Acessibilidade / Reportar erro

NARRATIVAS DE PSICODRAMATISTAS NO PALCO DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

NARRATIVES OF PSYCHODRAMATISTS ON THE STAGE OF UNIFIED SOCIAL ASSISTANCE SYSTEM

NARRATIVAS DE PSICODRAMATISTAS EM EL ESCENARIO DEL SISTEMA ÚNICO DE ASISTENCIA SOCIAL

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa de mestrado que buscou analisar, por meio de narrativas de psicodramatistas, a aplicabilidade e impressões da metodologia criativa do psicodrama dentro da perspectiva das oficinas do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). A pesquisa foi feita com oito psicodramatistas de quatro estados brasileiros diferentes através de entrevistas narrativas. Os resultados revelam repercussões positivas do uso do psicodrama com grupos, bem como desafios de seu fomento e aceitação no campo da assistência social. Conclui-se que o Psicodrama é um caminho de intervenção de grupos para o profissional socioassistencial que almeja por uma transformação no âmbito social e pessoal dos usuários-protagonistas.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Assistência social; Narrativas; Trabalho com grupos

ABSTRACT

This article aims to present doctoral research that sought to analyze the applicability and impressions of the creative methodology of psychodrama within the perspective of the workshops of the Service of Protection and Comprehensive Care to the Family within the scope of the Unified Social Assistance System. The research was carried out with eight psychodramatists from four different Brazilian states, through narrative interviews. The results reveal positive repercussions for the use of psychodrama with groups, as well as challenges for its promotion and acceptance in the field of Social Assistance. It is concluded that psychodrama is a group intervention path for the social assistance professional who aims for a transformation in the social and personal scope of the protagonist users.

KEYWORDS
Psychodrama; Social assistance; Narratives; Working with groups

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar una investigación doctoral que buscó analizar la aplicabilidad de la metodología creativa del Psicodrama en la perspectiva de los talleres del Servicio de Protección y Atención Integral a la Familia en el ámbito del Sistema Único de Asistencia Social. La investigación se llevó a cabo con ocho psicodramatistas de cuatro estados brasileños diferentes, a través de entrevistas narrativas. Los resultados revelan repercusiones positivas para el uso del psicodrama con grupos, así como desafíos para su promoción y aceptación en el ámbito de la Asistencia Social. Se concluye que el Psicodrama es una vía de intervención grupal para el profesional socio-asistencial que busca una transformación en el ámbito social y personal de los usuarios protagonistas.

PALABRAS-CLAVE
Psicodrama; Asistencia social; Narrativas; Trabajo en grupo

INTRODUÇÃO

A política pública da assistência social, materializada por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), fundamenta-se na integralidade das políticas setoriais, no enfrentamento das desigualdades socioterritoriais para o mínimo das garantias sociais e, assim, no provimento das contingências e na universalização dos direitos sociais (Brasil, 2005Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2005). Política nacional de assistência social – PNAS/2004: Norma Operacional Básica – NOB/SUAS. Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf. Acesso em: 26 out. 2020.
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publi...
). Essa política tem dois níveis: a proteção social básica (PSB) e a proteção social especial (PSE). A PSB, nosso foco nesse trabalho, objetiva a prevenção das situações de risco por meio das ações de desenvolvimento das possibilidades e aquisições, o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. A população que se encontra em situação de vulnerabilidade social está destinada à proteção social básica, pois está envolta nos processos de fragilidade pela pobreza, a privação dos meios de subsistência, dos vínculos afetivos fragilizados e de pertencimento social. Nela, o trabalho com famílias deve considerar novas referências para a compreensão dos diferentes arranjos familiares, superando o reconhecimento de um modelo único baseado na família nuclear, e partindo do pressuposto de que são funções básicas das famílias: prover a proteção e a socialização dos seus membros; constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o Estado (Brasil, 2005Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2005). Política nacional de assistência social – PNAS/2004: Norma Operacional Básica – NOB/SUAS. Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf. Acesso em: 26 out. 2020.
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publi...
).

O serviço de sustentação da PSB é o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), porta de entrada dessa política pública. Esse equipamento atua com famílias e indivíduos em seu contexto comunitário, visando à orientação e ao convívio sociofamiliar e comunitário, sendo responsável pela oferta do Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF). Dessa maneira, a proteção social executada no CRAS pelo PAIF propõe agir sobre as vulnerabilidades sociais e fortalecer os vínculos familiares e comunitários de modo a garantir a potencialização do tecido social (Brasil, 2013Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2013). Tipificação nacional de serviços socioassistenciais. Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf. Acesso em: 26 out. 2020.
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publi...
, 2016Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2016). Caderno de orientações: Serviço de proteção e atendimento integral à família e serviço de convivência e fortalecimento de vínculos. Articulação necessária na proteção social básica. Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/cartilha_paif_2511.pdf. Acesso em: 26 out. 2020.
https://www.mds.gov.br/webarquivos/arqui...
). O PAIF não tem caráter terapêutico, mas sabe-se que, por tratar nos trabalhos as relações humanas interpessoais e familiares, faz-se necessário revelar que o vínculo familiar e comunitário são meios de fortalecimento e enfrentamento das vulnerabilidades sociais. Nesse sentido, buscamos provocar reflexões sobre possíveis intervenções que sejam criativas e que fogem do engessamento de práticas convencionais e reprodutivas em atendimentos com famílias nos equipamentos públicos do SUAS, considerando que podem ocorrer ações repetitivas e sem inovação por determinados técnicos que executam o trabalho no PAIF.

Entendemos que a assistência social se configura como possibilidade de reconhecimento público da legitimidade das demandas de seus usuários e espaço de ampliação de seu protagonismo. Conforme Menegazzo et al. (1995)Menegazzo, C. M., Tomasini, M. A., & Zuretti, M. M. (1995). Dicionário de Psicodrama e Sociodrama. Ágora., o termo protagonista foi tomado pelo teatro grego e significa, etimologicamente, aquele que se oferece à ação em primeiro lugar; aquele que se oferece para sofrer e morrer a serviço dos outros. Na tarefa das equipes do CRAS nas unidades da PSB, as intervenções devem ocorrer nos âmbitos individual, familiar, grupal e comunitário por meio de práticas contextualizadas e coletivas (Macêdo et al., 2018Macêdo, O. J. V., Lima, C. M. P. D., Brito, F. H. S., Souza, J. N. P., Sousa, N. K. M., Sousa, S. P., & Dias, S. G. (2018). Atuação dos profissionais de psicologia nos CRAS do interior da Paraíba. Temas em Psicologia, 26(2), 1083–1097. https://doi.org/10.9788/TP2018.2-20Pt
https://doi.org/10.9788/TP2018.2-20Pt...
). Na perspectiva de compreensão da palavra “protagonista”, ao pensar que nos apropriaremos dos filtros da teoria psicodramática, consideremos diferentemente do modo teatral tradicional esse entendimento. O protagonista será aquele que emerge do grupo ou o próprio grupo em um contexto dramático (que apresenta o drama) e com caráter de transformação do indivíduo e do grupo, de maneira concomitante na intervenção do psicodrama (Seidel, 2009Seidel, J. M. O. (2009). O protagonista no psicodrama sócio-educacional e no teatro-educação [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília.). O protagonismo é a ação das emoções que são representadas das relações que estabelecem os membros do grupo.

Na vertente da política da assistência social, o conceito de protagonismo social também surge na implicação da superação das possíveis opressões que são vividas pelos usuários dos serviços. Juntamente a esse processo, afirma Freire (1983)Freire, P. (1983). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra. sobre a eliminação da aderência do opressor, em se reconhecer oprimido para envolver na reflexão e na ação para transformação de si e do mundo. O PAIF materializa suas ações como individuais e coletivas, mas para essa pesquisa tem ênfase no coletivo em proposição de uma outra metodologia criativa para a promoção do diálogo, a troca de experiências e valores, frente à discussão de situações externas que afetam a família e a comunidade.

No CRAS, para a promoção social e a prevenção de riscos, a equipe técnica visa desenvolver serviços e ações aos seus usuários e suas respectivas famílias, entre elas as ações coletivas. As oficinas realizadas nos serviços do CRAS caracterizam encontros organizados de curto prazo, favorecendo a discussão e a reflexão das situações vivenciadas, podendo ser abertas ou fechadas com um conjunto de famílias ou demais representantes. No entanto, os trabalhos exercidos nesses grupos, por vezes, passam por oficinas de trabalhos manuais, como pretexto de acesso aos assuntos mais profundos nas famílias. A representatividade familiar nesses grupos, somada aos testemunhos das próprias relações de vínculos e afetividades, pode valer novas formas de acesso ao usuário. Como sugestão de intervenção surge o psicodrama, no desafio de promover um olhar crítico e da potencialização de papéis familiares. Nesse contexto, um trabalho voltado ao psicodrama socioeducacional, pois na ação com as famílias possibilita a reflexão e o esclarecimento das realidades vividas. No SUAS, por considerar as diversidades de serviços e ações proporcionadas para usuários, famílias, comunidades e territórios, o método psicodramático pode ser aplicado para compreensão e resoluções criativas pela ação coletiva quanto à espontaneidade e à criatividade de seus membros participantes frente às vulnerabilidades e os riscos sociais; serve para a instrumentalização prática de profissionais que atuam com grupos; atua na equipe e gestão como parâmetro de diagnóstico social e acompanhamentos sistemáticos de famílias.

A construção do trabalho social na ação coletiva do PAIF requer uma apropriação também pela cultura para que, assim, os objetivos sejam atingidos em conformidade com o acesso das informações e novas possibilidades de vivências com reflexões dos membros participantes dessas oficinas de famílias. O psicodrama é uma intervenção que permite alcançar tais objetivos, uma vez que se constitui em uma metodologia de cunho integrativo e interativo com os membros participantes dos encontros coletivos.

A aprendizagem vivencial é coconstrutiva: todos participam ativa e criativamente do processo educacional. Nessa aprendizagem está presente o fomento do respeito ao saber e ao ser do outro, como indivíduo único e singular, que com seu jeito de ser contribuirá para as tarefas grupais (Nery & Gisler, 2019Nery, M. P., & Gisler, J. V. T. (2019). Sociodrama: método ativo na pesquisa, no ensino e na intervenção educacional. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(1), 11–19. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190002
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190...
, p. 13).

As intervenções com recursos artísticos e criativos são meios de inserção e estímulo de interesses por via dos participantes que vêm agregar no encontro coletivo do PAIF. A exigência maior por parte dos técnicos em oficina do PAIF utilizando arte, criatividade e ludicidade está no foco: mesmo que estrategicamente ou nas entrelinhas da aproximação e participação das famílias, fica a cargo do objetivo a tratar no coletivo. Sendo assim, no decorrer dos encontros cabe ressaltar a discussão dos temas para gerar reflexões da própria realidade vivida na família e território, embora por vezes exista a esquiva de alguns participantes em determinados assuntos, ou a sobreposição de um tema por outro pelo próprio usuário no grupo da oficina de famílias. Portanto esse contexto exige o acolhimento do que é exposto no grupo, mas que seja relacionada ao objetivo da oficina de PAIF, podendo sair nesse contato algum encaminhamento em caráter individual ou familiar a outro serviço público.

As metodologias criativas são úteis quando dialogam e conectam com as diretrizes e objetivos da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), tornando-se potências criadoras caso o técnico detenha o domínio do saber teórico e prático dessas ferramentas de intervenção. As metodologias participativas para Kummer (2007, p. 67)Kummer, L. (2007). Metodologia participativa no meio rural: Uma visão interdisciplinar. Conceitos, ferramentas e vivências. GTZ.:

... são um conjunto de métodos com características semelhantes usados para atingir o mesmo objetivo, baseado no princípio fundamental da participação... Na metodologia participativa se juntam vários métodos usando diversos instrumentos específicos, e constitui-se num convite à ação e ao aprendizado conjunto, possibilitando maior acesso ao poder decisório (empoderamento das pessoas envolvidas e da organização).

A multiplicidade que as metodologias criativas e participativas apresentam também podem ser apropriadas pelos próprios usuários do serviço, podendo ser identificados no território pessoas com habilidades e capacidades artísticas e culturais que venham a contribuir com o PAIF através da identificação dos técnicos pela busca ativa e ações comunitárias. O aproveitamento dessas manifestações artísticas, por vezes latentes, despercebidas e inexploradas, é potencializado na adequação aos objetivos do serviço no CRAS com as próprias famílias, além de promover valorização do saber cultural local, no compartilhamento do conhecimento e a exposição comunitária dessas produções artísticas.

Atualmente ocorrem diversas capacitações referentes a conhecimentos artísticos e culturais para profissionais do SUAS, desde escolas e cursos de teatro, música e dança a artesanato, artes visuais, cinema, fotografia, moda, literatura, entre outros, que podem ser aprendidos a partir do interesse do técnico de referência que queira agregar à sua função e desempenhar um papel mais criativo nos grupos em que atua. Como destaca Seidel (2009, p. 14): “em campo relaxado a criatividade emerge, e o indivíduo tem mais possibilidade de encontrar respostas a seus problemas”. Assim, desdobramentos criativos e formatos diferenciados das reuniões e encontros de grupos são atrativos e interessantes no percurso e perpetuação de linguagens que atinjam os usuários.

O ENCONTRO DO PSICODRAMA E A POLÍTICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

Jacob Levy Moreno formou-se como médico psiquiatra e trabalhou na clínica psiquiátrica da Universidade de Viena, além de possuir seu próprio hospital em Beacon nos Estados Unidos anos mais tarde. Apesar dessa vertente clínica, foi no campo social e nas instituições que ele realizou diversas construções teóricas e intervenções profundas por meio de suas dramatizações, favorecendo o seu conhecimento sobre o humano e as relações interpessoais. Sua trajetória com a área social se iniciou de maneira espontânea quando realizava jogos de improviso com crianças nos jardins de Viena em 1910. Depois trabalhou com prostitutas vienenses em 1914, refugiados tiroleses em 1916, em caráter público nos EUA em 1929, jovens delinquentes em 1932, deu aulas em universidade de Columbia e Nova Iorque em 1937, entre outros. Conforme Marineau (1996, p. 106)Marineau, R. F. (1996). Jacob Levy Moreno, 1889-1974: Pai do psicodrama, da sociometria e da psicoterapia de grupo. Ágora., “Moreno começou a dar conferências e a fazer apresentações do trabalho de espontaneidade em escolas, igrejas, universidades, e finalmente pode fundar o teatro do improviso”. Ressaltamos a importância de demonstrar que o psicodrama teve ações e acessos com públicos no caráter social por intermédio do próprio Moreno. Nesse sentido, a teoria e a prática propostas nos estudos de formação do sujeito a partir das relações interpessoais favorece a subjetivação em contextos sociais. Isso porque as socializações humanas compreendem o campo dos relacionamentos, como pontua a socionomia de Moreno.

Na contemporaneidade, os psicodramatistas têm expandido e atualizado a metodologia. Assim, entendemos que atuar pelo ato psicodramático possibilita que atinja com maior escala o social (Costa et al., 2007Costa, L. F., Guimarães, F. L., Pessina, L. M., & Sudbrack, M. F. O. (2007). Single session work: Intervenção única com a família e adolescente em conflito com a lei. Journal of Human Growth and Development, 17(3), 104–113. https://doi.org/10.7322/jhgd.19852
https://doi.org/10.7322/jhgd.19852...
). Motta et al. (2011)Motta, J. M. C., Esteves, M. E. R., & Alves, L. F. (2011). Psicodrama público: Um projeto social em Campinas. Revista Brasileira de Psicodrama, 19(2), 33–39. apontam como funções dessa prática: o desenvolvimento da espontaneidade, catarses, compartilhamentos, diversão, aprendizagem e cidadania. Conforme é a criação do psicodramatista que está à frente da direção, o ato pode apresentar variações quanto ao tema e à movimentação, mas não deve perder a estrutura do encontro psicodramático quanto às suas etapas (aquecimento, dramatização e compartilhamento) e o caráter do momento único sem uma continuidade processual ou de acompanhamento a ser realizado.

Os equipamentos da pasta política da assistência social e demais instituições sociais certamente são campos amplos e ainda por explorar a aplicação da temática de transformação humana proposta por Moreno. Essas inserções constatadas no serviço público têm desafios que muitas vezes passam pelo estranhamento da técnica aplicada. Nesse sentido, há resistência pelo desconhecimento e pelas compreensões errôneas devido ao pouco conhecimento do psicodrama. Para Gonçalves Filho (1998)Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação social: Um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11–67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
https://doi.org/10.1590/S0103-6564199800...
, a resistência com o psicodrama tem como um dos pontos de manifestação a dificuldade em conseguir que todos participem da realização proposta.

Diante do estranhamento por parte de técnicos e gestores, os usuários atendidos vêm a não ter acesso à formação da própria subjetividade no enfrentamento e superação das vulnerabilidades e os riscos sociais que vivem. A capacidade de perceber fragilmente a realidade que vivem mostra-se prejudicada por terem poucas inserções em educação, arte e cultura, pois são meios de pensar e reconhecer sua participação no social. Afirma Seidel (2009, p. 47)Seidel, J. M. O. (2009). O protagonista no psicodrama sócio-educacional e no teatro-educação [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília. que, “na realidade, só será possível cumprir esse papel se conseguirmos desenvolver a autonomia nas pessoas e o seu protagonismo”.

Nessa direção, os trabalhadores do SUAS têm a liberdade de percorrer os avanços no campo do conhecimento e profissionalização por capacitações e cursos quaisquer, mas que podem dialogar com a prática exercida no serviço público. Portanto, como foco da pesquisa aqui apresentada, os trabalhadores do SUAS que atuam diretamente com grupos de famílias do PAIF se tornam relevantes pela experiência compartilhada enquanto psicodramatistas.

SOBRE A METODOLOGIA

O desafio desse trabalho foi a captação de narrativas das experiências de técnicos psicodramatistas do SUAS. Nossa proposta inicial era a inserção e a intervenção do psicodrama com usuários prioritários das políticas públicas atendidas na Secretaria Municipal da Assistência Social. A cidade que iria ser contemplada e referenciada nesse levantamento de informações frente à ação do psicodrama era o município de Santana do Paraíso, no estado de Minas Gerais, local no qual um dos autores deste artigo atua.

Entretanto com o surgimento da pandemia mundial da doença COVID-19 (novo Coronavírus) houve a necessidade de alterar a aplicabilidade e levantamentos dos dados dessa pesquisa. Nesse cenário, os trabalhos de grupo do PAIF não estavam na categoria essencial, tendo sido canceladas quaisquer ações coletivas realizadas no ambiente do CRAS. Mudou-se o foco da pesquisa, que seria realizada com os usuários do PAIF, para as narrativas dos técnicos psicodramatistas que tinham atuações e experiências do uso do psicodrama em grupos do PAIF. Nesse sentindo de encontrar esses profissionais, foram acionados dois grupos de psicodramatistas via aplicativo WhatsApp. No aceite em participar da pesquisa, os psicodramatistas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e as entrevistas foram gravadas online.

Ao todo foram entrevistados oito técnicos de diferentes estados brasileiros, porém, suas identidades pessoais foram substituídas, sendo de própria escolha, por nomes de personalidades que admiram. Do estado de São Paulo temos: Elis Regina, 25 anos, formada em Psicologia; Wagner Moura, 33 anos, formado em Psicologia; e Nietzsche, 38 anos, formado em Filosofia. Já da Bahia foram entrevistadas: Regina Casé, 26 anos, formada em Psicologia; e Fernanda Montenegro, 38 anos, formada em Psicologia. De Sergipe temos as técnicas: Adriana Esteves, 38 anos, formada em Psicologia; e Idina Menzel, 23 anos, formada em Psicologia. Por fim, de Minas Gerais, entrevistamos Oprah Winfrey, 56 anos, formada em Serviço Social, também cursando Psicologia.

A maioria dos entrevistados cursou ou cursa algum tipo de especialização ou formação em psicodrama, e todos possuem experiência de atuação no CRAS ou atuam hoje.

Unanimemente frisaram a importância dessa pesquisa sobre o psicodrama no SUAS e se sentiram pertencentes com as narrativas compartilhadas. O trabalho coletivo nas famílias do PAIF associado ao uso da metodologia participativa do psicodrama foi captado no testemunho do contato profissional com os usuários, que serve de exploração e apreciação das narrativas efetuadas por esses profissionais. A necessidade de explicitar a articulação das narrativas nas produções de dados, por esse método, Gibbs (2009, p. 83)Gibbs, G. (2009). Análise de dados qualitativos. Artmed. diz:

As narrativas são uma forma comum e natural de transmitir experiência. Prestar atenção às razões pelas quais as pessoas usam narrativas ou contam histórias em momentos estratégicos de uma entrevista pode dar ideia de quais são os temas importantes para elas a sugerir ideias para investigação adicional.

Desse modo, o método narrativo pretende suprir uma lacuna da pesquisa, pois trata de referenciar as contribuições e percepções de seus participantes nesse trabalho de pesquisa. Gibbs (2009)Gibbs, G. (2009). Análise de dados qualitativos. Artmed. revela que pode mostrar como a pessoa enquadra e entende um determinado conjunto de experiências. Labov e Waletsky (1997)Labov, W., & Waletzky, J. (1997). Narrative analysis: Oral versions of personal experience. Journal of Narrative and Life History, 7(1–4), 3–38. https://doi.org/10.1075/jnlh.7.02nar
https://doi.org/10.1075/jnlh.7.02nar...
descrevem a narrativa como sendo o relato de sequências de eventos que penetram na biografia do narrador em orações sequenciadas na correspondência da ordem dos eventos originais. Dessa maneira, podemos perceber as narrativas por uma avaliação emocional e social daquele que narra. Conforme Bruner (2002, p. 46)Bruner, J. (2002). Atos de significação. Artmed., “uma narrativa é composta por uma sequência singular de eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como personagens ou autores”. Usamos as narrativas na tentativa de desempenhar uma análise dos fatos narrados acerca da inserção do psicodrama na intervenção profissional em indivíduos no CRAS, discriminando as percepções dos entrevistados no arranjo social das políticas públicas.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

As cenas analisadas a seguir estão divididas em atos, como em uma peça de teatro, consistindo em cenários distintos para a exploração das narrativas, e assim para um todo explorado dentro da obra pesquisada. Nesses atos, aludimos a uma estrutura psicodramática de intervenção com o aquecimento (entradas no PAIF), dramatizações (protagonismo e antagonismo do psicodrama), e compartilhamento (sentimentos e impressões). Assim, as categorias temáticas são apresentadas nesses atos.

Ato I: aquecimento no palco psicodramático da assistência social

O palco da assistência social, devido a sua grandiosa responsabilidade e sua necessidade de enfrentamentos, tendo foco as vulnerabilidades e riscos sociais, faz-se desafiar na proposta de promoção social e da equidade entre todos aqueles que dela precisar. O cenário do jogo social realizado pelo campo da política assistencial detém, além das normas e orientações dos seus cadernos, a demanda de posturas improvisadas de seus profissionais no acessar à vida dos usuários. Considerando as possíveis experiências de técnicos que por sua vez passaram em outros tipos de serviços em equipamentos públicos ou institucionais, podendo contribuir com uma capacidade de improvisação nas ações que venham propor. Aliás, como na formulação, estruturação e a implementação da política pública da assistência social, os trabalhadores iniciantes do SUAS também são integrantes da luta pela manutenção e avanços da transformação social. Sendo recém-chegados no CRAS e inexperientes em assumir o perfil profissional, passam a usar da própria espontaneidade para moldar a sua realidade nesse desafio de atuação, conforme os entrevistados Wagner Moura e Regina Casé.

A troca de experiências em demais equipamentos e serviços da assistência social, como CRAS, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), unidades de acolhimento, entre outros, torna-se uma prática comum entre os psicólogos do trato social e comunitário. A vivência de práticas em outros ambientes psicossociais aparece em alguns casos, adquiridas em processos de estágio. De acordo com os entrevistados, Idina Menzel, Elis Regina e Regina Casé, esses estágios promovidos pelas instituições de ensino superior surgem na complementação curricular do ensino da psicologia e no que tange à investigação de aspectos das questões sociais, os estagiários podem se apropriar dessa prática de aprendizado e utilizar esse aprendizado na assistência social.

Ato II: a dramatização protagonista do psicodrama no PAIF

As oportunidades de acesso de um método ativo, antes confundido com teatro ou dispositivo clínico somente, fazem com que o psicodrama possa atravessar pelas fissuras que surgem em intervenções propostas por técnicos de referência, sustentando atuações inventivas. Esses técnicos psicodramatistas que arriscam na ação social no serviço das coletividades do PAIF operam para quebrar práticas institucionais enrijecidas, como destaca Elis Regina.

A aceitação e compreensão do método psicodramático entre os profissionais e a equipe do CRAS pode favorecer na construção de planejamentos e roteiros de intervenção com usuários. Isso para o psicodramatista dentro do PAIF, conforme Adriana Esteves, enriquece a sua potência criativa na montagem de encontros. Assim, mostra-se a individualidade dos usuários como as relações interpessoais construídas no jogo social das famílias.

Os usuários no grupo de PAIF, como um coletivo de protagonistas reunidos, tornam-se um todo no encontro social criado pelo psicodrama. Nessa totalidade, os usuários estão ali representando seus próprios papeis e os papeis psicodramáticos. Na conjuntura sociodramática, na qual o protagonista é o grupo, os temas sociais são expostos pela participação coletiva. Nesse contexto, o uso do psicodrama será em sua vertente socioeducativa, para a compreensão da realidade, dos papeis, das relações, da comunidade e territórios, das opressões, dos conflitos e violências. Assim, buscando sempre a espontaneidade e criatividade do grupo para o desenvolvimento da capacidade crítica de ver o mundo e suas forças, o resgate da dignidade, a promoção da autonomia. Nery e Gisler (2019, p. 13–14)Nery, M. P., & Gisler, J. V. T. (2019). Sociodrama: método ativo na pesquisa, no ensino e na intervenção educacional. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(1), 11–19. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190002
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190...
afirmam que esse “processo de identificação também contribui para a experiência da flexibilização da identidade, pois ampliamos o contato com o outro e temos mais oportunidade de compreender suas experiências na vida”.

Segundo os técnicos entrevistados, os encontros são estruturados de acordo com as etapas do psicodrama (aquecimento, dramatização e compartilhamento), e com a contínua relação télica dos profissionais com os usuários dos grupos de PAIF para que possam gerar o fortalecimento dos vínculos entre todos os envolvidos naquele processo de intervenção. Essa construção relacional entre técnicos psicodramatistas e os protagonistas no grupo faz parte de um universo de conexão frente ao humano, que está em constante troca interpessoal. Para Moreno (1978, p. 286)Moreno, J. L. (1978). Psicodrama. Cultrix., “um complexo de sentimentos que atrai uma pessoa para uma outra e que é provocado pelos atributos reais da outra pessoa – atributos individuais ou coletivos – tem o nome de tele-relação”. Assim, adesões e aberturas, feedbacks e a sensação de leveza de temas sociais complexos são tratados em diversos contextos na dramatização dos usuários.

Os narradores, quando falam do exercício do papel de psicodramatista com suas intervenções nos grupos de famílias do PAIF, revelam a sustentação do protagonismo do psicodrama na assistência social. Seidel (2009)Seidel, J. M. O. (2009). O protagonista no psicodrama sócio-educacional e no teatro-educação [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília. explica que o termo “protagonismo” na atualidade indica o agente de uma ação, sendo jovem ou adulto, um ente da sociedade civil ou do Estado, um pessoa, um grupo, uma instituição ou movimento social.

O psicodramatista é o mediador desse processo coletivo e das aspirações subjetivas decorrentes do despertar da espontaneidade para usuários de uma classe desfavorecida socialmente pode apresentar maior dificuldades. Conclui Seidel (2009, p. 104): “com as práticas, é possível socializar o psicodrama e o psicodrama como novo e encantador modo de intervenção que dá sentido à vida social, como uma metodologia de ação”. Cabe ressaltar que a intervenção psicodramática não passa por uma solução milagrosa para a atuação dos profissionais, nem como as negligências do Estado com a política pública e a naturalização das condições precárias de vida dos usuários atendidos pelos serviços.

Ato III: o contra papel antagônico do psicodrama no PAIF

O “como se fosse”, caso fosse feito com crianças, possivelmente seria sucesso para a produção de cenas de suas próprias vidas, como muita realidade, imaginação, memória, ideais e todo o corpo envolvido com a criação do novo. Entretanto este é um dificultador em faixas etárias mais elevadas, pois alguns usuários podem se sentir ridicularizados e demasiadamente expostos em suas imperfeições, como afirmou a entrevistada Indiza Menzel.

Além das dificuldades com o próprio usuário, a entrevistada Regina Casé pontua que o psicodrama desperta também resistências na equipe de profissionais. A resistência no encontro com o psicodrama, para Gonçalves Filho (1998)Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação social: Um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11–67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
https://doi.org/10.1590/S0103-6564199800...
, está na dificuldade em fazer todos participarem da proposta dramática. O contornar para Moreno (1978, p. 123)Moreno, J. L. (1978). Psicodrama. Cultrix. é atuar na brecha entre a fantasia e realidade, pois “quanto mais profundamente talhados estiverem esses caminhos, mais difícil se torna passar de um para outro sob o estímulo do momento”. Por outro lado, conforme as técnicas entrevistadas Indina Menzel e Elis Regina, há desconhecimento do método e uma visão predominantemente clínica entre os profissionais. Na Psicologia, o perfil do trabalho clínico por psicólogos se mostra uma estereotipia, como reconhece o Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal de Serviço Social (2007, p. 20)Conselho Federal de Serviço Social. (2007). Parâmetros para atuação de assistentes sociais e psicólogos (as) na Política de Assistência Social. CFESS/CFP. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2007/09/relatorio_atuacao_psi_pas.pdf. Acesso em: 26 out. 2020.
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
que “a despolitização, a alienação e o elitismo marcaram a organização da profissão e influenciaram na construção da ideia de que o psicólogo só faz Psicoterapia”.

Quando se pensa no desconhecimento do psicodrama clínico em sua atuação social, há uma brecha na esfera do tempo de compreensão de todos os envolvidos proposto por Gonçalves Filho (1998)Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação social: Um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11–67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
https://doi.org/10.1590/S0103-6564199800...
, isso porque o ritmo psicodramático não se dá como no ritmo da vida real. A absorção das ações dramáticas no trabalho do psicodramatista, ao mesmo tempo que não possui uma rapidez que envolva todos os participantes também, não pode ter uma lentidão que provoca o desinteresse na proposta, servindo como elemento de resistência ao trabalho psicodramático. Isso ocorre no trabalho com grupos do PAIF e com a equipe profissional do CRAS. Esse desafio está atrelado à contínua espontaneidade do psicodramatista e na criatividade em realizar sua direção psicodramática, no intuito de transformar o estranhamento ao encantamento, como aparece na narrativa da entrevistada Regina Casé.

A resistência que os outros profissionais que trabalham com o técnico psicodramatista pode se tornar um problema também nas relações interpessoais dentro do CRAS. A convivência constante, as trocas de ideias entre os executores da política da assistência no PAIF, a criação e execução de intervenções em diversos formatos de atendimento (individual, coletivo, familiar, comunidade e territórios), entre outros, estão dentro das normativas do SUAS. Considerando a presença nos equipamentos de profissionais mais experientes, estes muitas vezes se encontram engessados, pouco abertos e flexíveis a propostas lúdicas e inventivas, como o psicodrama. Assim, Freitas (2005, p. 52)Freitas, M. F. Q. (2005). (In)coerências entre práticas psicossociais em comunidade e projetos de transformação social: Aproximações entre as psicologias sociais da libertação e comunitária. Psico, 36(1), 47–54. fortalece sobre o “compromisso político e adoção de práticas psicossociais voltadas para intervenções coletivas com propostas de construção de atores coletivos”.

A cristalização e a reprodução de métodos aplicados em grupos, que podem não ter adesão dos usuários, podem ser sustentados pelo despreparo ou pela arrogância de profissionais que não investem em seu próprio desenvolvimento profissional, conforme destacou o técnico entrevistado Wagner Moura. A relação da política pública com o psicodrama apresenta consonâncias quanto ao dever de possibilitar acessos aos protagonistas usuários dos serviços, quanto promover o dever na transformação social nas comunidades com as ações socioassistenciais dos profissionais.

A dificuldade de atuar com grupos dentro dos equipamentos do SUAS por vezes pode sair do domínio de uma competência do profissional psicodramatista, remetendo à estrutura física e aos recursos materiais para se ter condições de servir o público, proporcionar melhor acolhimento das demandas e um espaço preparado na relação com seus usuários, o que é destacado tanto pela entrevistada Adriana Esteves quanto pela entrevistada Idina Menzel. A dificuldade da manutenção de uma frequência às atividades, ainda conforme essas entrevistadas, relaciona-se à situação de risco social que muitas famílias vivem, como a restrição alimentar ou a baixa renda. A performance profissional dentro do equipamento, portanto, requer uma sensibilidade crítica e acolhedora ao mesmo tempo.

Vimos que a perspectiva de um psicodramatista quando está atuando diretamente com grupos, mas saindo da premissa clínica e psicoterapêutica para um contexto socioeducativo na assistência social, refere-se ao desafio de aplicabilidade do método psicodramático nesse contexto, mas apropriando o sociodrama na intervenção coletiva. Como Nery et al. (2006, p. 305)Nery, M. P., Costa, L. F., & Conceição, M. I. G. (2006). O Sociodrama como método de pesquisa qualitativa. Paidéia, 16(35), 305–313. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2006000300002
https://doi.org/10.1590/S0103-863X200600...
apontam que “o sociodrama é um método de pesquisa interventiva, que busca compreender os processos grupais e intervir em uma de suas situações-problema, por meio da ação/comunicação das pessoas”. Dessa forma, o profissional atua como um intercessor da aplicação da técnica psicodramática na assistência social, lidando com populações vulneráveis e excluídas socialmente. O psicodramatista, com familiaridade com o uso terapêutico do psicodrama, vive desafios no PAIF, o que nos conduz ainda para o deslocamento do início do psicodrama, que tem em seu início o questionamento da ordem vigente, de uma maneira crítica, para tomar uma forma dominante em práticas relacionadas a camadas mais privilegiadas. O sentimento de insegurança, de complexidade, ou por vezes uma sensação de incapacidade na transição de áreas da ação psicodramática pode se diluir a partir de uma afinidade com o campo, como também mediante a relação télica com o grupo socioeducativo que esteja a trabalhar.

Ato IV: compartilhamento psicodramático no PAIF

No psicodrama como intervenção psicossocial, seja com o indivíduo ou com o coletivo, existe uma subetapa chamada “compartilhamento” que não se restringe a um expressar solto e sem contexto, mas na afetividade percebida a partir da cena dramática do protagonista. Teoricamente foi Zerka Moreno, esposa de Jacob Levy Moreno, que a introduziu na ordenação metodológica do psicodrama, a ser realizada no encerrar da subetapa da dramatização. O compartilhamento é também denominando sharing. Examinando o compartilhamento de maneira mais aprofundada, esse é um momento destinado a todos os participantes da cena psicodramática para que exponham as histórias afetivas de cada um. Nesse momento, há uma consonância com o vivido dos participantes com o desdobrar das cenas dramáticas, revelando a expressão afetiva e, quando em grupo, evidenciando a caixa de ressonância grupal (Menegazzo et al., 1995Menegazzo, C. M., Tomasini, M. A., & Zuretti, M. M. (1995). Dicionário de Psicodrama e Sociodrama. Ágora.).

O psicodrama socioeducativo nos grupos da assistência social coloca a especificidade mais no próprio método do que no ambiente e tipo de trabalho que está sendo aplicado, revelando sua diversidade de possibilidades no contexto socioeducacional, conforme as entrevistadas Adriana Esteves e Regina Casé. O psicodramatista, de acordo com Moreno (1978)Moreno, J. L. (1978). Psicodrama. Cultrix., no intuito de extrair toda a potência criativa de seus participantes e o despertar da espontaneidade, precisa se sensibilizar com o grupo e seus indivíduos, e, por fim, também se sentir participante desse processo. O encantamento de certos psicodramatistas pelos efeitos relevantes que emergem em indivíduos e grupos reforça o psicodrama como algo potente, forte, único, como um híbrido entre arte e ciência, como colocou o entrevistado Wagner Moura.

As oportunidades de acesso ao psicodrama também se dão a partir das percepções e dificuldades no exercício do papel desses profissionais. A compreensão do trato com os usuários, o desconhecimento do método psicodramático, o enfrentamento de modelos de trabalho engessados, conjuntamente com a falta de abertura da própria política pública nas expressões de habilidades de psicodramatistas, são situações narradas por Nietzsche, Oprah e Fernanda Montenegro. A contribuição do método psicodramático no contexto grupal, utilizado como sociodrama, jogo dramático ou outro recurso técnico da sociatria de Moreno, faz-se com caráter socioeducacional. Nesse intuito, Nery e Gisler (2019, p. 13)Nery, M. P., & Gisler, J. V. T. (2019). Sociodrama: método ativo na pesquisa, no ensino e na intervenção educacional. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(1), 11–19. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190002
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190...
apontam que “o sociodrama busca, vivencialmente, ampliar a criatividade dos participantes do grupo sendo um método ativo que articula o modo de ser e de pensar de cada um com suas possibilidades de aprendizagem e de resolução de problemas”. Essa vertente objetiva a compreensão e resolução pela espontaneidade e criatividade do grupo, pelo fortalecimento dos vínculos e o enfrentamento das vulnerabilidades sociais, mas também pelo desenvolvimento do grupo e seus integrantes na busca do bem estar pelas relações humanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências relatadas serviram de material para refletir e investigar como são apropriadas nas oficinas de PAIF e outros cenários que surgiram, como grupo de mulheres do CREAS e o desenvolvimento de profissionais na assistência social. Os entrevistados puderam revelar suas aceitações e complicações no uso do psicodrama em suas ações socioassistenciais. O psicodrama, sendo sucessor do teatro da espontaneidade de Moreno, apropriou também da ação espontânea dos entrevistados para que fossem assumidos novos papeis e suas identidades invertessem com artistas admirados por eles mesmos. Assim, surgiram Elis Regina, Adriana Esteves, Regina Casé, Wagner Moura, Idina Menzel, Nietzche, Oprah Winfrey e Fernanda Montenegro. Há nos relatos uma afetividade em ter o psicodrama como base de orientações teórica, prática e metodológica para suas intervenções, sendo que destacamos na pesquisa ações desenvolvidas através do psicodrama socioeducacional com grupos e as multiplicidades de percepções de todo cenário, envolvendo os usuários, a equipe, a gestão e os próprios psicodramatistas.

Os grupos trabalhados citados por técnicos psicodramatistas, fazendo referência às faixas etárias e aos seus formatos diversos, revelaram possibilidades diferenciadas no campo de atuação das ações coletivas do PAIF. Além disso, ocorreram certos avanços conquistados pelas participações de usuários e equipe, porém, com dificuldades estruturais e relacionais na realidade de equipamentos públicos. Portanto ficando mais evidente a necessidade de mais metodologias criativas e ativas no contexto do SUAS para o enfrentamento da própria vulnerabilidade que se passa entre o trabalho e os trabalhadores da assistência social.

São desafios não apenas a questão do espaço físico insuficiente, como a escassez de material, o despreparo dos profissionais do SUAS, a deficiência de gestão e as interferências negativas de políticos e da política nas ações desenvolvidas nos equipamentos. Condições essas tornam sucateados os serviços, porém revelam “ajustamentos” de profissionais em conseguir atuar conforme estipula o PNAS e por tornar criativas as atribuições junto às intervenções realizadas. As metodologias criativas são um aspecto para práticas que estão sendo executadas e pesquisadas por outros que idealizam meios de tornar os “invisíveis” em “visíveis” nas relações sociais e comunitárias. Não bastam que os métodos existam, mas que possam servir de mecanismos de potencializar os indivíduos no enfrentamento de realidades vulneráveis e com riscos sociais.

As narrativas expuseram validades e benefícios ao grupo, como: o feedback dos usuários, o envolvimento nas dramatizações, a potência das técnicas, o cumprimento dos objetivos, a potencialidade para o protagonismo social. Os encontros narrados são carregados de expressões que denotam a metodologia psicodramática, sendo apropriada às ações do CRAS. No contra papel das narrações protagônicas que permeiam o antagonismo do psicodrama no SUAS, surgem situações que necessitam de cuidados e reflexões ainda mais profundas. Quando se trata do desconhecimento de uma metodologia criativa que possa desenvolver pessoas no contexto das suas relações, como é o psicodrama, percebe-se não somente a ausência de mais linguagens para trabalhar coletivamente, mas visões distorcidas sobre as suas aplicabilidades.

Diante das elucidações com as narrativas dos entrevistados, mesmo almejando atingir os objetivos e a visibilidade do psicodrama no PAIF, não pretendemos esgotar essa temática. Esse material de pesquisa tem muito a ser ampliado para outros pesquisadores e apreciadores do campo socioassistencial, sendo psicodramatistas ou não. As questões lançadas são intencionais para compreendermos mais a política pública da assistência social, as metodologias criativas, o psicodrama socioeducativo, os técnicos psicodramatistas e as possibilidades de intervenções em grupos. Fazem-se necessários ainda mais estudos sobre conceitos psicodramáticos para leitura da realidade social, os desdobramentos frente ao formato socioeducacional do psicodrama e o desenvolvimento da socionomia de Moreno, que permitam percepções das instâncias relacionais, grupais e dos indivíduos.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no estudo em curso.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

  • Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2005). Política nacional de assistência social – PNAS/2004: Norma Operacional Básica – NOB/SUAS. Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf Acesso em: 26 out. 2020.
    » https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
  • Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2013). Tipificação nacional de serviços socioassistenciais Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf Acesso em: 26 out. 2020.
    » https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf
  • Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2016). Caderno de orientações: Serviço de proteção e atendimento integral à família e serviço de convivência e fortalecimento de vínculos. Articulação necessária na proteção social básica Brasília: MDS. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/cartilha_paif_2511.pdf Acesso em: 26 out. 2020.
    » https://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/cartilha_paif_2511.pdf
  • Bruner, J. (2002). Atos de significação Artmed.
  • Conselho Federal de Serviço Social. (2007). Parâmetros para atuação de assistentes sociais e psicólogos (as) na Política de Assistência Social CFESS/CFP. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2007/09/relatorio_atuacao_psi_pas.pdf Acesso em: 26 out. 2020.
    » https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2007/09/relatorio_atuacao_psi_pas.pdf
  • Costa, L. F., Guimarães, F. L., Pessina, L. M., & Sudbrack, M. F. O. (2007). Single session work: Intervenção única com a família e adolescente em conflito com a lei. Journal of Human Growth and Development, 17(3), 104–113. https://doi.org/10.7322/jhgd.19852
    » https://doi.org/10.7322/jhgd.19852
  • Freire, P. (1983). Pedagogia do oprimido Paz e Terra.
  • Freitas, M. F. Q. (2005). (In)coerências entre práticas psicossociais em comunidade e projetos de transformação social: Aproximações entre as psicologias sociais da libertação e comunitária. Psico, 36(1), 47–54.
  • Gibbs, G. (2009). Análise de dados qualitativos Artmed.
  • Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação social: Um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11–67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
    » https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
  • Kummer, L. (2007). Metodologia participativa no meio rural: Uma visão interdisciplinar. Conceitos, ferramentas e vivências. GTZ.
  • Labov, W., & Waletzky, J. (1997). Narrative analysis: Oral versions of personal experience. Journal of Narrative and Life History, 7(1–4), 3–38. https://doi.org/10.1075/jnlh.7.02nar
    » https://doi.org/10.1075/jnlh.7.02nar
  • Macêdo, O. J. V., Lima, C. M. P. D., Brito, F. H. S., Souza, J. N. P., Sousa, N. K. M., Sousa, S. P., & Dias, S. G. (2018). Atuação dos profissionais de psicologia nos CRAS do interior da Paraíba. Temas em Psicologia, 26(2), 1083–1097. https://doi.org/10.9788/TP2018.2-20Pt
    » https://doi.org/10.9788/TP2018.2-20Pt
  • Marineau, R. F. (1996). Jacob Levy Moreno, 1889-1974: Pai do psicodrama, da sociometria e da psicoterapia de grupo. Ágora.
  • Menegazzo, C. M., Tomasini, M. A., & Zuretti, M. M. (1995). Dicionário de Psicodrama e Sociodrama Ágora.
  • Moreno, J. L. (1978). Psicodrama Cultrix.
  • Motta, J. M. C., Esteves, M. E. R., & Alves, L. F. (2011). Psicodrama público: Um projeto social em Campinas. Revista Brasileira de Psicodrama, 19(2), 33–39.
  • Nery, M. P., Costa, L. F., & Conceição, M. I. G. (2006). O Sociodrama como método de pesquisa qualitativa. Paidéia, 16(35), 305–313. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2006000300002
    » https://doi.org/10.1590/S0103-863X2006000300002
  • Nery, M. P., & Gisler, J. V. T. (2019). Sociodrama: método ativo na pesquisa, no ensino e na intervenção educacional. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(1), 11–19. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190002
    » https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190002
  • Seidel, J. M. O. (2009). O protagonista no psicodrama sócio-educacional e no teatro-educação [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília.

Editado por

Editora de seção: Marília Meneghetti Bruhn

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2021
  • Aceito
    20 Out 2021
Federação Brasileira de Psicodrama Rua Barão de Itapetininga, 37 conj. 402 , cep: 01042-001 - São Paulo - SP / Brasil, tel: +55 (11) 3673 3674 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbp@febrap.org.br