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Tempo e romance contemporâneo para além do realismo traumático

Time and contemporary novel beyond traumatic realism

RESUMO

Esse ensaio tenciona analisar romances contemporâneos que lidam com a memória fora do referencial teórico do denominado realismo traumático. Início tratando de uma das versões mais destacáveis do trauma dentro da produção contemporânea em artes, a relação entre realismo traumático e arquivo. Depois, lido com o tema da nostalgia em dois romances: o Nostalgia de Mircea Cărtărescu e o The Return de Hisham Matar. Por fim, enfatizo a relação entre temporalidade e literatura contemporânea.

Palavras-chave:
temporalidade; realismo traumático; nostalgia; Mircea Cărtărescu; Hisham Matar

ABSTRACT

The essay intends to analyze contemporary novels that deal with memory outside the theoretical framework of the so-called traumatic realism. The paper begins with an outstanding version of trauma studies: the relationship between traumatic realism and the archive. The assumption is to study the theme of nostalgia on two novels: Mircea Cărtărescu’s Nostalgia and Hisham Matar’s The Return. Finally, the paper emphasizes the relationship between contemporary literature, affects and temporality.

Keywords:
temporality; traumatic realism; Nostalgia; Mircea Cărtărescu; Hisham Matar

Esse ensaio tanto apresenta um estudo teórico quanto também se dedica a analisar algumas prosas de ficção recentes. A proposta é estudar obras que tencionam lidar com o passado fora do enquadramento do realismo traumático. Não se trata de uma análise dos temas da memória coletiva ou mobilizar as referências teóricas dos estudos do trauma, e sim de estudar prosas de ficção que investem no temário do tempo ao explicitarem a complexidade do presente distanciando-se da recorrência ao acontecimento traumático. Há entre elas um questionamento acerca dos recursos que utilizamos para lembrar e esquecer e também todas negam a concepção de escrita enquanto resistência ou a denúncia de caráter jornalístico da violência. Argumento que essas prosas escapam do uso recorrente da repetição, mesmo que reconheçam a perda e a morte como centrais para a construção da trajetória e o enredo das personagens. Tenciono analisar a montagem dos enredos, a construção das personagens e as escolhas retóricas envolvidas em um esforço de fazer uma leitura em conjunto das prosas aqui selecionadas. Considero que elas levantam uma indagação acerca da valorização da nostalgia para destacar a mistura entre as categorias temporais de passado, presente e futuro.

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Em um ensaio influente, denominado “An archival impulse”, Hal Foster se propôs a examinar o que denominou como uma emergência na arte contemporânea associada ao arquivo e seu inventário. Ele analisa três artistas contemporâneos que utilizam os arquivos: Thomas Hirschhorn, Sam Durant e Tacita Dean. Antes de partir para a análise de cada artista, ele inicia o ensaio tecendo considerações acerca do uso da arte arquivística. Uma das funções principais da arte arquivística é a “tornar a informação histórica, geralmente perdida ou deslocada, fisicamente presente. Com esse fim [artistas arquivistas] produzem com imagens documentais, objetos, em um formato de instalação”. (FOSTER, 2004FOSTER, Hal. An archival impulse. MIT Press, n. 110, p. 3-22, 2004. , p. 4) Enquanto alguns se utilizam da cultura pop, outros artistas utilizam-se de referências obscuras. Como essas fontes são encontradas, lampejos de originalidade tornam-se importantes e a ideia de uma arte arquivística pode ser aproximada do conceito de pós-produção, mesmo que não sejam absolutamente iguais. Em nossos tempos de internet e sua disponibilização de dados que tende ao infinito, “... a informação muitas das vezes aparece como um ready-made virtual... [isso] pode implicar que o meio ideal da arte arquivística é o mega-arquivo da internet”. Foster sugere que, embora a arte tenha incorporado muito do vocabulário da era digital, como “inventário”, “compartilhamento” e “interatividade”, a arte arquivística continua sendo uma vocação física para a “interação humana e não para reprocessamento maquínico”.

A arte arquivística também possui similaridades aos museus, especialmente porque alguns artistas lidam com o conceito de coleções. Contudo, não se pode dizer que seriam iguais, pois esses artistas usam um conceito diferente de diretrizes frente aos museus. Foster é enfático em afirmar que se a arte arquivística é distinta da arte que se utiliza em demasia de bancos de dados, ela também diverge da arte voltada aos museus. O artista como arquivista se aproxima do artista como curador, especialmente por também lidar com uma coleção. Eles não estão, contudo, tão “preocupados com as críticas da totalidade representacional e a integridade institucional: que o museu foi arruinado como um sistema coerente na esfera pública é geralmente assumido... e alguns artistas sugerem outros categorias de ordenação - com ou sem o museu”. (FOSTER, 2004FOSTER, Hal. An archival impulse. MIT Press, n. 110, p. 3-22, 2004. , p. 5) A arte arquivística é, por vezes, mais “institucional” do que “destrutiva”, mais “legislativa” do que “transgressiva”, afirma Hal Foster. Tudo isso reforça o último atributo dessa arte, pois “não se baseia apenas em arquivos informais, mas também os produz e o faz de uma forma que destaca a natureza de todos os materiais de arquivo não somente encontrados, mas construídos; factuais, mas também fictícios; públicos, mas também privados”. (FOSTER, 2004FOSTER, Hal. An archival impulse. MIT Press, n. 110, p. 3-22, 2004. , p. 5) A arte arquivística utiliza coleções públicas ou privadas para criar arquivos, colocando as informações em uma nova forma de apresentação a ser interpretada pelo espectador.

Apesar de estarmos iniciando uma nova década, a arte arquivística ainda está disseminada na cultura, tanto em termos práticos quanto teóricos. No caso do espaço nacional, uma recepção sugestiva do ensaio de Hal Foster é o texto “Impulso Historiográfico” de Giselle Beiguelman. Em um texto híbrido de trabalho artístico e ensaístico, ela investe na paráfrase do ensaio de Foster e o vai debatendo linha a linha, seguindo a mesma estrutura para tratar do que ela considera como o impulso historiográfico na arte contemporânea, especialmente ao analisar três autores brasileiros. Assim como Foster, situa na década de 1970 as iniciais aparições dessa arte que também se utiliza da dispersão de informações que problematizam os circuitos institucionais e a monumentalização da história. Esse ensaio, contudo, enfatiza que, a partir dos anos 2000, com “a popularização da Internet e a digitalização dos processos de produção e distribuição de imagens” (BEIGUELMAN, 2018BEIGUELMAN, Giselle. O impulso historiográfico. Revista Select, n. 40, p. 178- 191, 2019., p. 1) essa prática se tornou cada vez mais recorrente. A autora concorda com as premissas de Foster e percebe semelhanças entre os artistas arquivistas e os artistas historiadores, já que ambos estão preocupados com a organização sistêmica das informações e sua apresentação ao público. Afirma, contudo, que há diferenças sensíveis entre ambos, pois os artistas historiadores não estão preocupados com a criação das lógicas internas entre os dados, ou com a invenção de mundos baseados em arranjos simbólicos de objetos e textos.

Esse aspecto de diferenciação é muito mais do que um mero detalhe para a autora. Pelo contrário, ela enfatiza que essa distinção é capital, visto que os artistas historiadores possuem um mote: “a demanda por uma outra forma de conhecimento do presente pelo acesso ao passado” (BEIGUELMAN, 2018BEIGUELMAN, Giselle. O impulso historiográfico. Revista Select, n. 40, p. 178- 191, 2019., p. 3). O caminho da autora para explicar essa situação, “um impulso historiográfico marcante na produção que vem do Sul Global” (BEIGUELMAN, 2018BEIGUELMAN, Giselle. O impulso historiográfico. Revista Select, n. 40, p. 178- 191, 2019., p. 3), que propiciou o aparecimento de um novo tipo de prática são “as lutas pela recuperação do direito à memória”. Sendo mais específica, a autora destaca que ainda é necessário lidar com um passado de “interdições caladas durante décadas nos porões das ditaduras” (BEIGUELMAN, 2018BEIGUELMAN, Giselle. O impulso historiográfico. Revista Select, n. 40, p. 178- 191, 2019., p. 3), e as “disputas de narrativas, memórias traumáticas e heranças da brutalidade do colonialismo”. (BEIGUELMAN, 2018BEIGUELMAN, Giselle. O impulso historiográfico. Revista Select, n. 40, p. 178- 191, 2019., p. 4) Assim como Foster, ela também escolhe três artistas para desenvolver sua análise: Bruno Moreschi, Bianca Turner e Jaime Lauriano. Beiguelman valoriza, assim como Hal Foster, a chegada dessa arte; ambos consideram que há uma orientação política nessas práticas. Foster a saúda pela crítica que faz aos espaços museais e ao campo da arte em que quase tudo valia, já Beiguelman reafirma os bons ventos que trazem os artistas historiadores, pois possibilitam uma expressão política mais vigorosa ante a espaços nos quais pareciam distantes da efervescência brasileira, pelo menos desde 2013. O exemplo por ela utilizado é a Bienal de São Paulo de 2018 e sua escuta surda ao que estava acontecendo nas ruas, e na internet, em todo o Brasil.

Assim como Foster, ela também escolhe três artistas para desenvolver sua análise: Bruno Moreschi, Bianca Turner e Jaime Lauriano. Beiguelman valoriza, assim como Hal Foster, a chegada dessa arte; ambos destacam a orientação política dessas práticas. Foster a saúda pela crítica que faz aos espaços museais e ao campo da arte em que quase tudo valia, já Beiguelman reafirma os bons ventos que trazem os artistas historiadores, pois possibilitam uma expressão política mais vigorosa ante a espaços nos quais pareciam distantes da efervescência brasileira, pelo menos desde 2013. O exemplo por ela utilizado é a Bienal de São Paulo de 2018 e sua escuta surda ao que estava acontecendo nas ruas, e na internet, em todo o Brasil.

Apesar das diferenças, tanto Hal Foster quanto Gisele Beiguelman enfatizam a pluralidade de materiais da arte arquivística e dos artistas historiadores. Essa perspectiva permite destacar a ênfase dada por ambos em aspectos comuns, como, por exemplo, a questão da montagem. A pluralidade de materiais, e as diversas estratégias utilizadas para os manter coligados, enfatiza o procedimento da montagem que se desdobra também para a pluralidade de tempos que a obra-de-arte carrega consigo. Esse procedimento não é um detalhe qualquer; pelo contrário, ele está no centro do debate visto que toda a teorização de Hal Foster, especialmente em seu livro O retorno do real (2014), a produção contemporânea de arte não manifesta a falência do modernismo, e sim a revalorização de suas premissas fundamentais. Esse é um caminho seguido pelo autor desde seus primeiros livros, quando argumentava que o pós-modernismo revigora o espírito questionador do modernismo, o que nos permite afirmar que grande parte do projeto de história da arte de Foster é o investimento permanente no modernismo do qual, especialmente no impulso arquivístico, nos permite destacar a montagem como procedimento e expressão da pluralidade de tempos. Essa pluralidade também enfatiza a instabilidade daquilo que nomeamos como presente à presença do passado dada no instante em que a obra está montada e se encontra ante o espectador, como o ensaio de Beiguelman tanto destaca.

Os dois ensaios que valorizam a pesquisa documental também salientaram o tempo traumático enquanto um dístico dos artistas estudados. Por mais que Beiguelman destaque que o aparecimento dos artistas historiadores teve prioridade no Sul Global e que as disputas pela memória são uma singularidade desses artistas, o ensaio de Hal Foster também lida com a questão da memória, especialmente utilizando o conceito de trauma. Tudo isso pode ser percebido especialmente pelo modo como em certo caminho para o fim de seus ensaios ambos lidam com a questão da memória traumática e destacam a obra de W. G. Sebald. Mesmo que não sejam críticos literários, ou até mesmo teóricos da literatura, os dois concordam que a obra de W. G. Sebald de certo modo encontra acolhida em seus ensaios e proposições teóricas. Sebald parece ser o representante da arte que utiliza a investigação e a pesquisa documental, o que a leva a ser criticada e abraçada por ambos. Mesmo que seja mais mencionado do que tenha efetivamente sofrido apreciação crítica, a obra do autor alemão radicado na Inglaterra é uma espécie de horizonte no qual se movem os dois ensaios, especialmente quando enfatizam que ele escreve lidando com a memória traumática.

Esse é o ponto que esse ensaio gostaria continuar doravante: trato de incorporar algumas questões do ensaio de Hal Foster e Giselle Beiguelman sem ter necessariamente de tratar da memória traumática. Tenciono estudar algumas manifestações artísticas que busquem outros modos de manifestar o tempo sem ser por meio dos referenciais teóricos da memória traumática. Valorizo os dois ensaios como sugestivos e ampliadores de um debate produtivo para obras de artes nascentes desde o fim do século XX, e que possuíram uma maior publicação nas últimas décadas, porém escapo da relação com a memória traumática. Espero que o deslocamento desse ponto permita mostrar outros ângulos e possibilidades de reflexão no que concerne à temporalidade tanto enquanto fruto da montagem quanto também da discussão acerca do que é o presente e sua instabilidade constitutiva enquanto categoria temporal. Em O retorno do real, Hal Foster propõe uma leitura de Andy Warhol na qual ocorre a associação com o “realismo traumático”, uma noção heurística (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 224 p., p. 125). Conforme aprofunda, a construção estética desse realismo se dá a partir do “sujeito em choque” assumindo a natureza do choque e se perguntando qual o motivo desse “fascínio pelo trauma, essa inveja da abjeção?” (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 224 p., p. 157) Ele explicita a nossa tendência em “redefinir a experiência, individual e histórica, em termos do trauma”. (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 224 p., p. 158)

Esse argumento nos leva à questão central de que “o discurso do trauma dá a continuidade à crítica pós-estruturalista do sujeito” (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 224 p., 157). E de que, na cultura popular, o trauma é tratado como o acontecimento que “assegura o sujeito, e nesse registro psicológico o sujeito, embora perturbado, retorna como testemunha, atestador, sobrevivente”. (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 224 p., p. 158). Pensando em termos da tradição do romance, a obra de W. G. Sebald se coloca nesse registro, conforme diversos críticos destacam, como, por exemplo, J.J. Long em seu W. G. Sebald. Image, Archive, Modernity (2007LONG, J.J. W. G. Sebald: image, archive, modernity. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007. 224 p.). Não apenas nos romances de Sebald. Poderíamos também mencionar Thomas Bernhard, em seu livro Extinção publicado em 1986 (BERNHARD, 2000BERNHARD, Thomas. A Extinção. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 480 p.), escrito como um monólogo ininterrupto do eu narrante no qual todas as outras vozes estão submetidas ao princípio ordenador de sua voz. Murau, o protagonista, após um acontecimento disruptivo com a família, inicia um balanço memorial da sua história familiar em íntima relação com os acontecimentos históricos do século XX. Ele desenvolve uma configuração antagônica da identidade, parte da dissociação entre sujeito e mundo, com uma relação toda ela fundada no “horror”. A presença do trauma e do testemunho aqui também se manifesta por meio da ênfase de um passado que não pode ser ultrapassado nem acessado de outro modo do que pelos eventos ocorridos de destruição planetária, especialmente enquanto um modo de negar qualquer relação nostálgica com a família. Algumas prosas de ficção latino-americanas contemporâneas lidam com temário semelhante como História natural da ditadura (2007COELHO, Teixeira. História natural da ditadura. São Paulo: Iluminuras, 2006. 306 p.) de Teixeira Coelho e O material humano (2011REY ROSA, Rodrigo. O material humano. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Benvirá, 2011. 192 p.) de Rodrigo Rey Rosa, por exemplo.

Talvez um caminho para propor um percurso com outros modos de elaborar o passado e lidar com a memória seja ler alguns romances que incorporaram a pesquisa e o trabalho com a memória. Opto por atentar para alguns escritores que apostaram menos no eu narrante e evitaram a narrativa do realismo traumático, conforme o argumento de Hal Foster, sendo que permaneceram interessados em maneiras de acessar o passado. Estarei, então, me debruçando em escritos que reconhecem a fratura entre sujeito e mundo, mas não enfatizam a derrota do primeiro pelo segundo e buscam certo encantamento pela vida cotidiana. Reconhecem a perda e o desvão de suas vidas e de suas famílias, mas não se pautam pela abjeção e nem mesmo pela tendência a redefinir a experiência, individual e histórica, como trauma. Não é minha intenção aqui analisar o vínculo entre a análise desconstrutiva, o trauma e o renascimento do autor que essas discussões poderiam nos levar; nem mesmo discutir política da identidade. Se de algum modo tocar nesses temas, será lateralmente, sendo que o último não será abordado. Escolho a questão da temporalidade, o problema da apresentação histórica, especialmente a relação entre narrativa, figuras literárias e temporalidade, a partir da ênfase na memória proposta por alguns romances aqui selecionados. Enfatizarei a nostalgia, e os impasses a ela vinculados, para tratar do tema da narrativa e do tempo.

No espaço latino-americano temos alguns exemplos de romances e filmes que tentaram figurar os impasses das categorias temporais passado, presente e futuro sem se utilizarem do realismo traumático. Um deles é o livro do chileno Alejandro Zambra Formas de volver a casa (2011ZAMBRA, Alejandro. Formas de volver a casa. Barcelona: Anagrama, 2011. 164 p.), no qual a infância ganha destaque como uma possibilidade de acesso ao passado a qual escapa da representação histórica que seleciona eventos violentos e a figuração da tortura. O trabalho de pesquisa é menos explícito, sendo que a atenção ao cotidiano parece ser a distinção peculiar do escrito que possui como um dos seus motes a relação geracional entre pais e filhos. Outra possibilidade é o filme do brasileiro Cao Hamburger O ano em que meus pais saíram de férias (2006O ANO em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburger. Produção: Lereby Produções; Miravista Pictures. Rio de Janeiro. 2009. (110 min.), son., color.), em que o enredo opta pelo drama ao contar a história de Mauro, então com doze anos, deixado com o avô após a saída inesperada de férias de seus pais. O avô, que morre no mesmo dia em que Mauro chega a São Paulo, faz com que ele tenha que ficar com Shlomo, um velho judeu solitário que é seu vizinho. A relação entre pais e filhos é figurada por meio do embate geracional entre uma criança e um senhor mais velho próximo de seu avô. Alguns outros investimentos poderiam ter sido citados, mas o que me parece relevante é a possibilidade de que a mistura entre as categorias passado, presente e futuro sejam destacados pelos autores. Há o escape da narrativa do testemunho, assim como a opção por evitar a exposição de provas de pesquisa em arquivos.

Há em ambos, contudo, uma singeleza, e talvez até uma aparição simplória, da nostalgia, como se fosse apenas a restauração do passado ou uma autorreflexão simplória e imobilizadora. Outra obra de arte que lida com o evento da ditadura militar e escapa do realismo traumático é o ensaio fílmico Nostalgia de la luz (2010NOSTALGIA DE LA LUZ. Direção: Patricio Guzmán. Produção: Atacama Productions, Blinker Filmproduction, Westdeutscher Rundfunk, Cronomedia. França. 2010. (90 min.), son., color.) de Patricio Guzmán. O personagem principal parece ser o deserto do Atacama, no Chile, em que astrônomos se reúnem para observar as estrelas, arqueólogos pesquisam vestígios de culturas pré-colombianas e mulheres procuram os restos mortais de seus familiares desaparecidos durante a ditadura militar. O entrelaçamento de tempos ocorre pela permanente indagação acerca do que é o presente, expondo a complexidade inerente dessa categoria temporal e sua abertura para o tempo por vir, assim como múltiplas possibilidades de acesso ao tempo passado. A luz surge como indício e metáfora da complexidade do tempo, assim como enfatiza como cada um dos múltiplos personagens do ensaio fílmico estão sujeitos à indagação permanente acerca do tempo. A nostalgia figura aqui muito mais como a expressão da fragilidade de cada categoria temporal, seja ela presente, passado e futuro frente a qualquer possível isolamento ante a todas as outras existentes, utilizando-se de indagações provenientes de campos aparentemente distantes: a física quântica e a pesquisa histórica.

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Em um ensaio interessante, Svetlana Boym (2001BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books, 2001. 432 p.) se dedica a pensar a questão da nostalgia em fins do século XX e princípios do XXI. O livro dedica-se à mudança da nostalgia que, em 1688, era uma doença curável por meio do uso de ópio e sanguessugas até o momento em que ela se tornou parte do tratamento para aqueles que se sentem aflitos ou parte do diagnóstico médico daqueles que sentem aflições por estarem deslocados do local de nascimento, passando pelos momentos em que a nostalgia também se tornou uma cultura planetária. A partir do foco em autores do centro europeu e do Leste europeu, ela trabalha o vínculo entre exílio e nostalgia, especialmente lidando com a proposta de que a nostalgia não é apenas um sentimento degenerado, mas também possui uma pluralidade semântica inerente a ela. A complexificação do conceito de nostalgia, proposto por Svetlana Boym, está unida às suas análises de Nabokov, Joseph Brodsky e Ilya Kabakov. Destaca que esses autores russos utilizaram a nostalgia sem que ela os aprisionassem aos seus desejos mais imediatos, especialmente seus pensamentos acerca de como seria o retorno para casa. A autora cria alguns conceitos derivados da nostalgia que enfatizam duas dimensões da mesma: a restauração e a reflexão.

Aquilo que Svetlana Boym (2007BOYM, Svetlana. Nostalgia and its discontents. The Hedgehog Review, v. 9, n. 2, p. 7-18, 2007.) estuda a partir do conceito de nostalgia é um conjunto de tópicas da modernidade, a partir das quais o conceito, e o agregado semântico que ele carrega consigo, se posicionam contrariamente. Ao escolher os russos, a autora situa toda a sua discussão em um escopo específico da relação entre exílio e nostalgia, como se essa ocorrência estimulasse uma outra experiência de tempo, e sua narrativa, contrária aos preceitos modernos. Não é por acaso que, em outro ensaio, ela afirma que a nostalgia é off-modern não somente por colocar-se contrária às fundações epistemológicas da modernidade, mas também por estar fora dessa modernidade. Parece que Svetlana Boym concorda com um argumento posteriormente desenvolvido por Barbara Cassin em seu La nostalgie: Quand donc est-on chez soi? (2015CASSIN, Barbara. La nostalgie: quand donc est-on chez soi? Paris: Fayard/Pluriel, 2015. 152 p.), quando considera que, apesar do conceito ter surgido em 1688, seu topoi e campo semântico se referem às fundações da literatura ocidental na Odisseia e na Eneida. Para a autora francesa é possível estabelecer correlações não somente com obras artísticas, mas também com escritos filosóficos, como os de Hannah Arendt, por exemplo. Os autores selecionados por Svetlana Boym - Nabokov, Brodsky e Kabakov - também lidam com a sobrevivência de uma semântica que está para além da modernidade. Ao mesmo tempo, nos permitem perceber alguns recursos utilizados por obras de arte contemporâneas. Especialmente Ilya Kabakov incorpora práticas de pesquisa em arquivos na exposição de suas obras e se utiliza da relação entre curadoria e crítica na apresentação de seus escritos.

Sem me deter nesses livros, interessante é perceber que muitas dessas tópicas, e a manutenção de um campo semântico comum, encontrou sobrevivência em romances do século XX. Se antes já foram citados Brodsky e Nabokov, pode-se supor que essa aproximação entre nostalgia e exílio não necessita estar estritamente vinculada. Parto de seus pressupostos para considerar que a nostalgia deve ser entendida enquanto uma reação à temporalidade moderna, especialmente nos termos da relação entre aceleração e futuro. Ela emergiu, como afirma Andreas Huyssen (2014HUYSSEN, Andreas. Nostalgia. In: Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Traduzido de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Museu de Arte do Rio de Janeiro, 2014. ), como uma reação à experiência de tempo da modernidade. Cabe, então, nos questionarmos acerca desse recurso, ou como a nostalgia aparece em romances, em nosso tempo em que parece ter perdido força a experiência de tempo da modernidade. Um possível romance dedicado ao tema é Nostalgia de Mircea Cărtărescu. O enredo é relativamente simples: são um conjunto de histórias que articulam os temas juventude, infância, casamento e morte na cidade de Bucareste. Dividido em cinco capítulos fragmentados, sem se respeitar uma ordenação cronológica, a reflexão do autor articula nostalgia e narração de modo indissociável.

A narrativa está assentada em uma memória caleidoscópica que não respeita a linearidade cronológica em uma articulação entre cinco parte independentes que conversam entre si peculiarmente. Infância e adolescência são partes fundamentais da narrativa, que questiona padrões modernos da percepção do futuro, especialmente em qualquer registro de avanço progressivo. A memória é o caminho para a compreensão da existência e as fantasias servem de auxílio para a expansão daquilo que convencionamos denominar como a realidade do passado. Há modos diversos de aprofundar a relação com a memória e a pluralização do entendimento da Nostalgia proposto por esse romance, como tento argumentar, e o possível fruto daí oriundo: a abertura do passado ao presente fora do enquadramento do realismo traumático. Sem que trabalhe por exclusão, sua prosa aproxima o eco dos russos com presenças mais sensíveis como a de Kafka e, também, Borges, Cortázar, entre outros. Especialmente os dois últimos ganham maior proeminência quando são questionadas as convenções que diferenciam autor, narrador e personagem. A mais explícita é: “‘Após uma noite de sono agitado, um inseto horrendo despertou transformado no autor dessas linhas’. É aproximadamente assim que eu começaria invertendo a frase inicial de A Metamorfose, de Kafka, a história que pensei escrever aqui, se quisesse publicá-la”. (CĂRTĂRESCU, 2018CĂRTĂRESCU, Mircea. Nostalgia. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Editora Mundaréu, 2018. 416 p., p. 104) Esses aspectos ganham destaque, pois a história é elaborada para que a presença da nostalgia seja um disparador da autorreferencialidade do romance.

Nostalgia é construída a partir de dois textos curtos, “O roletista” e “O arquiteto”, que espremem os outros textos maiores do romance. A qualificação de romance aqui é dada pois se seguem as palavras do autor. Cada uma das peças é autônoma o suficiente para possuir vida própria sendo ligadas pelo tema da memória, de sua subversão, os impasses desse temário em sua íntima relação com as categorias temporais de passado, presente e futuro. Possuem também uma amarração específica, em geral, feita pelos momentos de autorreferencialidade do romance, que auxiliam a expressar as ligaduras internas da narrativa. “O roletista” é uma história curta na qual um escritor envelhecido relê uma peça que ele escreveu cedo em sua carreira. “Já escrevi bastante literatura, não fiz outra coisa ao longo de sessenta anos - mas agora, no fim do fim, quero me permitir um momento de lucidez: tudo o que escrevi depois dos trinta anos não passou de uma ridícula impostura”. (CĂRTĂRESCU, 2018CĂRTĂRESCU, Mircea. Nostalgia. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Editora Mundaréu, 2018. 416 p., p. 21). Baseado em suas próprias experiências, ele diz, o narrador percorre o submundo de Bucareste, especialmente onde nos porões a jogatina acontece e os personagens sombrios buscam diversão a qualquer preço em passatempos violentos. O jogo da roleta russa passa a ter com esse roletista um exímio executor do passatempo e, aos poucos, vai se tornando uma lenda do submundo de Bucareste. Os riscos crescentes fazem com que a narrativa gradualmente aumente a tensão até que atinja o clímax inevitável.

A narrativa curta final, “O arquiteto”, utiliza-se de recursos semelhantes àquela que inicia o livro. Começa de modo sóbrio, com um arquiteto que economizou dinheiro para comprar um carro novo. Cărtărescu, entretanto, vai modificando a história lentamente e ganha novo ritmo capaz de incorporar tons fantásticos quando um homem desenvolve lentamente a sua mania. Os limites da realidade são quebrados e se expande a partir das fronteiras do possível daquilo que seriam os eixos iniciais de uma história convencional de um homem que comprou um carro. A fascinação do protagonista por sua música, de execução nada convencional, é algo em que o leitor acompanha o desenvolvimento engenhoso de um escritor que apresenta proporções cósmicas para os eventos selecionados no livro. Se “O Mendébil” é uma narrativa fraca em relação às outras do livro - especialmente por não conseguir proporcionar a liga com a outra história apresentada anteriormente, nem mesmo propor prenúncios das que virão depois, como é típico desse autor - “REM” e “Os gêmeos” parecem retomar a centralidade da proposta artística do romance. O último conto começa com uma pessoa vagando em uma rua naquilo que parece ser seu último dia na terra. Ao fim, uma jovem garota atormenta um menino questionando-o acerca da sua sexualidade e dos impasses em viver em Bucareste. Nesse longo relato, assim como no seguinte “REM”, há incursões do escritor na história em que tece comentários acerca da peça que estamos lendo. Percebemos o que está realmente ocorrendo na parte final, em que se espelha a cena de abertura e a história é trazida de volta para ser concluída.

Cărtărescu lida com o temário da nostalgia escapando de seu sentido moderno enquanto doença e elabora um romance enquanto um mise en abymeem que suas múltiplas partes se referem umas às outras. Há um jogo de escalas ressaltado ao longo do romance onde as personagens se referem umas às outras e a cidade de Bucareste está em relação ao país, à Europa, ao planeta, ao universo, ao cosmos ad infinitum. A relação escalar, entre o micro e o macro, o histórico e o monumental, está relacionada às opções retóricas assim como se abre para o uso do onírico, um procedimento utilizado há muito na literatura e que, no caso, encontra certa herança do surrealismo. Esses recursos são utilizados destacadamente no último relato denominado sugestivamente de “O arquiteto”. Ao tratar da melodia produzida pela personagem principal, afirma o narrador: “Nenhum ouvido humano era capaz de ouvi-la, pois ela não dependia mais de sons, nem mesmo de matéria, mas penetrava nas pulsações cósmicas, embaraçando-se com elas e, forçosamente, modificando-as”. (CĂRTĂRESCU, 2018CĂRTĂRESCU, Mircea. Nostalgia. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Editora Mundaréu, 2018. 416 p., p. 414). O mise en abyme também é reiterado por meio do aparecimento da infância do autor. Em geral, o narrador apresenta a pluralidade de tempos e sua expressão se dá de maneira recursiva: a versão anterior contém uma versão anterior que é menor ainda até a infância.

O myse en abime é construído a partir de uma topografia dada pelo encadeamento espacial, tornando a elaboração do romance relacional. Há uma gama ampla de críticos que já se dedicaram a pensar a questão da topografia na obra de Cărtărescu. Creio que o para os interesses desse ensaio o mais recomendável seja estudar a relação entre narrativa e tempo. Em todos esses capítulos que se relacionam há mortos, perdas, desaparecimentos e fantasmas. Na estrutura narrativa de Nostalgia, os relatos são posicionados como um imenso tear em que cada texto entrelaça outros fios que metaforizam uma rede ligando uma história à outra. Os relatos juntos possibilitam o aparecimento do romance, sendo o tempo o fator fundamental que possibilita a relação entre pertencimento e autonomia de cada uma das partes, assim como o convite ao leitor para o incessante movimento de montagem e desmontagem do romance. A relação entre unidade e multiplicidade no interior de cada novela ocorre por meio do entrelaçamento da narrativa principal à micronarrativa possibilitada por um romance que aposta na variação em sua composição.

Cărtărescu opta por elaborar as perdas, e narrar as categorias temporais de presente, passado e futuro, fora dos quadros do realismo traumático. O romance aposta no vínculo entre nostalgia e escala (HOLBROOK, 1993HOLBROOK, Morris B. Nostalgia and Consumption Preferences: some emerging patterns of consumer tastes. Journal of Consumer Research, v. 20, n. 2, p. 245-56, 1993.), amplifica a sua ocorrência no romance por duas opções retóricas: o uso da metonímia e da sinédoque. A primeira, por apostar permanentemente na proximidade de pessoas e objetos que não tinham a intenção original de estarem ali - ampliando o estranhamento do relato; e a última por meio da expressão de pessoas e locais como subconjuntos de outras instâncias, deflagrando a relação entre parte e todo peculiarmente e aguça no leitor a sensação de pertencimento. Ao mesmo tempo, essas opções retóricas exacerbam o envelhecimento das estruturas às quais os indivíduos estão submetidos seja o Partido político, seja a nação. A leitura fractal possibilitada por essas estratégias possibilita um alargamento daquilo que denominamos o real a partir de uma disponibilidade ampla do passado ao presente em sua articulação com o futuro. O futuro da nostalgia não é mais o futuro moderno - progressista, processualístico e aberto. É um futuro que retoma as ocorrências abruptamente cortadas e suspensas enquanto possibilidades vigorosas para que as personagens ainda caminhem adiante. Mesmo a morte não é encarada enquanto o fim para todos, mas uma outra ocorrência que poderia ser contada de outra maneira.

A composição do relato nega a linearidade histórica e da narrativa da personagem principal, ao mesmo tempo em que as diversas partes do romance conversam entre si. Então, a nostalgia é muito mais a relação entre um presente em sua fragilidade constitutiva para as múltiplas aberturas de conexão com o passado, em retornos nostálgicos, e os prenúncios que ocorrem na prosa de ficção.

3

The Return, de Hisham Matar, conta uma história de perda com ênfase na morte do pai e no desaparecimento do corpo do morto. É a um só tempo uma história detetivesca acerca do destino do pai nas mãos de Gaddafi e o comprometimento do filho com a memória do pai que, sob a forma de um fantasma, não para de assolar a vida dele que retorna após o exílio. Geralmente descrito como um livro de autobiografia e memória, o romance parece estar interessado em lidar com a presença do fantasmático que assola o presente e deturpa as fronteiras supostamente rígidas entre presente, passado e futuro, do que atestar exatamente qualquer verdade acerca dos fatos vivenciados na vida do autor. A pesquisa em arquivos, e a sua exposição ao longo de toda a narrativa, é um dístico dessa prosa de ficção e permite que essa prosa seja aproximada das produções contemporâneas no gênero. Longos trechos de entrevistas feitas com alguns daqueles que poderiam ter conhecido seu pai; a réplica de documentos oficiais, como alguns trechos de mensagens da embaixada de Londres enviados ao autor ou a menção a trechos de mensagens do serviço secreto egípcio, que dividem espaço com a menção de poemas da tradição literária árabe. As referências artísticas são ocidentais, como Aristóteles, Ticiano e Proust, o que lhe permitiu fazer com que personagens dessa tradição literária, como no caso Telemacus e Hamlet, dividissem espaço com a fala de alguns dos seus familiares, impactando na linguagem do autor, mesmo que suas frases tenham se mantido econômicas e diretas ao longo de todo o livro. O homem dividido entre as referências árabe e inglesa é também a personagem do romance, que embaralha as relações entre narrador, autor e personagem, voltado ao processo de autocura em uma viagem de um retorno impossível de ser completamente efetivado como se expressasse a impossibilidade da restituição da experiência.

A impossibilidade de restituição está nesse lugar da desconfiança frente à intenção de tornar a experiência narrável. Se pensarmos em romances nacionais que lidam com a arte arquivística, em História natural da ditadura o narrador comenta a vida do autor, quase sempre em trânsito, seja por peregrinações, seja pelo exílio, que esvaziam os sentidos mais comuns imputados às viagens. A forte parecença dos lugares, negando a alteridade inerente a eles, já que “Portbou” parece com Buenos Aires, que parece com Paris, que se parece com São Paulo, que se parece com a Itália. O escrito retoma a tradição moderna e baudelairiana do flâneur, já que para Benjamin a figura do flâneur seria uma chave alegórica na crise da transmissibilidade da experiência (BENJAMIN, 2015BENJAMIN, Walter. Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a Modernidade. Tradução e organização de João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2015. ). O personagem central de História natural da ditadura vive em um mundo onde mesmo a experiência superficial do flanêur não pode mais ser atingida. As viagens de História natural da ditadura não adotam nenhuma função libertadora, edificante ou pedagógica. A deriva constante, o foco em primeira pessoa, a tentativa individual de extrair significado do passado e a natureza temporalizada se, por um lado, aproximam todo o livro do romance de formação, por outro, nunca se estabelece qualquer possível formação, já que não se pode aprender com a experiência, justamente pela impossibilidade de síntese capaz de dar sustento à consciência individual.

A opção pelo tema da viagem e do exílio é central no projeto literário de Hisham Matar e utilizado em seus Anatomia de um desaparecimento (2014MATAR, Hisham. Anatomia de um desaparecimento. Tradução de Julián Fuks. Rio de Janeiro: Record, 2012. 224 p.), The Return (2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p.) e no mais recente A Month in Siena (2019MATAR, Hisham. A Month in Siena. New York: Random House, 2019. 144 p.). A elaboração, entretanto, diverge de História natural da ditadura, ou no espaço latino-americano de O material humano (2011REY ROSA, Rodrigo. O material humano. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Benvirá, 2011. 192 p.). A relação entre ficção e não ficção é menos pronunciada do que nos outros romances e, inclusive, da própria produção de Matar, como em seu ensaio “Os hóspedes (MATAR, 2020MATAR, Hisham. Os hóspedes. Tradução de Eduardo Ferraz Felippe. Remate de Males, v .40, n. 2, p. 791-808, jul./dez. 2020.). The Return é um relato íntimo voltado a indagar pais e filhos acerca dos caminhos que os aproximaram e tanto os distanciam. Aqui, a violência está na História política do norte da África que afeta os árabes, mas que se torna uma ampla meditação acerca da influência dos fatos históricos em nossa vida. Diferente de História natural da ditadura, em The Return o peso do passado não sufoca o narrador nem o leva ao imobilismo. Pelo contrário, acredito que The Return seja a tentativa de lidar com a perda, mas especialmente com o efeito altivo do amor, do afeto e da arte. Desde o sequestro do pai, quando Hisham tinha dezenove anos, ele cultiva o desejo de revê-lo. Após a queda de Gaddafi, ele regressa ao seu país em uma viagem tanto física quanto mental, sendo a escrita o nascimento dessa experiência vivenciada em um livro de memórias onde a corrupção da memória e a relação entre narrador, autor e personagem ganham proeminência. Um livro acerca da vida depois da perda irremediável em que a História política é o fundo daquilo que permanece como um fantasma em torno do narrador.

O romance corrói a noção de pertencimento ao lugar de origem e elabora uma história de migrações e trânsitos, ida e volta incessante, e nos faz questionar se esse voltar é um retorno ao país da língua materna ou um voltar para a sua própria história. Trata-se de um modo de apontar para a fuga das molduras e dos lugares de pertencimento. As idas e vindas imprimem à história o percurso de migrações e o questionamento de identidades, o que nos encaminha mais para a noção de não pertencimento, assim como para a continuidade entre ficção e realidade, com fragmentos da história política recente da Líbia e do Norte da África. Esses elementos contribuem para ressaltar o vaivém do não pertencimento sem que se busque qualquer estabilização de uma identidade. Matar sabe que as memórias não tratadas do pai são um impeditivo para um futuro, sabe que se não cuidar disso, agora, andará para frente como se andasse de costas. The Return ressalta a crise da memória a partir de um narrador que pouco destoa do autor e parece escrever muito mais para se tratar do que denunciar os anos do regime de violência política na Líbia. Entretanto, Hisham Matar opta por subverter o tropo da relação entre viagem, retorno e luto, o que o faz explicitar a sua leitura da relação entre pai e filho na tradição literária ocidental. O retorno a casa, o exílio e a relação entre pai e filho são os temas privilegiados da sua leitura da Odisseia. Citando versos da Odisseia, afirma que gostaria de ser como Telêmaco “ser como um homem feliz/ vendo o pai envelhecendo em sua própria casa.” Diferente de Telêmaco, continua, após vinte e cinco anos, lidando com a dúvida acerca da morte do pai e seu silêncio. Ao mesmo tempo, também escreve e escolhe leituras que o projetam para fora da formação do romance inglês. A mais imediata é a Odisseia e a relação entre pai e filho, Ulisses e Telêmaco; porém, também a Eneida de Virgílio e a Comédia de Dante. A busca de Hisham Matar é estar fora da modernidade e encontrar referências antigas para a composição do seu romance. Ele se coloca no papel de um repetidor de Telêmaco, sem ser o próprio Telêmaco, apontando suas diferenças e, em simultâneo, se remetendo aos outros autores que lidaram com a personagem como, por exemplo, Joseph Brodsky em seu “Odisseu a Telêmaco”.

As passagens que enfatizam o caráter afetivo do relato querem ser uma resposta à brutalização dos afetos que uma narrativa excessivamente centrada na violência poderia sugerir. Diferente de O material humano, onde as passagens reiteram a violência, como a catalogação de nomes pelo narrador e, ao longo da ficção histórica reafirma o enigma, típico de uma narrativa policial, Hisham Matar opta por um registro afetivo que valorize a paciência, o amor e a amizade. A imagem que ambos escolhem da obra de Franz Kafka pode ser interessante para pensar a estruturação de ambas as ficções históricas. Enquanto Rey Rosa escolha de O processo de Kafka a conhecida imagem de um Estado que funciona de modo autônomo ao indivíduo, Hisham Matar opta por “permanecer pensando na ternura com que K encara os dois homens que vem para executá-lo.” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 5) Ou então, quando está atento à relação entre poesia e o Norte da África afirma: “Ser um homem é fazer parte de uma corrente de gratidão e de lembranças, culpa e esquecimento, de rendição e rebelião.” (MATAR, 2016, p. 51). Voltar é uma tentativa de emendar os elos dessa corrente, mesmo sabendo que ela nunca poderá ser refeita. As leituras têm um papel determinante em seu escrito, já que seu exílio é um exílio literário pautado em uma percepção cosmopolita das leituras de outros que a transformaram também em tema, especialmente Joseph Brodsky e Vladimir Nabokov. O retorno de Matar, como desses escritores, é um voltar para “curar a si mesmo” de seu passado e de seu país. Parece improvável que ele algum dia seja completamente curado. Isso pode ser seu infortúnio psicológico, mas é de grande benefício para os leitores - ele tem uma maneira de extrair percepções gerais de sua experiência particular que o levam a pegar o caderno. “A culpa é a companheira eterna do exilado. Isso mancha cada partida” (MATAR, 2016, p. 92), escreve ele. E: “Acontece que quando você está procurando por seu pai, você também está procurando outras coisas” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 162). E: “O que você faz quando não pode sair e não pode voltar?” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 4), o que parece ecoar a mesma pergunta feita por Alejandro Zambra em seu Formas de voltar para Casa.

O caminho de Hisham Matar é outro. Há um investimento na viagem, tanto em The Return quanto em seu livro mais recente A Month in Siena (2019MATAR, Hisham. A Month in Siena. New York: Random House, 2019. 144 p.), sendo que ela ocorre para evitar a dor ou, ao reconhecer ser impossível qualquer restituição, pacificá-la. Consegue assim, utilizando uma ideia simples, por isso potente, evitar se enquadrar na narrativa da perda necessariamente. Ao se alinhar a Nabokov e a Brodsky escrevendo um livro no limite entre a reflexão crítica e a narração de histórias, na esperança de apreender o ritmo de seu anseio e ter a clareza de sua sedução e de suas armadilhas. Assim, enquadrar o livro como “memorialístico” parece um engano, já que o esforço é justamente em ganhar autonomia do peso da lembrança e da perda. Como em diversas passagens reafirma, a intenção é conseguir se desvincular da grande carga do passado. “O corpo do meu pai se foi, mas seu lugar está aqui, ocupado por algo que não pode ser apenas considerado como memória. Está vivo e atual.” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 145). A presença dos quadros de Ticiano, especialmente de O Martírio de São Lourenço, são referências para a composição da remissão a dor e da vida em chamas, como viver sem apaziguamento, porém o buscando. A tarefa mnemônico-restitutiva está posta com limites: o sumiço do corpo, a recusa ao estatuto comum da memória, a recusa da relação convencional entre pai e filho ou mesmo a intenção de enterrar o corpo do pai, como em Antígona. O papel da ficção aqui é recuperar o potencial de narrar, contudo, há a certeza de que não é possível restituição. A narrativa de uma experiência individual não almeja se tornar coletiva, mesmo que permaneça pautando-se pela busca por negar o divórcio entre literatura e experiência. Há uma recusa da ironia e do pastiche, o que a coloca em outra proposta de gerar narrativa que ainda lida com a memória, mas tenciona a todo instante dela se apartar ou, pelo menos, tratar-se da perda. O livro desloca, a partir dessa leitura, a suposta centralidade da memória e a complexifica, encontrando no afeto, no momento do pathos, seu anseio como um momento de verdade.

Pode-se dizer que Hisham Matar se coloca em relação à viagem como um daqueles autores que Svetlana Boym (2001BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books, 2001. 432 p.) chama “off-modern”, como Nabokov e Joseph Brodsky, aqueles que tornaram o retorno uma questão reflexiva, tendo prontamente se colocado contra a experiência de tempo da modernidade e valorizado uma figuração do tempo que enfatiza a mistura entre os tempos e o futuro enquanto indiscernível. Não há nenhuma possibilidade de restaurar o passado, Hisham Matar sabe disso, assim como restituir também parece um autoengano. A relação com o relato é de uma luta para manter-se longe das pessoas que ama. “Joseph Brodsky estava certo”, escreve ele. “Assim como Nabokov e Conrad. Eles eram artistas que nunca mais voltaram... O que você deixou para trás foi dissolvido. Volte e você enfrentará a ausência ou a desfiguração do que você estimava.” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 4). A elaboração de um relato com cartas, documentos, passagens de diário e notícias de jornal não o leva a reiteração da violência, como em O material humano e História natural da ditadura. Escapa do ressentimento, da mágoa, em uma ficção histórica que guarda estratégias do romance policial, como em O material humano, mas que não anseia pela resolução do enigma. Afirma ele: “O morto vive entre nós. O luto não é uma história polêmica ou um quebra-cabeça a ser resolvido, mas um empreendimento ativo e vibrante.” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 145). Evita palavras ásperas, duras, e conceitos de gravidade explícita, como a catástrofe, presentes em História natural da ditadura e O material humano. Uma bela frase merece ser lembrada: “O que é extraordinário é que, dado tudo o que aconteceu, o alinhamento natural do coração permanece em direção à luz. É nessa direção que existe a menor resistência. Eu nunca entendi isso.” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 145). Se os autores que se detiveram no tema da viagem e da recusa do retorno recebem especial atenção, outros aparecem em diálogo com sua viagem, como Kafka, Samuel Beckett, David Malouf, e as pinturas de Ticiano, Tintoretto, dentre outros. Seu livro interroga a relação entre pátria, exílio e língua materna em busca pela reinvenção da casa e das figuras a ela associadas. Hisham Matar segue um percurso de leitura que coloca em seu centro a Odisseia e a Eneida, livros comentados em seu romance e que o apoiam para ir além no romance, e retoma a figuração da casa e da relação entre pai e filho. A figura literária da casa se associa à viagem na tradição ocidental, que se inicia na Odisseia, e tem na Eneida um livro central, como argumenta Barbara Cassin, em seu La Nostalgie (2015CASSIN, Barbara. La nostalgie: quand donc est-on chez soi? Paris: Fayard/Pluriel, 2015. 152 p.). Retomar a nostalgia como figura literária implica em um modo de entender temporalidade narrativa fora de qualquer dimensão progressista e processualística, tendo a certeza de que estabelecer marcos temporais é um ato performático da escrita (ZUMTHOR, 2014ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 128 p. ). Talvez por isso The Return apresente com desconfiança o lugar comum humanista do poder restaurador da memória. Há aqui uma abertura do sentido de pertença em uma ficção histórica autobiográfica que busca a dissolução da noção de identidade e de identificação. Perguntar-se por inícios e fins, tentar estremecer posições rígidas de diferenciação entre pai e filho, optar por livros fora da modernidade ocidental e narrar a si mesmo sendo interpelado por uma comunidade, mas sem se identificar plenamente com ela, são opções que enriquecem The Return frente às outras ficções históricas escolhidas aqui.

Por fim, Matar tem certeza de que seu pai foi morto no massacre de 1996. “Por um quarto de século agora, a esperança tem vazado de mim” (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 159), são essas as frases ditas nos instantes finais do romance. “Agora posso dizer que estou quase livre disso.” (MATAR, 2016, p. 235). Esperança, ou a sua percepção simplória, é uma forma de prisão, poderíamos dizer. A virtude teologal o levou a equiparar sua procura ao encontro de uma explicação final para aquilo que parecia desde o início da procura, nos anos em que não sabia se o pai estava vivo ou morto. Talvez vida após esperança seja o tema de seu próximo romance, se ele conseguir deixar para trás a perda e a saudade de seu pai e abandonar de vez qualquer espécie de restituição.

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As prosas de ficção aqui apresentadas, e alguns filmes também, lidam com a perda e o desamparo e destacam uma reflexão detida acerca do tempo. Segundo argumento, reconhecem a perda, mas se distanciam da compulsiva repetição do fracasso que mantém o sujeito preso ao sintoma, típico do trauma. Evitam também evidenciar a impossibilidade da representação ou presentificar o irrepresentável, como as obras escolhidas por Hal Foster. Por outro caminho, ecoar figuras do Romantismo, como aquelas provenientes da estética do sublime, não para figurar o grandioso, e sim, o abjeto. Há, especialmente no livro The Return, um esforço de incluir acontecimentos ocorridos com o autor e narrador na escrita, sendo que suas opções não devem ser confundidas com o documentarismo, já que enfatizam a fragmentação e a inconclusão que tendem a disparar uma precipitação do real. A dispersão é menos acentuada do que em prosas de ficção contemporâneas, como, por exemplo, O material humano, de Rodrigo Rey Rosa, Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffatto ou ainda História natural da ditadura de Teixeira Coelho, mesmo que possamos entender a fragmentação dos capítulos enquanto uma expressão do indexical. Esse parece um ponto interessante, já que a literatura aqui está a serviço de um reencantamento da vida por meio da autocura da perda do pai. The Return, assim como outros livros do autor, e até mesmo o ensaio romance Month in Siena¸ distanciam-se da concepção de realismo traumático proposto por Foster em sua percepção de uma literatura que radicaliza o efeito chocante e aposta nos desdobramentos da estética negativa.

Ambos são romances sobre o tempo que desconfiam da capacidade de recordar e, ao mesmo tempo, partem da falência das recordações e das buscas para instaurar uma indagação acerca do tempo e, especialmente, da potencialidade em abrir futuros possíveis a partir das indagações ao tempo. Nostalgia lida com as aporias do tempo através de múltiplas camadas que, por meio do uso da metonímia e da sinédoque, destacam a correlação entre o tempo do indivíduo, o tempo do planeta e o tempo do cosmos. Essa é uma solução interessante para que a memória não sofra de descrédito completa, mas que se continue questionando a capacidade de lembrar humana. O romance de Cărtărescu não resolve as aporias do tempo, mas se utiliza de figuras capazes de apresentá-las de modo a contrastar o tempo da narração e o tempo da leitura, já que em muitos capítulos a lentidão ou a aceleração da passagem dos dias pouco condiz com a cronologia.

Se Nostalgia se utiliza pouco da pesquisa e ressalta sobremaneira a infância, The Return apresenta a pesquisa em arquivo, cartas, pronunciamentos oficiais e trechos de anotações pessoais que enfatizam a multiplicidade de vozes e a diversidade de tempos envolvidas nessa prosa de ficção. Visando explicitar a complexa dinâmica da relação entre passado, presente e futuro, Matar expande sua percepção temporal para além da restrita linearidade cronológica. Arrisco dizer que nesse romance o futuro possui peso ímpar na exposição da complexidade do tempo. Se o passado não pode ser ultrapassado, como a própria existência do romance explicita, a todo instante Hisham Matar escreve para que o passado não sufoque o presente e impeça a abertura para a vida nos dias porvir. Como ocorre quando transforma em suas as palavras do seu tio, já nas últimas páginas do livro, ao comentar tudo o que viveram e as descobertas que fizeram na Líbia. Afirma o tio que “nada que lhe ocorreu poderia ser pior do que naqueles tempos” e continua afirmando que “Eu mantive um lugar em minha mente, onde ainda era capaz de amar e perdoar a todos”. (MATAR, 2016MATAR, Hisham. The Return: fathers, sons and the land in between. New York: Viking Press, 2016. 288 p., p. 225) Termina assim o parágrafo: “Eles nunca conseguiram tirar isso de mim.” (MATAR, 2016, p. 225).

Tanto Mircea Cărtărescu quanto Hisham Matar têm pouca credulidade de que a narrativa possa resolver o divórcio entre literatura e experiência tipicamente benjaminianas. Se as tensões entre autor, narrador e personagem já eram perceptíveis naquele, parece que o livro de Matar lida de modo mais vigoroso com o produtivo alinhamento e diferenciação entre esses termos. O que comentarei nessas poucas linhas é que uma leitura alegórica do modo mais tradicional deixa pouco espaço para a incerteza e a para os finais abertos, de modo que o leitor reconheça que a falência da interpretação possa ser tão importante quanto o seu sucesso. A qualidade imprevisível da leitura - o ato performativo que produz resultado único - pode ser motivado por essa falência, como é a aposta de Nostalgia, e, em dada medida, The Return por outros procedimentos. A ética da leitura surgiria dessa abertura e possibilidade do ato de ler como abertura para o outro em uma performance que somente pode ocorrer no ato do contato com o romance em mãos. Partindo dessa perspectiva, a quebra da ficcionalidade, proposta por essas ficções históricas que reforçam a autofiguração e o jogo entre narrador, autor e personagem, reforçam essa abertura ao ato de ler. O fato de não serem relatos autobiográficos, já que lhes falta a restrospecção pautada na ordem e coesão na narrativa de si mesmo, lega ao leitor uma maior abertura ao seu autoconhecimento e autoquestionamento. The Return lida com a suspensão da autobiografia que continua de modo mais sutil a relação entre autor, narrador e personagem, mas se distancia do romance policial e seus marcos como na tradição do hard-boiled, apesar de se tratar de um livro em que uma investigação criminal está em seu cerne. Nostalgia se apresenta como ruína alegórica, reforçando a credulidade no poder restitutivo e redentor do relato que apresenta uma série de ruínas, como comentadas a todo instante pelo narrador, que oferecem o passado para ser lido como mônadas, quando se assemelha à proposta do drama trágico alemão.

Sigo o argumento de Hal Foster ao falar da obra de Tacita Dean, ao considerar a temporalidade, que o arquivo pode ser tomado como uma “visão futurística falida”. (FOSTER, 2004FOSTER, Hal. An archival impulse. MIT Press, n. 110, p. 3-22, 2004. , p. 11). A princípio, aqui o uso de Dean parece ter sido colocado contrariamente ao futurismo, mas parece que o escrito de Foster se posiciona contrário a toda forma de futuro que não seja aquele da repetição. A citação e predileção de Hal Foster por W.G. Sebald - possivelmente por Os Anéis de Saturno (2014SEBALD, W. G. Os Anéis de Saturno: uma peregrinação inglesa. São Paulo: Companhia das Letras . 2014. 296 p.) - , ao longo de todo o ensaio, indicam que sua compreensão do realismo traumático ocorre em frequência semelhante às perspectivas do autor de nascimento alemão. Sebald fala de um mundo devastado pela história, parece estar “depois da natureza”, assolado por fantasmas que ali estão devido a repetição incessante dos eventos destrutivos feitos pelo avanço da técnica sobre o mundo natural. Sebald questiona o potencial redentor da memória, especialmente com a tão comentada epígrafe de Os emigrantes: “A memória/ não destruam o restante” (SEBALD, 2009SEBALD, W. G. Os emigrantes: Quatro narrativas longas. tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras , 2009. ). Os romances aqui elencados no mínimo desconfiam desse potencial de redenção. Os dois escolhidos, Nostalgia e The Return, parecem pouco crédulos de que a memória, individual ou coletiva, consiga garantir um futuro redentor do presente. Entretanto, ambos parecem escapar da fixação melancólica de Sebald em seu gesto de recusa às ilusões redentoras. Também não se percebe em cada um desses romances que, de algum modo, mobilizam a nostalgia na fixação cética pelo fracasso histórico, já que não se percebe uma identificação entre passado e presente, sejam individuais ou coletivos, em um quadro de repetições imobilizadoras e a supressão de suas historicidades. Há a abertura em cada romance para que as experiências interrompidas recebam uma nova dose de energia capaz de reanimá-las em um instante presente e, talvez, abrir novos porvires.

Resta saber se a opção pela tradição crítica, como Foster fez, e a ênfase na materialidade, distancia o leitor da experiência compartilhada capaz de gerar abertura para o amor e a generosidade. Afetos que podem ser encontrados em The Return, especialmente se enfatizarmos o tema do fantasmático e o tratamento que o narrador e autor sofre ao longo de todo o percurso sem existir o destaque pela metonímia. Se um dos valores do livro de Hisham Matar é falar intimamente com o leitor - em sua típica dissociação entre narrador, autor, e crítico, como seu modo de encenar o “eu” e explicitar os impasses da cultura, as falências pessoais e a responsabilidade individual e coletivas - parece nos fazer a pergunta se deveríamos olhar apenas por essa perspectiva de entendimento do que seja o histórico.

O modo como o leitor se engaja em uma leitura que enfatiza a diferença entre autor, narrador e personagem com seus temas e argumentos auxilia a deixar de lado qualquer opinião estrita do que seja ética da leitura ou da escrita, mesmo quando há o engajamento em temáticas específicas nos romances elencados. Talvez essa estratégia utilizada pelas três ficções históricas escolhidas possa auxiliar no entendimento do engajamento proposto por cada uma delas no tema de como narrar a si mesmo, sem que ocorra uma resposta decisiva ao leitor. Em The Return, o caminho de volta e de ida, e vice-versa, evocam o anseio pela normalidade da vida onde o jovem quer estar junto ao seu pai, conversar e almoçar em família, mas com a clareza de que esse momento jamais será possível. Essa prosa consegue ter abertura para uma leitura responsável propondo uma imersão no texto, deixando-se por ele modificar e perceber o complexo entrelace entre esperança e medo, ilusão e desencantamento. Responsabilidade aqui enquanto responsabilidade pelo outro que, no modo como essa prosa pautada em afetos está narrada, é um modo de conservar generosidade e hospitalidade. A responsabilidade pelo outro não é tanto “um sentimento a ser experimentado” como uma “situação em que se encontra.” (ATTRIDGE, 2004ATTRIDGE, Derek. The Singularity of Literature. London: Routledge, 2004. 246 p., p. 125).

Cultiva-se assim o “dever” da escrita e da literatura em sua literalidade, e não literariedade, ao figurar o histórico e tornar a sua ficção histórica um evento em que não se é sufocado pela memória e há a intenção “curar-se” do fantasmático, o acolhendo. Hisham Matar lê responsavelmente aOdisseia de Homero; é afetado por ela e ela modifica e mobiliza a composição de sua ficção histórica, o que a dota de originalidade sem buscar nenhuma exemplaridade, especialmente no modo como narra a relação entre pai e filho e, em especial, a ausência do corpo do morto. Esse é apenas um pequeno encaminhamento. Definir a ética pautando-se na literatura como um “evento” implica em perceber a complexidade de relações existentes entre a obra e a leitura. Em certa medida, The Return joga com a violência e a incorporação de normas e comportamentos evitando a vingança, reconhecendo a ausência e tentando se curar do que viveu reformulando a relação entre pai e filho. Muitos de seus livros se iniciam com uma antecipação narrativa, o que possibilita complexificar a relação autor/narrador/personagem, o que faz com que seus livros, assim como Anatomia de um desaparecimento (2014), não se preocupam apenas com a memória, mas a busca para que sua prosa de ficção se dedique a endereçar questões ao presente e aos possíveis futuros. Os afetos mobilizados, a recusa da reiteração do realismo traumático, a recusa da compulsão reiterativa dos nomes dos mortos, propiciam à narrativa abertura fruto da distância temporal dada pela narrativa. Consegue assim manter vivo o temário da relação entre pai e filho em uma ficção histórica que opta por incorporar alguns recursos contemporâneos, como o do hibridismo, e pouco se utiliza da relação entre ficção e não-ficção. Destaca-se, assim, em The Return, a experiência íntima dos estados individuais, as oscilações dos humores, as falidas tentativas de interpretação do mundo e a colocação de dilemas éticos. Eles nunca se resolvem, mas permanecem sendo figurados, abandonando uma busca por um sentido prévio e trabalhando em uma vida capaz de reconfigurar indagações de ocorrências anteriores e perceber aberturas ao porvir.

REFERÊNCIAS

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  • ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, Leitura São Paulo: Cosac Naify, 2014. 128 p.

FILMES

  • NOSTALGIA DE LA LUZ. Direção: Patricio Guzmán. Produção: Atacama Productions, Blinker Filmproduction, Westdeutscher Rundfunk, Cronomedia. França. 2010. (90 min.), son., color.
  • O ANO em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburger. Produção: Lereby Produções; Miravista Pictures. Rio de Janeiro. 2009. (110 min.), son., color.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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