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Nietzsche e a ambígua valoração da estupidez* * Tradução de Saulo Krieger

Nietzsche and the ambiguous evaluation of stupidity

Resumo:

É importante para a sociedade a luta contra a estupidez, porque o estúpido é constitutivamente destrutivo. Mas aquele que luta contra a estupidez, própria e alheia, é, sobretudo, tradicionalmente, o filósofo. Vamos constatar a presença dessa luta em Nietzsche, e perscrutar a relevância que teria em sua obra, em geral pouco ressaltada. Nietzsche se une à linhagem clássica da denúncia da estupidez, extremando-a ao modulá-la nos termos de seu perspectivismo como incapacidade de “sair” da perspectiva única. Além disso, procederemos a descobrir uma classe de estupidez que acompanha a sabedoria como sua sombra necessária e que seria a que nos abre, diante do cristianismo paulino e erasmista, a possibilidade de uma ciência alegre. Por outro lado, a estupidez cósmica teria o bonito nome de “necessidade”, e o dionisíaco do pensamento do eterno retorno radica sobretudo no amor fati, que em nosso caso se traduziria como afirmação e ainda amor da estupidez. Por isso Nietzsche dirá que a sabedoria dionisíaca é o princípio da maior estupidez possível.

Palavras-chave:
estupidez; filosofia; cristianismo; necessidade; Dioniso

Abstract:

It is important for society to fight against stupidity because the stupid is constitutively destructive. But the one who fights against stupidity, his own and that of others, is, above all, traditionally the philosopher. Let us note the presence of this struggle in Nietzsche, and realise the relevance it would have in his work, which in general is little emphasised. Nietzsche joins the classical line of denouncing stupidity, although he does so to an extreme by modulating it in terms of his perspectivism as an inability to “get out” of the single perspective. Moreover, he is going to discover a kind of stupidity that accompanies wisdom as its necessary shadow and that would be the one that opens for us, in the face of Pauline and Erasmist Christianity, the possibility of a joyful science. On the other hand, cosmic stupidity would have the beautiful name of “necessity”, and the Dionysian aspect of the thought of the eternal return lies above all in the amor fati, which in our case would be translated as affirmation and even love of stupidity. That is why Nietzsche will say that Dionysian wisdom is the principle of the greatest possible stupidity.

Keywords:
stupidity; philosophy; Christianity; necessity; Dionysus

1. O filósofo contra os estúpidos

Não é em absoluto insensato situar a “utilidade” da Filosofia, diríamos que seu serviço à sociedade, no combate sem trégua contra a estupidez, própria e alheia. Por isso tantos houve e tantos há que acreditaram necessário chegar a dizer que o filósofo irrompe em sua época, ou melhor, contra a sua época, como o típico estraga-prazeres que entristece as pessoas, que com sua chegada acaba com a festa.1 1 Neste ponto nos vem à mente o tão significativo título de uma velha obra de Rudolf Steiner, publicada pela primeira vez no mesmo ano da morte do filósofo: Friedrich Nietzsche. Ein Kämpfer gegen seine Zeit. Dornach/Schweiz, Benteli AG, 1963. Isso supõe que se subscreva a ideia tradicional, profundamente erasmiana, de que a alegria seria coisa de tontos, enquanto próprio do sábio seria a tristeza. Essa ideia, como veremos, Nietzsche se esforçará com ardor por desmentir. Por isso havemos de reconhecer, para começar, a importância do tema da estupidez em seu pensamento, por muito que os investigadores nietzschianos não tenham insistido especialmente nele. Com exceções, claro está:

Ao colocar o pensamento no elemento do sentido e do valor, ao fazer do pensamento ativo uma crítica da estupidez e da baixeza, Nietzsche propõe uma nova imagem do pensamento. Nunca o pensamento pensa só e por si mesmo; nunca tampouco ele vem simplesmente turvado por forças que seriam sempre exteriores. Pensar depende das forças que se apoderam do pensamento2 2 Deleuze, 1971, p. 152. .

Essa declaração de guerra, filosófico-crítica contra a estupidez, só a compreendemos uma vez que reparamos nos terríveis efeitos destrutivos dos estúpidos e dos idiotas sobre a humanidade em seu conjunto. Porém isso é algo que não se põe em relevo com a frequência e com o rigor que seriam desejáveis. Ainda que, como disse Unamuno, não exista tonto bom, o tonto é mais perigoso que o malvado3 3 Carlo M. Cipolla teria enunciado com toda a clareza, em modo humorístico, que vem sendo habitual na literatura sobre o tema, as Três Leis Fundamentais da Estupidez (Cipolla, 1991, pp. 51-87). Em concreto, justo na linha indicada pela citação livre que faz Nietzsche de Horácio (Sátira I, 1, 24) depois do prólogo, justamente no começo de O caso Wagner: “ridendo dicere severum” (WA/CW 1. KSA 6.13). A terceira dessas leis de Cipolla, destacada pelo autor como a “Lei de Ouro”, enunciaria a seguinte verdade indubitável: “Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a outra pessoa ou grupo de pessoas sem obter, ao mesmo tempo, um proveito para si, ou até mesmo obtendo um prejuízo” (Cipolla 2019, p. 66). De onde se vai concluir que é mais daninho o tonto do que o malvado, uma vez que o primeiro não segue nenhuma tática derivada de algum princípio compreensível, e portanto todos estaríamos inermes ante seus manejos, pela impossibilidade de os predizer. Nietzsche nos chegará a fazer filosoficamente explícito, até onde sabemos, esse caráter constitutivamente lesivo e nefasto dos estúpidos. Para dar um exemplo muito significativo a esse respeito, tem-se o borrador da carta que a princípio Nietzsche ia endereçar à mãe de Nice, datado de entre janeiro e fevereiro de 1884, para queixar-se das tramas infernais de sua sádica irmã, tramas que se dirigiam à sua relação com Lou Salomé, e particularmente para se queixar das reclamações a terceiros por ocasião da estada do filósofo com Lou em Tautenburg e Leipzig (BVN, IV,1884, 482, p. 430). Nesse borrador epistolar, com efeito, Nietzsche se dirá verdadeiramente destroçado no mais íntimo pela “funesta perversidade” de Elisabeth contra ele, chamando-a de “tonta” em reiteradas ocasiões (“a gansa estúpida”, “tonta criatura vingativa”, a “insolente tolice sem limites” da irmã), e acusando-a ademais de uma “brutalidade sem igual”, coisa esta que nos fará recordar que mais adiante o nietzschiano Robert Musil vai relacionar estreitamente a estupidez e a brutalidade (Robert Musil, 2017). E, mais ainda, segundo esse exasperado texto de Nietzsche, a estúpida perversidade da irmã contra ele absolutamente não se limitava ao assunto especialmente sensível para ele, que era a relação com Lou, mas teria sido a tônica geral das relações entre ambos. Até mesmo chegará a dizer aqui o filósofo que a irmã “não terá paz até que o veja morto”. .

Aproximando-se o ano em que sairá a luz a Terceira consideração extemporânea (1874), sobre seu mestre Schopenhauer como educador, uma das maiores preocupações nietzschianas é a relação, de forte contraste, entre a figura milenar e quase mítica do filósofo, cujo âmbito próprio seria a cultura, no sentido de Cultur ou de cultivo e promoção do humano; e o personagem burguês do professor, o acadêmico, douto ou erudito (Gelehrter), que em sua época serviria fundamentalmente ao Estado, segundo Nietzsche, com sua programada atividade de pensar em público, ante uma audiência estudantil, sobretudo em horário fixo e estabelecido. É óbvio que para Nietzsche cumprir com a tarefa quase metafísica da cultura, tarefa que se contém na ideia do filósofo como servidor da verdade, nada em absoluto teria que ver com fomentar os fins do Estado, dado que estes consistem, formativamente falando, em habilitar os jovens no menor tempo possível para ser úteis ou ganhar dinheiro. O trabalhar do filósofo, como funcionário da verdade ou, como dirá Husserl depois, da Humanidade, chegará a ser justamente o contrário do que fazem os funcionários do Estado, que desenvolvem sua carreira docente nos centros educativos4 4 Como bem se sabe, Nietzsche segue aqui a linha aberta por seu mestre Schopenhauer, sobretudo no demolidor opúsculo Sobre a filosofia de Universidade (Sobre la filosofia de Universidad. Madrid: Tecnos, 1991), que está incluído entre os escritos mais populares do filósofo, que constituem a última de suas obras: Parerga e Paralipomena. No fundo se trataria de prolongar, contra os hegelianos, a linha da afirmação kantiana segundo a qual não podemos aprender a filosofia, mas somente a filosofar. . Depois da vitória na guerra franco-prussiana, os professores alemães tinham acreditado poder substituir a filosofia, em sua tradição venerável, pela leitura dos jornais do dia, por muito que todo jornal no dia seguinte só valha mesmo para a lixeira. Ante essa reação patriótica de profundo entusiasmo político, e politizador, do novo Reich em sua vitória sobre a França, a resposta nietzschiana não deixa lugar a equívocos no que diz respeito a seu caráter contraepocal ou intempestivo:

Toda filosofia que crê que o problema da existência é afastado ou até mesmo resolvido por um evento político não passa de uma filosofia de salão, de pseudofilosofia. Desde que o mundo é mundo Estados foram frequentemente fundados; essa é uma velha história. Como uma inovação política poderia bastar para fazer dos homens, de uma vez por todas, satisfeitos habitantes da Terra? Caso, porém, alguém acredite do fundo do coração que isso é possível, que apenas se apresente: pois realmente merece se tornar professor de filosofia em uma universidade alemã, como Harms em Berlin, Jürgen Meyer em Bonn e Carrière em Munique (SE/Co Ext. III, 4, KSA 1.365).

Considerando que um catedrático desse estilo será o melhor servidor do Estado, isso é bem o que se buscava. Agora, e é aqui onde queríamos chegar, este terá demonstrado indubitavelmente sua estupidez. Para aclarar essa estranha declaração de Nietzsche, na continuidade expomos o mui feliz argumento de nosso pensador. Lemos que o dever do filósofo, definitivamente, não seria o de servir ao Estado. É que há um dever mais alto que o de servir ao Estado, porque tem que ver com a Humanidade como tal, em vez de com uma organização política concreta, nacional, lutando para manter-se no tempo. Há um dever superior que até quase se poderia considerar de valor “eterno”, e é o do filósofo. Esse supremo dever filosófico consiste em destruir sem contemplações a estupidez, em todas as inúmeras formas em que se manifesta. Mas ocorre que o mesmo dever funcionarial do servidor do Estado, se o contemplarmos não em si mesmo, mas desde o dever do trabalho cultural do pensador, que responderia só mesmo ante a Humanidade em seu conjunto, aparece como uma soberana estupidez. E então chegamos à conclusão de que o dever do filósofo, como especificação ou concreção de seu dever geral de destruir a estupidez humana com seu trabalho cultural, também estaria em destruir o funcionário do Estado, mas sobretudo o que existe nele mesmo, este que pretende habitar comodamente no pensador que ensina a pensar no meio universitário.

Vivenciamos aqui, no entanto, as consequências daquela doutrina pregada recentemente em todos os púlpitos, que afirma que a meta suprema da humanidade é o Estado, e que para um homem não há dever mais elevado do que servir ao Estado: no que eu reconheço uma recaída, não no paganismo, mas na estupidez (SE/Co Ext. III, 4, KSA 1.365).

Pensar que o dever mais alto do homem é o de servir ao Estado significa uma vergonhosa regressão à estupidez, uma lamentável recaída nela. De modo que, desse ponto de vista, Nietzsche, abandonando a sua cátedra na Basileia, estava cumprindo com seu dever filosófico de destruir a estupidez própria. Ou, o que é igual, estava se consagrando como filósofo por meio do ato de desertar da docência5 5 Com respeito à justificação oficial e externa da enfermidade, caberia matizá-la com o que o mesmo Nietzsche vai descobrir sobre esse assunto retrospectivamente mais adiante, tal e como nos relata no Ecce Homo (EH/EH, Por que sou tão inteligente 9, KSA 6.293): com o descobrimento do sentido de sua tarefa (a transvaloração de todos os valores), vai-se poder interpretar a enfermidade como cruel medida de autocorreção que se lhe impõe por ocasião de todo desvio do caminho necessário para cumpri-la. .

Passando neste ponto a outro aspecto importante, de caráter mais geral, há que se deixar assentado que a questão da estupidez de uma atividade ou de um sujeito é sempre a questão do sentido, em concreto da falta de sentido, a insensatez, do que se disse, se faz ou se acostuma a fazer. No caso do acadêmico, já em finais do século XIX e em seu meio alemão, Nietzsche se entrega a uma febril e incessante atividade. O erudito é maximamente diligente, aplicado, formando como forma parte essencial do mundo burguês, organizado em torno do trabalho. Agora, aquilo para o que a suspeita nietzschiana aponta é que esse orgulhoso lançar-se à exterioridade durante toda a sua jornada laboral, tão característico do acadêmico, encontraria seu sentido último no fato de que via de regra o trabalhador da universidade não sabe o que fazer com o ócio, em verdade não o suporta. E então tem de anulá-lo, empanturrando-o com o ativismo selvagem de sua curiosidade. Muito pelo contrário, o verdadeiro filósofo, como centauro de ciência e arte6 6 Cf. a carta que Nietzsche escreve a Erwin Rohde entre fins de janeiro e 15 de fevereiro estando na Basileia, carta em que podemos ler o tão célebre e significativo informe pessoal segundo o qual “ciência, arte e filosofia estão agora crescendo tão juntos em mim, que um dia ainda parirei centauros” (BVN, II, 1870, 58, p. 121). , e justamente porque é um criador, nada mais deseja que o ócio para poder fazer “vagar” o pensamento, para recordar agora a palavra usada por Ortega y Gasset ao manifestar esse mesmo desejo. Essa economia funesta de um pensar académico procede, diríamos interpretando minimamente Nietzsche, do não poder suportar o silêncio da mente, quando resulta que esse silêncio é o único que nos trai o verdadeiro pensar; essa máquina que encontra sua motivação e seu (sem)sentido precisamente nessa incapacidade se nos mostraria então, ao final, e inevitavelmente, como pura estupidez, como insensatez pura.

Há que se considerar, porém, que a condenação da estupidez, nesta que hoje temos de estar todos em princípio de acordo, não se nos impõe por si mesma como devida, nem sequer como natural. Acerca disso temos o grande livro de Erasmo de Roterdã, que não apenas não a condena, mas a louva. Limitando-nos a nossa cultura, teríamos de remontar aos antigos filósofos gregos para encontrar as primeiras reflexões sobre a meta de seu trabalho na cidade, sobre o serviço da filosofia aos cidadãos. Essa meta consistiria, evidentemente, em diminuir ou mesmo eliminar a infelicidade humana. E Nietzsche nos relata, num aforismo intitulado “Prejudicando a estupidez” (FW/GC, 328, KSA 3.555), que toda a classe de predicadores, entendemos por nossa parte que sobretudo cristãos e modernos, têm vindo a ser da convicção de que a causa da desgraça evitável dos homens não é outra que não o egoísmo. Agora, tratava-se do egoísmo tomado em bloco, de maneira tosca e ingênua, sem se distinguir entre seus dois tipos. Nisso se equivocavam, segundo Nietzsche, porque com isso estavam dando voz ao instinto de rebanho: [essa prédica] “fez dano ao egoísmo, e lhe deixou muito espírito, muita alegria, muita inventividade, muita beleza, tornou-o mais estúpido, mais feio, o envenenou!” (FW/GC, 328, KSA 3.555). Porém isso não é o que interessa neste trabalho, mas sim a outra suposta etiologia da desdita humana, a filosoficamente subsanável, esta da qual daremos conta em seguida, que vai no sentido contrário ao recém-mencionado:

- Já a filosofia antiga ensinou que a principal fonte de infelicidade é outra: a partir de Sócrates os pensadores não se cansaram de pregar: “A sua irreflexão e estupidez, o seu vegetar conforme a norma, sua sujeição à opinião de seu vizinho é o motivo pelo qual vocês raramente chegam à felicidade - nós, os pensadores, somos, enquanto pensadores, os mais felizes.” Não decidiremos aqui se esta pregação contra a estupidez tinha razões melhores do que a pregação contra o egoísmo, mas é certo que ela tirou à estupidez a boa consciência: aqueles filósofos prejudicaram a estupidez. (FW/GC, 328, KSA 3.555)

Sobretudo de Sócrates em diante assistiremos à incansável denúncia filosófica da maldita Gedankenlosigkeit, da inconsciência, da ausência ou falta de reflexão ou pensamento. A denúncia da estupidez, ou da insensatez, em suma, como a verdadeira causa que faria impossível para os cidadãos levar uma vida feliz. Dessa perspectiva crítica até se poderia dizer que nosso tão freudiano mal-estar na cultura nos vem diretamente dessa idiotice nossa que é própria dos que vivem como se possuíssem sua própria razão, ignorando que, bem pelo contrário, o logos é comum, para pô-lo agora em termos de Heráclito. Por muito que, em aparência, vivam subordinando-se paradoxalmente à opinião do vizinho.

Nietzsche reflete sobre o assunto até fechar quase de todo o aforismo que estamos agora comentando. Sem querer entrar na questão sobre se esses dois diagnósticos da infelicidade comum contam ou não como razões válidas, e já sabemos que, quanto ao que faz uma classe de egoísmo superior, ao seu parecer se teria cometido um grave erro cultural, o que resultaria inegável para ele é que essa dupla operação crítica contra a desdita humana, a moralista e a mais filosófica, haveria tido uma persistente influência em toda a nossa história cultural posterior. Sem dúvida o egoísmo é, mesmo hoje em dia, a definição mesma do mal. Porém, no que agora nos interessa, de sua parte a filosofia teria feito impossível que se possa ser de todo imbecil com boa consciência. Vemo-lo com clareza no fato de que todas as palavras do campo semântico da estupidez são insultos, ou são tomadas como insultos. De nosso ponto de vista, bem poderia ser que isso teve o efeito negativo de desmentir em boa medida a possibilidade de uma reflexão séria, não meramente satírica, não puramente paródica, sobre a estupidez, os estúpidos, os idiotas e o dano que causam à vida humana. Ainda há que se recordar que o próprio Kant teria tratado da estupidez precisamente na relação com o chiste e com a piada7 7 Cf. Achim Geisenhanslücke, 2014. Esse autor se propõe a ressaltar a importância das três facetas da estupidez distinguidas por Kant em textos como Ensaio sobre as enfermidades da mente e Antropologia em sentido pragmático, a saber, as do simplismo moral, o monstruoso e a lentidão (Pflegma). Porém é a limitação óbvia do estudo de Geisenhanslücke, que consiste em fazer da ignorância ou do não saber, em última instância, um sinônimo da estupidez, por muito aconselhável que seja introduzir quaisquer distinções entre suas facetas particulares, o que facilitaria ao máximo o estabelecimento dessa dialética kantiana entre estupidez e piada como dialética interna ou necessária. Pelo contrário, ter bem presente a complexidade do fenómeno da estupidez tornaria problemático seu suposto jogo recíproco com o riso. Isso equivale a dizer, pensamos que esteja claro que a estupidez não consiste, ou ao menos não consiste só, na simples necedade, ainda que obviamente não acreditamos que a obra de Geisenhanslücke no fundo negue esse extremo. Se reconhecemos a urgência de levar a sério os estúpidos, não podemos continuar dando-lhes o benefício de achá-los divertidos. : sobretudo quando se passa a entender unicamente em seu aspecto de não saber, de simples ignorância, então se revela a dialética interna entre a estupidez e o chiste e a piada (Witz). Seja como for, tanto a estupidez teria degradado a filosofia, que já não parece digno do filósofo levar a sério o tema, quanto de nossa parte pensamos que, provavelmente, nesses momentos que estamos hoje atravessando, não há tema mais urgente para a reflexão do filósofo.

Podemos entender então que, na dimensão educadora que lhe seria essencial, aplique-se o filósofo em particular à destruição sem misericórdia das estupidezes que tendem a sair da boca de seus discípulos (Nachlass/FP, 1876, 19 [105], KSA 8.356)8 8 O que esse fragmento ressalta é que o bom educador pode chegar à situação de ofender gravemente a seu discípulo somente para “extirpar pela raiz” uma estupidez que este queira dizer. . Mas é óbvio que também se aplica a aniquilação das estupidezes que se vão formando em sua própria mente. E essa luta pessoal que não teria fim é a condição de possibilidade da primeira. Isso porque o trabalho do filósofo, há que contemplá-lo, a partir daqui, aspirando na medida do possível à incessante destruição de suas estupidezes próprias ou mais características. Nietzsche sabia o bastante das suas. Em uma ocasião referiu-se (JGB/BM 231, KSA 5.170) a esse “algo” dentro de nós que não pode aprender ou que é impossível de instruir (etwas Unbelehrbares), algo tão difícil de modificar como um granítico fundo de “fatum espiritual”. Como se ali mesmo, abaixo do todo, fôssemos dar com um “este sou eu” inalterável. Como se encontrássemos, ali no mais profundo da alma, “a grande estupidez que somos nós”. E não deixa de resultar surpreendente que Nietzsche ponha nesse aforismo o mesmo exemplo como vigente para todos os pensadores: nada menos que o “problema cardeal” do homem e da mulher. Em seu caso particular, o fundo inalterável estaria constituído pela idiossincrasia que adota tal problema, ou seja, suas “verdades” sobre a “mulher em si”, verdades entre aspas porque evidentemente seriam verdades suas, demasiado nietzschianas, e como tais autênticas idiotices.

Porém, se passamos para o decisivo nível da crítica cultural, nesse mesmo sentido veremos que o que o espírito livre, o que o arauto do filósofo do futuro denunciará, entre outras muitas coisas é a estupidez de toda a crueldade moderna em “certeza imediatas” (JGB/BM 34, KSA 5.53). Se a credulidade constitutiva do estúpido se tinha posto num primeiro momento no fato de se aderir sem mais ao que seu grupo de referência se mantém como indubitável, ao final das contas vai-se suspeitar da direção metafísica que tomara por primeiro esse duro meditador solitário que foi Descartes. Porque aqui se trataria, em última instância de superar a estúpida credulidade na verdade como oposta à aparência, ou seja, a verdade entendida em sentido absoluto ou metafísico. Para dar algum exemplo de importância, a credulidade no eu e na coisa, como crenças humanas quase constitutivas: porém sobretudo no eu quero, na vontade como fato básico (GD/CI Quatro grandes erros, 3, KSA 6.90); em definitivo, nas respostas supostamente radicais que nos dá uma consciência supostamente soberana, mal-entendida como não falseadora (FW/GC 333, KSA 3.558). Escalaríamos assim na hierarquia das estupidezes, porém as consequências finais de sua paulatina destruição serão, como é óbvio, as equivalentes à catástrofe cultural do niilismo. Em qualquer caso, o contrário da estupidez entendida como credulidade inocente, ingênua, não é senão a suspeita, a desconfiança. A bendita inocência seria hoje já imperdoável num pensador, por isso se considerará que Descartes foi pouco filósofo ou não o foi a fundo. E esse estar curtido na desrazão que acompanha a lógica desconfiança do que foi burlado amiúde, uma desconfiança que seria para Nietzsche a atitude propriamente filosófica (FW/GC 346, KSA 3.578 “tanta desconfiança, tanta filosofia”), desculparia a má disposição, o mau humor tão frequente no filósofo (JGB/BM 34, KSA 5.53). Nem empatia nem tolerância com o estúpido, tal poderia ser a divisa de uma ilustração consumada.

Finalmente, voltaremos a insistir em que, entre o estúpido e o homem sensato, cujo paradigma o teríamos na figura do filósofo, tem de se deflagrar de contínuo uma guerra surda, porém sem trégua. E o alarmante do estúpido é que nos prejudica. É a sua própria experiência com ele a que lhe vai ditar a Nietzsche algumas estratégias, concebidas como regras de conduta que servirão de autênticas medidas de segurança para nos proteger dos inopinados ataques da estupidez. Pode-se notar que se está dando por descontado com isso que, como vínhamos dizendo, não se deve subestimar, em absoluto, a magnitude do dano que nos podem ocasionar os imbecis: simplesmente “corrompem”. O tratamento recomendado pelo filósofo, com seu exemplo de vida, é sobretudo o de superar o afã de vingança quando alguém tiver perpetrado uma tolice contra nós, abstendo-nos de adotar represálias, para que em seu lugar advenha o desprezo, e até mesmo a comiseração para com o estúpido e sua estupidez. Quando isso não for suficiente, a autodefesa do sensato não duvidará em recorrer à hipocrisia (isto é, nós nos absteremos de dizer ao estúpido o que em verdade se nos passa pela mente, e muito menos contaremos nossos projetos). E para não chegar a circunstâncias extremas, das de vida ou morte, o filósofo optará pela saída sábia, retirando-se para a sua solidão, bem alheado da estupidez ambiental. É muito significativo, ademais, que nessas recomendações nietzschianas que agora nos limitamos a mencionar, esses estúpidos tão perigosos praticamente se assimilem “aos bons e aos justos”9 9 “A quem vive entre os bons, a compaixão lhe ensina a mentir. A compaixão vicia o ar em todas as almas livres. A estupidez dos bons é, com efeito, insondável [unergründlich]” (ZA/Za-III, O retorno para casa (Heimkehr), KSA 4.231). Em relação com esse assunto da estupidez dos bons, cf. Rodríguez González, 2015, p. 141. Por outro lado, Nietzsche emprega em duas ocasiões, com o intuito de nos fazer atestar essa assimilação tão crucial para ele dos bons e dos tontos, o ditado russo que diz: “estúpido até a santidade”, e a mais importante das duas passagens seria sem dúvida, pela riqueza de seu contexto (JGB/BM 227, KSA 5.162). Nosso filósofo teria recolhido o ditado russo diretamente do conto de Ivan Turgeniev “Sonderlinge”, como nos informa Antonio Morillas-Esteban, 2009. .

Da aparição do filósofo.

  1. O profundo mal-estar entre os bondosos - como entre nuvens - e o sentimento de fazer-se cômodo e negligente, e também vaidoso. Corrompe. - Se alguém pretende explicar-se quão mau e débil é aqui o fundamento, os excita e os ouve insultar.

  2. Superação do desejo de vingança e de represália, por desprezo profundo ou por compaixão perante a sua estupidez.

  3. Mendacidade como regra de segurança. E, ainda melhor, fuga para a sua solidão (Nachlass/FP 1884, 26 [153], KSA 11.189)

II. A noção nietzschiana de estupidez

Como vimos, em sua denúncia da estupidez nosso pensador se une ao repúdio filosófico tradicional a ela, posto que a entende fundamentalmente como falta de pensamento ou de reflexão (Gedankenlosigkeit). Sua contribuição consiste propriamente em ir mais além da correção clássica ilustrada, pedagógica, dos antigos e dos modernos, que figuras tão representativas como Sócrates e Descartes vêm a realizar sobre ela. Porque nenhum desses dois grandes filósofos, nem tampouco os que se seguiram, teriam sido capazes de ir longe o bastante por esse caminho crítico, segundo Nietzsche, no sentido de que não foram capazes de se livrar de sua própria estupidez. O primeiro, ao ter sido absurdamente racional, e o segundo porque sua ingenuidade moral não lhe permitiu exercer uma desconfiança metódica de verdade radical. Esse conceito clássico ou medianamente ilustrado de estupidez, por conseguinte, iria na linha do sentido comum, mas temos de esclarecer agora como se vai traduzir, ao final, na noção relativamente nova que o modula em um sentido propriamente nietzschiano. Com efeito, o que primeiro constatamos é que Nietzsche utiliza com diversos matizes os sentidos correntes de termos como “estupidez” e “idiotice”, sem dúvida os mais importantes para este trabalho, juntamente com os numerosos aparentados com eles, entre os quais sobressaem “tolice” e “imbecilidade”. Mas deve-se avançar para o sentido mais genuinamente nietzschiano de todos eles, porque sem dúvida há tal sentido, como veremos em seguida. Em primeiro lugar, atravessaríamos pouco a pouco matizações da estupidez que a vão concretando de formas tão interessantes quanto instrutivas, e que não serão oferecidas uma vez chegado o momento de tratar os diversos e abundantes casos que Nietzsche considera. Por exemplo, para ele já sabemos que o remorso de consciência é como um cão mordendo uma pedra. Isto é, a consciência moral nos morde de vez em quando aos humanos, igual a um cão mordendo uma pedra, o que significa que o remorso de consciência seria toda uma estupidez. E é de supor que se é uma estupidez o é porque não vale para nada: para o cão serve bem para o contrário, para lhe destroçar os dentes, mas tampouco fará mal à pedra. Isso equivale a dizer, a dor do remorso não serve para melhorar o humano que o sofre nem para eliminar a falta que se supõe teria cometido (WS/AS 38, KSA 2.569). Pouco depois, lemos que esquecer os próprios objetivos é a forma mais frequente da estupidez, algo semelhante a esquecer para onde viajamos uma vez que empreendemos a viagem, ou esquecer que escolhemos nossa profissão com um propósito ulterior, mas agora temos feito dela um fim em si mesmo (WS/AS 206, KSA 2.642). Dessas maneiras vamos acabar confirmando-nos na ideia de que o que faria de estúpido um estúpido é, sobretudo, prejudicar-se a si mesmo sem razão aparente. É estúpido, enfim, todo o esforço que resulta contraproducente, o qual se encaixaria bastante bem com nossa ideia tradicional. Esse sentido tão corrente de estupidez, Nietzsche o vê exemplificado à perfeição na exploração dos trabalhadores pelos exploradores. Uma grande estupidez a desses últimos, porque teriam destroçado nossa sociedade, roubando-nos o futuro, pondo-nos a todos em perigo, quase a ponto da guerra. Teria sido maiúscula, nesse sentido, a tolice (Thorheit) dos exploradores e sua loucura, aqui se insiste, simplesmente porque vão ter de pagar, e não apenas eles como todos nós, um preço altíssimo (WS/AS 286, “O valor do trabalho”, KSA 2.681). Talvez nesse mesmo sentido do estúpido como o contraproducente, chegará a declarar enigmaticamente o filósofo que a estupidez é o não-mulheril na mulher. Com isso se pretenderia significar que a estupidez pertence em sentido estrito ao varão (WS/AS 273, KSA 2.671). Essa tese bem pudera ser atribuível a esse fundo idiota duro como o granito a que antes nos referíamos, e que correspondeu em Nietzsche, na divisão, àquele seu que resulta impossível modificar.

Mas seria por volta dessa data chave que é 1886 que se vai percebendo já com nitidez o surgimento do sentido especificamente nietzschiano da estupidez. Para dar um exemplo sumamente interessante e bem conhecido, ao expor o conceito a Wagner, o filósofo, falando desta vez como se fosse um cínico, no que podemos considerar suas objeções definitivas como objeções em sentido estrito fisiológicas (FW/GC 368, KSA 3.616), vai se dirigir sobretudo contra o teatral que segundo ele há no músico, contra Wagner como entusiasmado mimômano. Mas justamente pela razão de que no teatro a estupidez se contagia, ou então, para dizê-lo literalmente, ali a estupidez “atua como lascívia e elemento de contágio”. Num espetáculo coletivo como a ópera wagneriana, de intensidade afetiva transbordada, a pessoa se torna público, o indivíduo se converte em “vizinho”, o particular em “um qualquer” em “alguém mais”, renunciando a seu critério próprio. Sacrificar o critério pessoal à maior glória do grande número, e seu indiscutível encanto, nisso se estriba a estupidez das massas wagnerizadas. Dito mais especificamente, nisso se estriba a estupidez como lascívia e contágio, numa imersão na histeria coletiva que a todos nos arrasta e a todos nos iguala em qualidade de débeis mentais que gozam suspendidos na Gedankenlosigkeit. Os entusiasmados wagnerianos teriam regressado de toda perspectiva genuína, ou seja, diferente, pessoal. Ter-se-iam fundido numa massa em que só mesmo governa, única, a óptica total do tirano sedutor.

Ainda que à primeira vista resulte paradoxal, seria segundo isso estúpido, propriamente idiota, o que se coloca numa situação de incapacidade para considerar ou levar em conta um ponto de vista ou perspectiva diferente da sua. Agora, o aspecto de paradoxo desaparece quando caímos na conta de que essa mesma idiotice equivale a carecer de uma perspectiva verdadeiramente própria, pois é indubitável que se não podes atender ao lugar do outro tampouco podes ter nem ideia de quem és tu. O estúpido ou o idiota não se tem a si mesmo porque não é capaz de reconhecer ao outro, mas se encontraria suspenso no vazio. Quando alguém se converte em vizinho, perde-se a si mesmo porque perde ao outro de uma só vez, e justo então tampouco vai ter vizinho algum. Ter uma perspectiva própria implica necessariamente encarregar-se com toda a consciência da pluralidade de perspectivas diferentes da própria. A massa wagnerizada passa a ocupar, íntegra, a perspectiva do mestre, mas passa a ocupá-la como única perspectiva ou perspectiva total, negando-a com isso como perspectiva, ou seja, negando a possibilidade mesma de toda perspectiva. Se atendemos ao significado diferente dos dois termos, seria isso o que em geral acontece com os estúpidos, na melhor das hipóteses porque estão como que dormidos ou anestesiados ou infantilizados, e então teriam talvez remédio ou cura pedagógica. Isso ocorre também aos idiotas, mas porque são idiotas, porque são como são, e então provavelmente não há nada a se fazer com eles. Desse modo, por nietzschiana definição, os mais estúpidos e os mais idiotas seriam forçosamente os fanáticos de qualquer credo, tanto faz se político ou religioso, seriam aqueles que com mais desespero se aferram a uma identidade qualquer, ou então “põem a rodar seu ser para uma finalidade qualquer”, com não pouca frequência a primeira que se lhes mete na cabeça.

Mas o caso é que, no limite, haveria que se deter em algo que sem dúvida é muito importante, que seria o dar-se de uma estupidez e de uma idiotice constitutivamente humanas. Porque a imunização ante a crítica dessa perspectiva, forma de vida ou modo de ser que seria o nosso, toda a perspectiva humana do sujeito e do objeto, da causa e do efeito, dos números e da lógica, da liberdade de ação etc. nos poderia fechar, como fanáticos da medida humana, outras múltiplas possibilidades não humanas de existência, ou bem inumanas, ou bem sobre-humanas. A grande vantagem da noção nietzschiana de estupidez, e de idiotice, é que ela daria conta admiravelmente daquele que nunca se terá de esquecer nem de descuidar, pela conta que nos tem se é que “queremos que viva o além-homem”: que os estúpidos e os idiotas causem um dano à sociedade maior que o que causam os simplesmente malvados, e esta é a mesma tese de Cipolla. Se acudimos à caracterização radical nietzschiana, teria de se dizer que a perspectiva (humana) é algo assim como uma pequena consideração realizada desde nosso pequeno rincão (Nachlass/FP, 1885, 40[14], KSA 11.634). Ainda que, isto sim, e é importante tê-lo em conta, ditada pela urgente necessidade da vida que nos força a tirar partido do acaso, e a domá-lo na medida do possível. Mas por sua vez, essa ideia de um acaso estupidamente cruel, que continuamente sacrifica o que é mais valioso para nossa perspectiva, assim mesmo seria fruto da estúpida visão especificamente humana. Em realidade, uma estupidez chamaria a outra enquanto só tem sentido em seu contraste, a lógica e o acaso. De qualquer modo, toda perspectiva é, no fundo, uma estupidez, uma idiotice, um estreitamento do olhar que sempre haverá que intentar superar10 10 Mas como em Nietzsche é tão habitual, dando-se conta de que o chamaríamos com pouco rigor de “lógica dionisíaca” de seu pensamento perspectivista, essa proposta sua que agora comentamos, teria de emparelhá-la com a afirmação contrária, publicada, por exemplo, dois anos depois, com igual contundência, segundo a qual “não podemos ver mais além de nosso ângulo”, de modo que é uma “curiosidade sem esperança querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderiam haver” (FW/GC 374, KSA 3.626). De acordo com isso, a estupidez que nos seria constitutiva aos humanos, haveria que a tomar por absolutamente irremediável. E por isso haveria que se considerar qualquer tipo de superação dela como sinal de uma estupidez de segunda ordem, “dupla” ou hiperbólica. , desde o ponto de vista de Nietzsche, para ampliar nosso horizonte. Porque para ele se trata de ser cada vez menos imbecis, na medida de nossas forças. Justamente nessa linha, Nietzsche encontrará uma ocasião muito oportuna para ressaltar de novo o estúpido da perspectiva humana em sua reflexão sobre a aritmética, sobre o valor e o sentido do número, e o espaço e a causalidade. Termina por cair na conta, uma vez mais, de “nossa estupidez” constitutiva, ao assumir a interpretação adequada, pragmatista que não realista, das categorias da consciência humana como consciência linguística: “As fórmulas aritméticas assim mesmo são apenas ficções reguladoras com as quais nós simplificamos e dispomos o acontecer efetivo segundo nossa medida - segundo nossa estupidez -, com o fim prático de tirar proveito dele” (Nachlass/FP,1885, 38[2], KSA 11.597). E como o que numa época se revela útil poderá ser muito prejudicial mais adiante, não convém sacralizar como verdadeira, no sentido forte, ontologizante, a nenhuma perspectiva.

Agora, não cabe dúvida de que, como ele mesmo reconhecera, a condição de possibilidade de proceder à certificação da profunda estupidez da perspectiva especificamente humana, e ademais a extensão a toda perspectiva de semelhante certificado, não seria outra, nem mais nem menos, que ter podido chegar o filósofo a um nível superior de pensamento no qual se tenha logrado a capacidade suprema, que é, segundo este apontamento de Nietzsche, a do sentir cosmicamente:

Ideias fundamental! (...) Somos brotos de uma árvore única - que sabemos nós do que no interesse da árvore pode ser de nós! Mas temos consciência de como se quiséramos e devêssemos ser tudo, ilusões do “eu” e tudo o que é “não eu”. Basta já de sentir-se esse ego fantástico! Aprender pouco a pouco a se desfazer desse pretendido indivíduo! Descobrir os erros do ego! Ver o egoísmo como um erro! Mas tampouco pensar que o contrário seja o altruísmo! Seria amor aos outros pretendidos indivíduos! Não! MAIS ALÉM de “mim” e de “ti”! UM SENTIR CÓSMICO! (Nachlass/FP, 1881, 11[7], KSA 9.443).

De modo que o estúpido aferrar-se à perspectiva própria não se superaria meramente vivendo dentro de outras almas, como se o disséssemos se encarregando empaticamente da perspectiva outra, alheia. Mas, o que não é a mesma coisa, vivendo-se dentro de outras almas11 11 Essa expressão tão sugestiva, viver-se a si mesmo como sendo quem se é, mas no interior de outras almas: Das Sichhineinleben in andere Seelen, encontra-se em um fragmento (Nachlass/FP, 1888, 14[119], KSA 13.296). Trata-se de um extenso fragmento que trata da arte, e de categorias como o belo, o feio, no marco nietzschiano maduro da estética fisiológica. , citação essa literal do último Nietzsche com a qual pretendemos manifestar aqui que tal o eu como o tu habitam por igual no campo de uma mesma perspectiva humana. Perspectiva que é justo o que há que sobrevoar, desprendendo-se dela, se o que queremos é superar nossa constitutiva estupidez. Isso equivale a dizer, nem o eu, nem o tu, porque o indivíduo carece de sentido, mas sim um sentir cosmicamente: nele teríamos o grau zero de estupidez, para nós com muita probabilidade inacessível.

Nietzsche nos diz que, depois da morte de Deus, o mundo se nos renovou porque por fim o descobrimos capaz de um sem fim de interpretações (FW/GC 374 “Nosso novo infinito”, KSA 3.626). Entre essas por óbvio que se incluem possibilidades que não seriam nada divinas, até mesmo interpretações não apenas loucas, mas sobretudo estúpidas, por exemplo a nossa tão humana interpretação do mecanicismo, uma vez que propriamente falando aspiraria, estupidamente, a um suposto grau zero de interpretação. Mas em boa medida se pode considerar, ao contrário, a sobrecarregada interpretação mais característica da consciência gramatical dos homens. Mas toda essa vertigem hermenêutica tão desorientadora que nos proporciona a catástrofe cultural da morte de Deus, pensamos que se poderá compensar a nosso favor reparando na mesma infinidade de interpretações que o mundo novo contém, no sentido de que ela vai liberar a possibilidade do ensaio de novas interpretações mais enaltecedoras da vida que as que careceriam dessa autoconsciência. Deixando a questão agora de lado, o que preferimos extrair desse fragmento nietzschiano, mais relevante para o assunto deste trabalho, é que agora também será possível vislumbrar uma estupidez que entrará em consideração só mesmo como um aspecto ou uma sombra necessária da mesma sabedoria. Estupidez que seria, precisamente, aquilo que poderá fazer da sabedoria verdadeira ciência alegre no sentido nietzschiano da expressão. Acontece que há uma estupidez necessária, se bem que unicamente como acompanhante do saber, uma estupidez graças à qual o saber descansa e se ri em seu próprio exercício. Com esse descobrimento a partir de Nietzsche, o de uma estupidez necessária ao sábio12 12 A primeira vez que Zaratustra se presta a descer entre os homens, ou, como ele próprio diz, a “ascender até o profundo”, ele o faria com o propósito de “regalar e compartilhar, até que os sábios entre os homens tornem a se alegrar de sua insensatez [Thorheit: tolice]” (Za/ZA, Prólogo, 1, KSA 4.11). , necessária somente como guarda-costas do saber, por assim dizer; com esse reconhecimento de uma estupidez útil, talvez, na hora de nos defendermos das acometidas dos “completamente tontos”, aqueles que seriam tontos puros ou sem porção alguma de sabedoria; com essa descoberta, dizemos, se haveríamos deixado por fim atrás nossa subjetividade cultural cristã13 13 Num importante fragmento póstumo da etapa final de sua vida lúcida, relacionado com os parágrafos 20-23 de O Anticristo e com o parágrafo 9 de Incursões de um extemporâneo, de O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche vai contrapor o budismo ao cristianismo, ressaltando agora o contraste que a seu ver se daria entre a “glória espiritual” do primeiro e o “fato” de que o movimento cristão de Paulo de Tarso “toma o partido dos idiotas (sie nimmt die Partei der Idioten) e lança uma maldição contra o espírito” (Nachlass/FP, 1888, 14 [91], KSA 13.267). Essa tese nietzschiana à primeira vista coincidiria, se bem que com uma valoração absolutamente contrária, com a que se manifesta pela boca da Estultícia na celebérrima obra de Erasmo, Elogio de la locura o Encomio de la estultícia (1999), a que antes já fizemos referência. Podemos também recordar, em relação com isso, que uma das ideias que vão se repetir em AC é a de que a ciência é o autêntico pecado original porque para os sacerdotes representaria o perigo de todos os perigos. Nietzsche chega até mesmo a compendiar a doutrina cristã, no que teria a seu ver de essencial, no simples imperativo de “Não conhecerás!”, entendendo que “o restante se segue daí” (AC 48, KSA 6.226). . Com ele, com efeito, deixamos de ser cristãos no sentido relevante da palavra, que nesse assunto nosso corresponde ao cristão que adere entusiasmado ao “escândalo” paulino, reivindicando a estultícia ao cristalino modo erasmiano, ou seja, com o argumento de que só mesmo a tolice nos faria felizes neste mundo de merda: “(...) Tudo aquilo com o que o ser humano não sabe acabar, tudo aquilo que ainda nenhum ser humano digeriu, o excremento da existência - não foi até agora nosso melhor esterco?... Fazer de vez em quando alguma estupidez - oh, que bom sabor recupera de imediato a própria sabedoria!” (NF-1888, 15[119], KSA 13.480). Assim, a sabedoria é alegre porque sabe encontrar outra utilidade para a imundície do mundo, inclusive sabe convertê-la em ouro. Para entender esse importante giro, tão caracteristicamente nietzschiano, basta recordar tudo aquilo da “loucura da Cruz” revelada aos pobres de espírito para sua particular redenção, mas de nenhuma maneira aos sábios do mundo condenados a perder-se na amargura14 14 “Pois a predicação da cruz é uma necedade para os que se perdem; mas para os que se salvam - para nós - é força de Deus. Porque diz a Escritura: Destruirei a sabedoria dos sábios e inutilizarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o douto? Onde o sofista deste mundo? Acaso não entonteceu Deus a sabedoria do mundo? De fato, como o mundo mediante sua própria sabedoria não conheceu a Deus em sua divina sabedoria, quis Deus salvar os crentes mediante a necedade da predicação” (Primeira Epístola aos Coríntios 1: 18-21). “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mateus 5: 3). . Por levar-lhes também a contraria nessa lição delirante aos sapientíssimos de todas as épocas, pelo menos desde Sócrates, que como se sabe também estava farto da vida uma vez chegado a seus setenta anos (GD/CI O problema Sócrates 1, KSA 6.20), agradecemos a Nietzsche pelo fato de não termos de eleger a tristeza ao empreender a tarefa do conhecimento. Porque se desde a obra nietzschiana se pode ser sábio e ao mesmo tempo rir, nela teríamos tomado contato com um riso próprio do sensato.

E como o sábio é natureza e é realidade, essa estultícia-sombra é a que aparece refletida em sua autoconsciência ao que se encarrega do sem-sentido ou da insensatez do real em toda a sua assustadora envergadura. Porque ao fim e ao cabo chegaríamos ao descobrimento de que a realidade, a realidade mesma, vem a ser completamente idiota15 15 Em relação com esse ponto, cf. as interessantes reflexões de Clément Rosset em várias de suas obras, mas especialmente em Lo real. Tratado de la idiotez. Valencia: Pre-Textos, 2004. .

Mas como está fora de toda dúvida que a um idiota não se o pode conhecer, por muito que se faça, tampouco a um estúpido, provavelmente com isso vamos parar na famosa docta ignorancia.

III. O valor da estupidez (Umwertung)

Não é a vida em absoluto pensável, para Nietzsche, como não se a pense como condicionada pelo “perspectivista” e sua injustiça. Ou seja, a vida só pode ser pensada em sua “verdade” se se pensa como consistente na luta de perspectivas como hermenêuticos quanta de força. O espírito livre vai descobrindo, em sua convalescença, algo que se confessará com as seguintes palavras a si mesmo: “Você deve aprender o que há de perspectivista em cada valoração - o deslocamento, a distorção e a aparente teleologia dos horizontes, e tudo o que se relaciona à perspectiva; também o quê de estupidez que há nas oposições de valores e a perda intelectual com que se paga todo pró e todo contra”. (MA I/HH I, Prefácio 6, KSA 2.20). Isso significa, apontávamos, que toda vida contém uma injustiça necessária, isto é, uma injustiça que não se pode eliminar completamente sem que a vida deixe de sê-lo. Com toda a sua contraposição energética de valorações, de taxações de valor, com todo o seu jogo bélico de prós e contras, o das interpretações enfrentadas, é como se para viver a vida tivéssemos de pagar cada momento com a moeda de toda uma perda intelectual (“die ganze intellektuelle Einbusse”). Podemos supor, com coerência, que semelhante perda intelectual viria implicada pela ocupação necessária de uma perspectiva, lançada na luta contra todas as demais, e isso é assim qualquer que seja a perspectiva que se ocupe. Para o que aqui nos interessa, diríamos, então, que seria inseparável do rico processo vital um elemento, muito importante por pequeno que seja, de pura estupidez. E isso pela simples razão de que não pode haver vida total no sentido de unitária, mas só mesmo vida do fragmento lançado contra o fragmento.

Nietzsche tem outra maneira de dizer isso: segundo seu parecer filosófico, acabamos de descobrir em fins do século XIX que, talvez, de modo algum haverá dois reinos ontológicos, mas sim apenas um. Isso significará, de certo ponto de vista crucial, o mesmo que a “morte de Deus”, e obviamente que é impossível não pensar aqui na ciência ocidental, e de forma mais concreta na revolução darwiniana. Isso quer dizer, já não podemos seguir contrapondo com boa consciência um suposto império da intenção e da vontade, um mundo pessoal, ou, em suma, o da racionalidade como encaixe de fins e meios, ao reino do puro, inóspito e estúpido acaso. Império do estúpido no sentido de “ser” sem regra nem razão, do sem-sentido, do absurdo, e por isso diríamos que, por exemplo, o cúmulo da estupidez seja a célebre vontade do sistema schopenhaueriano. Mas a essa altura já podemos saber que estaríamos os humanos de antemão lançados a este único mundo que é em si mesmo o do absurdo cósmico, ainda que justamente por isso seja possível e necessário lutar sem cessar por impor-lhes sentidos exclusivamente humanos ao acaso, com as intenções de nossa vontade, para domá-lo na medida do possível, e mitigar sua crueldade. Esses sentidos, ao cabo, uma e outra vez, serão desfeitos pelas “mãos grosseiras de ossos” da casualidade, que opera como quem desfia a teia de areia de nossos fins, ou como “uma teia caída do alto” sobre eles. O que os gregos chamavam de Moira são, em definitivo, as estupidezes ou as tolices que não cessam de nos incomodar, e de vez em quando chegam a esmagar-nos, o que não impede que frequentes vezes nos entretenham ou até mesmo nos divirtam (M/A 13016 16 O cristianismo teve a ousadia e a audácia de supor, num giro que deixou atônitos os antigos, que esse “reino todo-poderoso da necedade não é tão nécio quanto parece, e que mais somos nós os nécios, nós que não nos teríamos dado conta de que atrás dele - encontra-se o bom Deus, que, se ama os caminhos obscuros, tortuosos e milagrosos, ao final, não obstante, “o faz muito divinamente” (M/A 130, KSA 3.120). , KSA 3.120). Mas o importante para nossos fins neste trabalho é reparar em que a consciência nietzschiana das implicações desse novo “saber”, em realidade tão antigo, vai se resolver num enérgico movimento de afirmação filosófica. “262. Irmãos meus, a natureza é estúpida; e enquanto somos natureza, todos somos estúpidos. Mesmo a estupidez tem um bonito nome: a si mesmo se chama necessidade: vamos nós, pois, em ajuda à necessidade!” (Nachlass/FP, 1882, 5[1], KSA 10.218).

Como vimos, tratar-se-ia de uma entusiástica convocatória para ajudar a necessidade, ou a estupidez, que o filósofo dirige a seus irmãos, aos que estão próximos dele porque o compreendem e levam em conta o seu pensamento. E que não é outra coisa, poder-se-ia pensar, que a chamada para redimir o acaso, afirmando-o e impondo momentaneamente a seu império nossa vontade criadora de sentidos, superando assim a última fase do niilismo, entendido em geral como a cruel lógica sacrificial do Ocidente: a fase do sacrifício de Deus ao Nada17 17 Desse modo o concebia María Zambrano, não por acaso grande leitora de Nietzsche desde que seu primo lhe fez entusiasmar-se com as obras do filósofo quando ainda quase adolescente. . Agora nos cabe dizer não ao Nada-Deus, Nietzsche nos anima a isso, querendo o retorno da estupidez, algo que obviamente estaria incluído no “pensamento”, ou seja, “no pensamento do eterno retorno do mesmo”, que tinha irrompido em 1881 como sentido da tarefa filosófica de Nietzsche.

Esse pessimismo da força que sem dúvida condensa do modo mais claro a mensagem nietzschiana de maturidade no conceito dionisíaco18 18 Teria concluído um investigador recente como Schäfer, para dizê-lo uma vez mais, que “a filosofia de Nietzsche é uma compreensão histórica da existência dionisíaca” (Rainer Schäfer 2011, p. 178). Será em seu definitivo ajuste de contas com o Romantismo, e por óbvio com o romantismo de sua primeira grande obra, que Nietzsche separará por fim duas coisas em realidade opostas, as que Schäfer intentará distinguir como Dioniso I e Dioniso II, por muito que o segundo se possa talvez encontrar, já desde o princípio, ocultado no primeiro, ou em uma confusa mescla. Por um lado, o pessimismo ao estilo schopenhaueriano e wagneriano, e por outro seu próprio pessimismo clássico, ou como ele o vai denominar dionisíaco em sentido próprio: “O mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante pomar.” (FW/GC 370, KSA 3.619). Werner Stegmaier, de sua parte, vai caracterizar graficamente, representando-os por meio de uma instrutiva tabela de quatro entradas, os matizes dessa essencial contraposição, que segundo ele é a que se daria entre o afã artístico de eternizar, ou de “ser”, que nasceria da pobreza de uma vida que sofre (Schopenhauer, Wagner), e o desejo de destruição, mudança e futuro, de “devir” em definitivo, que seria próprio do pessimismo dionisíaco da força (W. Stegmaier, 2012, p. 489), expressão do núcleo de sua filosofia do eterno retorno e da transvaloração. Coincidimos ademais com Germán Meléndez em que esse aprofundamento do pessimismo, pois assim se o deve entender, levado a cabo por Nietzsche representaria uma chave importante, ou até mesmo, a nosso modo de ver, a “chave do desenvolvimento de seu pensamento” (“‘Vertiefung des Pessimismus’ als Schlüssel zur Entwicklung von Nietzsches Denken”, Studia Nietzscheana 2015: http://www.nietzschesource.org/SN/melendez-2015). , se o consideramos do ponto de vista desse trabalho consistirá em não outra coisa que não a afirmação da pura estupidez que é a necessidade ou o acaso. Isso equivale a dizer, se é certo que o dionisíaco significa que há que incluir no amor fati os aspectos “mais dolorosos, terríveis e feios da existência”, o que está fora de dúvida, então também há que incluir nesse amor, e quase antes que todos os demais aspectos, o absurdo ou sua estupidez inextirpável19 19 É Zaratustra quem diz: “A todos os abismos levo eu a bendição de meu dizer sim”, e o próprio Nietzsche o comentará do seguinte modo: “Porém este é, uma vez mais, o conceito de Dioniso” (EH/EH, Zaratustra 6, KSA 6.345). . A afirmação trágica se originaria de um excesso de força, mas além disso teria como consequência o aumento da força. Ou seja, que dizer se na ausência de padrão, de “racionalidade” de nenhum tipo, dizer sim a tão daninho vazio semântico consubstancial ao estúpido, requer do pensador trágico, sem dúvida, um tremendo esbanjamento energético, porém Nietzsche nos augura que com tal desmesurada afirmação da monstruosa estupidez seremos mais fortes do que éramos. Nessa linha nietzschiana, que é a definitiva, poderemos comprovar então a importância de transvalorar a estupidez, ou mudar seu valor ao valorá-la ao inverso de como teriam vindo a valorá-la os filósofos desde há muito tempo. Nós o comprovaremos com o fato de que o pensador alemão aproximará a sabedoria dionisíaca da aceitação daquele que num lúcido, porém enigmático apontamento, denomina princípio da maior estupidez possível. Estamos nos referindo ao fragmento póstumo 26 [243], do verão-outono de 1884, que reúne o projeto que leva por título “A nova hierarquia. Prólogo à filosofia do eterno retorno”. Nele Nietzsche escreve sobre essa questão sua tão dileta que é a hierarquia, simplesmente porque nesses momentos não sabe bem para quem escrever, ao não ter encontrado ouvidos compreensivos entre os hipotéticos leitores nem sequer para a clareza de seu Zaratustra. De modo que tem de concluir pela negação de que os homens sejam iguais, o fragmento sendo um esboço de seu rechaço do igualitarismo. Isso porque se aplica a esquematizar uma reflexão geral sobre a desigualdade, desenvolvida mais detalhadamente em três apartados sucessivos: “a desigualdade dos homens”, “a desigualdade dos criadores” e o terceiro, “a desigualdade dos homens superiores”. Nesse último vamos encontrar o seguinte texto:

(Sabedoria dionisíaca). A força suprema de sentir todo o imperfeito, sofrente, como necessário (digno de retornar eternamente), graças a um superímpeto [Überdrang] de força criadora, que uma e outra vez tem de destruir e eleger os caminhos mais difíceis, mais insolentes (princípio da maior estupidez possível, deus como demônio e símbolo da arrogância [Übermuth]). (Nachlass/FP 1884 26 [243], KSA 11.212)

Dioniso, como excesso de potência criadora/destruidora, e dessa alegria transbordante que conduz via de regra à arrogância, gostaria de eleger os caminhos mais difíceis, que são os mais eufóricos, a desdenhar depreciativamente dos fáceis e transitados por todo o mundo. Ou seja, Dioniso seria o maior dos estúpidos. É a sua pura predileção pelo reto e pelo desafio, por provar-se, por perder-se para recobrar-se. Dioniso, como a força mais elevada, desde essa sua criatividade suprema sente que todo o imperfeito e sofrente é absolutamente necessário para o jogo da existência. Ou, o que vem a ser o mesmo, digno de ser eternamente reiterado ou voltado a trazer para a vida. Dioniso, como deus da vida indestrutível, e portanto máximo esbanjador que não cuida em absoluto de si mesmo porque carece de razão para cuidar-se, seria o estúpido maior do reino, entendendo por tal o único reino do acaso e da necessidade. Mas ao mesmo tempo, não haveria sabedoria mais elevada que a sua, a sabedoria da afirmação incondicionada. Reparemos, para terminar, na riquíssima literalidade do fragmento recém-citado: o princípio da maior estupidez possível seria aquele que sem o duvidar afirma a deus, mas o afirma como demônio. Ou seja, o princípio que afirma a identidade, ou melhor, uma certa maneira de entender a identidade, de deus e demônio. Agora, para Nietzsche, afirmar essa identidade seria o mesmo que lograr conceber a deus como o símbolo de arrogância ou da alegria transbordante, ou da exuberância vital, porque só mesmo ao lograr tal coisa a identidade de deus e demônio se carregaria de sentido pleno. Para dizê-lo de uma vez, ou para dizê-lo uma vez mais: o princípio da maior estupidez possível e o deus/demônio Dioniso, o deus total. Porém, isto sim, restaria a nós aprofundarmo-nos na razão de que essa ideia seja a mais estúpida de todas das ideias...

Referências

  • CIPOLLA, “Las leyes fundamentales de la estupidez humana”, en Allegro ma non troppo Barcelona, Crítica / Planeta, 1991.
  • DELEUZE, G. Nietzsche y la filosofía Barcelona, Anagrama, 1971.
  • ERASMO. Elogio de la locura o Encomio de la estultícia (Madrid: Austral, 1999).
  • GEISENHANSLÜCKE, A. Dummheit und Witz. Poetologie des Nichtwissens (Paderborn, Verlag C. H. Beck, 2014).
  • GONZÁLES, M. G. “Los buenos siempre mienten. Una lectura de la transvaloración nietzscheana”, en Rodríguez González, M. (org.): Nietzsche y la transvaloración de la cultura Madrid: Arena Libros, 2015.
  • MELÉNDEZ, G. “‘Vertiefung des Pessimismus’ als Schlüssel zur Entwicklung von Nietzsches Denken”, Studia Nietzscheana 2015: http://www.nietzschesource.org/SN/melendez-2015)
    » http://www.nietzschesource.org/SN/melendez-2015
  • MORILLAS-ESTEBAN, A. “Nachweiss aus Iwan Turgenjeff, “Sonderlinge” (1881)” [Beiträge zur Quellen-Forschung]. Nietzsche-Studien Vol. 38 (2009), pp. 329-330, Berlim, Nova York.
  • MUSIL, R. Über die Dummheit Berlim: Verlag der Contumax, 2017.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke Kritische Studienausgabe (KSA), 15 vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari), Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988.
  • _____. Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe (KSB), 8 Vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari ). Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1986.
  • _____. Obras Completas. 4 Vols. (Edição dirigida por Diego Sánchez Meca). Madrid: Tecnos, 2014).
  • ROSSET, C. Lo real Tratado de la idiotez Valencia: Pre-Textos, 2004.
  • SCHOPENHAUER, A. Sobre a filosofia de Universidade Madrid: Tecnos, 1991).
  • SCHÄFER, R. “Die Wandlungen des Dionysischen bei Nietzsche”. Nietzsche Studien 2011, pp. 178-202.
  • STEGMAIER, W. Nietzsches Befreiung der Philosophie. Kontextuelle Interpretation des V. Buchs der Fröhlichen Wissenschaft, Berlin / Boston, De Gruyter, 2012.
  • STEINER, R. Friedrich Nietzsche. Ein Kämpfer gegen seine Zeit Dornach/Schweiz, Benteli AG, 1963.
  • *
    Tradução de Saulo Krieger
  • 1
    Neste ponto nos vem à mente o tão significativo título de uma velha obra de Rudolf Steiner, publicada pela primeira vez no mesmo ano da morte do filósofo: Friedrich Nietzsche. Ein Kämpfer gegen seine Zeit. Dornach/Schweiz, Benteli AG, 1963.
  • 2
    Deleuze, 1971DELEUZE, G. Nietzsche y la filosofía. Barcelona, Anagrama, 1971., p. 152.
  • 3
    Carlo M. Cipolla teria enunciado com toda a clareza, em modo humorístico, que vem sendo habitual na literatura sobre o tema, as Três Leis Fundamentais da Estupidez (Cipolla, 1991CIPOLLA, “Las leyes fundamentales de la estupidez humana”, en Allegro ma non troppo. Barcelona, Crítica / Planeta, 1991., pp. 51-87). Em concreto, justo na linha indicada pela citação livre que faz Nietzsche de Horácio (Sátira I, 1, 24) depois do prólogo, justamente no começo de O caso Wagner: “ridendo dicere severum” (WA/CW 1. KSA 6.13). A terceira dessas leis de Cipolla, destacada pelo autor como a “Lei de Ouro”, enunciaria a seguinte verdade indubitável: “Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a outra pessoa ou grupo de pessoas sem obter, ao mesmo tempo, um proveito para si, ou até mesmo obtendo um prejuízo” (Cipolla 2019, p. 66). De onde se vai concluir que é mais daninho o tonto do que o malvado, uma vez que o primeiro não segue nenhuma tática derivada de algum princípio compreensível, e portanto todos estaríamos inermes ante seus manejos, pela impossibilidade de os predizer. Nietzsche nos chegará a fazer filosoficamente explícito, até onde sabemos, esse caráter constitutivamente lesivo e nefasto dos estúpidos. Para dar um exemplo muito significativo a esse respeito, tem-se o borrador da carta que a princípio Nietzsche ia endereçar à mãe de Nice, datado de entre janeiro e fevereiro de 1884, para queixar-se das tramas infernais de sua sádica irmã, tramas que se dirigiam à sua relação com Lou Salomé, e particularmente para se queixar das reclamações a terceiros por ocasião da estada do filósofo com Lou em Tautenburg e Leipzig (BVN, IV,1884, 482, p. 430). Nesse borrador epistolar, com efeito, Nietzsche se dirá verdadeiramente destroçado no mais íntimo pela “funesta perversidade” de Elisabeth contra ele, chamando-a de “tonta” em reiteradas ocasiões (“a gansa estúpida”, “tonta criatura vingativa”, a “insolente tolice sem limites” da irmã), e acusando-a ademais de uma “brutalidade sem igual”, coisa esta que nos fará recordar que mais adiante o nietzschiano Robert Musil vai relacionar estreitamente a estupidez e a brutalidade (Robert Musil, 2017MUSIL, R. Über die Dummheit. Berlim: Verlag der Contumax, 2017.). E, mais ainda, segundo esse exasperado texto de Nietzsche, a estúpida perversidade da irmã contra ele absolutamente não se limitava ao assunto especialmente sensível para ele, que era a relação com Lou, mas teria sido a tônica geral das relações entre ambos. Até mesmo chegará a dizer aqui o filósofo que a irmã “não terá paz até que o veja morto”.
  • 4
    Como bem se sabe, Nietzsche segue aqui a linha aberta por seu mestre Schopenhauer, sobretudo no demolidor opúsculo Sobre a filosofia de Universidade (Sobre la filosofia de Universidad. Madrid: Tecnos, 1991), que está incluído entre os escritos mais populares do filósofo, que constituem a última de suas obras: Parerga e Paralipomena. No fundo se trataria de prolongar, contra os hegelianos, a linha da afirmação kantiana segundo a qual não podemos aprender a filosofia, mas somente a filosofar.
  • 5
    Com respeito à justificação oficial e externa da enfermidade, caberia matizá-la com o que o mesmo Nietzsche vai descobrir sobre esse assunto retrospectivamente mais adiante, tal e como nos relata no Ecce Homo (EH/EH, Por que sou tão inteligente 9, KSA 6.293): com o descobrimento do sentido de sua tarefa (a transvaloração de todos os valores), vai-se poder interpretar a enfermidade como cruel medida de autocorreção que se lhe impõe por ocasião de todo desvio do caminho necessário para cumpri-la.
  • 6
    Cf. a carta que Nietzsche escreve a Erwin Rohde entre fins de janeiro e 15 de fevereiro estando na Basileia, carta em que podemos ler o tão célebre e significativo informe pessoal segundo o qual “ciência, arte e filosofia estão agora crescendo tão juntos em mim, que um dia ainda parirei centauros” (BVN, II, 1870, 58, p. 121).
  • 7
    Cf. Achim Geisenhanslücke, 2014GEISENHANSLÜCKE, A. Dummheit und Witz. Poetologie des Nichtwissens. (Paderborn, Verlag C. H. Beck, 2014).. Esse autor se propõe a ressaltar a importância das três facetas da estupidez distinguidas por Kant em textos como Ensaio sobre as enfermidades da mente e Antropologia em sentido pragmático, a saber, as do simplismo moral, o monstruoso e a lentidão (Pflegma). Porém é a limitação óbvia do estudo de Geisenhanslücke, que consiste em fazer da ignorância ou do não saber, em última instância, um sinônimo da estupidez, por muito aconselhável que seja introduzir quaisquer distinções entre suas facetas particulares, o que facilitaria ao máximo o estabelecimento dessa dialética kantiana entre estupidez e piada como dialética interna ou necessária. Pelo contrário, ter bem presente a complexidade do fenómeno da estupidez tornaria problemático seu suposto jogo recíproco com o riso. Isso equivale a dizer, pensamos que esteja claro que a estupidez não consiste, ou ao menos não consiste , na simples necedade, ainda que obviamente não acreditamos que a obra de Geisenhanslücke no fundo negue esse extremo. Se reconhecemos a urgência de levar a sério os estúpidos, não podemos continuar dando-lhes o benefício de achá-los divertidos.
  • 8
    O que esse fragmento ressalta é que o bom educador pode chegar à situação de ofender gravemente a seu discípulo somente para “extirpar pela raiz” uma estupidez que este queira dizer.
  • 9
    “A quem vive entre os bons, a compaixão lhe ensina a mentir. A compaixão vicia o ar em todas as almas livres. A estupidez dos bons é, com efeito, insondável [unergründlich]” (ZA/Za-III, O retorno para casa (Heimkehr), KSA 4.231). Em relação com esse assunto da estupidez dos bons, cf. Rodríguez González, 2015, p. 141. Por outro lado, Nietzsche emprega em duas ocasiões, com o intuito de nos fazer atestar essa assimilação tão crucial para ele dos bons e dos tontos, o ditado russo que diz: “estúpido até a santidade”, e a mais importante das duas passagens seria sem dúvida, pela riqueza de seu contexto (JGB/BM 227, KSA 5.162). Nosso filósofo teria recolhido o ditado russo diretamente do conto de Ivan Turgeniev “Sonderlinge”, como nos informa Antonio Morillas-Esteban, 2009.
  • 10
    Mas como em Nietzsche é tão habitual, dando-se conta de que o chamaríamos com pouco rigor de “lógica dionisíaca” de seu pensamento perspectivista, essa proposta sua que agora comentamos, teria de emparelhá-la com a afirmação contrária, publicada, por exemplo, dois anos depois, com igual contundência, segundo a qual “não podemos ver mais além de nosso ângulo”, de modo que é uma “curiosidade sem esperança querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderiam haver” (FW/GC 374, KSA 3.626). De acordo com isso, a estupidez que nos seria constitutiva aos humanos, haveria que a tomar por absolutamente irremediável. E por isso haveria que se considerar qualquer tipo de superação dela como sinal de uma estupidez de segunda ordem, “dupla” ou hiperbólica.
  • 11
    Essa expressão tão sugestiva, viver-se a si mesmo como sendo quem se é, mas no interior de outras almas: Das Sichhineinleben in andere Seelen, encontra-se em um fragmento (Nachlass/FP, 1888, 14[119], KSA 13.296). Trata-se de um extenso fragmento que trata da arte, e de categorias como o belo, o feio, no marco nietzschiano maduro da estética fisiológica.
  • 12
    A primeira vez que Zaratustra se presta a descer entre os homens, ou, como ele próprio diz, a “ascender até o profundo”, ele o faria com o propósito de “regalar e compartilhar, até que os sábios entre os homens tornem a se alegrar de sua insensatez [Thorheit: tolice]” (Za/ZA, Prólogo, 1, KSA 4.11).
  • 13
    Num importante fragmento póstumo da etapa final de sua vida lúcida, relacionado com os parágrafos 20-23 de O Anticristo e com o parágrafo 9 de Incursões de um extemporâneo, de O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche vai contrapor o budismo ao cristianismo, ressaltando agora o contraste que a seu ver se daria entre a “glória espiritual” do primeiro e o “fato” de que o movimento cristão de Paulo de Tarso “toma o partido dos idiotas (sie nimmt die Partei der Idioten) e lança uma maldição contra o espírito” (Nachlass/FP, 1888, 14 [91], KSA 13.267). Essa tese nietzschiana à primeira vista coincidiria, se bem que com uma valoração absolutamente contrária, com a que se manifesta pela boca da Estultícia na celebérrima obra de Erasmo, Elogio de la locura o Encomio de la estultícia (1999), a que antes já fizemos referência. Podemos também recordar, em relação com isso, que uma das ideias que vão se repetir em AC é a de que a ciência é o autêntico pecado original porque para os sacerdotes representaria o perigo de todos os perigos. Nietzsche chega até mesmo a compendiar a doutrina cristã, no que teria a seu ver de essencial, no simples imperativo de “Não conhecerás!”, entendendo que “o restante se segue daí” (AC 48, KSA 6.226).
  • 14
    “Pois a predicação da cruz é uma necedade para os que se perdem; mas para os que se salvam - para nós - é força de Deus. Porque diz a Escritura: Destruirei a sabedoria dos sábios e inutilizarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o douto? Onde o sofista deste mundo? Acaso não entonteceu Deus a sabedoria do mundo? De fato, como o mundo mediante sua própria sabedoria não conheceu a Deus em sua divina sabedoria, quis Deus salvar os crentes mediante a necedade da predicação” (Primeira Epístola aos Coríntios 1: 18-21). “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mateus 5: 3).
  • 15
    Em relação com esse ponto, cf. as interessantes reflexões de Clément Rosset em várias de suas obras, mas especialmente em Lo real. Tratado de la idiotez. Valencia: Pre-Textos, 2004.
  • 16
    O cristianismo teve a ousadia e a audácia de supor, num giro que deixou atônitos os antigos, que esse “reino todo-poderoso da necedade não é tão nécio quanto parece, e que mais somos nós os nécios, nós que não nos teríamos dado conta de que atrás dele - encontra-se o bom Deus, que, se ama os caminhos obscuros, tortuosos e milagrosos, ao final, não obstante, “o faz muito divinamente” (M/A 130, KSA 3.120).
  • 17
    Desse modo o concebia María Zambrano, não por acaso grande leitora de Nietzsche desde que seu primo lhe fez entusiasmar-se com as obras do filósofo quando ainda quase adolescente.
  • 18
    Teria concluído um investigador recente como Schäfer, para dizê-lo uma vez mais, que “a filosofia de Nietzsche é uma compreensão histórica da existência dionisíaca” (Rainer Schäfer 2011SCHÄFER, R. “Die Wandlungen des Dionysischen bei Nietzsche”. Nietzsche Studien 2011, pp. 178-202., p. 178). Será em seu definitivo ajuste de contas com o Romantismo, e por óbvio com o romantismo de sua primeira grande obra, que Nietzsche separará por fim duas coisas em realidade opostas, as que Schäfer intentará distinguir como Dioniso I e Dioniso II, por muito que o segundo se possa talvez encontrar, já desde o princípio, ocultado no primeiro, ou em uma confusa mescla. Por um lado, o pessimismo ao estilo schopenhaueriano e wagneriano, e por outro seu próprio pessimismo clássico, ou como ele o vai denominar dionisíaco em sentido próprio: “O mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante pomar.” (FW/GC 370, KSA 3.619). Werner Stegmaier, de sua parte, vai caracterizar graficamente, representando-os por meio de uma instrutiva tabela de quatro entradas, os matizes dessa essencial contraposição, que segundo ele é a que se daria entre o afã artístico de eternizar, ou de “ser”, que nasceria da pobreza de uma vida que sofre (Schopenhauer, Wagner), e o desejo de destruição, mudança e futuro, de “devir” em definitivo, que seria próprio do pessimismo dionisíaco da força (W. Stegmaier, 2012STEGMAIER, W. Nietzsches Befreiung der Philosophie. Kontextuelle Interpretation des V. Buchs der Fröhlichen Wissenschaft, Berlin / Boston, De Gruyter, 2012., p. 489), expressão do núcleo de sua filosofia do eterno retorno e da transvaloração. Coincidimos ademais com Germán Meléndez em que esse aprofundamento do pessimismo, pois assim se o deve entender, levado a cabo por Nietzsche representaria uma chave importante, ou até mesmo, a nosso modo de ver, a “chave do desenvolvimento de seu pensamento” (“‘Vertiefung des Pessimismus’ als Schlüssel zur Entwicklung von Nietzsches Denken”, Studia Nietzscheana 2015: http://www.nietzschesource.org/SN/melendez-2015).
  • 19
    É Zaratustra quem diz: “A todos os abismos levo eu a bendição de meu dizer sim”, e o próprio Nietzsche o comentará do seguinte modo: “Porém este é, uma vez mais, o conceito de Dioniso” (EH/EH, Zaratustra 6, KSA 6.345).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2022
  • Aceito
    13 Abr 2022
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