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PLANTÃO PSICOLÓGICO NO REFERENCIAL DO PSICODRAMA: ENCONTRO COM SUBJETIVIDADES DESVIANTES

PSYCHOLOGICAL EMERGENCY ATTENDANCE IN THE PSYCHODRAMA FRAMEWORK: ENCOUNTER WITH DEVIANT SUBJECTIVITIES

LA GUARDIA PSICOLÓGICA EN EL MARCO DEL PSICODRAMA: ENCUENTRO CON SUBJETIVIDADES DESVIADAS

RESUMO

O presente trabalho relata uma investigação a partir de encontros clínicos com usuários de uma instituição de apoio que apresentam discursos delirantes. O plantão psicológico fundamentado na teoria do Psicodrama foi o referencial adotado. As interações entre plantonistas e usuários foram registradas em diários de campo, buscando-se analisar as experiências e os sofrimentos narrados, além dos impactos no terapeuta. Foi utilizada a metodologia da Teoria Fundamentada nos Dados, de caráter qualitativo. As produções delirantes foram percebidas como modos de existência que deveriam ser acolhidos. Os sofrimentos diante de experiências desestabilizadoras demonstraram conexões entre vivências de fortes intensidades e as subjetividades fragmentadas. Os plantonistas se sentiram convocados a sustentar as tensões presentes no encontro com formas subjetivas desorganizadas e acolher as produções delirantes.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Psicologia clínica; Sofrimento psicológico; Vulnerabilidade social

ABSTRACT

This work reports an investigation based on clinical encounters with users of a support institution who present delusional discourses. The Psychological counseling based on Psychodrama theory was the reference adopted. The interactions between therapists and patients were registered in research diaries, seeking to analyze the experiences and the suffering narrated, as well as the impact on the therapist. The methodology of the Grounded Theory was used, with a qualitative character. The delusions were perceived as modes of existence that should be accepted. The suffering in the face of destabilizing experiences demonstrated connections between intense experiences and fragmented subjectivities. The therapists were compelled to sustain the tensions present in the encounter with disorganized subjective forms and to welcome the delirious productions.

KEYWORDS
Psychodrama; Psychology clinical; Psychological distress; Social vulnerability

RESUMEN

El presente trabajo relata una investigación basada en encuentros clínicos con usuarios de una institución de apoyo que presentan discursos delirantes. La guardia psicológica basada en la teoría del Psicodrama fue el marco adoptado. Las interacciones entre los profesionales de turno y los usuarios fueron registradas en diarios de campo, buscando analizar los sufrimientos y experiencias narradas y los impactos producidos en el terapeuta. Se utilizó la Grounded Theory, una metodología cualitativa. Las producciones delirantes fueron percibidas como modos de existencia y manejadas como aspectos del sujeto que debían ser abrazados. El sufrimiento frente a experiencias desestabilizadoras han demostrado conexiones entre experiencias de fuertes intensidades y subjetividades fragmentadas. Los enfermeros de turno se sintieron llamados a sostener las tensiones presentes en el encuentro con formas subjetivas desorganizadas y para acoger las producciones delirantes.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Psicología clínica; Distrés psicológico; Vulnerabilidad social

INTRODUÇÃO

O plantão psicológico é uma modalidade de atendimento psicológico clínico realizado em instituições por profissionais de Psicologia que permanecem à espera dos usuários em horários e local predeterminados, de forma ininterrupta. O psicólogo é convocado a lidar com o inesperado e com a perspectiva de que o encontro com o cliente possa ser único. Esse tipo de acolhimento psicológico incrementa a rede de saúde mental, representando um locus de referência para o cliente para algum momento de necessidade. A principal diferença da psicoterapia, que é a intervenção clínica mais conhecida e consagrada, seria o foco nas noções de urgência e emergência e a possibilidade de uma escuta do sofrimento de forma não processual. O Conselho Federal de Psicologia se posicionou em documento oficial, no qual classificou o plantão psicológico como umas das técnicas alternativas emergentes, entendida como proposta inovadora, que rompe parâmetros estabelecidos por técnicas tradicionais já existentes (Mahfoud, 2012Mahfoud, M. (2012). Plantão psicológico: Novos horizontes. Companhia Ilimitada.).

Pretende-se, neste trabalho relatar as experiências, os sofrimentos e as vivências que foram narrados nos plantões psicológicos realizados que buscaram acolher usuários de uma instituição de apoio. O foco do trabalho são as narrativas de sujeitos que tinham diagnósticos de psicoses ou que apresentaram discursos delirantes e fragmentados nesses plantões. Procura-se problematizar também os impactos dos encontros clínicos nos plantonistas.

Alguns dos sujeitos aqui considerados apresentaram diagnóstico de esquizofrenia e outros transtornos de sofrimento mental a partir da inserção no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município. Os plantões psicológicos foram realizados em uma casa de apoio de uma cidade do centro-oeste brasileiro. Trata-se de uma organização não governamental que oferece alimentação (café da manhã e almoço) de segunda a sábado para pessoas em situação de vulnerabilidade social. O público que frequenta a instituição é heterogêneo, seus usuários sendo desde andarilhos sem residência fixa, pessoas em situação de rua, trabalhadores de baixa renda, entre outros. A equipe de extensão e de pesquisa pertence ao curso de Psicologia de uma universidade federal do centro-oeste brasileiro. Os plantões psicológicos acontecem de segunda a sexta-feira, de 10:00 às 12:00, sem necessidade de agendamento, a partir da necessidade dos usuários. Embora não seja uma escuta processual como na psicoterapia, em alguns casos os usuários compareceram regularmente. O professor coordenador e os discentes participantes tentam contribuir para ampliar o acesso da população do município a uma escuta qualificada do sofrimento.

O encontro com a alteridade e os afetos experimentados no contato com sujeitos marginalizados nos insere numa dimensão clínico-política de intervenção. Seria a clínica psicológica como a escuta do sofrimento que desvela as relações de poder presentes na sociedade. Adotou-se no presente estudo a concepção de clínica psicológica que compreende a subjetividade atravessada por marcadores socioculturais, políticos, contextuais e ambientais que afetam os corpos cotidianamente (Silva & Carvalhaes, 2016Silva, R. B. & Carvalhaes, F. F. (2016) Psicologia e políticas públicas: Impasses e reinvenções. Psicologia e Sociedade, 28(2), 247–256. https://doi.org/10.1590/1807-03102016v28n2p247
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). Nesse caso, a ideia de processos de subjetivação ganha relevo, diferentemente de uma concepção tradicional de Psicologia que situa o sujeito no âmbito das relações familiares primárias e adota conceitos como personalidade e estágios de desenvolvimento. Nessa vertente tradicional, temos presentes no campo da Psicologia práticas adaptativas que se referenciam no binômio normal/anormal, baseiam-se na noção de cura, buscam consertar o desvio e corrigir determinados modos de existência (Hüning & Guareschi, 2005Hüning, S. M. & Guareschi, N. M. F. (2005). Problematizações das práticas psi: Articulações com o pensamento foucaultiano, Athenea Digital, 8(1), 95–108.). Essas concepções se tornam problemáticas no contato do psicólogo com as camadas populares que podem trazer diferentes visões de mundo e diversos modelos de subjetividade. De acordo com Silva e Carvalhaes (2016)Silva, R. B. & Carvalhaes, F. F. (2016) Psicologia e políticas públicas: Impasses e reinvenções. Psicologia e Sociedade, 28(2), 247–256. https://doi.org/10.1590/1807-03102016v28n2p247
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, “a proximidade com populações periféricas evidencia de modo mais contundente a intensidade com que marcadores sociais de classe, raça, gênero, interferem sobremaneira nos processos de produção subjetiva e social” (p. 251). Embora a interação com pessoas das classes médias e altas possa proporcionar o contato com a diversidade de subjetividades, o encontro com pessoas das periferias demonstra que tais sujeitos produzem diversas formas de existência a partir das ausências dos privilégios das outras classes sociais. Tal aspecto desestabiliza a noção de subjetividade universal e descontextualizada, ainda muito presente na literatura especializada de Psicologia. Com efeito, pode haver uma discrepância entre as práticas psi e as demandas dos grupos sociais atendidos, pois parte-se da ideia de que todos os sujeitos possuem um mesmo padrão de subjetividade, uma mesma visão de mundo, independente da classe social ou de outros marcadores. Diante dessa diversidade mais marcante, o risco de se adotar práticas higienistas ou relações de tutela moralista no contato com sujeitos marginalizados é constante (Paulon & Romagnoli, 2018Paulon, S. M. & Romagnoli, R. C. (2018). Quando a vulnerabilidade se faz potência. Interação em Psicologia, 22(3), 178–187. https://doi.org/10.5380/psi.v22i3.56045
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).

No caso das reflexões deste trabalho, buscou-se não patologizar a diferença, sendo a loucura entendida como uma maneira de experimentar a vida, um modo de estar no mundo. A ideia era sair do viés corretivo/normativo e se abrir para o encontro com formas outras de ser, com subjetividades desviantes. Logicamente que a equipe não desconsiderou o sofrimento e a angústia dos sujeitos que lidam com intensidades de afetos, forças dispersas em si e experiências de fragmentação. É importante assinalar que a ideia de subjetividades desviantes aqui trabalhada se refere às formas de existência consideradas distantes do adequado ou do normal, com base nos padrões sociais dominantes. Essa visão normativa geralmente desqualifica o que seria diferente colocando, por exemplo, pessoas das classes populares como inadequadas, preguiçosas ou mesmo perigosas (Paulon & Romagnoli, 2018Paulon, S. M. & Romagnoli, R. C. (2018). Quando a vulnerabilidade se faz potência. Interação em Psicologia, 22(3), 178–187. https://doi.org/10.5380/psi.v22i3.56045
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). No caso do público atendido, além do desprezo de que são alvo por serem pobres, ainda se somam os estigmas relativos ao que a sociedade entende como loucura. A equipe que realizou as intervenções buscou a ruptura com relação a essa visão dominante que patologiza e desqualifica os considerados desviantes, tentando apostar no encontro com as formas singulares pelas quais as pessoas lutam para organizar suas vidas, suas formas de existência.

O referencial teórico que fundamentou as intervenções foi o Psicodrama. Trata-se de um método de inspiração existencialista, cujo foco é a representação de conflitos, compreendendo as etapas de aquecimento, dramatização, compartilhamento e o uso de instrumentos oriundos do teatro tais como diretor, protagonista, plateia e palco (Moreno, 1945/1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945); Vieira, 2009Vieira, É. D. (2009). Psicodrama: Introdução à Teoria, Prática e Pesquisa. Revista da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro, 13(1) 88-93.). Jacob Levy Moreno (1889–1974) pretendia criar uma teoria e um método de trabalho que pudessem dar suporte para as tendências espontâneas de pessoas e grupos (Moreno, 1969/2006). Nas suas origens, Moreno deu maior ênfase para o trabalho com grupos. Originalmente, o Psicodrama foi dirigido para aplicações em grupo. O Psicodrama bipessoal foi um formato desenvolvido nas últimas décadas que permite ao psicodramatista atuar com o método na psicoterapia individual (Cukier, 1992Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. Ágora.).

Os plantões psicológicos realizados pela equipe seguem as formulações do Psicodrama Bipessoal. Geralmente, nos estudos sobre plantão psicológico, a abordagem centrada na pessoa (ACP) é utilizada como referencial teórico na maioria das pesquisas e intervenções. Esse aspecto é corroborado por Scorsolini-Comin (2015)Scorsolini-Comin, F. (2015). Plantão psicológico e o cuidado na urgência: Panorama de pesquisas e intervenções. Psico-USF, 20(1), 163–173. https://doi.org/10.1590/1413-82712015200115
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, que aponta a predominância desse referencial na literatura especializada sobre plantão psicológico. Esse desenvolvimento pode ter relação com questões históricas, na medida em que essa modalidade de atendimento foi criada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) nadécada de 1970, sob a liderança da professora Rachel Lea Rosenberg, grande entusiasta da ACP (Rosenthal, 2012Rosenthal, R. W. (2012). O plantão psicológico no Instituto Sedes Sapientiae: Uma proposta de atendimento aberto à comunidade. In M. Mahfoud (Ed.), Plantão psicológico: Novos horizontes (pp. 31–44). Companhia Ilimitada.). No caso do presente trabalho, o Psicodrama foi o dispositivo teórico-prático que fundamentou nossas práticas clínicas. Diante de uma lacuna na literatura especializada, foi realizada uma pesquisa anterior que investigou possibilidades de construção do plantão psicológico na perspectiva do Psicodrama (Vieira, 2019Vieira, É. D. (2019). Novas direções para o plantão psicológico: O psicodrama como referencial. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(2), 199-211. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190023
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). A partir de experimentações e invenções, constatou-se que o espaço clínico se torna fértil fundamentado na construção por parte do plantonista de um campo intersubjetivo baseado em uma relação télica, como possibilidade de instauração de um ambiente relacional de cocriação. O envolvimento com o cuidado e a busca de transcender as hierarquias sociais representam algumas das ações perseguidas pelos plantonistas para a criação de novos olhares e novos significados no espaço clínico (Vieira, 2019Vieira, É. D. (2019). Novas direções para o plantão psicológico: O psicodrama como referencial. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(2), 199-211. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190023
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).

Com relação às experiências delirantes, J. L. Moreno & Zerka Moreno (1959/1983) trabalhou psicodramaticamente com um caso emblemático de um homem que dizia ser Adolf Hitler, cujo nome verdadeiro era Karl. Esse episódio ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial. Moreno adotou como estratégia acolher o discurso delirante, construindo um mundo auxiliar para o cliente. Nas dramatizações, Karl interagia com egos auxiliares como se eles fossem companheiros de partido de Hitler e interagia com a plateia fazendo discursos como se ela fosse o povo alemão. Moreno, portanto, buscou seguir as próprias pistas que o protagonista mostrou, concretizando aspectos delirantes nas cenas. Portanto a estratégia adotada por Moreno & Moreno (1959/1983) foi validar os delírios do protagonista, mesma proposta seguida pela equipe em contato com as subjetividades delirantes nos plantões psicológicos.

MÉTODO

A Teoria Fundamentada nos Dados, de caráter qualitativo, foi o método utilizado nesta pesquisa. Esse método busca a construção de teorias fundamentadas nos próprios dados, a partir da entrada no campo investigativo sem hipóteses preconcebidas. Desde o início da coleta de dados, busca-se o deslocamento da descrição para se analisar teoricamente o material emergente. Os pesquisadores se inserem no campo de investigação com conceitos sensibilizadores, que são ideias ou conceitos iniciais que norteiam as primeiras incursões da pesquisa. Os conceitos sensibilizadores não são hipóteses de pesquisa. No decorrer do trabalho, esses conceitos são constantemente comparados com os dados que emergem da investigação, a fim de verificar a sua pertinência na pesquisa (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: Guia prático para análise qualitativa. Artmed.).

Na coleta de dados foram considerados os contatos cotidianos e informais da equipe com os usuários da instituição. Além disso, os plantonistas redigiram registros sobre o que ocorria nos plantões psicológicos e sobre as observações de acontecimentos relevantes na instituição. Esses registros foram denominados de diários de campo. Os atendimentos foram realizados nos anos de 2015 e 2016 a partir do referencial do Psicodrama. A equipe que realizou os atendimentos era formada pelo coordenador do projeto e professor, que possui formação em Psicodrama nível II, realizada em escola vinculada à Federação Brasileira de Psicodrama. Os demais integrantes eram estudantes do curso de Psicologia que fizeram formação em Psicodrama a partir das experiências oferecidas no curso de graduação. Os estudantes cursaram duas disciplinas que abordam conteúdos epistemológicos e metodológicos do Psicodrama: Epistemologia e Sistemas em Psicologia III – Abordagens Fenomenológicas e Teorias e Técnicas Psicoterápicas II. Após a entrada no projeto de extensão e pesquisa, os estudantes participaram durante dois anos de supervisões semanais com estudo de literatura especializada em Psicodrama e realização de role playings que reconstituíam os atendimentos feitos nos plantões psicológicos.

A partir de cada escuta realizada, um diário de campo era gerado, material que foi analisado através das diretrizes da Teoria Fundamentada nos Dados. A primeira etapa analítica é a codificação inicial, que é uma tentativa preliminar de nomear e categorizar segmentos de dados/trechos significativos dos diários de campo com uma expressão que os resume e condensa com o objetivo de alcançar insights teóricos (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: Guia prático para análise qualitativa. Artmed.).

Os códigos construídos foram reunidos em categorias a partir de relações de semelhanças. As categorias elaboradas condensam as experiências importantes vivenciadas no contato com subjetividades desviantes. A equipe de pesquisa trabalhou com os dados dos diários de campo buscando analisar afetos, experiências, sofrimentos, reflexões, incômodos e potências relatados e produzidos no encontro com pessoas com discursos fragmentados e delirantes. As categorias produzidas foram (1) produções delirantes como modo de existência e (2) o sofrimento diante de experiências desestabilizadoras. As categorias serão relatadas e discutidas a seguir.

RESULTADOS

O plantão psicológico como encontro com intensidades de afetos e subjetividades desviantes

Produções delirantes como modos de existência

Nesta categoria são discutidas as produções delirantes que os usuários dos plantões apresentaram nos encontros clínicos. Partiu-se de uma concepção de que os conteúdos delirantes representavam produções criativas, maneiras de lidar com os sofrimentos vivenciados e talvez formas de elaborar e entender as próprias experiências. A equipe buscou não patologizar as narrativas consideradas desviantes e não hierarquizar a realidade compartilhada como mais importante do que a fantasia. Ou seja, as produções delirantes foram acolhidas como formas de estar no mundo e como elementos subjetivos importantes que os usuários manifestavam. A ideia era não desqualificar os delírios para promover um cenário acolhedor que fosse um ambiente relacional diferente dos espaços sociais cotidianos.

Os discursos delirantes podem ser formas de lidar com angústias difíceis de se manejar. A partir de narrativas delirantes os clientes se apresentaram como pessoas importantes, desejadas, cuidadas e amadas. Quando relatavam suas histórias de vida as experiências foram relativas a abandonos, rejeições e profundas sensações de inutilidade. Nesses casos, a equipe buscou realizar a técnica do duplo como forma de expressar vivências que o cliente não consegue expressar no momento. O duplo é uma técnica básica do Psicodrama, baseada no primeiro momento de existência da criança em que há uma fusão com a mãe e com os cuidadores. A pessoa que está no papel de cuidador busca fazer pela criança o que ela ainda não consegue realizar por si só (Gonçalves et al., 1988Gonçalves, C. S., Wolff, J. R. & Almeida, W. C. (1988). Lições de Psicodrama: Introdução ao pensamento de J. L. Moreno. Ágora.). Nos plantões, buscou-se através dos duplos a expressão e a organização das vivências dos clientes. Seguimos a diretriz de Cukier (2016)Cukier, R. (2016). Estresse pós-traumático: Novidades, tratamento e Psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 24(2), 81–90. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20160022
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, de tentar oferecer continência e suporte através do duplo.

Um cliente de 66 anos se apresentava como hermafrodita e dizia que sua parte feminina tinha se desenvolvido tardiamente. Ele relatava que seus genitais femininos tinham dezessete anos, que ele tinha menstruações mensais e que podia engravidar. Afirma que é uma mulher do pescoço para baixo, que apenas seu rosto é masculino. Em alguns momentos ele relata que está sendo desejado por uma menina de 16 anos. Esse cliente relata vivências significativas de abandono e rejeição e parece tentar elaborar tais dificuldades sendo homem e mulher ao mesmo tempo. Em determinado encontro clínico, ele se apresentou muito sensibilizado porque alguém lhe perguntou quem ele era. Ele disse não saber responder, que se lembrava desses dias em que tomou banho e viu o sangue da menstruação escorrer pelas pernas, que então estava tendo um relacionamento homoafetivo com um homem, que achava as mulheres bonitas, que se via como homem, mas com vagina e mamas femininas. Nos primeiros encontros clínicos, ele relatava ter vontade de matar sua ex-mulher e seus filhos e depois se matar. Em outros momentos dizia que sua vontade era de andar sem rumo e desaparecer. A equipe buscou acolher as narrativas desordenadas e oferecer um espaço para que ele pudesse expressar suas angústias, a falta de sentido e ódio. Quando o plantonista conseguia suportar a escuta das narrativas de vingança, de matar o outro, o usuário parecia se sentir contemplado em receber validação de um aspecto seu considerado como estranho ou bizarro pela sociedade.

A ideia norteadora da equipe foi utilizar o princípio de confirmação terapêutico do mundo do psicótico elaborado por Moreno (1969/2006)Moreno, L. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação e princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1969). De acordo com a teoria psicodramática, o ser humano vivencia desde cedo as dimensões da fantasia e da realidade. Em um primeiro momento do desenvolvimento, tais dimensões são vividas coextensivamente; de acordo com Moreno (1945/1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945), “todos os componentes reais e fantásticos estão fundidos” (p. 124). Posteriormente, a criança começa a dividir suas experiências em fenômenos reais e fictícios, surgindo gradualmente um mundo social e um mundo da fantasia. O psicótico teria a dificuldade de dividir seu mundo nesses dois níveis de experiências, assim como de transitar entre eles. Para Moreno (1945/1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945), a questão não é abandonar o mundo da fantasia em favor do mundo da realidade, mas ser possível separar os dois processos e transferir-se de um a outro.

Em outro plantão, esse cliente que se apresenta como hermafrodita relatou em detalhes como assassinou dois usuários de crack porque eles haviam roubado sua caixa de ferramentas. Ele relatou que fugiu para outra cidade, mas que depois ficou sabendo que a polícia não o prenderia por ele ter feito uma “limpeza”. A principal angústia desse cliente é uma forte sensação de não ter sido “alguém” na vida. Nesse fragmento delirante ele parece viver seu desejo de eliminar o sofrimento diante das humilhações sofridas, vingando-se de sujeitos que também são descartáveis pela sociedade. Em outros momentos, esse senhor relatou que havia se tornado “a mulher” de um fazendeiro muito rico, que este lhe deu um apartamento e muito dinheiro. Ele expressou sua vontade de ir para outra cidade e voltar como mulher, como se fosse outra pessoa. Dessa forma, ninguém o reconheceria. Propusemos a ele a realização de uma dramatização em que ele poderia representar o papel dessa mulher. Ele se levantou e caminhou pela sala como se fosse uma mulher forte, decidida e segura de si mesma. O plantonista pediu para ele fazer o solilóquio a partir desse papel e ele disse: “Me sinto muito bonita e poderosa!” O solilóquio é uma técnica do Psicodrama em que se solicita ao protagonista que expresse em voz alta seus pensamentos, falando consigo mesmo em cena (Gonçalves et al., 1988Gonçalves, C. S., Wolff, J. R. & Almeida, W. C. (1988). Lições de Psicodrama: Introdução ao pensamento de J. L. Moreno. Ágora.). Como ele apresentou a questão de se sentir homem e mulher ao mesmo tempo, percebe-se que ele ora desempenha um papel de virilidade masculina como assassino, ora o papel de mulher do fazendeiro. Este último papel também fornece uma sensação de poder, dado que, nessa região, ser mulher de fazendeiro representa algo de status social, além de se tornar outra pessoa, através de uma espécie de renascimento em outra identidade. Isso parece fornecer um escape diante de aspectos insatisfatórios de sua vida.

Outro usuário se apresentou no plantão como um profeta enviado por Deus para transmitir seus ensinamentos e salvar vidas do mundo do pecado. Em outro momento, ele relatou ter ficado preso por dez anos por ter cometido homicídio. A produção delirante, nesse caso, parece ter uma função de purificação diante de transgressões cometidas. Em outros casos atendidos, há visões intrusivas e angustiantes, de seres como lagartos e monstros ou de vozes que desqualificam e que perseguem.

Os delírios e as alucinações podem ser entendidos como produtos de processos criativos dos sujeitos, de acordo com a teoria do Psicodrama. Moreno (1969/2006)Moreno, L. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação e princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1969) compara o psicótico com um dramaturgo que deseja escrever uma peça de teatro. Diferentemente de um produtor teatral que contrata atores para encarnarem seus personagens, o psicótico constrói um enredo, pretende encarnar os papéis e transforma todo o seu universo no teatro em que sua história se desenrola. O psicótico cria enredos e outros seres, mas carece de espontaneidade para se separar de sua criação. Espontaneidade é a capacidade de criar novos significados e produzir novos olhares para a realidade através de uma presença ativa que transforma e renova as subjetividades e o contexto social (Moreno, 1945/1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945)). O dramaturgo, por sua vez, quando termina uma peça, coloca-a à parte, dando espaço para novas criações, como aponta Moreno (1969/2006)Moreno, L. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação e princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1969): “Após dar à luz, o dramaturgo fica livre das dores do parto. O psicótico teve as dores do nascimento sem dar à luz, foi como uma gravidez sem fim” (p. 313).

Ao cliente que se via como mulher e homem era oferecida a oportunidade de dramatizar algum personagem trazido nas narrativas. Como já mencionado, ele dizia que queria sumir, ir para outro lugar, fazer cirurgias e retornar para a cidade como mulher, sem ninguém reconhecer sua identidade original. O plantonista, então, sugeria que ele se levantasse e nos mostrasse como era essa mulher, como ela andava, vestia-se, conversava, etc. O cliente atuava esse personagem no espaço clínico e, depois da cena, ele e plantonista refletiam sobre o desejo de ser outra pessoa, que poderia ser uma forma de eliminar os sofrimentos e vazios a que nossas experiências e identidade parecem nos condenar.

O Psicodrama é um método que problematiza a insuficiência das interações meramente verbais para a expressão de questões intensas. O cliente tem a necessidade de viver situações, de atuá-las e estruturá-las com mais liberdade do que a permitida nos espaços sociais convencionais (Moreno & Moreno, 1959/1983Moreno, J. L. & Moreno, Z. T. (1983). Fundamentos do Psicodrama (2ª ed.). Summus. (Obra original publicada em 1959)). A liberdade para experienciar aspectos delirantes pode contribuir para que o psicótico consiga expressar suas criações fantásticas e, assim, poder elaborar suas experiências. O trabalho clínico de não estabelecer a doença como foco, sem julgamentos, trouxe uma aposta no poder de ressignificação da realidade do próprio cliente.

O clínico se sente convocado a oferecer suporte para as narrativas desviantes, aspecto que exige uma disponibilidade em lidar com conteúdo pouco lineares. Um usuário com discurso fragmentado e delirante trouxe incômodo, angústia e cansaço no plantonista. O plantonista relatou ter feito muito esforço para compreender o discurso do usuário: “Muita coisa que ele me conta, sinto que é delirante e me pergunto qual a necessidade de ele relatar tudo isso, o que ele está buscando nos atendimentos. Ele quer que eu diga quem ele é?” Em muitos momentos de dificuldades e impasse, a equipe de plantonistas utilizou o duplo. Nesses momentos de impasse, o duplo permitiu um conhecimento intuitivo da perspectiva do cliente, facilitando uma imersão vivencial na forma pelas quais o sujeito conseguiu organizar sua relação consigo mesmo e com o mundo (Cukier, 1992Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. Ágora.).

Uma usuária relata que sofreu um acidente e que chegou a ir para o céu, descrevendo o céu com nuvens e anjos. Ela diz que São Pedro não a deixou entrar. Relatava essas visões chorando e rindo ao mesmo tempo. Sua fala era muito desconexa, ia de um assunto para outro sem ligação, inventando palavras. A forma de comunicação de muitos usuários era confusa e fragmentada, com mudanças repentinas de temas. Os plantonistas relataram muitos momentos em que não sabiam discriminar realidade e ficção nos discursos dos usuários. No espaço da supervisão foi problematizado que era necessário não estabelecer nenhuma hierarquia entre realidade e fantasia, como preconiza o referencial do Psicodrama (Moreno & Moreno, 1959/1983Moreno, J. L. & Moreno, Z. T. (1983). Fundamentos do Psicodrama (2ª ed.). Summus. (Obra original publicada em 1959)). A ideia era estar aberto e sem julgamentos, acolhendo o discurso delirante e tentando decifrar o sofrimento que residia nas entrelinhas das narrativas imaginárias.

A proposta do encontro com os usuários nas suas diferenças, sem patologizar suas formas de estar no mundo, representa um desafio na medida em que os próprios sujeitos já se apresentavam a partir de diagnósticos psicopatológicos recebidos na rede de saúde mental como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, entre outros. Apesar de levarem em conta os diagnósticos, os plantonistas buscaram se desvencilhar da noção de doença, oferecendo um acolhimento das subjetividades delirantes.

O sofrimento diante de experiências desestabilizadoras

Nesta categoria serão descritas e analisadas experiências narradas pelos usuários/clientes que permitem conexões entre vivências desestabilizadoras e subjetividades fragmentadas. Acontecimentos de fortes intensidades, rupturas nas relações, perda de pessoas significativas e violências sofridas são experiências que trazem afetos intensos e dificuldades de integração e organização subjetivas. É importante pontuar que nem sempre eram delirantes os discursos dos usuários que compõem as análises nesta categoria.

A violência gera uma significativa desestruturação subjetiva. Alguns usuários relataram que perderam pessoas significativas através de assassinatos e narraram que essas perdas foram muito perturbadoras. Por exemplo, uma usuária relatou no plantão que perdeu um filho assassinado, apresentando-se com um discurso confuso e fragmentado. Parece ser um sofrimento intenso que precisa de acolhimento para ser elaborado. A forma dispersa como esse sofrimento foi narrado revela que alguns acontecimentos intensos produzem grandes dificuldades de integração e organização do sujeito. A escuta do sofrimento e o encontro com a alteridade colocam o plantonista em contato com o inesperado e com o desafio de buscar decifrar os significados envolvidos nas narrativas de conteúdos desorganizados. O referencial socionômico, que postula um mundo em permanente mudança, traz a necessidade de que o psicodramatista opere em um estado de prontidão, de abertura e de espontaneidade para acolher as contradições individuais e sociais que se revelam no espaço clínico (Moreno, 1945/1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945)). Romagnoli (2006)Romagnoli, R. C. (2006). Algumas reflexões acerca da clínica social. Revista do Departamento de Psicologia - UFF, 18(2), 47–56. https://doi.org/10.1590/S0104-80232006000200004
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argumenta que clinicar não seria buscar organizações lógicas e abstratas para confirmar nossas posições teóricas, mas sustentar a diferença, suportar o vir-a-ser do encontro, usando os conhecimentos como suporte. Às vezes, suportar o encontro é lidar com incertezas, como refletiu um plantonista em seu diário de campo: “Então me despedi da cliente e fiquei com a sensação de que eu deveria ter sido mais empático com ela. Posteriormente me veio a sensação de frustração por não ter conseguido ficar mais tempo atendendo ela”.

Estar em contato com subjetividades desviantes pode produzir desestabilizações no clínico. Como pontua Dutra (2004)Dutra, E. (2004). Considerações sobre as significações da psicologia clínica na contemporaneidade. Estudos de Psicologia, 9(2), 381–387. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000200021
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, ser psicólogo clínico requer uma prontidão para o contato com o outro nos âmbitos do desconhecido, do diferente e do desafiante. Requer uma outra clínica, como aponta Mansano (2011)Mansano, S. R. V. (2011). Clínica e potência: Algumas considerações sobre a experiência dos encontros em Gilles Deleuze. Mnemosine, 7(2) 64–74. sobre “abordar uma dimensão clínica que se efetua para além dos limites do consultório e que tem seu motor de problematizações nos encontros com o fora, isto é, com a diferença enquanto irredutível a uma interioridade auto determinante” (p. 65). Nos parece que a clínica psicológica, nas suas formulações tradicionais, apresenta lacunas para a compreensão de arranjos subjetivos diversos. No contato com a diversidade, o profissional é instigado a produzir invenções para uma clínica mais ampla, que considere o encontro com a alteridade, que traz inevitavelmente as dimensões sociopolíticas dos processos de subjetivação.

O plantão psicológico coloca o clínico em contato com a intensidade da vida e com experiências desestabilizadoras. Na abertura de se escutar o sofrimento do outro, vivências de incapacidade e impotência podem circular no espaço clínico, inclusive se instalando no próprio plantonista. Nas situações em que foram narradas dores intensas no espaço clínico, os plantonistas se sentiram paralisados momentaneamente. Ou seja, a amplitude do sofrimento do cliente foi um fator de inibição da atuação dos plantonistas. “Ajudar alguém tão desesperado”, como relatou um plantonista, parecia colocar um desafio de difícil manejo. O relato de tentativas de suicídio e de pensamentos suicidas trouxe sentimentos intensos no plantonista: “Me senti tão impotente e com medo de que ela cometesse suicídio. Me doeu muito ver ela sofrer daquela maneira, eu não conseguia dar algum retorno para ela”. É importante fazer a problematização da vulnerabilidade, pois quando os psicólogos atuam em políticas públicas ou na proteção social, práticas próximas do presente trabalho, existe o risco da ressonância das vulnerabilidades (Romagnoli, 2015Romagnoli, R. C. (2015). Problematizando as noções de vulnerabilidade e risco social no cotidiano do SUAS. Psicologia em Estudo, 20(3), 449–459. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i3.28707
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), ou seja, o encontro com pessoas em condições de vida desfavoráveis pode fazer ressoar na equipe afetos de incapacidade, caso não se aposte na potência dos sujeitos. Muitos usuários que foram aos plantões relataram que têm pensamentos suicidas ou vontade de sair à deriva, andando sem rumo indefinidamente. Em alguns casos, o sofrimento diante de humilhações ou de não se ver como “alguém” era causado por experiências que parecem ter conexão com a ideação suicida. Durante as supervisões semanais, a equipe de trabalho procurou realizar diversos role playings em que se dramatizavam os atendimentos que trouxeram essas experiências desestabilizadoras e intensas. Buscou-se reconstituir a interação plantonista-cliente de forma a investigar e ressignificar as vivências de impotência dos plantonistas. A realização desses role playings ampliou o olhar sobre a potência dos usuários em meio à vulnerabilidade, trazendo a possibilidade de problematização sobre maneiras de se apostar na potência de sujeitos que narram vazios e sensações de falta de sentido.

Houve também muitos usuários que se apresentaram com o diagnóstico de depressão, acompanhado por relatos de sensações de incapacidade e culpa. A perda da “alegria de viver” relatada por uma usuária que parecia querer resgatar uma potência de vida perdida. Os relatos de solidão e isolamento também foram recorrentes. Os usuários que se sentiam muito isolados também falavam de falta de perspectivas existenciais. Parece que a falta de inserção em uma rede relacional promove uma falta de direção ou uma ausência de projeto de vida. A partir do isolamento sociométrico, geralmente se instala o sentimento de solidão que pode produzir uma condição de vulnerabilidade e de falta de suporte social (Oliveira, 2017Oliveira, P. C. (2017). Solidão e isolamento sociométrico: Antítese ou sinonímia – estudos preliminares a partir de grupos de drogadictos. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 68–76. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170008
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).A ruptura do isolamento propiciado pelos encontros no plantão psicológico pode contribuir para a criação de um laço social, inserindo socialmente os sujeitos através de vínculos de cuidado (Romagnoli, 2015Romagnoli, R. C. (2015). Problematizando as noções de vulnerabilidade e risco social no cotidiano do SUAS. Psicologia em Estudo, 20(3), 449–459. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i3.28707
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).

A loucura é uma produção social, sendo uma resposta às interações na rede de relações do sujeito. Alguns usuários que apresentavam sofrimento mental relataram trajetórias permeadas por vínculos abusivos ou negligentes, com frustrações e rejeições. As narrativas dos usuários demonstram que os sintomas não teriam uma origem individual, mas só podem ser compreendidos a partir da inserção do sujeito no contexto social (Vieira, 2017Vieira, É. D. (2017). O Psicodrama e a Pós-Modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25 (1), 59-67. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170007
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). Ou seja, os processos de subjetivação são produzidos na intercessão entre o individual e o coletivo, conformados pelas forças dos poderes vigentes (Hüning & Guareschi, 2005Hüning, S. M. & Guareschi, N. M. F. (2005). Problematizações das práticas psi: Articulações com o pensamento foucaultiano, Athenea Digital, 8(1), 95–108.). O enfoque socionômico que concebe o indivíduo na sua relação com os grupos sociais e com a comunidade traz importantes contribuições para a ampliação e a ruptura com olhares psicologizantes e individualistas (Moreno, 1945/1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945)).

Alguns usuários relatam que saíram de casa para ir para as ruas ou para andarem de cidade em cidade, denotando que o afastamento da família parece ter gerado uma desintegração pessoal. Uma usuária relatou que iniciou uma trajetória de rua, prostituição e uso de drogas com apenas nove anos de idade, época em que seus pais faleceram. Foi possível perceber conexões entre desamparos, rupturas, exclusões e as vivências delirantes atuais. Um usuário, por exemplo, que escutava uma voz que o perseguia chamando-o de “capeta”, relatou que sempre foi considerado diferente na escola e na rua onde morava quando criança. Uma cliente que relatou ter sofrido fortes experiências de separação diz que na família ela era considerada a mais inteligente e que ela era poetisa. A plantonista pergunta se ela escrevia poesia e ela disse que “trabalha as narrativas e costura os verbos”. Ela diz que tem problemas no psicológico e no sentimental, que acha que são duas coisas diferentes, o sentimento e o psicológico. Durante vários momentos falou da sua solidão e demonstrou uma angústia muito grande e sem alvo definido. O plantonista também ficou muito sensibilizado como demonstra o trecho de um diário de campo:

Fico pensando que a loucura é uma experiência aterrorizante. Por mais que a pessoa esteja funcionando num estado de alienação, existe um sofrimento bruto, uma angústia psicótica, uma vivência de incapacidade de tocar a própria vida, todos esses aspectos vivenciados conscientemente. Fora o sentimento de não ser levada a sério, de ser tachada de louca.

O espaço dos plantões psicológicos representa um contexto no qual os usuários podem expressar as intensidades de afetos vivenciadas a partir de identidades fragmentadas e dos sofrimentos e angústias sem alvo definidos. A vivência das forças de dispersão em si produz confusão, desconexão e incoerência com a própria experiência. Diante das intensidades, alguns sujeitos se apresentaram de forma distante e desvitalizada. Em outros casos, alguns usuários não sabiam o dia do mês, a própria idade e nem mesmo o local onde estavam. As alterações de orientação espacial e temporal dos usuários deixavam os plantonistas confusos e, ao mesmo tempo, sensibilizados ao tentarem entender essas outras formas de estar no mundo. Um plantonista teceu as seguintes reflexões:

Parece que a cliente não possuía acesso sobre os próprios fatos de sua vida, como se tudo que a constituiu fosse simplesmente bloqueado. Eu percebi que ela sentia uma espécie de desamparo de si mesma em não poder ser capaz de acessar sua própria história, como se fosse um livro sem páginas.

Alguns relatos de dificuldades de vinculação com o mundo do trabalho ou instabilidade nas relações amorosas foram presentes. A relação com o entorno pode provocar incapacidades. As pessoas que convivem com sujeitos com vivências de loucura podem estabelecer relações de tutela ou tipos de cuidados que incapacitam, como relatou um usuário:

Eu só queria ser como todo mundo. Sabe quando as pessoas levantam e vão pro trabalho? Eu também queria ir. Sabe quando as pessoas atravessam a rua sozinhas e conseguem? Eu também queria, mas ninguém deixa, fala que eu sou doido e que vou me perder na rua.

Além da tutela, alguns usuários relataram ter sentido algum tipo de discriminação por terem algum modo de funcionamento considerado diferente. E se o entorno de pessoas que convivem com sujeitos com comportamentos desviantes apostasse na potência e não na incapacidade, que outros processos de subjetivação seriam possíveis? As instituições e os grupos de convivência social dos sujeitos com sofrimento mental poderiam produzir afetos potentes? Muitas vezes, assistir é normatizar a vida e os corpos, buscar consertar os desvios (Romagnoli, 2015Romagnoli, R. C. (2015). Problematizando as noções de vulnerabilidade e risco social no cotidiano do SUAS. Psicologia em Estudo, 20(3), 449–459. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i3.28707
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). O referencial epistemológico socionômico ofereceu um suporte significativo para lidar com essas questões. Moreno (1945/1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1945) colocou como proposta, através do conceito de espontaneidade, a necessidade e a possibilidade de resgate dos fatores vitais e da participação das pessoas na vida social de forma ativa, transcendo a automatização do ser humano e de comportamentos estereotipados. A alienação da espontaneidade ocorre quando estamos impedidos de iniciativa pessoal e constrangidos de participarmos de forma ativa e atuante nas situações. Dessa forma, no contato com os usuários, a equipe de trabalho apostava nas possibilidades do resgate da espontaneidade.

Os contextos sociais e até mesmo quem está na assistência podem tentar adaptar as pessoas consideradas desviantes para o modelo social vigente. Os encontros com a diferença podem provocar crises incômodas, desestabilizações, podendo produzir um endurecimento na tentativa de neutralizar os afetos suscitados. Outra usuária refletia durante a escuta clínica que os lugares que frequenta, como o CAPS e o centro espírita, deixam-na triste, ela sente como se absorvesse a energia desses lugares para si. No caso dessa usuária, o plantonista relatou em seu diário de campo que, em meio a sentimentos de perda e de desamparo, podia perceber algumas forças de vitalidade. Talvez em virtude dessa percepção que o plantonista pode ter demonstrado de algum modo, a usuária disse ao final do atendimento que se sentia muito bem por falar de sua vida com alguém que se dispõe a escutá-la. O clínico pode colocar seu corpo para experimentar novas sensibilidades, como via para questionamento dos modos de existência diversos aos padrões sociais vigentes (Mansano, 2011Mansano, S. R. V. (2011). Clínica e potência: Algumas considerações sobre a experiência dos encontros em Gilles Deleuze. Mnemosine, 7(2) 64–74.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O plantão psicológico foi visto como um espaço fértil em termos de promoção de saúde mental pelos plantonistas e pelos usuários. Uma usuária disse que os plantões estavam diminuindo sua angústia e que sua vontade de morrer estava passando. Ela disse que não tinha mais crises de choro e que também não sentia mais vontade de sair andando sem rumo pelas ruas, que estava sentindo prazer de ficar em sua casa, que estava se cuidando mais e que estava indo a bailes aos finais de semana para dançar. Outro usuário que estava indo regularmente nos plantões disse que os atendimentos o estavam ajudando a diminuir sua ansiedade. Um usuário disse que os plantões o ajudaram a se fortalecer para tentar superar a dependência química. Outro usuário melhorou sua capacidade de se relacionar, pois estava expressando mais o que sentia para pessoas significativas.

Esses exemplos demonstram que os encontros clínicos com sujeitos marginalizados e com processos de subjetivação diferentes dos padrões sociais convocam a invenção de novos modos de se fazer a clínica psicológica. Torna-se necessário sair de um viés corretivo/normativo ainda presente em alguns meios psi, para o encontro com a alteridade, exercendo uma abertura para vivenciar as forças atuantes na interseção entre mundos diferentes. Sustentar as tensões presentes no encontro com formas subjetivas desorganizadas, estar disponível para o contato com as precariedades psíquicas e sociais e acolher as produções delirantes foram convites feitos por essa prática clínica aos plantonistas. A presente pesquisa demonstra que é preciso outro tipo de cuidado com grupos vulneráveis, longe da tutela e da hierarquização, que produzem ainda mais vulnerabilidade.

O referencial metodológico e epistemológico do Psicodrama forneceu um suporte importante. As técnicas psicodramáticas utilizadas permitiram a pesquisa e a vivência dos plantonistas no campo relacional. A imersão experiencial do plantonista proporcionou uma ampliação do acesso ao mundo do cliente. As dramatizações propostas propiciaram a expressão de aspectos fantasiosos do cliente que não encontram espaços nas relações cotidianas. Esses aspectos metodológicos do Psicodrama trouxeram importantes contribuições na clínica com pessoas que apresentam narrativas fragmentadas, permitindo maior aproximação com os dramas do cliente e a expressão e a reorganização de aspectos dispersos.

A epistemologia psicodramática, com seu enfoque relacional, contribuiu para a ampliação do olhar dos plantonistas. Por exemplo, pensar a inserção sociométrica dos sujeitos e perceber que os discursos delirantes podem ter relação com o isolamento sociométrico e a consequente experiência de solidão e perceber que os sintomas e comportamentos são respostas ao contexto social promovem uma ruptura com análises psicologizantes e individualistas. Por fim, as possibilidades de recuperação dos fatores vitais, contida na ideia de espontaneidade, contribuiu para que a equipe de trabalho apostasse na potência dos sujeitos, rompendo com as visões sociais dominantes que percebem os pobres e os chamados loucos como incapazes e desviantes.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no estudo em curso.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

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Editora de seção: Graziela Gatto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2022
  • Aceito
    09 Maio 2022
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