Rodrigues Lobo e do filósofo Montesquieu, Pedro afirma que os óculos podem ser utilizados com três finalidades: combater a miopia, favorecer a moda e identificar os sábios. O autor aproveita o ensejo para, de forma repentina e imprecisa, discutir e preceituar o gênero de seu relato:

Está já o leitor um pouco atrapalhado com este introito que lhe parece mais de folhetim que de romance ou então pergunta consigo mesmo a qual d’estas cousas atribuo eu os óculos de Pedro Antão. Isto não é folhetim, nem romance: é uma narração fiel do que me aconteceu há cerca de três anos: é crônica. Quanto a Pedro Antão é positivo que os seus óculos deviam ter por causa o enfraquecimento da vista; mas ainda assim não lhe posso afirmar nada, porque Pedro Antão, que eu não conheci, foi o homem mais singular das tais crônicas, viveu recluso durante a vida inteira e mal consta alguma cousa dos seus primeiros anos. (Assis, 2015_______. Machado de Assis: obra completa em quatro volumes. São Paulo: Nova Aguilar, 2015., v.2, p.1202)

O narrador institui um preceito ao alegar que não se trata de romance ou folhetim, mas de “crônica”, ou seja, “narração fiel” do ocorrido. Após assegurar a precisão testemunhal, recompondo uma antiga tópica historiográfica, ele afirma não ter conhecido a personagem central, que viveu boa parte da vida isolada em casa. A definição do gênero será abordada em momento oportuno.

Desde o início do conto, há um esforço no sentido de definir o caráter das personagens. Pedro, o narrador, que apreciava “penetrar nos negócios misteriosos”, aceita o convite para a visitação contanto que ocorresse à meia-noite, o que permite inferir o teor fantástico do relato. Esse teor acaba sendo reforçado quando descobrimos uma decisão inusitada do tio: a posse do imóvel só poderia ser efetuada dez meses após sua morte. Como, de início, não há nada que justifique a demora, o suspense acaba amplificado. Além disso, a descrição do ambiente proporciona os contornos de um locus horrendus: trânsito por escadas velhas e úmidas; presença de ratos, baratas e de um gato preto; odor combatido com pós aromáticos. O local produz incômodo em Mendonça, amante do conforto, mas não em Pedro, que pretendia “aproveitar aquela página de romance tétrico” (Assis, 2015_______. Machado de Assis: obra completa em quatro volumes. São Paulo: Nova Aguilar, 2015., v.2, p.1203). A expressão funciona como metáfora, já que a “experiência” do narrador é figurada como acontecimento consumado; para o leitor, no entanto, ela é literal, pois de fato ele se encontra diante de uma página de ficção.

Na sequência, Pedro admite que seu interesse não era conhecer a mansão herdada pelo amigo, mas o perfil do homem que ali morava. Queria reconstituir o morto e tenta fazê-lo a partir dos indícios encontrados pelos cômodos: as pinturas de Rafael e Velázquez indicariam bom gosto e uma alma apaixonada; o cachimbo alemão, atribuído a Theodor Hoffmann, por representar o diabo com chapéu de três bicos, seria indício de uma criatura heterodoxa; sem falar nos dois bustos encontrados sobre uma secretária: um de Cristo, outro de Satanás. Diante dos achados, o narrador afirma estar “penetrando no homem”. Pelo chão, descobriram chinelos, a imagem da Virgem, uma trança de cabelos amarelos, cartas de baralho, uma cruz e uma página com escritos em hebraico. Diante das “provas”, a dedução do analista é imediata: “Bem digo eu; aqui há cousa. Estes objetos dizem claramente que Pedro Antão era feiticeiro” (ibidem, p.1206). Então, forja uma base “filosófica” para suas suspeitas, amparada em humor ferino: “Depois que os filósofos modernos, com a mania de destruir tudo, afirmaram que o criador era uma invenção dos homens, eu, que não dou ao acaso as honras de ter criado o universo, substituí Deus por um grande feiticeiro, autor de todas as cousas, e nem por isso sou mais absurdo que os filósofos” (ibidem, p.1206).

Apenas a essa altura as personagens encontram os óculos de Pedro Antão, justificando a reflexão inicial do conto: a armação era de ouro e as lentes azuis tinham a finalidade de proteger os olhos contra os raios de luz, facilitando trabalhos e leituras realizadas à noite. Seria um quarto uso para o objeto, a emendar os outros três.

Pedro afirma que já tinha todos os recursos necessários para “compor um romance” (ibidem, p.1207). A primeira parte do conto, editada em março de 1874, termina com uma questão que só seria sanada no mês seguinte: “Sabes a razão da reclusão do tio?” (ibidem). Eis a resposta do narrador:

- Foi uma paixão? Não te rias. Eu imagino que teu tio se apaixonou por alguma dama formosa. Sabes donde concluo isto? Do gosto pelas artes. As artes substituem os amores, quando estes são impossíveis. Amou, e não querendo ou não podendo se casar com ela, retirou-se por aqui. A solidão e a paixão começaram a atuar na sua imaginação. Olha os livros que ele lia; vê estes dois bustos de Cristo e de Satanás; olha estes objetos de feitiçaria esparsos no chão; tudo isto quer dizer que a religião nem a filosofia bastavam à alma do tio e quando a filosofia e a religião não podem triunfar de uma alma, triunfa a superstição. Que te parece?

- Um conto para passar o tempo. (ibidem, p.1207-8)

Há uma série de deduções, articuladas com muita imaginação, que buscam precisar as atitudes de Pedro Antão nos últimos meses de sua vida. Mendonça, ao contrário, apreende a interpretação do amigo com muitas reservas: “Não te rias, Mendonça; és um espírito fútil. Ouve o resto, e verás que tudo se explica; eu aprendi a arte de interpretar as coisas mais insignificantes. Ora, atende; atende e concordarás comigo” (ibidem, p.1208). Um espírito fútil que, no entanto, recepciona a narrativa com precisão, afirmando tratar-se de “Um conto para passar o tempo”. Quando escutam rumores pela casa, Mendonça, representado como crédulo, fica temeroso, mas Pedro sempre age com naturalidade e despreocupação:

- São ratos. Deixa-te de vãos temores. Ouve a narração. Não te parece exata?

- Sim; parece. Tens uma penetração rara! Quem não dirá que isso não é a verdade?

- Ninguém pode dizê-lo. (ibidem, p.1209)

De fato, ninguém pode dizê-lo, pois o narrador tem o monopólio do texto e o interlocutor/leitor apenas acompanha sua forma acabada. Em outro momento, reforça a precisão da narrativa:

- Mas, Pedro, é impossível que tu não saibas disto por outro modo que não o conjectural. Estás falando de maneira que pareces ter assistido a tudo... Sabias alguma coisa?

- Nada.

- Mas então não compreendo.

- Meu amigo; chama-se a isto penetrar além da superfície dos fatos. Vai ouvindo. A noite do enterro do criado, era a noite do rapto de Cecília. Tudo estava preparado. Pedro Antão aguardou silenciosamente a hora marcada por ele, isto é, meia-noite. O leitor facilmente calculará...

- Que leitor?

- Foi engano. Quero dizer que tu facilmente calcularás as emoções do namorado antes de cometer o rapto [...]. (ibidem, p.1211-12)

Não foi engano: o lapso, bem-humorado, constrói uma equivalência entre ouvinte ficcional e leitor real e, mais do que isso, fundamenta o humor da passagem.

A terceira parte do conto, publicada em maio, arremata a trama, que termina com a tão aguardada prova, a contrariar toda a interpretação do narrador. Trata-se de um bilhete deixado pelo morto:

Meu sobrinho. Deixo o mundo sem saudades. Vivo recluso tanto tempo para me acostumar à morte. Ultimamente li algumas obras de filosofia da história, e tais coisas vi, tais explicações encontrei de fatos até aqui reconhecidos, que tive uma ideia excêntrica. Deixei aí uma escada de seda, uns óculos verdes, que eu nunca usei, e outros objetos, a fim de que tu ou algum pascácio igual inventassem a meu respeito um romance, que toda a gente acreditaria até o achado deste papel. Livra-te da filosofia da história.

Calcule agora o leitor o efeito deste escrito, espécie de dedo invisível que me deitava por terra o edifício da minha interpretação!

Daí para cá não interpretei à primeira vista todas as aparências. (ibidem, p.1214)

Para efetuar uma série de análises disparatadas, o autor sempre encontra pretexto para citar autores clássicos e eruditos: Diderot, Hoffmann, La Rochefoucald, Vitor Hugo, Almeida Garret. Ou seja, Machado zomba da filosofia da história, mas retoma filósofos para autorizar seus argumentos frívolos; não institui nenhuma base moral, mas cita grandes moralistas; denuncia a artificialidade do horror, mas refere literatos reconhecidos que se destacaram adotando o gênero; parodia os contos de detetives, mas retrata um analista medíocre que não consegue avaliar os indícios e produzir uma narrativa eficaz.

A figuração de personagens que buscam decifrar o caráter alheio parece ter atraído, em alguns momentos, a pena de Machado. Lembre-se, por exemplo, do tabelião do conto “O empréstimo”, que tinha “um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma do testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados (Assis, 2005ASSIS, M. de. Papéis avulsos. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p.192-3). No conto “A causa secreta”, Garcia foi definido com termos semelhantes, apresentando “a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres”. Ele “tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo” (Assis, 2015, v.2, p.466). Olhares de lanceta, agudos e cortantes, mas que não penetram a profundidade do homem. Não penetram porque, nos exemplos referidos, ela não existe ou é um vácuo sem repertório. A perspicácia, no caso, desfaz-se em derrisão.

Machado propõe uma narrativa que desmente e/ou desconstrói a interpretação do narrador fictício que, na condição de testemunha, alega adesão irrestrita à verdade. Esse expediente evidencia a mediocridade da personagem e, ao mesmo tempo, denuncia os artifícios da enunciação. Em outras palavras, a trama materializa a história de uma narração e, ao mesmo tempo, concede ao leitor a perspectiva ou o olhar de um sujeito desenganado, que resolve expor seu diagnóstico malsucedido. Entretanto, como o ato da leitura recompõe, em ordem cronológica, o fio dos acontecimentos, o desengano fica, estrategicamente, reservado para o final.

Afetando discernimento, o narrador chama a responsabilidade de formular um relato eficaz, apoiado por indícios. O leitor acompanha o exame, a interpretação e a (suposta) inteligência do enunciador, avaliando a maneira como ele busca convencer seu interlocutor da hipótese formulada. No entanto, ele não dispõe de meios para contestar a decifração, tampouco de confirmá-la. Isso porque, à proporção em que lê, acompanha a dedução, lendo a forma acabada do conto, que, por sinal, prescreve como deve ser feita a leitura. Abel Baptista (2014BAPTISTA, A. B. Três emendas: Ensaios machadianos de propósito cosmopolita. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p.106) sugere que o narrador “tem que se insinuar no conto a fim de nele inscrever o princípio da inteligibilidade da forma, ou seja, para garantir que a construiu de tal modo que a história está pronta para se contar a si mesma”. No caso de “Os óculos de Pedro Antão”, Pedro simula autoridade parodiando o gênero policial, assunto a ser abordado antes de prosseguirmos com o estudo do conto.

Gênero

Diferente do leitor de histórias de detetive, que acompanha a trama conforme sua disposição narrativa, o autor as escreve partindo do desfecho, ou seja, como conhece os desdobramentos do relato, incorpora nele (falsas) pistas, indícios, personagens e suspeitas para entreter e incluir a recepção no texto. Também expõe os métodos que tornam singulares as habilidades do investigador. É o que acontece no conto “Os assassinatos na rua Morgue”, publicado na Graham’s Magazine em 1841. Edgar Allan Poe relata a maneira como Auguste Dupin solucionou um duplo homicídio ocorrido em Paris. No prefácio, o narrador (cujo nome ignora-se) discorre sobre o método do detetive e adianta que “as faculdades mentais referidas como analíticas são, por si só, pouco suscetíveis de análise. Nós as apreciamos somente em seus efeitos” (Poe, 2017, p.117). Nesse fragmento inicial encontra-se a motivação do escrito: replicar no leitor o deleite experimentado pelo narrador, quando testemunhou as deduções perspicazes de um sujeito singular. Além disso, essa formulação pressupõe a teoria do conto formulada por Poe, que “deve ser lido de uma só vez, sem interrupção da atmosfera ou quebra do fio da ação, que conduzirá ao final surpreendente” (Teixeira, 2010_______. Conceito de conto em Poe & Machado de Assis: O Alienista como novela. Revista da Academia Brasileira de Letras, n.63, p.247-68, 2010., p.254).

O analista se deleita ao “desembaraçar” a mente alheia e demonstrar sua técnica, que o torna apto para desvendar enigmas, charadas, hieróglifos e, sobretudo, pessoas. O ensejo para “a demorada reflexão do cavaleiro louco, a ênfase na formação educacional do protagonista, o debate sobre a moral edificante por intermédio da religião, a coroação social pelo casamento etc.” (Chauvin, 2022CHAUVIN, J. P. Mentalidade vitoriana no romance policial. In: MONTEIRO, D. L. et. al. Vitorianos: contradições e desdobramentos. São Paulo: Liber Ars, 2022. p.319-30., p.311) é diminuto, pois são assuntos que extrapolam o teor investigativo e/ou a consistência pragmática do romance policial. A perspicácia do detetive soa sobrenatural diante de um público que interpreta o mundo a partir de noções elementares. Com hábitos noturnos e disposição melancólica, Dupin soluciona um crime hediondo, avaliando as matérias publicadas pela imprensa e a maneira como o(s) criminoso(s) teria(m) despistado a polícia parisiense, com seus procedimentos forenses desprovidos de um método eficaz. Isso fica evidente no conto “A carta roubada” (1844), quando o comissário da política explicita a minuciosa busca por uma carta comprometedora, realizada nos aposentos de um ministro. Dupin sugere, em contrapartida, que, talvez, “o mistério seja simples demais”:

Um determinado conjunto de recursos altamente engenhosos funciona, para o comissário, como uma espécie de cama de Procusto na qual ele tenta acomodar à força seus propósitos. Todavia, ele comete sucessivos equívocos por ser muito profundo ou superficial demais no assunto em questão. (Poe, 2017POE, E. A. Edgar Allan Poe: medo clássico. Trad. Marcia Heloisa Amarante Gonçalves. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017., p.219)

Um sujeito pode ser facilmente despistado caso o oponente conheça sua forma de pensar e agir. No conto, o ministro enganou a polícia por ter recorrido a um esconderijo óbvio demais, mas calculado com astúcia. Para Dupin, “a maioria dos homens trazia janelas no peito” (Poe, 2017POE, E. A. Edgar Allan Poe: medo clássico. Trad. Marcia Heloisa Amarante Gonçalves. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017., p.122). Ciente do retrato exagerado que forjara, o narrador não deixa de ponderar sobre o teor de sua escrita: “Que não se suponha, segundo o que acabo de dizer, que esteja detalhando um mistério ou escrevendo um romance” (ibidem). É para sustentar a verossimilhança que, no preâmbulo de “Os assassinatos na rua Morgue”, Poe formula o método analítico da personagem, preparando o leitor para uma criatividade que não se confunde com fantasia, por se ancorar em olhar apurado e decisivo: “Ser profundo demais é um risco real. A verdade nem sempre está no fundo de um poço. Na realidade, no que diz respeito ao conhecimento mais importante, creio que é invariavelmente superficial” (ibidem, p.134).1 1 Arthur Conan Doyle, algumas décadas mais tarde, não apenas admitiu ter se inspirado nos contos de Poe para criar Sherlock Holmes, como chegou a mencionar Dupin em Um estudo em vermelho, romance publicado pela revista Beeton’s Christmas Annual em novembro de 1887. As palavras foram proferidas pelo colega do detetive, John Watson: “Tudo parece muito simples, da maneira como você explica [...]. Você me lembra o Dupin de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que esse tipo de gente existisse na vida real” (Doyle, 2017, p.27). Trata-se de um tributo, mas também de uma oportunidade para Holmes reduzir os méritos do primeiro representante do ramo, fazendo pilhéria do narrador e do leitor que, muito provavelmente, seria capaz de formular a mesma analogia.

A interlocução de Machado com Poe é provável2 2 Leia-se, por exemplo, Philippov (2011). e a argumentação a seguir procura evidenciá-la, muito embora nosso propósito não seja comprovar o diálogo, mas sugerir de que maneira Machado propõe uma paródia do gênero recorrendo a alguns de seus expedientes. No conto em análise, o autor recorre a um recurso estilístico que, com Memórias póstumas de Brás Cubas, se torna ainda mais evidente: afirmar algo para, em seguida, desmenti-lo, num jogo de indeterminação ou indefinição que indica o caráter arbitrário das escolhas narrativas, facilita a incorporação do leitor no texto e revela a historicidade dos artifícios empregados, amparados no humor.3 3 Sobre o recurso em questão, conferir: Felipe (2023).

Nos três contos que Poe dedicou a Auguste Dupin (gradativamente, a memória das primeiras façanhas é incorporada às deduções posteriores, criando um elo entre as narrativas), é possível encontrar alguns contrastes, como a tensão entre superstição e ciência, ou a contenda entre análises superficiais e argumentos profundos. A narrativa também incorpora os lapsos do narrador, produzindo galhofas e explicitando sua incapacidade de acompanhar a perspicácia do analista, o que ajuda o leitor a compreender o passo a passo da resolução do caso. Ela também replica fragmentos de jornais, cartas, bilhetes e outros recursos que ajudam a definir o perfil das personagens e reforçar o realismo das ocorrências. Por fim, convém referir a adoção de um narrador em primeira pessoa, detentor de uma perspectiva particular que imagina ou infere o que pensam ou sentem as outras personagens, e de tópicas ou lugares-comuns indispensáveis, como testemunhos imprecisos que complicam a trama e raciocínios que a descomplicam em meio à fumaça de charutos de mineral turco.

No caso de “Os óculos de Pedro Antão”, Machado de Assis constrói uma narrativa dentro de outra e reconstitui os lapsos do narrador, quando, por exemplo, chama seu interlocutor de “leitor” ou nas ocasiões em que identifica a experiência relatada como “romance”, “conto” ou “crônica”. Convém referir, ainda, a maneira como o narrador mobiliza tópicas românticas para ilustrar desilusão amorosa, um pai contrariado, um fantasma defensor, crimes, etiquetas, sofrimento pela honra, desmaios e desespero, formulando um cenário patético pouco convincente, mas que dialoga com o repertório das leitoras do Jornal das Famílias: “O tio pôs o rosto nas mãos; estava desesperado” (Assis, 2015, v.2, p.1208). Era impensável, àquela altura, que essa formulação não proporcionasse um sorriso zombeteiro, como também é o caso desta projeção do inefável: “Não se descreve a cena do encontro dos dois amantes ao cabo de tanto tempo. Cecília estava mais pálida que o linho dos lençóis; o tio ajoelhou e derramou lágrimas de dor... Que cena aquela! Oh! Os que amaram sabem o que é aquilo!” (ibidem, p.1210). O próprio narrador reconhece os excessos cometidos, desmontando as amplificações que, outrora, poderiam ser tomadas por sublimes: “Creio que fui tão patético nesta descrição, que o próprio Mendonça ficou comovido. Pela minha parte, não o estava menos” (ibidem).

Diferentemente dos detetives clássicos, que reuniam indícios para recompor os atos criminosos, Pedro os negligencia, como no episódio em que presumiu que a morte do criado fora assassinato, sem encontrar qualquer indício: “Não vi sinais; mas é um crime lógico. Por que razão morreria o criado logo na véspera do rapto? Teu tio quis arredar uma testemunha ou um cúmplice; mas vai ouvindo” (ibidem, p.1211). No conto de Machado, interessa menos a rede de intrigas, e mais os mecanismos narrativos e as elucubrações do narrador:

- Realmente - disse Mendonça -, falas com uma segurança que pareces ter visto tudo isto!!

- Para que serviria a perspicácia, então?

- Safa! Eras capaz de provar que eu ontem matei um homem! (ibidem, p.1213)

Seria mesmo capaz de prová-lo, afinal, sua falta de método produz vividez com os ingredientes da fantasia.

O mais curioso é que o morto se mostrou um previdente, já que anteviu, no bilhete derradeiro, um “pascácio” a romancear sua vida com base nos indícios que plantou pela casa. Voltando ao fragmento acima, note-se que a segurança do narrador, segundo o amigo, reside na “fala”, e não nas deduções. As provas reunidas por Pedro, no caso, são avessas às práticas dos detetives clássicos, pois a ordenação dos vestígios espalhados pela mansão é aleatória. Mas, é como disse o narrador: “Organizar no vácuo não é coisa que todos podem fazer” (ibidem, p.1207). Trata-se de um dos raros passos consistentes perdidos em meio aos inúmeros clichês e pastiches enfileirados, com alusões a Shakespeare e outros autores versados no drama e nas tragédias.

É preciso mencionar a aparição do fantasma do criado assassinado que, de forma inverossímil, surge para defender seu algoz e livrá-lo da morte. A alma penada, ao ser interpelado por Pedro Antão, que ignorava estar tratando com um ser sobrenatural, afirma: “Eu sei tudo”, aludindo tanto ao assassinato quanto aos amores proibidos do patrão. “Sabe tudo? Quem é o senhor?”, questiona o interlocutor. “Ninguém”, respondeu. Mendonça emenda: “Parodiou Garrett”. O objeto da paródia é o segundo ato da peça Frei Luís de Sousa, mas também poderia ser o episódio da Odisseia envolvendo Ulisses e Polifemo. Talvez a atenção não deva recair somente na referência, mas também na admissão do recurso, isto é, na maneira como o interlocutor ficcional comunica ao leitor real que o narrador emulou um autor português do século XIX para retratar a aparição de um fantasma. A associação entre enunciados graves e situações frívolas inventadas por uma mente fantasiosa reforça, no leitor, a sensação de que a narrativa deve ser encarada como artificiosa.

Lembre-se de que, logo no início do texto, Machado afirma que o conto seria uma crônica ou “narração fiel” do ocorrido. Entretanto, em crônica de 4 de agosto de 1878, o autor sugere qual o papel do cronista: “Cumpre ter ideias, em primeiro lugar; em segundo lugar, expô-las com acerto; vesti-las, ordená-las, e apresentá-las à expectação pública. A observação há de ser exata, a facécia pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe; uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral doméstica e solturas da rua do Ouvidor” (Assis, 2015_______. Machado de Assis: obra completa em quatro volumes. São Paulo: Nova Aguilar, 2015., v.4, p.414). No que diz respeito ao consócio entre o sério e o frívolo, o conto “Os óculos de Pedro Antão” poderia mesmo ser tomado por crônica, assim como Memórias póstumas e outros romances do chamado “segundo modo”, que associam muito bem pilhérias e carrancas. Poder-se-ia dizer o mesmo quanto à disposição dos afazeres do cronista: propor uma ideia e, em seguida, esmerilhá-la conforme a recepção. Quando se trabalha com o misto, tão familiar a Luciano, Sterne, Xavier de Maistre etc., as fronteiras entre os gêneros se tornam tênues, imprecisas, e todo esforço de definição deve ser encarado com reservas e desconfiança. Por isso, a contrapelo da prescrição corrente, Machado conseguiu embutir, num suposto caso de assassinato e aparição fantasmagórica, uma desilusão amorosa à moda shakespeareana, um cenário digno de Hoffmann e uma reflexão paródica sobre as filosofias da história.

Isso não quer dizer, evidentemente, que Machado fosse contrário ao gênero policial ou às suas convenções. Aliás, não há utilidade predeterminada em sua literatura, tampouco esforços moralizantes. Como Poe, ele retrata uma mansão alquebrada pelo tempo, personagens melancólicas movidas pela superstição, hábitos noturnos, episódios extraordinários, intrigas amorosas e paixões impedidas, mesclando lugares-comuns góticos, românticos, realistas e antigos com a perspicácia esperada de um detetive, personagem que ele não figura no conto porque não há crime real a ser solucionado, mas somente a flagrante decomposição de gêneros que, àquela altura, deleitavam belas damas e homens discretos leitores de jornais.

Convém ressaltar que o Jornal das Famílias pressupunha o público feminino e elegante da corte brasileira. Uma leitura descontextualizada do periódico poderia sugerir que Machado publicasse nele por falta de opção ou para obter lucro, como se as frivolidades ali encenadas contrastassem com o “gênio” de um grande crítico dela. Tal premissa tende a redundar na ideia de que o literato, situado “à frente do seu tempo” (avant la lettre), estaria se comunicando com um público vindouro e zombando de sua recepção imediata. É preciso levar em consideração que, à época, as leitoras cortesãs assimilavam o vestuário europeu, pois se tratava de um sinal distintivo da elite que se pretendia eloquente e detentora do bom-gosto parisiense. Sendo assim, não devemos, de partida, conceber como contraditória a coexistência entre contos machadianos e cortes, moldes e riscados de costura. A literatura de Machado não apenas acompanhava esse repertório de imagens e ideias do mundo civilizado como também propunha, à sua maneira, tópicas e tramas relacionadas à civilitas. Com “Os óculos de Pedro Antão”, o literato talvez suponha a miopia do leitor desavisado dos artifícios, ou a graça dos modismos que tomavam esse objeto como indício de discrição. Mas também funciona como sinal do arbítrio autoral. Para o Bruxo de Cosme Velho, é necessário considerar o caráter simbólico da linguagem, para não cometer o mesmo equívoco do comissário de polícia atuante nos contos de Edgar Allan Poe, para quem os recursos forenses funcionavam “como uma espécie de cama de Procusto na qual ele tenta acomodar à força seus propósitos”. Ao invés de esticar ou amputar membros (como fazia Procusto com seus hóspedes, na mitologia), o autor de Memórias póstumas preferia evidenciar os mecanismos subjacentes ao leito literário, zombar dos hóspedes e, quando muito, dispensá-los com regalos e um piparote.

Considerações finais

As crônicas e contos de Machado mobilizam um repertório imenso de topoi e expedientes literários.4 4 Segundo Lúcia Granja (2018, p.82), fica evidente que “o texto machadiano se nutre da extrema consciência de seu autor sobre os efeitos tipográficos, poéticos, retóricos e ideológicos do suporte sobre o qual se forma e ao qual se conforma”. A ficção, no caso, “absorve plástica e parodicamente a Poética” constitutiva dos jornais. Em outro momento, a autora afirma que Machado de Assis “aproveitou a matriz jornalística em sua composição literária, uma das novidades que conferem modernidade à sua obra” (ibidem, p.61). O pressuposto da brevidade e a organização da trama conforme o efeito esperado, mecanismos aperfeiçoados com o tempo e a prática, rendeu romances com capítulos curtos que parecem parodiar diversos gêneros e favorecer a constituição de uma atmosfera herói-cômica. Como sugeriu Alfredo Bosi (2020BOSI, A. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020., p.84), a partir de Memórias póstumas e dos contos reunidos em Papéis avulsos, importa a Machado “cunhar a fórmula sinuosa que esconde (mas não de todo) a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior”. Ivan Texeira (2003, p.149), por sua vez, ressalta que “o Machado de 1873 é diferente do Machado de 1880, porque outro era o seu repertório”, que “incorpora discursos exteriores diferentes em diferentes momentos de sua vida”. João Adolfo Hansen (2005HANSEN, J. A. “O imortal” e a verossimilhança. Teresa, n.6-7, p.56-78, 2005., p.69), por fim, em estudo sobre o conto “O imortal”, “as paixões intensas - a solidão moral, a paixão amorosa, a honra ultrajada, o desespero suicida etc. -, que passavam por sublimes, digamos que entre 1830 e 1870, são efetivamente cômicas em 1882”. Parece consensual que a “nova maneira” do autor teria permitido que esmerilhasse antigos expedientes literários, decompondo e realocando gêneros, autores, tópicas e temas. O conto “Os óculos de Pedro Antão”, como sugerimos, elenca todos os lugares-comuns referidos por Hansen e outros tantos, para retratar a inépcia analítica do narrador, que forjou homicídios e assombrações para indicar que, assim como reinos e impérios, os gêneros discursivos também são arruinados com o tempo.

Ao ser lido e ludibriado pelo conto, que subverte o mistério ao explicá-lo racionalmente, o receptor recompõe, com pertinência sempre parcial e datada, os efeitos forjados nos e pelos enunciados. A partir deles, consegue inferir que a literatura não é natural, pois seu impacto é fundamentado em artifícios oriundos de temporalidades, lugares e imaginários plurais, decompostos e arranjados pelo autor com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.

Referências

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Notas

  • 1
    Arthur Conan Doyle, algumas décadas mais tarde, não apenas admitiu ter se inspirado nos contos de Poe para criar Sherlock Holmes, como chegou a mencionar Dupin em Um estudo em vermelho, romance publicado pela revista Beeton’s Christmas Annual em novembro de 1887. As palavras foram proferidas pelo colega do detetive, John Watson: “Tudo parece muito simples, da maneira como você explica [...]. Você me lembra o Dupin de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que esse tipo de gente existisse na vida real” (Doyle, 2017, p.27). Trata-se de um tributo, mas também de uma oportunidade para Holmes reduzir os méritos do primeiro representante do ramo, fazendo pilhéria do narrador e do leitor que, muito provavelmente, seria capaz de formular a mesma analogia.
  • 2
    Leia-se, por exemplo, Philippov (2011PHILIPPOV, R. Edgar Allan Poe e Machado de Assis: intertextualidade e identidade. Itinerários, n.33, p.39-47, 2011.).
  • 3
    Sobre o recurso em questão, conferir: Felipe (2023FELIPE, C. V. do A. Quem conta um conto... Machado de Assis e a Poética da Reticência. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023.).
  • 4
    Segundo Lúcia Granja (2018GRANJA, L. Machado de Assis - antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp, 2018., p.82), fica evidente que “o texto machadiano se nutre da extrema consciência de seu autor sobre os efeitos tipográficos, poéticos, retóricos e ideológicos do suporte sobre o qual se forma e ao qual se conforma”. A ficção, no caso, “absorve plástica e parodicamente a Poética” constitutiva dos jornais. Em outro momento, a autora afirma que Machado de Assis “aproveitou a matriz jornalística em sua composição literária, uma das novidades que conferem modernidade à sua obra” (ibidem, p.61).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
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