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O museu em chamas: a perda do patrimônio e as tecnologias digitais sob a luz de um incêndio

The burning museum: The loss of heritage and the digital technologies in the light of a fire

RESUMO

Este é um artigo oriundo de pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Poéticas Fronteiriças (http://labfront.tk), um grupo de pesquisa, desenvolvimento e inovação (CNPq/UEMG). Nele analisamos o caso do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, o qual pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considerada a maior perda de patrimônio histórico e cultural no Brasil até os dias de hoje. O nosso objetivo é discutir a ideia de “contemporâneo”, a partir do pensamento de Giorgio Agamben (2009), e a relação que podemos estabelecer entre essa noção e o museu em chamas.

PALAVRAS-CHAVE:
Museu; Museu Nacional; Patrimônio; Arte e tecnologia

ABSTRACT

This is an article based on research carried out at the Laboratory of Front Poetics (http://labfront.tk), research, development, and innovation group (CNPq/UEMG). In it, we analyze the case of the fire in the National Museum of Rio de Janeiro, which belongs to the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), considered the biggest loss of historical and cultural heritage in Brazil to this day. Our objective is to discuss the idea of “contemporary” based on the thought of Giorgio Agamben (2009) and the relationship that we can establish between this notion and the burning museum.

KEYWORDS:
Museum; National Museum; Heritage; Art and Technology

Introdução

Este artigo é resultado1 1 Este trabalho é fruto de projeto apoiado no grupo de pesquisa, desenvolvimento e inovação Laboratório de Poéticas Fronteiriças (http://labfront.tk - CNPq/UEMG). Desse modo, agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e à PROPPG/UEMG por esse apoio. de pesquisas do Laboratório de Poéticas Fronteiriças2 2 Ver: http://labfront.tk , um grupo de pesquisa, desenvolvimento e inovação. O grupo é cadastrado no Diretório do CNPq e é certificado pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Propomos enfocar o incêndio ocorrido em 2 de setembro de 2018 no Museu Nacional, um museu vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esse incêndio provocou reflexões que estão relacionadas a pesquisas já desenvolvidas no grupo de pesquisa e, desse modo, são essas pesquisas que dão origem a este trabalho.

A partir da pesquisa e leitura de referências bibliográficas, estabelecemos um estudo de caso, com dimensões especulativas e exploratórias, do incidente com o Museu Nacional. Desse modo, o objetivo deste artigo é discutir a ideia de “contemporâneo” no pensamento de Giorgio Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Editora Argos; Editora da Unechapecó, 2009.) e a relação que podemos estabelecer entre esse pensamento e o museu em chamas. Mais precisamente, discutiremos como é possível pensar a imagem do “fogo no museu” como ato de revelação das sombras. Especulamos que a tecnologia digital, tal como o fogo, apresenta um estado de luz/sombras no qual vivemos. Isto é, diante de tantas saídas existentes para a prevenção de perdas do patrimônio com o auxílio das tecnologias (GOBIRA, 2014GOBIRA, Pablo. A preservação da obra de arte digital: reflexões críticas sobre sua efemeridade. In: 23º ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 2014, Belo Horizonte. Anais do 23º Encontro Nacional da ANPAP. Belo Horizonte: ANPAP, 2014. p. 1-12. 1 v., 2018GOBIRA, Pablo. Museus e paisagens culturais pós-digitais. In: GOBIRA, Pablo (org.). Percursos contemporâneos: realidades da arte, ciência e tecnologia. Belo Horizonte: Ed. UEMG, 2018. p. 83-98.; GOBIRA; CORREA, 2016GOBIRA, Pablo; CORREA, Fernanda. Como preservar a arte computacional? Ações curatoriais para a criação e a manutenção de acervos. In: I CONGRESSO DO NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS DA IMAGEM, 2016, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: Ninfa/FAFICH, 2016. p. 1-10. 1 v.), essas possibilidades ficaram mais visíveis sob a luz das chamas que consumiram o Museu Nacional. Ao longo do texto, elucidamos o que entendemos como “luz” e como “escuridão” partindo não apenas dessa binariedade reconhecida no senso comum, mas destrinchando as possibilidades de reflexões aqui propostas de acordo com a teoria sobre o contemporâneo.

Para alcançar o nosso objetivo, organizamos este texto em três seções, além desta primeira. A próxima seção traz o Museu Nacional e sua importância histórica e cultural. A segunda aborda a questão do contemporâneo. A última seção apresenta as nossas considerações finais.

O fogo no Museu Nacional

No início do ano de 2018, a gestão do Museu Nacional, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), decidiu por retomar a publicação anual do seu relatório. Naquele momento não se imaginava que a maior tragédia que um patrimônio histórico nacional já sofreu aconteceria meses após a decisão. A retomada da publicação do relatório era um marco para a comemoração de 200 anos de existência da instituição, e tinha como objetivo explicitar as ações relacionadas ao museu, desde pesquisas até as dificuldades enfrentadas. O curso desse relatório foi completamente alterado quando o fogo consumiu o Palácio de São Cristóvão, tragédia que já era prevista e poderia ter sido evitada, conforme o próprio relatório.

O Museu Nacional do Rio de Janeiro, durante 200 anos, foi considerado o maior patrimônio histórico-cultural do país. Abrigava imensas coleções de diversos temas, indo desde o acervo botânico até peças egípcias adquiridas pelo imperador D. Pedro II. Parte das vinte milhões de peças do museu foi danificada ou totalmente destruída pelo fogo (JORNAL DA USP, 2018JORNAL DA USP. Um retrato do descaso com a cultura e a pesquisa no Brasil. Jornal da USP, São Paulo, 3 set. 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/especialistas-da-usp-avaliam-perda-com-incendio-do-museu-nacional/ . Acesso em: 10 mar. 2021.
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). O incêndio ocorreu em 2 de setembro de 2018, e de acordo com o editorial publicado na Revista Ibero-americana de Ciência da Informação, ele teve duração de 6 horas (CUNHA, 2019CUNHA, Murilo Bastos. Um museu em chamas: o caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 12, n. 1, p. 1-3, jan./abr. 2019.). A perda irreparável do acervo do Museu foi considerada por especialistas de universidades como a USP uma grande perda para a comunidade científica e acadêmica em geral.

O Palácio de São Cristóvão, localizado na Quinta da Boa Vista, foi construído por D. João VI quando ele veio para o Brasil com sua família em 1808. A construção, que foi inspirada no palácio de Hertfordshire, na Inglaterra, nos modelos georgianos, abrigou a família real até 1889, quando ocorreu a Proclamação da República. O prédio também abrigou a assembleia constituinte entre 1889 e 1891.

O Museu Nacional, que existe desde 1808, costumava ser chamado de Casa dos Pássaros, quando localizado em Campo de Santana (NETTO, 1870, p. 11-12 apudDANTAS, 2007DANTAS, Regina Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador - Do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional. 2007. 298 f. Dissertação (Mestrado em Memória Social) - Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007., p. 57) e a partir de 1818 ficou conhecido como Museu Real, configurado como um museu de história natural. A instituição foi transferida para o Palácio de São Cristóvão em 1892, após a queda do império e instauração da Velha República. (DANTAS, 2007DANTAS, Regina Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador - Do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional. 2007. 298 f. Dissertação (Mestrado em Memória Social) - Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.). Nesses 200 anos, a instituição acumulou cerca de 20 milhões de peças, considerando o acervo de obras e a biblioteca do museu. Além disso, a instituição foi fonte de inúmeras pesquisas da UFRJ. Algumas pesquisas foram feitas exclusivamente a partir de obras presentes na biblioteca do Museu Nacional, como estudos sobre dialetos de tribos indígenas já extintas cuja documentação existia apenas no Brasil. Grande parte da biblioteca foi salva do incêndio por estar em um anexo fora do prédio bicentenário. Mais ainda, peças do acervo botânico e paleontológico escaparam do fogo. Além de ter quase todo o acervo destruído, ainda existia o risco de desabamento de partes da laje do museu, revestimento e adornos (BRITO; COELHO, 2018BRITO, Carlos; COELHO, Henrique. Museu Nacional é interditado por recomendação da Defesa Civil do Rio. G1, RJTV, Rio de Janeiro, 3 set. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/09/03/defesa-civil-nao-ve-risco-de-desabamento-do-predio-do-museu-nacional.ghtml . Acesso em: 7 maio 2021.
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). Devido ao calor, parte da laje e algumas esculturas que compunham a arquitetura foram ao chão.

O acontecido reverberou dentro e fora do país e resultou em alertas à comunidade científica internacional. Vinte e um pesquisadores afirmaram, com a publicação de uma carta na Revista Science, que o: “fogo que consumiu os arquivos históricos é uma metáfora do estado atual da ciência no país” (LACK, 2018, p. 1322-1323 apudCUNHA, 2019CUNHA, Murilo Bastos. Um museu em chamas: o caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 12, n. 1, p. 1-3, jan./abr. 2019., p. 2). Mais ainda, na carta, os pesquisadores afirmam que “a magnitude da perda é significativa não apenas para o país, mas para o mundo e que os avanços científicos acontecem a partir da construção de blocos do passado, componentes essenciais para as pesquisas atuais” (SCIENCE, 2018SCIENCE. Lack of science support fails Brazil. Science Magazine, v. 361, n. 28, p. 1322-1323, 28 set. 2018. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/361/6409/1322.2 . Acesso em: 6 maio 2021 .
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, p. 1322-1323, tradução nossa). Sabemos que as camadas que formam o museu se constituem a partir do trabalho de pesquisadores e colaboradores ao longo do tempo. Essas ações, presentes em 200 anos de existência do museu, contribuem para o acúmulo cultural desde o início das coleções, a partir daquelas peças adquiridas pelo Imperador, até a presença intensa dos pesquisadores da universidade, de cursos diversos, os quais aprofundam e destrincham estudos relativos às coleções que compõem os núcleos do acervo do Museu.

O objetivo do relatório anual do Museu Nacional, mencionado no início desta seção, era tornar transparentes as produções relacionadas à instituição. Um trabalho que, com o incêndio, foi afetado e, em muitos casos, perdido. Estima-se a perda de trabalhos de mais de 200 professores e técnicos e 400 alunos prejudicados (MUSEU NACIONAL, 2019MUSEU NACIONAL. Relatório anual do Museu Nacional/UFRJ 2018. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.). Ainda no relatório, encontra-se uma narrativa, quase um apelo, sobre o descaso com o maior museu do país, que se apresenta claramente na falta de água nos hidrantes. Isso foi relato do diretor do museu, o qual escreve a introdução desse relatório.

Como os pesquisadores de museus têm ciência, a instituição museológica tem a sua origem relacionada, muitas vezes, às coleções de aristocratas europeus nos chamados “gabinetes de curiosidades”, coleções que eram significativas para o status quo. Dessa forma, as coleções foram crescendo e ganhando reconhecimento, despertando grande interesse em outros membros da aristocracia. Com o tempo foi necessária a separação entre gabinetes de curiosidades e gabinetes de arte, bem como houve a necessidade de organização das peças. A catalogação e organização das peças foram feitas a partir de dois eixos - Naturalia e Mirabilia - compostos de peças dos reinos vegetal, animal e mineral e artefatos da antiguidade obtidos a partir da ação humana, respectivamente (MARÇAL; CAMPANHOL, 2010MARÇAL, Alessandra; CAMPANHOL, Edna. A expografia museal - da coleção pessoal ao novo museu. Franca: IV Congresso de Iniciação Científica, Uni-FACEF, 2010.). Os gabinetes foram espaços de preservação da memória e considerados locais para a preservação do conhecimento mundial criando, dessa forma, “patrimônios mundiais”, visto que as peças eram coletadas em diversas expedições a civilizações distantes da Europa.

A criação dos museus está também relacionada com o “século das luzes”, momento em que o mundo ocidental oficializa a centralidade da razão. O Ocidente se dedica mais, nesse momento da história, a descobertas científicas, elevando o valor dos gabinetes de curiosidades, do desenvolvimento das enciclopédias e inventários (BELLUZO, 1994, p. 144 apudCORRÊA, 1997CORRÊA, Margarida Maria da Silva. Da construção do olhar europeu sobre o Novo Mundo ao (Re) descobrimento do reino tropical. 1997. 299 f. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997., p. 48-49). Além da sua importância de preservação da história e cultura da civilização a partir dos objetos, os museus são considerados fonte de conhecimento e, de certa maneira, objetos de pesquisa e disseminação do conhecimento científico para pesquisas. É nesse sentido que podemos relacionar a origem dos museus aos gabinetes de curiosidades e aos gabinetes de arte, pois os primeiros se relacionam com a origem dos museus de história natural e arqueologia, e os gabinetes de arte se relacionam aos museus de arte (MARÇAL; CAMPANHOL, 2010MARÇAL, Alessandra; CAMPANHOL, Edna. A expografia museal - da coleção pessoal ao novo museu. Franca: IV Congresso de Iniciação Científica, Uni-FACEF, 2010.).

Ainda acerca da criação dos museus, nós podemos considerar que eventos históricos no fim do século XVIII, como a Revolução Francesa, promoveram a instauração de acervos que preservam a história do Estado, como nação, reunindo obras de todo território nacional. Segundo Kern (2011KERN, Daniela. Novas e velhas questões de curadoria no sistema contemporâneo das artes. In: ENCONTRO DA ANPAP, 20., 2011, Rio de Janeiro . Anais [...] [S. l.: s. n.], 2011. Tema: Subjetividades, utopias e fabulações, p. 1604-1614.), a criação do museu e a abertura de suas portas ao público tem uma função clara de preservar a história e as riquezas de um país, de forma que a memória jamais fosse esquecida para que determinados episódios não se repetissem: “A ideia básica é de que há um passado cuja existência justifica a conservação integral da herança cultural, identificada a uma história que a Revolução não pode apagar e que, ao mesmo tempo, é o ponto de partida para um novo recomeço.” (BREFE, 2007BREFE, Ana Claúdia Fonseca. Comentário I: museu, imagem e temporalidade. Anais Do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 31-36, jul./dez. 2007., p. 35). No entanto, a decisão em relação a criação de uma instituição nacional com esse conteúdo se realiza com interesses do poder instituído, o que perdura até o momento presente. O museu é instrumento de legitimação e, constantemente, sofre com as mudanças na realidade, mas nunca fugindo dessa realidade e seu fluxo progressista. Todos os eventos que criam o museu o fazem como parte de um instrumento de iluminação de uma realidade. O museu é uma instituição dessa realidade, que participa dessa realidade. O museu constitui a - e é constituído na - relação entre um passado3 3 E isso ocorre até mesmo em museus do contemporâneo ou do “futuro”, uma vez que tratam do contemporâneo e do futuro a partir de dados do passado, do passado recente e do “presente”. manifesto naqueles objetos (ou não-objetos) que guarda, permitindo, através da produção do conhecimento, de sua promoção e seu acesso, a manutenção de toda a sua herança como algo atual.

O contemporâneo e a luz/sombra do atual

No ensaio “O que é o contemporâneo?”, Giorgio Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Editora Argos; Editora da Unechapecó, 2009.) define que aquele que é contemporâneo mantém o olhar fixo no seu próprio tempo, de forma que além de perceber as luzes, percebe também o escuro. Desse modo, “todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Editora Argos; Editora da Unechapecó, 2009., p. 63). O autor considera que a ausência da luz diante de nossos olhos, fisiologicamente, faz com que haja outro tipo de atividade na retina, pelas off-cells. Por esse mesmo ponto de vista, no caso da contemporaneidade, o obscuro não se relaciona com inércia ou passividade, mas é uma atividade não vista. Ou seja, diz-se contemporâneo aquele que enxerga a obscuridade mais profunda de seu tempo. Mais ainda, o contemporâneo nega as bases progressivistas do tempo, e da sua manifestação conhecida como o atual, a atualidade. O contemporâneo, para Agamben, não é, portanto, inteligível pela atualidade. Assim, realidade e atualidade se relacionam.

A reflexão de Agamben supera o senso comum que considera a “luz” positivamente e a “escuridão” negativamente, deixando ambos em um mesmo estado de partes de uma mesma atualidade. Superar essa binariedade é, para o autor, necessário através da aceitação de uma posição contemporânea. Esse mesmo senso comum relaciona, costumeiramente, a tecnologia à luz e a falta de tecnologia à escuridão. Do mesmo modo, as chamas no Museu Nacional seriam, para a opinião pública (CAMINHOS DA REPORTAGEM, 2018CAMINHOS DA REPORTAGEM. Museu Nacional: o descaso da história. TV Brasil, 2018 set. 27. Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/caminhos-da-reportagem/2018/09/museu-nacional-o-descaso-da-historia . Acesso em: 10 maio 2021.
https://tvbrasil.ebc.com.br/caminhos-da-...
; REDAÇÃO GALILEU, 2018REDAÇÃO GALILEU. Descaso com museus não é novidade no Brasil: relembre outros incidentes. Revista Galileu, 3 set. 2018. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2018/09/descaso-com-museus-nao-e-novidade-no-brasil-relembre-outros-casos.html . Acesso em: 7 maio 2021.
https://revistagalileu.globo.com/Ciencia...
; JORNAL DA USP, 2018JORNAL DA USP. Um retrato do descaso com a cultura e a pesquisa no Brasil. Jornal da USP, São Paulo, 3 set. 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/especialistas-da-usp-avaliam-perda-com-incendio-do-museu-nacional/ . Acesso em: 10 mar. 2021.
https://jornal.usp.br/atualidades/especi...
; DOCTORS, 2018DOCTORS, Marcio. Museu Nacional tem que ficar em ruínas para lembrar descaso, afirma curador. Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 set. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/09/museu-nacional-tem-que-ficar-em-ruinas-para-lembrar-descaso-afirma-curador.shtml . Acesso em: 10 maio 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
; PEREIRA; PURCHIO; ALZUGARAY, 2018PEREIRA, Cilene; PURCHIO, Luisa; ALZUGARAY, Paula. O país do descaso. Revista IstoÉ, 6 set. 2018. Disponível em: https://istoe.com.br/o-pais-do-descaso/. Acesso em: 10 maio 2021.
https://istoe.com.br/o-pais-do-descaso/...
), a manifestação do descaso com o conhecimento, com a iluminação, no sentido que o Iluminismo instituiu como marco do mundo ocidental.

Neste artigo, quando relacionamos o contemporâneo com a luz emitida pelas chamas do museu, vemos o incêndio como um acaso que cita os acontecimentos do século XX relacionados às ações críticas aos museus, à produção de conhecimento, bem como a denúncia das instituições culturais da sociedade na alvorada daquele século. A condensação dessa crítica pode ser vista na célebre tese de Walter Benjamin: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta da barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232., p. 225).

O Museu Nacional é um símbolo do patrimônio histórico-cultural no Brasil. Podemos afirmar que ele é parte das instituições de emissão da luz, e a própria luz em metonímia, por ser um canal de difusão e produção de conhecimento. No entanto, sua atualidade obscura não pôde ser vista amplamente até o momento em que foi iluminado pelo fogo. Podemos considerar, nos valendo de um trecho do ensaio de Agamben, que “é como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Editora Argos; Editora da Unechapecó, 2009., p. 72), revelando um estado de coisas que parecia perpétuo, inatingível, intocável, ao mesmo tempo que aparentava estar em movimento de produção de um conhecimento único, real, verdadeiro. O Museu Nacional participa da produção de uma luz que ofusca e impede de enxergar o que está na sombra, algo que foi iluminado somente após o museu se consumir em chamas. Fisicamente, o fogo alimentou a escuridão, iluminando as falhas que premeditaram a tragédia do museu.

A falta de políticas públicas eficientes sobre o patrimônio histórico-cultural brasileiro confirma, no revelar da escuridão, a teoria de Giorgio Agamben, uma vez que coloca em pausa uma sequência de acumulações que iluminavam a atualidade. Assim, revela-se a atualidade das condições de vida produzida com a participação de instituições museológicas como o Museu Nacional.

Um museu ocupa um lugar de manutenção da atualidade na qual está inserido. Constatamos isso quando vemos que a primeira iniciativa de salvaguarda do patrimônio se deu através dos usos das tecnologias digitais, frutos da sociedade industrializada. Após o fogo ser apagado, a primeira iniciativa foi de fazer uma projeção digital nas ruínas do edifício. Mas por que, antes, não foi possível salvar documentos, cartas, diários e outros objetos através de uma política de digitalização consolidada, formando um robusto estoque de informação onde era possível? Por que não houve um “backup” dessas peças em modelos tridimensionais antes do incêndio, levando em consideração que são objetos vulneráveis ao tempo? Tendo em vista a utilização atrativa da tecnologia para outros fins, como a criação de objetos interativos, chega a ser contraditório não haver a salvaguarda do acervo e da reserva técnica de um modo programático.

A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) lançou em 2021, quando se completaram 3 anos do incêndio, uma campanha pedindo doações para a reconstrução do acervo do Museu, levando em consideração o que foi consumido pelo fogo (SANCHES, 2021SANCHES, Mônica. UFRJ lança campanha pedindo doações para novo acervo do Museu Nacional. Bom dia Rio, G1 Globo, Rio de Janeiro, 2 set. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/02/ufrj-lanca-campanha-pedindo-doacoes-para-novo-acervo-do-museu-nacional.ghtml . Acesso em: 10 out. 2021.
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
). Além disso, de acordo com a diretoria do museu, pretende-se dar acesso a uma parte dos jardins do museu a qual não era aberta ao público (BRASIL, 2021BRASIL, Cristina Indio do. Museu Nacional prevê concluir obras na sede ainda este ano. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 9 jun. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-06/museu-nacional-preve-concluir-obras-na-sede-ainda-este-ano . Acesso em: 10 out. 2021.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
). Conforme o projeto “Museu Nacional Vive” (2020MUSEU NACIONAL VIVE. [Principal]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2020. Disponível em: https://museunacionalvive.org.br/ . Acesso em: 15 out. 2021.
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), prevê-se a entrega da obra dos jardins no ano de 2022. O projeto tem patrocínio do BNDES, Bradesco, Vale e apoio do Ministério da Educação (MEC), Bancada Federal do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e do Governo Federal, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, além das parcerias com instituições e organizações como a Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN)4 4 Toda a linha do tempo e cronograma do projeto pode ser acompanhado pelo portal na web: https://museunacionalvive.org.br/ .

Depois das projeções feitas a partir de tecnologias digitais, foi desenvolvido algo parecido com um “mapa da destruição”, fazendo o inventário de peças perdidas e, posteriormente, a reconstrução de algumas por meio de impressão 3D. As reconstruções digitais e físicas foram realizadas por pesquisadores do museu, membros e alunos da universidade. De acordo com livreto publicado na página do Museu Nacional na web, “500 dias de resgate” (2021), com a alocação de fundos que envolveram o Ministério Federal das Relações Externas (do Governo da Alemanha) e profissionais da UNESCO e do Arquivo Municipal da Cidade de Colônia, o museu conseguiu adquirir inúmeros materiais para a reconstrução da instituição e para a reposição dos equipamentos da pesquisa científica que foram destruídos com o incêndio (RODRIGUES-CARVALHO, 2021RODRIGUES-CARVALHO, Claudia (org.). 500 dias de resgate - memória, coragem e imagem. Rio de Janeiro: Museu Nacional , 2021. 72 p. Disponível em: https://www.museunacional.ufrj.br/destaques/docs/500_dias_resgate/livreto_500_dias_de_resgate.pdf . Acesso em: 10 out. 2021.
https://www.museunacional.ufrj.br/destaq...
). Vemos que, após a revelação da escuridão, a própria atualidade se encarregou de restaurar o regime de pura luz ao Museu Nacional, ainda que as perdas sejam irreparáveis. Essa restauração, através das tecnologias digitais, restabelece o movimento do progresso cultural, acumulativo, ao qual demos destaque anteriormente.

Desde a década de 1980, já é possível proteger arquivos através de microfilmagem. Há, pelo menos, 40 anos existe a possibilidade de proteção de documentos de arquivo para além de objetos físicos. A tecnologia, auxiliando na iluminação atual, é integrada a essa realidade do seu tempo. Já a contemporaneidade, conforme Agamben,

[...] é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Editora Argos; Editora da Unechapecó, 2009., p. 59)

Como afirmamos na seção anterior, um museu pode ser visto como uma instituição constituída por camadas. Observa-se a construção dessas camadas a partir de determinada acumulação, não só de artefatos colecionados ao longo da história, mas do que constitui aquela sociedade onde se localiza o museu. Essa acumulação não se dá apenas nos museus, mas na forma da cultura. Para a pesquisadora Lucia Santaella (2003SANTAELLA, Lucia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 10, n. 22, p. 23-32, dez. 2003.) há uma dimensão cumulativa das culturas, i.e., uma formação cultural acumula a formação anterior. A cultura digital não foge desse movimento. Essa acumulação revela o atual que se opõe ao que Agamben chama de contemporâneo.

As vanguardas da primeira metade do século XX denunciavam esse caráter integrado com a realidade construída pela sociedade em suas críticas. A crítica aos museus, presente em grande parte delas, se justifica exatamente nessa mesma dimensão. É interessante, pois parece que com a integração de alguns vanguardistas e suas produções aos acervos dos museus modernos, alguns autores podem acabar considerando que a crítica foi superada. Porém, não podemos esquecer que “a vanguarda não se rende” na virada da primeira para a segunda metade do século XX, tal como visto no “quadro” e na vida de Asger Jorn (1962)5 5 É curioso o caso desse “quadro”, pois ele também foi incorporado ao acervo do Centro George Pompidou, em Paris/França. .

Há uma leitura dissonante das primeiras vanguardas, realizada por vanguardistas pós-1940, que acabam dividindo as vanguardas do início do século entre: as que procuravam realizar a arte; e as que procuravam suprimir a arte (DEBORD, 1997DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.). O que nos interessa aqui é pensar que se institui uma frente crítica que não pode ser desconsiderada como uma ação total teórico-prática. Para se ter uma ideia dessa dimensão, lembramos mais uma vez de Asger Jorn (1914-1973), vanguardista dinamarquês membro do CoBrA e da Internacional Situacionista. O artista acredita que “a estética devia basear-se numa comunicação que agitasse e surpreendesse, em vez de ser racional ou funcional; a preocupação deveria estar no efeito imediato dos sentidos, sem levar em conta utilidade ou valor estrutural” (JORN, 1962 apudHOME, 1999HOME, Stewart. Assalto à cultura: utopia, subversão, guerrilha na (anti)arte do século XX. Tradução de Cris Siqueira. São Paulo: Conrad, 1999., p. 44). Com base nessas reflexões, podemos considerar que o incêndio do museu teve esse efeito de “agitação” e “surpresa” na sociedade, tendo em vista que o museu passou a ser mais valorizado após o incêndio - um evento visual, sonoro, narrativamente atrativo e performado ao vivo - que provocou um choque em quem o assistiu.

Considerações finais

De acordo com o dicionário Michaelis (online), o significado de fogo é:

1 Toda combustão acompanhada de desenvolvimento de luz, calor e, geralmente, chamas: “A explosão de uma bomba foi desmentida pelo exame dos destroços do carro, onde não foram encontrados sinais de pólvora ou de fogo na carroceria”. 2 Grande chama que sobe ou se forma com força; chama, flama, labareda: “De longe dava para ver o fogo.”. (MICHAELIS, c2022FOGO. In: MICHAELIS dicionário brasileiro da língua portuguesa. [São Paulo]: Melhoramentos, c2022. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/fogo/ . Acesso em: 10 out. 2021.
https://michaelis.uol.com.br/moderno-por...
).

Essa combustão, além de gerar luz, transforma toda matéria e destrói. Dessa forma, observa-se as diversas alegorias contidas dentro do contexto do fogo, sobretudo por essa imagem da transformação da matéria. Além do que já é compreendido diante da relação do fogo e o seu resultado, as cinzas, nas tradições ocidentais e orientais, ele está relacionado à questão da renovação, do renascimento da fênix, e aqui abordamos a alegoria da criação de contemporaneidade a partir da iluminação pelo fogo.

Para Sabadin (2021SABADIN, Ana Carina. Feito faíscas: esboço da imagem mais viva do progresso. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 30, n. 1, e171164, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/171164 . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.revistas.usp.br/cadernosdeca...
), em seu ensaio sobre a alegoria do fogo e o efêmero, além de hipnotizante, o fogo vela segredos e memórias, ao mesmo tempo que revela o esquecimento do que já estava ali precisando ser iluminado. Tanto em Sabadin (2021SABADIN, Ana Carina. Feito faíscas: esboço da imagem mais viva do progresso. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 30, n. 1, e171164, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/171164 . Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.revistas.usp.br/cadernosdeca...
), quanto o que vimos aqui neste artigo, temos a alegoria do fogo relacionada a uma dimensão ancestral, de um passado humano. Porém, este artigo o relacionou com as tecnologias digitais que, a partir do museu em chamas, passam a ser utilizadas como modo de reconstituir o acervo do Museu Nacional. Vimos igualmente que a tecnologia como aliada seria de fato essencial para evitar acontecimentos como esse. Porém, por estar na luz, e a outros olhos ser considerada como “à frente do tempo”, ela mesma é parte da luz que a cegou diante da sua necessidade.

As chamas e cinzas do Museu Nacional continuam reverberando na cultura. A sua última aparição se dá através da curadoria de um dos maiores eventos de arte do país, a edição de 2020/2021 da Bienal de São Paulo. Essa 34ª edição, que aconteceu no Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera, na capital de São Paulo, recebeu três objetos que sobreviveram ao incêndio. A edição tem em seu título “Faz escuro mas eu canto”, baseado em um verso do poeta Thiago de Mello (BIENAL, 2020BIENAL. Correspondência #3. Bienal, 30 mar 2020. Disponível em: http://www.bienal.org.br/post/7515 . Acesso em: 10 out. 2021.
http://www.bienal.org.br/post/7515...
).

Lembramos que o caso do Museu Nacional não é um fato isolado, visto que quase 3 anos depois, o episódio se repetiu nos galpões da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, em 29 de julho de 2021BRASIL, Cristina Indio do. Museu Nacional prevê concluir obras na sede ainda este ano. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 9 jun. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-06/museu-nacional-preve-concluir-obras-na-sede-ainda-este-ano . Acesso em: 10 out. 2021.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/n...
. O incêndio na Cinemateca queimou “1 milhão de documentos da antiga Embrafilme como roteiros, arquivos em papel, cópias de filmes e equipamentos antigos. Alguns tinham mais de 100 anos e seriam usados na montagem de um museu, para contar a história do cinema brasileiro.” (JORNAL NACIONAL, 2021JORNAL NACIONAL. Incêndio atinge um dos galpões da Cinemateca Brasileira em São Paulo. G1 Globo, 29 jul. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/07/29/incendio-atinge-um-dos-galpoes-da-cinemateca-brasileira-em-sao-paulo.ghtml . Acesso em: 10 out. 2021.
https://g1.globo.com/jornal-nacional/not...
). Além da perda material que se transforma em cinzas, neste caso, o incêndio precede ainda a montagem de um museu. Diante de tudo isso, torna-se ainda mais urgente e necessário observar na escuridão a possibilidade de superação do atual.

Com Gobira (2018GOBIRA, Pablo. Museus e paisagens culturais pós-digitais. In: GOBIRA, Pablo (org.). Percursos contemporâneos: realidades da arte, ciência e tecnologia. Belo Horizonte: Ed. UEMG, 2018. p. 83-98.), ao pensar no universo museológico, vemos que grande parte da produção nativa digital não tem sequer a oportunidade de sofrer o risco da perda tal como discutimos neste texto. As produções digitais que demandam ações de preservação digital apresentam diversos novos e antigos problemas (GOBIRA, 2010GOBIRA, Pablo. Museus e paisagens culturais pós-digitais. In: GOBIRA, Pablo (org.). Percursos contemporâneos: realidades da arte, ciência e tecnologia. Belo Horizonte: Ed. UEMG, 2018. p. 83-98., 2014GOBIRA, Pablo. A preservação da obra de arte digital: reflexões críticas sobre sua efemeridade. In: 23º ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 2014, Belo Horizonte. Anais do 23º Encontro Nacional da ANPAP. Belo Horizonte: ANPAP, 2014. p. 1-12. 1 v.; GOBIRA; CORREA, 2016GOBIRA, Pablo; CORREA, Fernanda. Como preservar a arte computacional? Ações curatoriais para a criação e a manutenção de acervos. In: I CONGRESSO DO NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS DA IMAGEM, 2016, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: Ninfa/FAFICH, 2016. p. 1-10. 1 v.). E, mais ainda, quando pensamos em ambientes que extrapolam o espaço geofísico, como extensão ou não do que é exposto nele, as soluções de formação e conservação de acervos se complexificam (GOBIRA, 2018GOBIRA, Pablo. Museus e paisagens culturais pós-digitais. In: GOBIRA, Pablo (org.). Percursos contemporâneos: realidades da arte, ciência e tecnologia. Belo Horizonte: Ed. UEMG, 2018. p. 83-98.). Neste artigo, tratamos de um contexto pré-digital, mas quando nos debruçamos sobre aquilo que está sendo produzido na cultura com o uso das tecnologias digitais (e agora até o próprio acervo do Museu Nacional se insere nesse processo) temos outros problemas em vista. É então um desafio a ser enfrentado tanto quanto é desafiante o uso da tecnologia digital como saída para casos como as perdas dos bens culturais por incêndio ou por não haver políticas públicas eficazes de criação e manutenção de acervos. Dessa forma, quando não há estratégias pensando à frente quanto aos objetos digitais gerados a partir da reconstituição do material do museu, o evento que aqui abordamos poderá se repetir de outra forma, não necessariamente diante do fogo, revelando na mesma luz uma mesma escuridão.

REFERÊNCIAS

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    » https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/171164
  • SANCHES, Mônica. UFRJ lança campanha pedindo doações para novo acervo do Museu Nacional. Bom dia Rio, G1 Globo, Rio de Janeiro, 2 set. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/02/ufrj-lanca-campanha-pedindo-doacoes-para-novo-acervo-do-museu-nacional.ghtml Acesso em: 10 out. 2021.
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    » https://science.sciencemag.org/content/361/6409/1322.2
  • 1
    Este trabalho é fruto de projeto apoiado no grupo de pesquisa, desenvolvimento e inovação Laboratório de Poéticas Fronteiriças (http://labfront.tk - CNPq/UEMG). Desse modo, agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e à PROPPG/UEMG por esse apoio.
  • 2
    Ver: http://labfront.tk
  • 3
    E isso ocorre até mesmo em museus do contemporâneo ou do “futuro”, uma vez que tratam do contemporâneo e do futuro a partir de dados do passado, do passado recente e do “presente”.
  • 4
    Toda a linha do tempo e cronograma do projeto pode ser acompanhado pelo portal na web: https://museunacionalvive.org.br/
  • 5
    É curioso o caso desse “quadro”, pois ele também foi incorporado ao acervo do Centro George Pompidou, em Paris/França.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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