Acessibilidade / Reportar erro

O Pleistoceno Médio na evolução humana1 1 Este artigo é dedicado a Luís Beethoven Piló, in memoriam, por sua grande contribuição aos estudos dos primeiros americanos.

RESUMO

O Pleistoceno Médio (780-130 mil anos) foi um período-chave na história evolutiva humana. O período abriga uma grande diversidade de espécies hominínias, inovações tecnológicas, além de ser, afinal, quando o Homo sapiens surgiu no planeta. Entretanto, as populações pleistocênicas, bem como as relações biológicas entre elas, permanecem precariamente compreendidas. Aqui, trazemos uma breve síntese da evolução humana com especial atenção às questões do Pleistoceno Médio, os avanços da área e a contribuição brasileira a esse debate.

PALAVRAS-CHAVE:
Homo sapiens; Homo neanderthalensis; Paleoantropologia; Hominínios

ABSTRACT

The Middle Pleistocene (780-130 ka) was a key period in human evolutionary history. The period holds a great diversity of hominin species, technological innovations, in addition to being, after all, when Homo sapiens appeared on the planet. However, Pleistocene populations, as well as the biological relationships between them, remain poorly understood. Here, we bring a brief summary of human evolution with special attention to the Middle Pleistocene issues, advances in the field and the Brazilian contribution to this debate.

KEYWORDS:
Homo sapiens; Homo neanderthalensis; Paleoanthropology; Hominins

Introdução

O pleistoceno médio é o período geológico que vai de 780 a 130 mil anos (Cohen et al., 2013COHEN, K. M. et al. The ICS International chronostratigraphic Chart. Episodes 36: 199-204, 2013; atualizada.). Esse período é essencial para se compreender os momentos mais tardios do processo evolutivo humano, que se iniciou por volta de 7 milhões de anos. O primeiro representante de nossa linhagem evolutiva é o Sahelanthropus tchadensis, encontrado no Chade, em 2001 (Brunet et al., 2002BRUNET, M. et al. A new hominid from the Upper Miocene of Chad, Central Africa. Nature, v.418, p.145-51, 2002.). Entre 7 e 2 milhões de anos, nossos ancestrais ainda eram muito primitivos, acomodando em sua morfologia, e provavelmente em seu comportamento, características dos monos (Chimpanzé, Gorila e Orangotango), nossos parentes mais próximos ainda existentes, e características humanas (Guy et al., 2005GUY, F. et al. Morphological affinities of the Sahelanthropus tchadensis (Late Miocene hominid from Chad) cranium. PNAS, v.102, 2005.).

Por exemplo, eram pequenos, com pouco mais de 1 metro de estatura, apresentavam capacidades cranianas muito baixas, similares à de um chimpanzé (400 cm3), e sua bipedia ainda era parcial (Zollikofer et al., 2005ZOLLIKOFER, C. et al. Virtual cranial reconstruction of Sahelanthropus tchadensis. Nature, v.434, 2005.; White et al., 2009WHITE, T. D. et al. Ardipithecus ramidus and the Paleobiology of Early Hominids. Science, v.326, n.5949, p.75-86, 2009.): eles ainda associavam vida arborícola e vida terrestre, com grande predominância da primeira. Por isso seus braços eram longos, suas pernas curtas e as falanges de seus dedos, curvas. No entanto, quando em terra, deslocavam-se apoiados apenas sobre as duas pernas, característica que marca a bipedia.

Esses hominínios são denominados pré-australopitecínios e australopitecínios. Eram todos bípedes, com as ressalvas acima. Há uma grande discussão na literatura se realmente o Sahelanthropus tchadensis, considerado o primeiro de nossa linhagem, era realmente bípede. O forame magno, por onde entram os nervos da coluna, apresenta-se nessa espécie bastante anteriorizado, na base do crânio, falando francamente a favor da bipedia (Zollikofer et al., 2005ZOLLIKOFER, C. et al. Virtual cranial reconstruction of Sahelanthropus tchadensis. Nature, v.434, 2005.). Ele tinha, entretanto, uma capacidade craniana diminuta, ou seja, apenas cerca de 360 cm3. Ossos pós-cranianos encontrados recentemente do mesmo indivíduo fornecem, entretanto, informações dúbias sobre sua possível bipedia.

O fêmur, para alguns, é similar aos dos chimpanzés, que obviamente não são bípedes (Macchiarelli et al., 2020MACCHIARELLI, R. et al. Nature and relationships of Sahelanthropus tchadensis. Journal of Human Evolution, v.149, 2020.), ao passo que para outros (Daver et al., 2022DAVER, G. et al. Postcranial evidence of late Miocene hominin bipedalism in Chad. Nature, v.609, 2022.) ele era similar aos dos humanos atuais. Os ossos dos braços falam a favor de que era exímio trepador de árvores, como todos os primeiros hominínios até 2 milhões de anos, como já vimos (Daver et al., 2022). Recentemente, nosso grupo de pesquisa comparou a arquitetura geral do crânio do Sahelanthropus com a de outros hominínios, bem como os de chimpanzé e gorila (Neves et al., s.d., no prelo). Nossos resultados, ainda em publicação, não deixam dúvidas: a arquitetura de seu crânio, ou seu bauplan, para usar uma nomenclatura mais técnica, não tem nada a ver com a dos monos. Seu bauplan craniano é claramente hominínio.

Aceitando-se, portanto, o S. tchadensis como o primeiro hominínio, pode-se dizer que ele foi sucedido por uma pletora de hominínios que muitas vezes viveram ao mesmo tempo e até mesmo numa mesma área geográfica. Aqui vai uma lista sumária desses hominínios: Orrorin tugenensis, descoberto do Quênia e datado de cerca de 6 milhões de anos (Senut et al., 2001SENUT, B. et al. First hominid from the Miocene (Lukeino Formation, Kenya). Comptes Rendus de l’Académie Des Sciences, v.332, n.2, 2001.); Ardipithecus kadabba, encontrado na Etiópia e datado de cerca de 5 milhões de anos (Haile-Selassie, 2001); Ardipithecus ramidus, encontrado na Etiópia e datado de cerca de 4 milhões de anos (White et al., 1994WHITE, T. D.; SUWA, G.; ASFAW, B. Australopithecus ramidus, a new species of early hominid from Aramis, Ethiopia. Nature, v.371, n.6495, p.306-12, 1994.); Australopithecus anamensis, descoberto no Quênia e datado de cerca de 4 milhões de anos (Leakey et al., 1995LEAKEY, M. G. et al. New four-million-year-old hominid species from Kanapoi and Allia Bay, Kenya. Nature, v.376, p.565-71, 1995.); Australopithecus afarensis, encontrado na Etiópia e na Tanzânia e datado de cerca de 3.5 milhões de anos (Johanson et al., 1978JOHANSON, D. C.; WHITE, T. D.; COPPENS, Y. A new species of the genus Australopithecus (Primates: Hominidae) from the Pliocene of eastern Africa. Kirtlandia, v.28, p.1-14, 1978.); e Kenyanthropus platyops, encontrado no Quênia e contemporâneo ao afarensis (Leakey et al., 2001). Só para recordar, todos esses hominínios eram de baixa estatura, tinham uma capacidade craniana parecida com a dos monos, apresentavam braços longos e pernas curtas e as falanges dos dedos, curvas. Eram, portanto, bípedes trepadores, ou para usar o linguajar acadêmico, bípedes facultativos.

A origem do gênero Homo

Foi apenas com o surgimento do gênero Homo, há cerca de 2 milhões de anos, que finalmente a bipedia estritamente terrestre surgiu na linhagem hominínia (Wood; Collard, 1999WOOD, B.; COLLARD, M. The Human Genus. Science, v.284, 1999.). Não vamos aqui discutir as razões do surgimento dessa característica no registro fóssil, tendo em vista que há dezenas de modelos para explicá-lo e nenhum deles alcança o mínimo de consenso. O fato é que a partir de 2 milhões de anos, surgiram os primeiros cérebros “grandes” (maiores que os dos monos), com cerca de 650 cm3, as pernas se alongaram, os braços se encurtaram e as falanges das mãos tornaram-se retas (Wood; Collard, 1999). Isso indica que com o surgimento do gênero humano perdemos finalmente nossas características arborícolas e trepar em árvores se tornou uma verdadeira tragédia em nossa linhagem. Por outro lado, nos tornamos bípedes absolutamente eficazes. Mas ainda éramos pequenos.

Os primeiros representantes do nosso gênero são o Homo habilis e o Homo rudolfensis (Leakey et al., 1964LEAKEY, L. S. B.; TOBIAS, P. V.; NAPIER, J. R. A New Species of The Genus Homo From Olduvai Gorge. Nature, v.202, n.4927, p.7-9, 1964.; Groves, 1989GROVES, C. P. A Theory of Human and Primate Evolution. Oxford: Clarendon, 1989.). Logo após, ou, para alguns, mais ou menos concomitantemente, surgiu o Homo erectus (Herries et al., 2020HERRIES, A. I. R. et al. Contemporaneity of Australopithecus, Paranthropus, and early Homo erectus in South Africa. Science, v.368, 2020.). O primeiro foi encontrado inicialmente na Garganta de Olduvai, na Tanzânia e mais tarde no Quênia e está datado por volta de 1.8 milhão de anos. Sua capacidade craniana era em média de 640 cm3. Talvez estivesse também presente no sul da África, mas as evidências quanto a isso são pífias (Hughes; Tobias, 1977HUGHES, A. R.; TOBIAS, P. V. A fossil skull probably of the genus Homo from Sterkfontein, Transvaal. Nature, v.265, n.5592, p.310-12, 1977.). Já o Homo rudolfensis foi primeiramente encontrado no Quênia. Datado também em 1.8 milhão de anos, com uma capacidade craniana de 750 cm3, foi mais tarde encontrado no Malaui. Embora a maioria dos autores aceitem esses fósseis como os primeiros representantes de nosso gênero, há uma imensa discussão sobre o assunto (para um exemplo ver Wood e Collard, 1999WOOD, B.; COLLARD, M. The Human Genus. Science, v.284, 1999.; e Gonzalez-José et al., 2008).

De onde teriam surgido os primeiros representantes do gênero Homo? Essa é uma pergunta bastante difícil de responder. Ocorre que entre 3 e 2 milhões de anos o registro fóssil hominínio é extremamente pobre no leste da África, onde, muito provavelmente, a transição se deu. Contam-se nos dedos de uma mão os fósseis encontrados desse período e todos eles o foram na região do Afar, na Etiópia, e são muito fragmentados. Um desses fósseis, A.L. 666-1, foi encontrado na região do Hadar e está datado em 2.3 milhões de anos (Kimbel et al., 1996KIMBEL, W. H. et al. Late Pliocene Homo and Oldowan Tools from the Hadar Formation (Kada Hadar Member), Ethiopia. Journal of Human Evolution, v.31, n.6, p.549-61, 1996.).

Há dúvidas quanto à datação desse fragmento de maxila, visto que o espécime foi encontrado em um contexto arqueológico complicado; entretanto muitos aceitam a posição do fóssil no gênero Homo. Se esses estiverem corretos, nosso gênero surgiu, portanto, pelo menos 400-300 mil anos antes do que se aceita no momento. Infelizmente, não é possível atribuir o nome de uma espécie a esse fóssil, razão por que alguns se referem a ele como Homo sp., ao passo que outros se arriscam mais e já o atribuem ao Homo habilis.

Outro fragmento de mandíbula que tem causado frisson entre os paleoantropólogos é o encontrado em Ledi-Geraru, também no Afar. Esse fragmento está datado em 2.8 milhões de anos e provavelmente é o único fóssil dessa idade encontrado em todo o leste da África. Os descobridores do fóssil, apesar de reconhecerem uma certa identidade dele com o Australopithecus afarensis, acreditam que a maioria de suas características, principalmente dos dentes, permite dizer que Ledi-Geraru se trataria do primeiro representante do gênero Homo, o que retrocederia a antiguidade do gênero em 800 mil anos (Villmoare et al., 2015VILLMOARE, B. et al. Early Homo at 2.8 Ma from Ledi-Geraru, Afar, Ethiopia. Science, v.347, 2015.).

Entretanto, Hawks et al. (2015HAWKS, J.; DE RUITER, D. J.; BERGER, L. R. Comment on “Early Homo at 2.8 Ma from Ledi-Geraru, Afar, Ethiopia”. Science, v.348, 2015.) contrariam o estudo anterior e defendem não ser possível incluir o espécime no gênero Homo em vista das características compartilhadas com os australopitecínios. Nosso grupo de pesquisa também se envolveu nessa polêmica. Nossos resultados demonstram que as medidas do corpo da mandíbula de Ledi-Geraru (não estudamos os dentes) são muito mais parecidas com as do gênero Homo, do que com aquelas do gênero Australopithecus (Neves et al., 2023NEVES, W. et al. Ledi-Geraru strikes again: morphological affinities of the LD 350-1 mandible with early Homo. Annals of the Brazilian Academy of Sciences, v.95, p.e 20230032, 2023.). Portanto, é mesmo possível que o gênero humano tenha surgido há quase 3 milhões de anos e que certamente o afarensis foi seu ancestral.

Quanto ao Homo erectus, este surgiu no registro fóssil há cerca de 1.9 milhões de anos (Herries et al., 2020HERRIES, A. I. R. et al. Contemporaneity of Australopithecus, Paranthropus, and early Homo erectus in South Africa. Science, v.368, 2020.). Além de ser um bípede estritamente terrestre (na verdade, alguns autores acreditam que ele foi o primeiro a exibir tal característica; Wood e Collard, 1999WOOD, B.; COLLARD, M. The Human Genus. Science, v.284, 1999.), já apresentava uma capacidade craniana de cerca de 900 cm3 em média. Ele pode ser encontrado tanto na África, quanto na Ásia (e talvez na Europa), com datações de até 1.6 milhão de anos no continente asiático. Até recentemente, ele era considerado o primeiro hominínio a ter saído da África. Pesquisas lideradas por um dos autores (WN), junto com outros pesquisadores brasileiros e italianos, na Jordânia, entre 2013 e 2016, passaram a questionar, entretanto, tal afirmação. Foram encontrados no Vale do Rio Zarqa, naquele país, ferramentas de pedra lascada datadas de até 2.5 milhões de anos (Scardia et al., 2019SCARDIA, G. et al. Chronologic constraints on hominin dispersal outside Africa since 2.48 Ma from the Zarqa Valley, Jordan. Quaternary Science Reviews, v.219, 2019.). Como o Homo erectus ainda não existia na África nessa época, sugeriu-se que, na verdade, um hominínio pré-erectus (Homo habilis?) teria sido o primeiro a ter deixado aquele continente. Pesquisas na China (Zhu et al., 2018ZHU, Z. et al. Hominin occupation of the Chinese Loess Plateau since about 2.1 million years ago. Nature, v.559, 2018.) também apontam nessa direção. De qualquer maneira, até segunda ordem, todo o resto da evolução humana teria partido do Homo erectus, que, espantosamente, sobreviveu no sudeste asiático até míseros 140 mil anos atrás.

O Pleistoceno Médio

Os hominínios que viveram nesse período e que não podem ser classificados nem como erectus, nem como sapiens e nem como neandertais, são atribuídos a uma espécie fundamental para os momentos finais de nossa evolução, o Homo heidelbergensis senso lato. Essa espécie foi primeiramente descrita com base na mandíbula de Mauer, encontrada em Heidelberg, na Alemanha, na primeira década do século XX (Schoetensack, 1908SCHOETENSACK, O. Der Unterkiefer des Homo heidelbergensis aus dem Sanden von Mauer bei Heidelberg: ein Beitrag zur Paläontologie des Menschen. Leipzig: Wilhelm Engelmann, 1908.). Fósseis encontrados ao longo daquele século e início do século XXI sugerem que essa espécie teve uma grande difusão geográfica, tendo se espalhado por todo o Velho Mundo, isso entre 650 e 200 mil anos atrás (Stringer, 2012_______. The status of Homo heidelbergensis (Schoetensack 1908). Evolutionary Anthropology, v.21, n.3, p.101-7, 2012.). Seus crânios eram grandes e marcadamente robustos, com acentuado toros ósseo acima das órbitas oculares. Sua capacidade craniana era, em média, de 1.200 cm³. Portanto, um cérebro bastante grande, mesmo se comparado ao nosso (1.350 cm³).

Mas essa é, propositalmente, uma visão simplificada desses fósseis. Alguns autores acreditam que apenas as formas do Pleistoceno Médio europeias podem ser atribuídas a essa espécie senso estrito (Howell, 1999HOWELL, F. C. Paleo-Demes, Species Clades, and Extinctions in the Pleistocene Hominin Record. Journal of Anthropological Research, v.55, n.2, p.191-243, 1999.). Outros denominam como Homo heidelbergensis senso estrito os fósseis do período encontrados tanto na Europa, quanto na África (Rightmire, 2008_______. Homo in the MiddlePleistocene: hypodigms, variation, and species recognition. Evolutionary Anthropology, v.17, p.8-21, 2008.). E ainda, um número reduzido de autores acredita que os fósseis do Pleistoceno Médio da Ásia, principalmente da China, também podem ser incluídos no hipodigma da espécie (Lee; Hudock, 2021LEE, S. H.; HUDOCK, A. Human Evolution in Asia: Taking Stock and Looking Forward. Annual Review of Anthropology, v.50, p.145-66, 2021.). Mas há uma enorme discussão entre aqueles que defendem essas distintas posições.

Essa multiplicidade de opiniões decorre dos seguintes fatores: primeiramente, porque a espécie foi descrita, originalmente, com base em uma mandíbula, sem crânio associado; em segundo lugar, porque há pouquíssimos fósseis do período; e em terceiro lugar porque esses poucos fósseis apresentam grande variabilidade morfológica, especialmente quando detalhes da morfologia craniana são levados em consideração (Rightmire, 2008_______. Homo in the MiddlePleistocene: hypodigms, variation, and species recognition. Evolutionary Anthropology, v.17, p.8-21, 2008.). Toda essa diversidade poderia ser acomodada dentro da variabilidade de uma mesma espécie com larga distribuição geográfica? Ou ela ultrapassaria o nível de variabilidade intraespecífica, tendo que ser acomodada em mais de uma espécie?

Para aqueles que consideram apenas os fósseis europeus como legitimamente heidelbergensis, os fósseis africanos contemporâneos seriam denominados Homo rhodesiensis (Stringer, 2012_______. The status of Homo heidelbergensis (Schoetensack 1908). Evolutionary Anthropology, v.21, n.3, p.101-7, 2012.), ou como sugerido recentemente por Roksandic et al., (2022ROKSANDIC, M. et al. Resolving the “muddle in the middle”: The case for Homo bodoensis sp. nov. Evolutionary Anthropology, v.31, p.20-9, 2022.) Homo bodoensis. Já quanto aos fósseis chineses do período, duas saídas têm sido propostas: a primeira seria não atribuir a eles um nome formal específico; assim eles seriam denominados informalmente de “archaic humans”, ou homens arcaicos (Lee; Hudock, 2021LEE, S. H.; HUDOCK, A. Human Evolution in Asia: Taking Stock and Looking Forward. Annual Review of Anthropology, v.50, p.145-66, 2021.), o que na verdade apenas adia a questão. Recentemente, Ji e colaboradores (2021JI, Q. et al. Late Middle Pleistocene Harbin cranium represents a new Homo species. The Innovation, v.2, n.3, 2021.) sugeriram uma outra solução: denominar esses fósseis de Homo daliensis.

Resultados por nós obtidos, mas ainda não publicados (Neves et al., s.d., submetido), aplicando Análise de Função Discriminante sobre tamanho e forma desses fósseis falam a favor de que os hominínios do Pleistoceno Médio da África, da Europa e da Ásia devem ser assignados a três espécies distintas, mantendo-se o nome H. heidelbergensis apenas para os fósseis europeus, tendo em vista a precedência de Schoetenstak (1908). Os fósseis do período da África seriam assignados à espécie H. rhodesiensis, ao passo que os asiáticos, a H. daliensis.

Entretanto, outros métodos estatísticos terão que ser aplicados se quisermos resolver a questão, se é que ela tem solução, pela seguinte razão: quando se analisam as afinidades morfológicas entre indivíduos de uma mesma espécie e compreendidos num breve período, assume-se que as informações quanto a forma tem precedência sobre tamanho, já que esse último é altamente influenciado por fatores ambientais imediatos, como nutrição, por exemplo. Entretanto, o fator tamanho (veja capacidade craniana) é altamente informativo quando se analisam várias espécies ou gêneros distintos, principalmente quando um longo período está envolvido. Se os fósseis do Pleistoceno Médio da África, da Europa e da Ásia correspondem a uma mesma espécie de ampla distribuição, então o primeiro critério deveria ser levado em conta. Entretanto, se estamos diante de espécies distintas, como parecem indicar nossos primeiros resultados, tanto forma como tamanho devem ser levados em consideração. Estamos, claramente, diante de um raciocínio circular, quase inexpugnável.

O último ancestral comum

Um assunto que se tornou bastante visitado pelos paleoantropólogos nos últimos 15 anos diz respeito a quem foi o último ancestral comum (LCA em inglês - Last Common Ancestor) entre neandertais e sapiens (e de certa forma também dos denisovanos, que vamos tratar em uma seção própria). Esse último ancestral comum também é conhecido na literatura especializada como MRCA (Most Recent Common Ancestor, na sigla em inglês), que significa o mais recente ancestral comum. Por razões práticas vamos utilizar neste artigo a sigla LCA.

Como as duas espécies surgiram na parte final do Pleistoceno Médio, para muitos é óbvio que o LCA tem que ser buscado nesse contexto, criando uma relação quase inextricável com o H. heidelbergensis senso lato (Mounier; Lahr, 2016MOUNIER, A.; LAHR, M., M. Virtual ancestor reconstruction: Revealing the ancestor of modern humans and Neandertals. Journal of Human Evolution, v.91, p.57-72, 2016.). Parece simples, mas não é, até porque como vimos o hipodigma desse hominínio parece se acomodar melhor, assumindo-se que pertence a três espécies distintas.

A maioria dos autores que acredita na validade do táxon H. heidelbergensis para África, Europa e Ásia, assume que essa espécie deve ter surgido na África, como já salientamos, e que de lá migrou pelo menos para a Europa e quiçá para a Ásia, há cerca de 600 mil anos (Rightmire, 2001RIGHTMIRE, G. P. Patterns of hominid evolution and dispersal in the Middle Pleistocene. Quaternary International, v.75, p.77-84, 2001.). Na África, o H. heidelbergensis (para nós H. rhodesiensis) teria dado origem ao Homo sapiens, cuja diferenciação começou por volta de 300 mil anos, sendo as primeiras formas reconhecidas por todos como Homo sapiens datadas por volta de 230 mil anos (Vidal et al., 2022VIDAL, C. M. et al. Age of the oldest known Homo sapiens from eastern Africa. Nature, v.601, p.579-83, 2022.), como bem o demonstram os fósseis Omo 1 e Omo 2. O fóssil rhodesiensis que mostra as primeiras características de sapiens é aquele encontrado nos anos 1960 em Jebel Ihroud, no Marrocos. Esse fóssil, hoje datado em 315 mil anos, aproximadamente, apresenta aquilo que chamamos em nossa área, de evolução em mosaico: sua face é pequena e bastante retraída, típica do homem moderno, ao passo que seu neurocrânio é baixo e alongado, típico das formas arcaicas (Hublin et al., 2017HUBLIN, J.-J. et al. New fossils from Jebel Irhoud, Morocco and the pan-African origin of Homo sapiens. Nature, v.546, p.289-92, 2017.).

Tudo parece indicar que a evolução dos neandertais ocorreu praticamente ao mesmo tempo, mas em paralelo, na Europa, muito provavelmente em razão da exposição do heidelbergensis a ambientes frios (Arsuaga et al., 2014ARSUAGA, J. L. et al. Neandertal roots: Cranial and chronological evidence from Sima de los Huesos. Science, v.344, n.6190, p.1358-63, 2014.; Meyer et al., 2016MEYER, M. et al. Nuclear DNA sequences from the Middle Pleistocene Sima de los Huesos hominins. Nature, v.531, p.504-7, 2016.). Mas sua diferenciação ocorreu um pouco mais cedo. Os fósseis do sítio de Sima de los Huesos, localizado na Serra de Atapuerca, no norte da Espanha, extremamente bem preservados e datados por volta de 430 mil anos (Arsuaga et al., 2014), já mostram algumas características típicas dos neandertais, como por exemplo, a célebre migração da face para a frente (prognatismo facial). Apesar de não apresentarem todas as características neandertalenses, alguns autores mais afoitos já os classificam como tal (Roksandic et al., 2022ROKSANDIC, M. et al. Resolving the “muddle in the middle”: The case for Homo bodoensis sp. nov. Evolutionary Anthropology, v.31, p.20-9, 2022.).

Aqui são apresentadas duas alternativas de interpretação para esse fenômeno. Para aqueles que classificam o material de Sima de los Huesos como neandertal, essa denominação deve ser estendida a todos os fósseis do Pleistoceno Médio europeu, cancelando, portanto, a ideia de que o H. heidelbergensis estava presente na Europa nesse período (Roksandic et al., 2022ROKSANDIC, M. et al. Resolving the “muddle in the middle”: The case for Homo bodoensis sp. nov. Evolutionary Anthropology, v.31, p.20-9, 2022.). Para outros, os fósseis de Sima de los Huesos representam apenas a transição entre H. heidelbergensis e H. neanderthalensis, exatamente como ocorreu na África entre os H. rhodesiensis e o H. sapiens.

A resposta a essa pergunta reside no exame da morfologia craniana de outros espécimes europeus do Pleistoceno Médio. Fósseis como Mauer (Alemanha), Steinheim (Alemanha), Swanscombe (Inglaterra), Petralona (Grécia) e Ceprano (Itália), para ficar nos mais icônicos e bem datados, apesar de apresentarem alguns poucos traços derivados de neandertais, predomina neles a morfologia basal do H. heidelbergensis.

Portanto, a ideia que predomina é que os heidelbergensis de fato existiram na Europa e que Sima de los Huesos é apenas uma forma transicional digamos avançada entre eles e os neandertais, assim como Jebel Ihroud faz a ponte entre os rhodesiensis e os humanos modernos na África. Fósseis transicionais apresentam sempre grande dificuldade para serem nominados no nível de espécie. Por isso, é comum na literatura paleoantropológica que se refiram a Sima de los Huesos como “early neanderthals” (Hanegraef et al., 2018HANEGRAEF, H. et al. Dentine morphology of Atapuerca-Sima de los Huesos lower molars: Evolutionary implications through three-dimensional geometric morphometric analysis. Am. J. Phys. Anthropol., v.166, p.276-95, 2018.), e a Jebel Ihroud como “archaic sapiens” ou “basal sapiens” (Bermúdez de Castro; Martinón-Torres, 2022). Mas, evidentemente, isso não resolve formalmente a questão.

Em resumo, a questão do LCA continua em aberto. Nossa proposta, até que se encontrem novos fósseis entre o final do Pleistoceno Inferior e o início do Pleistoceno Médio, é que se remeta o último ancestral comum entre neandertais e modernos a alguma população de Homo erectus tardia.

Homo antecessor

Se o quadro acima já é bastante complexo, e de certa forma insolúvel com os fósseis disponíveis, ele se tornou ainda mais complexo com a descoberta de fósseis datados de cerca de 850 mil anos na mesma Serra de Atapuerca, Espanha, em 1994, porém em um outro sítio: Gran Dolina, situado a menos de um quilômetro de Sima de los Huesos, mas com o dobro da idade (Falguères et al., 1999FALGUÈRES, C. et al. Earliest humans in Europe: the age of TD6 Gran Dolina, Atapuerca, Spain. Journal of Human Evolution, v.37, p.343-52, 1999.). Diferentemente desse último, os fósseis de hominínios de Gran Dolina são poucos e muito fragmentados. Entre eles se destaca uma face parcialmente preservada, infelizmente pertencente a um adolescente (Bermúdez de Castro et al., 1997). Quase tudo que sabemos sobre a morfologia desse povo advém dessa face, ainda imatura, o que é muito arriscado. Apesar da precariedade do material, Bermúdez de Castro et al. (1997) descreveram, a partir dele, uma nova espécie para o final do Pleistoceno Inferior europeu, qual seja, o Homo antecessor.

Em nossa opinião, o mais razoável, por razões cronológicas, teria sido acomodar esse material no hipodígma do H. erectus, tornando-o assim o primeiro representante dessa espécie a ser encontrado no continente europeu. Outra opção, ainda dentro de certa razoabilidade, teria sido acomodá-lo no hipodígma do H. heidelbergensis, retrocedendo, assim, sua datação em 200 mil anos. Apesar dessas opções mais conservadoras, o grupo espanhol à frente das pesquisas na Serra de Atapuerca, optou, talvez por razões geopolíticas, pelo batismo de uma nova espécie. Tendo em vista a precariedade do material sobre o qual essa nova espécie foi descrita, há até hoje, grande dúvida sobre a existência de fato de uma nova espécie no final do Pleistoceno Inferior no norte da Europa (Neves; Bernardo, 2011NEVES, W. A.; BERNARDO, D. V. The first hominin of Europe: A multivariate exploratory analysis. Revista de Arqueologia, v.24, n.1, p.102-10, 2011.).

Não obstante essa resistência, o H. antecessor está hoje em dia absolutamente consagrado na literatura (para alguns exemplos, ver Berger et al., 2015BERGER, L. R. et al. Homo naledi, a new species of the genus Homo from the Dinaledi Chamber, South Africa. eLife 4:e09560, 2015.; Ni et al., 2021NI, X. et al. Massive cranium from Harbin in northeastern China establishes a new Middle Pleistocene human lineage. The Innovation, v.2, n.3, 2021.), apesar de não ter sido encontrado em nenhuma outra parte do Velho Mundo, nem mesmo em outro sítio na Europa!

Ocorre que, apesar da imaturidade biológica do espécime TD6, ele apresenta no trecho de face que sobrou uma região subnasal retraída e um esboço de fossa canina, marca registrada de nossa espécie. Por isso, os espanhóis, liderados por José Maria Bermúdez de Castro, têm feito uma pressão enorme para que o H. antecessor seja considerado o LCA (Bermúdez de Castro; Martinón-Torres, 2022), esquecendo-se de que a proposta não faz sentido nem do ponto de vista morfológico, nem do ponto de vista geográfico. Morfologicamente, não apresenta qualquer traço neandertal que pudesse relacioná-lo a esse grupo. Geograficamente está isolado num ponto remoto do norte da Europa Ocidental.

Os fósseis chineses

Uma outra grande complicação para se entender a diversidade do gênero Homo no Pleistoceno Médio são os poucos fósseis desse período encontrados na China, especialmente Dali e Jinniushan. O consenso de que os fósseis africanos e europeus do período podem ser perfeitamente classificados como H. rhodesiensis e H. heidelbergensis, respectivamente, não encontra eco no material chinês (ver Lee; Hudock, 2021LEE, S. H.; HUDOCK, A. Human Evolution in Asia: Taking Stock and Looking Forward. Annual Review of Anthropology, v.50, p.145-66, 2021. para uma revisão). A comunidade paleoantropológica chinesa resiste muito em adotar essa nomenclatura para seus fósseis, preferindo denominá-los de “archaic humans”, como já mencionamos. Evidentemente que essa é uma “não solução”, em termos formais. Aliás, os especialistas chineses, na maior parte das vezes, propõem “soluções” com grande viés geopolítico.

Por exemplo, os trabalhos de Wu (2004WU, X. On the origin of modern humans in China. Quaternary International, v.117, n.1, p.131-40, 2004.) e Wolpoff et al. (1984WOLPOFF, M. H.; WU, X.; THORNE, A. G. Modem Homo sapiens Origins: A General Theory of Hominid Evolution Involving the Fossil Evidence From East Asia. In: SMITH, F. H.; SPENCER, F. (Ed.) The Origins of Modern Humans: A World Survey of the Fossil Evidence. Alan R. Liss, New York, 1984.) insistem que houve na China toda uma evolução humana a partir do Pleistoceno Médio totalmente independente daquela havida no Ocidente, sendo, em si, um foco de origem da humanidade, retomando um modelo já enterrado sobre a origem do H. sapiens (Mounier; Lahr, 2016MOUNIER, A.; LAHR, M., M. Virtual ancestor reconstruction: Revealing the ancestor of modern humans and Neandertals. Journal of Human Evolution, v.91, p.57-72, 2016.) proposto por Wolpoff et al. (1994), denominado por eles de Modelo Multiregional. Como vimos, nossos resultados concordam apenas parcialmente com a posição dos chineses. De fato, as formas do Pleistoceno Médio da China parecem ter tido uma evolução própria, independente do que ocorreu na África e na Europa. Entretanto, nada em nossos resultados apontam na direção de que o H. daliensis deu origem a qualquer linhagem de H. sapiens. Como ocorreu na Europa, as formas arcaicas foram substituídas pelo humano moderno, gerado na África (ver discussão adiante).

Recentemente, Wu, Li, Ji admitiram que pode ter havido um maior fluxo gênico entre o Oriente e o Ocidente durante o Pleistoceno Médio do que se admitia até o momento. Por exemplo, o fóssil de Xuchang, datado em 130 mil anos, apresenta uma clara depressão suprainíaca no occipital (Li et al., 2017), um traço tipicamente neandertal. Nossos resultados parecem apontar também nesse sentido, já que em nossas análises, o crânio de Hualondong 6, recentemente descrito (Wu et al., 2019) mostra grandes afinidades morfológicas com os neandertais (Neves et al., s.d., submetido).

Voltando ao assunto, nada em nossas análises mostra qualquer possibilidade de que o Homo sapiens tenha surgido na China. Muito pelo contrário, os humanos modernos fósseis da China, da Europa e da África apresentam acentuada similaridade morfológica, falando a favor de uma origem única para nossa espécie, muito provavelmente a África, modelo esse denominado desde os anos 1980 de “Origem Única Recente” ou “Out of Africa” (Stringer, 2002STRINGER, G. Modern human origins: progress and prospects. Phil. Trans. R. Soc. Lond. B, v.357, p.563-79, 2002.). Vale ressaltar que esse modelo também tem sido confirmado por extensas pesquisas genéticas e paleogenéticas (Cann et al., 1987CANN, R.; STONEKING, M.; WILSON, A. Mitochondrial DNA and human evolution. Nature, v.325, p.31-6, 1987.; Ingman et al., 2000INGMAN, M. et al. Mitochondrial genome variation and the origin of modern humans. Nature, v.408, p.708-13, 2000.), embora, recentemente, alguns autores tenham sugerido que o local de origem dos humanos modernos pode ter sido o Oriente Médio (sudoeste da Ásia) e não a África (Bermúdez de Castro; Martinón-Torres, 2022), a nosso ver proposta assentada sobre evidências materiais muito precárias.

Já quanto aos neandertais na China, a situação é um pouco mais complexa. Até porque, estes estavam presentes no sul da Sibéria (Jacobs et al., 2019JACOBS, Z. et al. Timing of archaic hominin occupation of Denisova Cave in southern Siberia. Nature, v.565, p.594-9, 2019.) e não seria completamente impossível que tenham chegado àquele país. Como já dito anteriormente, o exemplar de Xuchang apresenta algumas características derivadas exclusivas de neandertais. Se isso não for causado por processos homoplásicos, pode indicar, de fato, um maior fluxo gênico entre o leste da Ásia e o oeste da Europa.

Recentemente também na China foi encontrado o fóssil de Hualongdong, datado em cerca de 300 mil anos e reportado por Wu et al. (2019WU, X.-J.; PEI, S.-W.; CAI, Y.-J. Archaic human remains from Hualongdong, China, and Middle Pleistocene human continuity and variation. Proceedings of the National Academy of Sciences, v.116, n.20, p.9820-4, 2019.). De acordo com os mesmos autores, esse fóssil confirmaria, localmente, uma transição entre arcaicos (leia-se H. heidelbergensis senso lato) e humanos modernos. Análises por nós conduzidas até o momento não parecem falar a favor dessa proposta. Nossos resultados, apesar de preliminares, mostram uma grande associação de Hualong 6 com os neandertais (Neves et al., s.d., no prelo), como já enfatizado. O problema é que o fóssil é de um indivíduo juvenil, cuja morfologia craniana não estava ainda totalmente estabelecida. Novos achados, como sempre, serão necessários para se confirmar a audaz ideia de que os neandertais, como tais, estiveram presentes na China, ou se algumas poucas características neandertalenses foram levadas para o Extremo Oriente por fluxo gênico de longa escala.

O material chinês tornou recentemente a questão do Pleistoceno Médio ainda mais complexa com a descrição de uma nova espécie naquela região. Trata-se do H. longi, descrito com base no fóssil de Harbin (Ji et al., 2021JI, Q. et al. Late Middle Pleistocene Harbin cranium represents a new Homo species. The Innovation, v.2, n.3, 2021.), datado de cerca de 140 mil anos. O crânio é muito grande, com uma capacidade cerebral de 1.420 cm³, face baixa, retraída, calota longa e baixa e torus supraorbital acentuado, associados a prognatismo alveolar e molares grandes. Nossos primeiros resultados (Neves et al., s.d., submetido) falam a favor de se descrever uma nova espécie com base em Harbin. Em várias de nossas análises, esse espécime se acha completamente apartada das outras espécies contemporâneas.

Os denisovanos

Em 2010 foram encontrados na Caverna de Denisova, localizada ao sul dos Montes Altai, na Sibéria, alguns fragmentos ósseos, especialmente uma falange, dos quais foi extraído DNA fóssil. Todos imaginavam que se trataria de alguma população neandertal que habitou a região.2 2 Fragmentos de fósseis de neandertais e de humanos modernos também foram encontrados no mesmo sítio (Jacobs et al., 2019). Entretanto, uma análise detida desse DNA mostrou que aqueles fragmentos não pertenciam nem a neandertais, nem a humanos modernos, mas sim a uma nova espécie (Reich et al., 2010REICH, D. et al. Genetic history of an archaic hominin group from Denisova Cave in Siberia. Nature, v.468, p.1053-60, 2010.). Como nenhuma espécie na paleoantropologia foi descrita até agora com base em DNA, mas sim na morfologia dos fósseis, predomina até hoje na literatura a nomenclatura “denisovanos”, uma denominação informal, portanto.

Após a extração e a caracterização do DNA dos denisovanos, mostrou-se que, na verdade, essa espécie teve grande distribuição geográfica, porque seus genes ainda são hoje encontrados em locais tão dispersos quanto o Tibete e a Australomelanésia (Reich et al., 2011REICH, D. et al. Denisova Admixture and the First Modern Human Dispersals into Southeast Asia and Oceania. The American Journal of Human Genetics, v.89, 2011.; Larena et al., 2021LARENA, M. et al. Philippine Ayta possess the highest level of Denisovan ancestry in the world. Current Biology, v.31, 2021.), em taxas que variam de 2% a 6% de nosso genoma. Infelizmente, até o momento, não temos a menor ideia de com quem se pareciam. Tendo em vista a extensão territorial desse deme é muito difícil explicar porque em mais de 150 anos de Paleoantropologia fósseis dessa “espécie” nunca foram encontrados. Alguns autores têm tirado velhos fósseis do armário, classificados como parte de outras espécies (principalmente H. heidelbergensis senso lato) e sugerido que se tratam, na verdade, de denisovanos (Gibbons, 2021GIBBONS, A. Dragon Man’ may be an elusive Denisovan. Science, v.373, n.6550, p.11-12, 2021.). Mas isso só poderá ser admitido se DNA for extraído desses fósseis e comparado ao DNA da Caverna de Denisova. Até agora isso não ocorreu.

Alguns fósseis encontrados mais recentemente na China têm sido propostos como parte do hipodígma dos denisovanos. Esse é o caso da mandíbula de Xiahe, datada de cerca de 160 mil anos (Chen et al., 2019CHEN, F. et al. A late Middle Pleistocene Denisovan mandible from the Tibetan Plateau. Nature, v.569, 2019.), da mandíbula de Penghu, datada entre 200 e 400 mil anos (Bailey et al., 2019BAILEY, S. E.; HUBLIN, J.-J.; ANTÓN, S. C. Rare dental trait provides morphological evidence of archaic introgression in Asian fossil record. Proceedings of the National Academy of Sciences, v.116, n.30, 2019.), e o crânio de Xuchang, datado de 120 mil anos (Li et al., 2017LI, Z.-Y. et al. Late Pleistocene archaic human crania from Xuchang, China. Science, v.355, n.6328, p.969-72, 2017.), aqui já comentado. No caso de Xiahe, proteínas extraídas do fóssil se mostraram muito similares àquelas extraídas dos fragmentos da Caverna de Denisova. Se de fato, Xiahe se tratar de um denisovano, já sabemos, pelo menos, como era a morfologia mandibular dessa gente, mas a extração de DNA desse fóssil é de suma importância para de fato se bater o martelo sobre sua identidade como denisovano.

O fato é que, do ponto de vista molecular, os denisovanos eram mais similares aos neandertais do que ao H. sapiens. Ou seja, a partir de um LCA deve ter saído, por um lado, o humano moderno e por outro um tronco do qual saíram neandertais e denisovanos, tornando a questão do LCA (agora de sapiens, neandertais e denisovanos) uma questão ainda mais complexa.

Considerações finais

Esperamos ter demonstrado que compreender bem o que ocorreu em termos evolutivos com os hominínios do Pleistoceno Médio é fundamental para entender os momentos finais de nossa evolução. Esperamos, também, ter demonstrado que a amostra fossilífera do período é muito pobre, tanto na África, quanto na Europa e na Ásia. Complica, também, a situação o fato de pouco sabermos sobre o final do Pleistoceno Inferior e o início do Médio, sobretudo na Europa.

Apesar desses senões, é possível propor um cenário sintético tentativo sobre o que ocorreu nos momentos finais de nossa evolução: a partir do Homo erectus, entre 800 e 600 mil anos, pelo menos três linhagens distintas diferenciaram-se no Velho Mundo: o Homo rhodesiensis, na África, o Homo heidelbergensis na Europa e o Homo daliensis, na Ásia. As três espécies mostram várias características convergentes, que devem ter evoluído em paralelo de forma independente (homoplasias): crânios grandes, massivos, baixos e largos, associados a um tóros supra-orbital extremamente robusto e a uma capacidade craniana por volta de 1.200 cm3.

É altamente provável que os humanos modernos (Homo sapiens) tenham surgido na África, por volta de 250 mil anos atrás a partir do Homo rhodesiensis, ao passo que os neandertais tenham surgido na Europa, também por volta da mesma data, vindos do Homo heidelbergensis. As formas do Pleistoceno Médio da Ásia parecem ter sido um cul-de-sac. Houve um grande fluxo gênico durante o período entre o Ocidente e o Oriente, fluxo esse até o momento negligenciado.

Por volta de 200 mil anos, o Homo sapiens deixou a África e se espalhou por todo o restante do Velho Mundo, substituindo as formas arcaicas que foi encontrando pelo caminho. No Oriente essa substituição parece ter ocorrido por volta de 100 mil anos, no Oriente Médio por volta de 170 mil anos, ao passo que na Europa, por volta de 55 mil anos. Durante a expansão, os humanos modernos trocaram genes com as formas arcaicas que substituiu, sobretudo com os neandertais e os denisovanos.

Essa é a melhor formulação histórica que podemos fazer para os últimos 500 mil anos de evolução hominínia, dado o que há disponível em termos fossilíferos para o período. Parece simples, mas como esperamos ter demonstrado ao longo do texto, ela está longe de ser consensual. Novos fósseis e datações mais acuradas poderão influenciar grandemente esse quadro, mas tudo na paleoantropologia toma tempo. Muito tempo! Mas a descoberta de um novo fóssil bem contextualizado, pode mudar completamente a narrativa.

Referências

  • ARSUAGA, J. L. et al. Neandertal roots: Cranial and chronological evidence from Sima de los Huesos. Science, v.344, n.6190, p.1358-63, 2014.
  • BAILEY, S. E.; HUBLIN, J.-J.; ANTÓN, S. C. Rare dental trait provides morphological evidence of archaic introgression in Asian fossil record. Proceedings of the National Academy of Sciences, v.116, n.30, 2019.
  • BERGER, L. R. et al. Homo naledi, a new species of the genus Homo from the Dinaledi Chamber, South Africa. eLife 4:e09560, 2015.
  • BERMÚDEZ DE CASTRO, J. M.; MARTINÓN-TORRES, M. The origin of the Homo sapiens lineage: When and where? Quaternary International, v.634, p.1-13, 2022.
  • BERMÚDEZ DE CASTRO, J. M. et al. A Hominid from the Lower Pleistocene of Atapuerca, Spain: Possible Ancestor to Neandertals and Modern Humans. Science, v.276, n.5317, p.1392-5, 1997.
  • BRUNET, M. et al. A new hominid from the Upper Miocene of Chad, Central Africa. Nature, v.418, p.145-51, 2002.
  • CANN, R.; STONEKING, M.; WILSON, A. Mitochondrial DNA and human evolution. Nature, v.325, p.31-6, 1987.
  • CHEN, F. et al. A late Middle Pleistocene Denisovan mandible from the Tibetan Plateau. Nature, v.569, 2019.
  • COHEN, K. M. et al. The ICS International chronostratigraphic Chart. Episodes 36: 199-204, 2013; atualizada.
  • DAVER, G. et al. Postcranial evidence of late Miocene hominin bipedalism in Chad. Nature, v.609, 2022.
  • FALGUÈRES, C. et al. Earliest humans in Europe: the age of TD6 Gran Dolina, Atapuerca, Spain. Journal of Human Evolution, v.37, p.343-52, 1999.
  • GIBBONS, A. Dragon Man’ may be an elusive Denisovan. Science, v.373, n.6550, p.11-12, 2021.
  • GONZÁLEZ-JOSÉ, R. et al. Cladistic analysis of continuous modularized traits provides phylogenetic signals in Homo evolution. Nature, v.453, 2008.
  • GROVES, C. P. A Theory of Human and Primate Evolution. Oxford: Clarendon, 1989.
  • GUY, F. et al. Morphological affinities of the Sahelanthropus tchadensis (Late Miocene hominid from Chad) cranium. PNAS, v.102, 2005.
  • HAILE-SELASSIE, Y. Late Miocene hominids from the Middle Awash, Ethiopia Nature, v.412, 2001.
  • HANEGRAEF, H. et al. Dentine morphology of Atapuerca-Sima de los Huesos lower molars: Evolutionary implications through three-dimensional geometric morphometric analysis. Am. J. Phys. Anthropol., v.166, p.276-95, 2018.
  • HAWKS, J.; DE RUITER, D. J.; BERGER, L. R. Comment on “Early Homo at 2.8 Ma from Ledi-Geraru, Afar, Ethiopia”. Science, v.348, 2015.
  • HERRIES, A. I. R. et al. Contemporaneity of Australopithecus, Paranthropus, and early Homo erectus in South Africa. Science, v.368, 2020.
  • HOWELL, F. C. Paleo-Demes, Species Clades, and Extinctions in the Pleistocene Hominin Record. Journal of Anthropological Research, v.55, n.2, p.191-243, 1999.
  • HUBLIN, J.-J. et al. New fossils from Jebel Irhoud, Morocco and the pan-African origin of Homo sapiens. Nature, v.546, p.289-92, 2017.
  • HUGHES, A. R.; TOBIAS, P. V. A fossil skull probably of the genus Homo from Sterkfontein, Transvaal. Nature, v.265, n.5592, p.310-12, 1977.
  • INGMAN, M. et al. Mitochondrial genome variation and the origin of modern humans. Nature, v.408, p.708-13, 2000.
  • JACOBS, Z. et al. Timing of archaic hominin occupation of Denisova Cave in southern Siberia. Nature, v.565, p.594-9, 2019.
  • JI, Q. et al. Late Middle Pleistocene Harbin cranium represents a new Homo species. The Innovation, v.2, n.3, 2021.
  • JOHANSON, D. C.; WHITE, T. D.; COPPENS, Y. A new species of the genus Australopithecus (Primates: Hominidae) from the Pliocene of eastern Africa. Kirtlandia, v.28, p.1-14, 1978.
  • KIMBEL, W. H. et al. Late Pliocene Homo and Oldowan Tools from the Hadar Formation (Kada Hadar Member), Ethiopia. Journal of Human Evolution, v.31, n.6, p.549-61, 1996.
  • LARENA, M. et al. Philippine Ayta possess the highest level of Denisovan ancestry in the world. Current Biology, v.31, 2021.
  • LEAKEY, L. S. B.; TOBIAS, P. V.; NAPIER, J. R. A New Species of The Genus Homo From Olduvai Gorge. Nature, v.202, n.4927, p.7-9, 1964.
  • LEAKEY, M. G. et al. New four-million-year-old hominid species from Kanapoi and Allia Bay, Kenya. Nature, v.376, p.565-71, 1995.
  • LEAKEY, M. G. et al. New hominin genus from eastern Africa shows diverse middle Pliocene lineages. Nature, v.410, n.6827, p.433-40, 2001.
  • LEE, S. H.; HUDOCK, A. Human Evolution in Asia: Taking Stock and Looking Forward. Annual Review of Anthropology, v.50, p.145-66, 2021.
  • LI, Z.-Y. et al. Late Pleistocene archaic human crania from Xuchang, China. Science, v.355, n.6328, p.969-72, 2017.
  • MACCHIARELLI, R. et al. Nature and relationships of Sahelanthropus tchadensis. Journal of Human Evolution, v.149, 2020.
  • MEYER, M. et al. Nuclear DNA sequences from the Middle Pleistocene Sima de los Huesos hominins. Nature, v.531, p.504-7, 2016.
  • MOUNIER, A.; LAHR, M., M. Virtual ancestor reconstruction: Revealing the ancestor of modern humans and Neandertals. Journal of Human Evolution, v.91, p.57-72, 2016.
  • NEVES, W. A.; BERNARDO, D. V. The first hominin of Europe: A multivariate exploratory analysis. Revista de Arqueologia, v.24, n.1, p.102-10, 2011.
  • NEVES, W. et al. The taxonomic status of Sahelanthropus tchadensis as seen from its cranial pattern as a whole: a multivariate analysis. Annals of the Brazilian Academy of Sciences. s.d. (no prelo)
  • NEVES, W. et al. The latest steps of human evolution: what the hard evidence has to say about it? Quaternary Environments and Humans. s.d. (submetido).
  • NEVES, W. et al. Ledi-Geraru strikes again: morphological affinities of the LD 350-1 mandible with early Homo. Annals of the Brazilian Academy of Sciences, v.95, p.e 20230032, 2023.
  • NI, X. et al. Massive cranium from Harbin in northeastern China establishes a new Middle Pleistocene human lineage. The Innovation, v.2, n.3, 2021.
  • REICH, D. et al. Genetic history of an archaic hominin group from Denisova Cave in Siberia. Nature, v.468, p.1053-60, 2010.
  • REICH, D. et al. Denisova Admixture and the First Modern Human Dispersals into Southeast Asia and Oceania. The American Journal of Human Genetics, v.89, 2011.
  • RIGHTMIRE, G. P. Patterns of hominid evolution and dispersal in the Middle Pleistocene. Quaternary International, v.75, p.77-84, 2001.
  • _______. Homo in the MiddlePleistocene: hypodigms, variation, and species recognition. Evolutionary Anthropology, v.17, p.8-21, 2008.
  • ROKSANDIC, M. et al. Resolving the “muddle in the middle”: The case for Homo bodoensis sp. nov. Evolutionary Anthropology, v.31, p.20-9, 2022.
  • SCARDIA, G. et al. Chronologic constraints on hominin dispersal outside Africa since 2.48 Ma from the Zarqa Valley, Jordan. Quaternary Science Reviews, v.219, 2019.
  • SCHOETENSACK, O. Der Unterkiefer des Homo heidelbergensis aus dem Sanden von Mauer bei Heidelberg: ein Beitrag zur Paläontologie des Menschen. Leipzig: Wilhelm Engelmann, 1908.
  • SENUT, B. et al. First hominid from the Miocene (Lukeino Formation, Kenya). Comptes Rendus de l’Académie Des Sciences, v.332, n.2, 2001.
  • STRINGER, G. Modern human origins: progress and prospects. Phil. Trans. R. Soc. Lond. B, v.357, p.563-79, 2002.
  • _______. The status of Homo heidelbergensis (Schoetensack 1908). Evolutionary Anthropology, v.21, n.3, p.101-7, 2012.
  • VIDAL, C. M. et al. Age of the oldest known Homo sapiens from eastern Africa. Nature, v.601, p.579-83, 2022.
  • VILLMOARE, B. et al. Early Homo at 2.8 Ma from Ledi-Geraru, Afar, Ethiopia. Science, v.347, 2015.
  • WHITE, T. D. et al. Ardipithecus ramidus and the Paleobiology of Early Hominids. Science, v.326, n.5949, p.75-86, 2009.
  • WHITE, T. D.; SUWA, G.; ASFAW, B. Australopithecus ramidus, a new species of early hominid from Aramis, Ethiopia. Nature, v.371, n.6495, p.306-12, 1994.
  • WOLPOFF, M. H. et al. Multiregional Evolution: A World-Wide Source for Modern Human Populations. In: NITECKI, M. H. (Ed.) Origins of Anatomically Modern Humans. Interdisciplinary Contributions to Archaeology. Boston, MA: Springer, 1994.
  • WOLPOFF, M. H.; WU, X.; THORNE, A. G. Modem Homo sapiens Origins: A General Theory of Hominid Evolution Involving the Fossil Evidence From East Asia. In: SMITH, F. H.; SPENCER, F. (Ed.) The Origins of Modern Humans: A World Survey of the Fossil Evidence. Alan R. Liss, New York, 1984.
  • WOOD, B.; COLLARD, M. The Human Genus. Science, v.284, 1999.
  • WU, X.-J.; PEI, S.-W.; CAI, Y.-J. Archaic human remains from Hualongdong, China, and Middle Pleistocene human continuity and variation. Proceedings of the National Academy of Sciences, v.116, n.20, p.9820-4, 2019.
  • WU, X. On the origin of modern humans in China. Quaternary International, v.117, n.1, p.131-40, 2004.
  • ZHU, Z. et al. Hominin occupation of the Chinese Loess Plateau since about 2.1 million years ago. Nature, v.559, 2018.
  • ZOLLIKOFER, C. et al. Virtual cranial reconstruction of Sahelanthropus tchadensis. Nature, v.434, 2005.

Notas

  • 1
    Este artigo é dedicado a Luís Beethoven Piló, in memoriam, por sua grande contribuição aos estudos dos primeiros americanos.
  • 2
    Fragmentos de fósseis de neandertais e de humanos modernos também foram encontrados no mesmo sítio (Jacobs et al., 2019JACOBS, Z. et al. Timing of archaic hominin occupation of Denisova Cave in southern Siberia. Nature, v.565, p.594-9, 2019.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2023
  • Aceito
    26 Maio 2023
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br