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Três variações sobre o amor na filosofia de Nietzsche

Three Variations on Love in Nietzsche’s Philosophy

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo analisar três aspectos do tema do amor na obra de Friedrich Nietzsche. Para tanto, parte de dois pressupostos: [1] o sentimento do amor deve ser entendido como parte do projeto de crítica à metafísica e aos idealismos presentes na moral, na religião e na arte; e como consequência, [2] como crítica às noções do amor que remete à tradição socrático-platônico, judaico-cristã e moderna. Para tanto, os três aspectos daí derivados, mostram que o amor em Nietzsche 1] não é falta, [2] nem negação de si, [3] nem está baseado na ideia de posse; muito pelo contrário, [1] amor é exuberância, [2] depende da fruição de si e [3] está baseado nas diferenças próprias e desigualdades naturais entre os indivíduos. Tal procedimento analítico chega à afirmação da amizade como amor superior, cujo conteúdo remente a um sentimento de homens nobres, precisamente aquilo que se poderia chamar, em Nietzsche, de um grande amor.

Palavras-chave:
amor; egoísmo; grande amor; afirmação de si; solidão

Abstract:

This article aims to analyze three aspects of the theme of love in Friedrich Nietzsche’s work. For that, it starts from two assumptions: [1] the feeling of love must be understood as part of the project of criticism of metaphysics and the idealisms present in morals, religion and art; and as a consequence, [2] as a critique of the notions of love that refer to the Socratic-Platonic, Judeo-Christian and modern tradition. The three aspects derived from it, show that love in Nietzsche [1] is not lack, [2] nor self-denial, [3] nor is it based on the idea of possession; quite the contrary, the opposite link, [1] love is exuberance, [2] depends on the enjoyment of oneself and [3] is based on self-differences and natural inequalities between individuals. Such an analytical procedure comes to the affirmation of friendship as a superior love, whose content refers to a feeling of noble men, precisely what could be called, in Nietzsche, great love.

Keywords:
love; selfishness; big Love; self-affirmation; loneliness

I. Introdução

“A exigência de ser amado é a maior das pretensões”

(Nietzsche, HH, 523)

Embora não esteja em sua órbita central, o tema do amor é um dos mais ricos e mais instigantes da filosofia de Nietzsche. Disperso ao longo de toda sua obra, sua importância teórica ganha destaque no âmbito de sua crítica à metafísica e aos idealismos, precisamente a partir do segundo período de sua produção filosófica (1876), no contexto de reflexão sobre os sentimentos morais e a análise psicológica da moralidade. Nesse sentido, devemos partir do fato de que a análise do amor está fundada, precisamente, na crítica ao romantismo e à idealização do amor1 1 Em referência a Musset e Wagner, Nietzsche escreve sobre os “homens de 1830”, precisamente aqueles que “impulsionaram uma absurda divinização do amor” (Nachlass/FP, 11 [34], 1887-1888, KSA 13.19). . O tema é, por isso, parte central do projeto de Humano, demasiado Humano, livro no qual, como se sabe, Nietzsche se utiliza da ciência para combater a metafísica presente em três âmbitos da cultura: a religião, a moral e a arte. Vários textos e passagens em relação ao amor, presentes nesta obra publicada em 1878, dizem respeito ao fato de que o amor precisa ser retirado das malhas metafísicas da idealização: eis por que Nietzsche dirige sua crítica ao modo como o amor foi tratado, seja do ponto de vista de sua concepção teórica na filosofia, na moral e na religião, seja do ponto de vista das suas inclinações institucionais, como é o caso do matrimônio.

Vale notar, como bem o faz Ernani Chaves que o tema do amor em Nietzsche está relacionado aos moralistas franceses e também à ópera de Bizet2 2 Carmen é assumida por Nietzsche como uma espécie de alternativa antirromântica. A respeito da obra, Nietzsche escreve, entusiasmado: “Finalmente o amor, o amor retraduzido em natureza! Não o amor de uma ‘virgem sublime’! Nenhum sentimentalismo de Senta! Mas o amor como fado, como fatalidade, cínico, inocente, cruel - e precisamente nisso natureza! O amor que em seus meios é a guerra, e no fundo o ódio mortal dos sexos! - Não sei de caso em que a ironia trágica que constitui a essência do amor seja expressa de maneira tão rigorosa, numa fórmula tão terrível, como no último grito de Don José, que conclui a obra” (WA/CW 2, KSA 6.15). , que servia de contraposição a Wagner: “Stendhal, não por acaso, é o autor do De l’amour, obra que para Nietzsche representaria uma verdadeira ‘suma’ da análise das paixões, em conexão com os moralistas franceses, que ele também lia com grande entusiasmo nesta mesma época” (Chaves, 2013CHAVES, Ernani. A arte das paixões: Nietzsche, leitor de Prosper Mérimée.Estudos de Nietzsche, v. 4, n. 1, 2013., p. 49). Em uma nota de seu artigo, Chaves ainda destaca:

Lembremos, por exemplo, que grande parte das Maximes, de La Rochefoucauld é dedicada às paixões, em especial ao amor. Nietzsche possuía três diferentes edições das obras de La Rochefoucauld na sua Biblioteca pessoal: Maximen und Reflexionen/deutsch v. Friedrich Hörlek. - Leipzig: Reclam, o. J.; Réflexions, sentences et maximes morales/précédées d`une notice par Ch. A. Saint-Beuve e Sätze aus der höheren Welt- und Menschenkunde/deutsch hrsg. V. Friedsrich Schulz. - Breslau, 1793. (Chaves, 2013CHAVES, Ernani. A arte das paixões: Nietzsche, leitor de Prosper Mérimée.Estudos de Nietzsche, v. 4, n. 1, 2013., p. 49).

Merimée, Standhal e os moralistas franceses, nesse caso, são ocasião de consolidação da ruptura com Wagner e Schopenhauer, portanto, com sua visão metafísica da arte, presente no primeiro período de sua produção filosófica.

Nessa perspectiva, Nietzsche se contrapõe a três tradições do amor: [1] primeiro, à tradição socrático-platônica, principalmente no que tange à ideia de amor como castigo e como falta, tal como se encontra em O banquete, por exemplo; [2] segundo, à tradição cristã, que transformou o amor em caridade, compaixão e benevolência, valores centrados na abnegação de si; e, [3] em terceiro lugar, à ideia moderna de amor, baseada na concepção de igualdade de direitos, que passou a orientar a vida das famílias. Desse ponto de vista, para Nietzsche, [1] o amor não é falta, [2] nem negação de si, [3] nem está baseado na ideia de posse. Pelo contrário, [1] amor é exuberância, [2] depende da capacidade de fruição de si e [3] está baseado nas diferenças próprias e desigualdades naturais entre os indivíduos, cujo símbolo é a amizade.

II. Amor como fruição de si

Se na passagem famosa d’O banquete os deuses castigaram os seres humanos dividindo-os e misturando-os para que passassem a vida em carência e falta, tentando encontrar a sua outra metade que lhes faltava3 3 “Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. (...) Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” (...) Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher — o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo.” (Platão, 1991, p. 56-57). , para Nietzsche o amor depende primeiro de uma capacidade de autocompletude e autoafirmação: apenas indivíduos plenos de si podem amar. O amor não é outra coisa que um derramamento, uma espécie de luxo e de dádiva daquilo que cada indivíduo conquistou por e para si mesmo e quer partilhar, alegremente, com um outro. Nesse caso, não há nada de carência, mas muito pelo contrário, de plenitude. Quanto mais pleno de si, mais capaz de amar será um indivíduo. O exemplo, paradoxal, seria o próprio Jesus: na sua releitura da “psicologia do redentor” proposta em O anticristo, Nietzsche deixa entrever a ideia de que Jesus poderia estar entre aqueles indivíduos que viam a si mesmos com tal plenitude, confiança e alegria, que não teria encontrado jeito melhor para expressar isso do que dizendo “Eu sou Deus”, ou “Eu sou filho de Deus”. E foi justamente esse sentimento que o levou ao grande amor para com os homens, algo que teria sido fortemente deturpado pelo cristianismo, a partir de Paulo. Por isso, o “célebre fundador do Cristianismo” (MA I/HH I, 144, KSA 2.140) estava entre as exceções à descrição proposta por Nietzsche no terceiro capítulo, Sobre a vida religiosa, de Humano, demasiado humano.

Nietzsche, por isso, intensifica suas críticas ao modo como o cristianismo compreendeu e praticou o amor, cuja ilusão dependeu, principalmente, da invenção de um deus todo-amoroso, tornado um espelho para que o ser humano mire a si mesmo. Ora, uma tal tarefa não poderia ser senão ineficaz e contribuir para o desprezo a si mesmo que marca toda moralidade, dado que ao ser humano não está dada a possibilidade de amar assim, de forma despretensiosa e desinteressada, embora tal tarefa seja-lhe imposta pela moral cristã, na forma de um prejuízo, cujo resultado é a culpa e o sentimento de pecado, de frustração e, nas palavras de Nietzsche, de adoecimento e fastio do homem consigo mesmo. O problema, mais uma vez, não era o ser humano, mas precisamente o espelho no qual ele se olhava.

É precisamente a crítica a essa imagem de um “Deus todo amor” que será um dos alvos principais de Nietzsche porque, ao desvelar o seu sentido mais maléfico, levaria à inocência do homem: “Como? Um deus que ama os homens, desde que acreditem nele, e que lança olhares e ameaças terríveis a quem não crê nesse amor? Como? Um amor com cláusulas é o sentimento de um Deus todo-poderoso? (FW/GC, 141, KSA 3.489). A filosofia nietzschiana, assim, assumiu a tarefa de questionar e apontar os prejuízos do cristianismo para a vida e, consequentemente, um novo convite de amor à terra.

Ora, para Nietzsche, uma tal plenitude se conquista na solidão, ocasião para o cultivo de si, quando alguém sente a distinção em relação à massa gregária e empenha-se em tornar-se uma obra de arte: “por meio da arte, nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno” (FW/GC 107, KSA 3.464). Fazer de si mesmo uma obra de arte significa conquistar uma plena beleza de caráter que possa levar ao mais alto grau de fruição consigo mesmo: “pois uma coisa é necessária: que o homem atinja a sua satisfação consigo” (FW/GC, 290, KSA 3.530). Amando-se a si mesmo por sua beleza, então o indivíduo estará preparado para entregar-se a outros, não porque ele mesmo necessite fazê-lo como resultado de uma carência, mas precisamente o contrário, como resultado de uma exuberância que quer derramar-se, partilhando uma tal beleza.

Adquirir tal beleza é um processo árduo que pode ser resumido em uma virtude que Nietzsche considera essencial, um critério central para a prática do amor: a solidão. Como uma espécie de asseio, de toalete espiritual, a solidão é o critério desse embelezamento que faz cada indivíduo elevar-se até o mais algo degrau do amor a si mesmo. Se a vida em sociedade é sempre uma experiência de sujeira e adoecimento, a solidão é o lugar da reconquista da saúde:

Por isso vou para a solidão - a fim de não beber das cisternas de todos. Estando entre muitos, vivo como muitos e não penso como eu; após algum tempo, é como se me quisessem banir de mim mesmo e roubar-me a alma. Aborreço-me com todos e receio a todos. Então o deserto me é necessário, para ficar novamente bom. (M/A, 491, KSA 3.290).

Ora, Nietzsche faz da solidão um elemento de crítica à moral vigente no Ocidente, que a negou em nome da gregariedade: “Paulatinamente esclareceu-se, para mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina - a suportar a solidão” (M/A, 4443, KSA 3.270), escreve o filósofo em Aurora, 443. Isso ocorre porque a virtude moral por excelência, passou a ser o “instinto de rebanho”:

o que aqui se julga saber, o que aqui se glorifica com seu louvor e seu reproche, e se qualifica de bom, é o instinto do animal de rebanho homem: o qual irrompeu e adquiriu prevalência e predominância sobre os demais instintos, fazendo-o cada vez mais, conforme a crescente aproximação e assimilação fisiológica de que é sintoma. Moral é hoje, na Europa, moral de animal de rebanho (JGB/BM, 202, KSA 5.124).

E é essa a moral que precisa ser combatida e para a qual é preciso que sejam valorizadas novas virtudes, agora não mais produto e promotoras da fraqueza, mas da força da vida:

Permanecer senhor de nossas quatro virtudes, da coragem, do discernimento, da simpatia, da solidão. Pois a solidão é uma virtude, como uma sublime inclinação e ímpeto de asseio, que adivinha que no contato com os homens - ‘em sociedade’- as coisas têm que ocorrer de maneira inevitavelmente suja. Toda comunidade - de alguma maneira, em algum lugar, alguma vez - torna comum. (JGB/BM, 284, KSA 5.231).

Não por acaso, o exemplo constante de Nietzsche a esse respeito seriam os gregos: trata-se daquela “falha no espelho”, provocada por “erros da razão” em relação a si mesmo (MA I/HH I, 133, KSA 2.126). Enquanto o homem grego, olhando-se no espelho, viu a si mesmo e a tudo ao redor como belo, criando por isso uma religião de autoafirmação; os cristãos viram em si mesmos muitos defeitos, implementando medidas que tentavam consertar esse desgosto consigo mesmos, algo que, afinal, ficou na base da moralidade, nascida precisamente desta falha do espelho. Os cristãos não se deram conta de que esse desgosto era, na verdade, um “erro da razão” (uma falha no espelho - no limite - e não em si mesmos). Nesse aforismo 133 de Humano, demasiado humano, Nietzsche se pergunta: “como poderia o ego agir sem ego?”, colocando em xeque com isso a base do amor cristão, baseado puramente no altruísmo. Isso porque, no alto da moralidade, estaria a invenção de “um Deustodoamor”, que serviu a partir de então de parâmetro para o ser humano, que deve evitar o egoísmo em nome do mais radical altruísmo: o homem “se compara com um ser que sozinho é capaz de todas as ações altruístas e que vive na contínua consciência de um modo de pensar desinteressado: Deus; é porque olha nesse espelho claro que o seu ser lhe parece tão turvo, tão incomumente deformado” (MA I/HH I, 132, KSA 2.125). Nietzsche recorda uma frase de Lichtenberg: “é impossível sentir pelos outros, como se costuma dizer; sentimos apenas por nós mesmos. A frase soa dura, mas não é, se for apenas corretamente entendida. Não amamos pai, mãe, esposa ou filho, mas os sentimentos agradáveis que nos causam” (MA I/HH I, 133, KSA 2.126). Em outras palavras, a base de todo amor seria sempre o egoísmo. Nietzsche, por isso, ironiza a crença em um amor não-egoísta:

Aquele está oco e quer ficar cheio, esse está repleto e quer esvaziar-se - cada qual é impelido a buscar um indivíduo que sirva a seu propósito. E este processo, entendido em sua mais alta acepção, é designado com uma palavra nos dois casos: amor - como? O amor deveria ser algo não-egoísta? (M/A, 145, KSA 3.137)

Além disso, Deus se tornou um princípio negador da solidão, porque é uma companhia onipresente, inventada como motivo de segurança e “conforto”. O anúncio de sua morte, por isso, abre o homem par a sua liberdade, representada por um “estar a sós consigo”, um “estar inobservado, desprotegido, irrefreado, não-obsequiado” (M/A, 464, KSA 3.279), justamente o contrário da situação protagonizada pela divindade, que se caracterizava como uma “importunidade celeste”, um “inescapável vizinho sobrenatural”. Deus, porque tudo ama, tudo vigia e protege, nunca deixando o ser humano de fato sozinho consigo mesmo.

Dessa forma, o tipo de amor praticado por Nietzsche é aquele do grande amor, tomando em conta que essa expressão traduz a inclusão no conceito de amor, precisamente do seu contrário: se em Nietzsche encontramos a ideia de “grande arte” (grosse Kunststufen - GT/NT, 4, KSA 1.42), “grande saúde (grosse Gesundheit - FW/GC 382, KSA 3.637), “grande política (grosse Politik - MA I/HH I, 481, KSA 2.314; JGB/BM, 241, KSA 5.180), grande razão (grosse Vernunft - JGB/BM, 201, KSA 5.122), “grandes homens” (grosse Männer - MA I/HH I, 163, KSA 2.153; ZA, I, Das moscas do mercado, KSA 4.65) etc. é porque o adjetivo grosse (grande) desempenha um papel de transliteração, ou seja, de alteração do sentido do substantivo ao qual ele se refere. Em outras palavras, o uso do adjetivo aumentativo traduz a dinâmica da nova compreensão semântica buscada por Nietzsche como possibilidade de repensar o conceito a partir de dentro, numa configuração capaz de reunir dois extremos num mesmo requisito teórico-metafórico.

Assim, ao falar em grande amor, incluíamos nele o que, tradicionalmente, foi considerado o seu contrário: precisamente a ideia de egoísmo. Todos os atos considerados amorosos e altruístas, para Nietzsche, guardariam esse resquício justo e legítimo de amor a si mesmo. “O que é então o egoísmo?”, pergunta Nietzsche em um fragmento póstumo: “O sentimento de prazer na expressão da força do indivíduo. O contrário: o sentimento de prazer na renúncia do indivíduo. Em geral, a vida dentre muitos é o prazer fora dos indivíduos, entre os indivíduos” (Nachlass/FP 7[149], KSA 7.197). Egoísmo é prazer consigo mesmo, portanto, prazer em sua própria força, alegria consigo mesmo. A renúncia a si, ao contrário, como quer o cristianismo, não seria outra coisa senão adoecimento e fraqueza.

Nesse caso, mesmo a invenção de um Deus todo amor, pressuporia o egoísmo. Como é próprio da metodologia psicológica praticada no segundo período, Nietzsche também se pergunta sobre a persistência dos atos amorosos ao longo da história da moral. Para responder à questão, ele faz referência direta os estudos do seu amigo Paul Rée, em Sobre a origem dos sentimentos morais: “quanto à razão por que a atos de amor são mais estimados que os outros, não devido a sua essência, mas a sua utilidade, lembremos as ‘investigações sobre a origem dos sentimentos morais’ já mencionadas” (MA I/HH I, 133, KSA 2.126). Como é próprio do tipo de procedimento inaugurado por Rée e desenvolvido por Nietzsche, utiliza-se aqui a ideia da seleção moral, inspirada na teoria evolutiva, na qual a utilidade de um sentimento é que o torna mais comum. Nesse caso, porque eram mais úteis para o bem da comunidade, os gestos amorosos foram mais valorizados e, ao longo do tempo, tornaram-se mais corriqueiros. Isso, embora o homem seja “o mais maldoso dos animais” como diz a frase de Malebranche que serve de epígrafe ao livro de Paul Rée.

III. Amor como exuberância

Como resultado do cultivo dessa espécie de egoísmo saudável, o amor passa a ser visto por Nietzsche como uma exuberância, opulência, profusão e fartura. Talvez o personagem de Zaratustra seja aquele que melhor encarnou essa ideia. Já no início da obra, no seu Prólogo, encontramos o primeiro debate do profeta com o monge da floresta, que representa a tradição cristã, cujo tema é o amor. Para Zaratustra, o amor não é apenas um sentimento individual, mas um afeto pela própria humanidade, uma espécie de amor coletivo que o faz levar a eles uma doação, uma espécie de presente para a humanidade, conquistada nos longos anos de solidão vividas pelo profeta no alto de sua montanha. O diálogo que se estabelece nessa primeira parte da obra é muito revelador: depois de ter vivido dez anos na solidão da montanha, Zaratustra se dá conta de que acumulou “demasiado mel” e que precisa distribuir a sua sabedoria, ou seja, partilhar o resultado da sua conquista. Nenhuma metáfora poderia ser mais útil para simbolizar essa questão do que o sol: como o sol entrega todos os dias o seu calor de forma gratuita, espontânea e sem inveja, pleno de si mesmo, também o profeta quer entregar a sua plenitude; como o sol não se incomoda com a “felicidade excessiva” (Za/ZA, prólogo, 1, KSA 4.11) que cobre com seu brilho, Zaratustra também, como ele, quer declinar, ou seja, levar a sua luz para outros abismos: “abençoa a taça que quer transbordar, para que a água dela escorra dourada e por toda parte carregue o brilho do teu enlevo” (Za/ZA, prólogo, 1, KSA 4.11) porque finalmente, “esta taça quer novamente se esvaziar”.

Essa luz conquistada por Zaratustra é representada (de forma crítica ao século XVIII, que teria sido - enganosamente - o século da luz, porque o século da razão) pelo reconhecimento de sua inocência: “Mudado está Zaratustra”, diz o santo da floresta, “tornou-se uma criança Zaratustra”. Zaratustra conquista a inocência, advinda da conclusão da inexistência da verdade última, traduzida pela notícia da “morte de Deus”. É precisamente a morte de Deus que funda a inocência de Zaratustra e faz com que o seu, seja um amor inocente, porque desprovido de culpa e ressentimento: “Eu amo os homens”. Diante dessa afirmação, o santo responde: “agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria”. Para aquele que ama a Deus, o puro amor, a perfeição última, os homens não são dignos do amor. Para Zaratustra, ao contrário, é pela imperfeição, agora interpretada como um “erro da razão”, que os homens precisam ser libertados para que voltem à inocência desse olhar amoroso sobre si mesmo. Responde então o profeta para o santo: “Que fiz eu, falando de amor? Trago aos homens uma dádiva”. A grande dádiva trazida por Zaratustra se revela precisamente pela ideia de inocência: “mudado está Zaratustra”, diz o santo, “tornou-se uma criança Zaratustra”. A notícia da “morte de Deus”, realidade aprendida no alto da montanha, livra o homem do jogo da culpa, do pecado e do ressentimento que o tornou feio diante do espelho no qual se vê: agora ele recupera a beleza consigo mesmo e de novo poderá amar. Por isso, o anúncio não poderia ser outro: “eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado” (Za/ZA, Prólogo, 3, KSA 4.14). Superar o homem é também superar o desgosto pelo homem; é superar a moralidade da carência e da falta; é superar aquele tipo de amor nascido da náusea. Anunciar o além-do-homem é anunciar o grande amor que o homem precisa reconquistar em relação a si mesmo. Sobretudo, o Übermensch é um produto da recuperação do amor do homem por si mesmo. Como se lê não aforismo 134 de Humano, demasiado Humano, a superação do cristianismo daria lugar para um novo tipo de sentimento amoroso, porque o cristão

foi levado ao sentimento de autodesprezo por alguns erros, isto é, por uma interpretação falsa, não científica, de suas ações e sentimentos, deverá perceber com assombro que esse estado de desprezo, de remorso, de desprazer, não persiste, e que ocasionalmente tudo isso é afastado de sua alma e ele se sentir livre corajoso novamente (MA I/HH I, 134, KSA 2.128)

Eis a necessidade trazida pelo anúncio de Zaratustra: superar a falha no espelho é sobretudo recuperar o prazer consigo mesmo, “o bem estar com a própria força”, para finalmente anunciar: “o homem sente que de novo ama a si mesmo” (MA I/HH I, 134, KSA 2.128). Um tal amor é descrito como um sentimento de “divinação”: o homem agora, afinal, vê tudo como se fosse ele mesmo um Deus, tal o seu contentamento consigo mesmo. Mas o amor que reconhece em si mesmo lhe é ainda algo estranho e aparentemente pecaminoso caso a fonte fosse ele mesmo. Por isso, insiste em reconhecer nesse sentimento de inteireza, ainda um elemento divino:

agora interpreta suas experiências de modo a lhes introduzir a bondade divina: tal evento lhe parece pleno de amor; aquele outro, uma indicação benfazeja; um terceiro, e a sua própria disposição alegre, demonstração de que Deus é piedoso. Se antes, no estado de pesar, interpretava falsamente suas ações, agora faz isso com suas vivências; apreende o seu consolo como efeito de uma força externa; o amor com que no fundo ama a si mesmo, aparece como amor divino; aquilo que chama de graça e prelúdio de redenção é, na verdade, graça para consigo em redenção de si mesmo. (MA I/HH I, 134, KSA 2.128)

Trata-se de uma nova psicologia, que esconde que, no fundo, o homem ama a si mesmo, mas continua ainda dependente da ideia de um Deus, porque não se sente merecedor dessa autoestima. Ele ainda não está libertado de todo das amarras. Ele ainda não se tornou aquilo que Zaratustra veio anunciar. Mesmo amando a si mesmo, mesmo provando essa força que lhe é própria, o homem prefere ainda acreditar que tudo não passa de um “raio de graça”.

Ora, afirmar o amor a si mesmo como algo desejável, coloca o pensamento de Nietzsche mais uma vez em rota de colisão com a ideia de abnegação de si, uma das forças motrizes da moral da compaixão. Transformada em virtude, para Nietzsche a compaixão não passaria de uma fraqueza e conduz à negação da vida:

Em termos bem gerais, a compaixão entrava na lei da evolução, que é a lei da seleção. Conserva o que é maduro para o desaparecimento, peleja a favor dos malogrados de toda espécie que mantém vivos, dá à vida mesma um aspecto sombrio e questionável. Ousou-se chamar a compaixão uma virtude (- em toda moral nobre é considerada fraqueza -); foi-se mais longe, fez-se dela a virtude, o solo e origem de todas as virtudes - apenas, é verdade, e não se deve jamais esquecer, do ponto de vista de uma filosofia que era niilista, que inscreveu no seu emblema a negação da vida (AC/AC, 7, KSA 6.173).

Fazendo referência à “lei da evolução” e à “lei da seleção”, Nietzsche recupera mais uma vez as teses de Paul Rée, para quem a persistência da compaixão foi resultado de um processo seletivo daquilo que era considerado mais adequado para a vida social. Com isso, a moral da compaixão, seja em sua raiz cristã, seja schopenhauriana, remete à celebração do altruísmo e ao combate a qualquer espécie de autofruição. Esse tipo de amor que exige que os outros amem um indivíduo que não ama a si mesmo, é denunciado por Nietzsche como uma espécie de ironia e de contradição do cristianismo e sua estratégia; baseado nas “observações psicológicas” inauguradas em Humano, demasiado humano é preciso demonstrar como nas suas bases encontra-se, embora não revelado, o desejo de autofruição: “O desejo único de autofruição do indivíduo (junto com o medo de perdê-la) satisfaz-se em todas as circunstâncias, aja o ser humano como possa, isto é, como tenha de agir: em atos de vaidade, de vingança, prazer, utilidade, maldade, astúcia, ou em atos de sacrifício, de compaixão, de conhecimento”(MA I/HH I, 108, KSA 2.107).

Em outras palavras, para Nietzsche, quando se acredita em um amor puro, ou seja, sem egoísmo, somos vítimas de nosso “autoengano”:

E credes, vós que tanto glosam e elogiam “o esquecimento de si mesmo no amor”, “o abandono do eu na outra pessoa”, que isso é algo essencialmente diferente [do que se chama de autoengano]? Assim, pois, alguém rompe o espelho, se imagina transferido a uma pessoa a quem admira, e então goza de uma nova imagem de seu eu, ainda que a designe com o nome de outra pessoa e todo esse processo não há de ser autoengano, egoísmo, vós, extravagantes de vós mesmos! (MA II/HH II; OS, 37, KSA 2.397)

IV. Amor como liberdade de tornar-se o que se é

Outro aspecto que deriva dos dois anteriores no tratamento do amor por parte de Nietzsche diz respeito à sua relação com a ideia de liberdade. Obviamente tal conceito se distancia do seu uso tradicional, para expressar aquilo que está incluído na noção de espírito livre: aquele que cria os próprios valores e tem capacidade de impô-los sobre si mesmo, independente das amarras da tradição. A noção nietzschiana de liberdade está associada à noção de disputa e combate e à ideia de resistência. O homem livre é o homem do confronto, que passou por sua própria solidão e alcançou a reverência por si mesmo:

Liberdade significa: os instintos viris, alegres na guerra e na vitória se apoderaram dos outros instintos - por exemplo, o instinto de ‘felicidade’. O homem que se tornou livre e, muito mais ainda o espírito que se tornou livre pisa sobre o modo de ser desprezível do bem-estar, com o qual sonham o comerciante, cristão, a vaca, a mulher, o inglês e outros democratas. O homem livre é guerreiro. - A partir de que critério se mensura a liberdade dos indivíduos, assim como dos povos? A partir da resistência que precisa ser superada, a partir do esforço que custa para permanecer em cima. (GD/CI, Incursões de um Extemporâneo, 38, KSA 6.139).

Essa ideia exige que o amor seja compreendido como liberdade plena para que cada indivíduo se torne aquilo que é, implementado todas as medidas para que isso se efetive: escolhas, experiências, vivências. Por isso, nessa perspectiva amorosa, estão incluídas as noções de rompimento, distanciamento e infidelidade, como aspectos próprios daqueles que amam de forma radical, a tal ponto que pretendem - e exigem, precisam disso - que o outro continue sendo o que é. Em um aforismo de Humano, demasiado humano, Nietzsche é muito direto sobre esse tema: falando da fidelidade, ele afirma que “não existe nenhuma lei, nenhuma obrigação dessa espécie”, acrescentando que “temos de nos tornar traidores, praticar a infidelidade, sempre abandonar nossos ideais. Não passamos de um período a outro da vida sem causar essas dores da traição e sem sofrê-las também” (MA I/HH I, 629, KSA 2.354). Essa, aliás, é a tarefa do próprio pensador: “o pensador deve, de quando em quando, afugentar as pessoas que ama (não serão exatamente aquelas que o amam), para que mostrem seu ferrão e sua maldade e parem de seduzi-lo. (M/A, 479, KSA 3.285).

Tal perspectiva diferencia-se da ideia associada por Nietzsche ao amor moderno, que se limita à ideia de posse e propriedade, tal como aparece, por exemplo, no aforismo 14 de A Gaia Ciência, cujo título é As coisas que chamamos de amor e no qual o amor é tratado como uma espécie de cobiça, um “mesmo impulso que recebe dois nomes”4 4 Piazzesi (2010) demonstrou como esse aforismo serve como indicação do procedimento genealógico em Nietzsche, a começar por uma crítica ao preconceito presente na linguagem. . Nietzsche pergunta: “nosso amor ao próximo - não é ele uma ânsia por nova propriedade?”. Ora, a posse de um ser não demora a torná-lo algo enfadonho, porque toda posse logo se torna algo “velho”, deixando de despertar interesse. Como posse o outro se torna aquilo que nós mesmos somos; como nossa posse, ele deixa de ser ele mesmo para corresponder àquilo que nós mesmos esperamos dele. E, como afirma Nietzsche: “as posses são diminuídas pela posse”. Tendemos a transformar “algo novo em nós mesmos - precisamente a isso chamamos possuir. Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo”. Para Nietzsche, essa é a experiência do amor sexual, onde se revela “mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como alho supremo e absolutamente desejável” (FW/GC, 14, KSA 3.386). Eis a experiência do matrimônio moderno, no qual a fidelidade adquiriu um valor central: a fidelidade não seria outra coisa senão o compromisso em torno de uma posse. Para Nietzsche, isso significa “excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e a privação de todos os demais competidores” (FW/GC, 14, KSA 3.386). Para Nietzsche, a concretização desse tipo de sentimento se dá precisamente na mulher: longe de querer problematizar aqui um assunto tão polêmico e tão complexo, que por si mesmo merece uma abordagem muito mais aprofundada, basta-nos apontar para o argumento que leva Nietzsche a afirmar sua perspectiva (considerada, sob os nossos olhos, obviamente, machista). Para ele, “a mulher quer ser tomada e aceita como posse, quer ser absorvida na noção de ‘posse’, de ‘possuído’” (FW/GC, 363, KSA 3.610). Na medida em que esse seja o elemento fundador dos matrimônios modernos, ao criticá-lo, Nietzsche critica a estrutura que deu legitimidade religiosa, moral e social ao amor sexual e demonstra como a sua prática esconde a busca pelo domínio do ser amado e, também aqui, estaríamos diante do egoísmo e da cobiça.

Em um fragmento da época de elaboração de Humano, demasiado humano, Nietzsche diferencia o amor da amizade, precisamente sob o critério da ideia de posse. Para ele, “o amor se situa muito abaixo da amizade por ele aspira à posse exclusiva, enquanto alguém pode ter vários bons amigos, e esses, por sua vez, tornarem-se amigos entre si.” (Nachlass/FP 18 [44], de 1876, KSA 8.326). Além disso, as considerações desenvolvidas no aforismo 14 de A gaia ciência terminam por uma afirmação, no mínimo, paradoxal: como alternativa a esse amor possessivo, que nega a liberdade do outro em ser quem ele é, o filósofo anuncia a amizade como um amor de tipo superior. “Bem que existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de continuação do amor, na qual a cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra deu lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjunta de um ideal acima delas: mas quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade.” (FW/GC, 14, KSA 3.386). Não só a amizade está contraposta ao amor possessivo, como, por meio dessa referência, Nietzsche retoma um sentimento associado ao mundo grego, para servir de antídoto contra a modernidade. Na amizade, assim, os indivíduos estariam não em busca da posse um do outro, mas de algo superior aos dois: a afirmação da vida. Isso porque, para Nietzsche, a amizade é o nome de um sentimento no qual cada um pode continuar sendo/tornando-se quem é.

Se no amor matrimonial o amante é objeto de uma posse, a amizade é o sentimento no qual exige-se que nenhum dos dois passe para o lado do outro, mas, bem ao contrário: é preciso que o amigo saiba guerrear e que ele possa manter-se como um adversário, resistindo, pois é assim que se torna útil para o crescimento das forças vitais. Tal perspectiva, já desenvolvida por nós em outros trabalhos, coloca a solidão e, depois, a inimizade, como critérios da amizade: “se se quiser ter um amigo, é preciso também guerrear por ele; e para guerrear é mister poder ser inimigo” (Za/ZA, Do amigo, KSA 4.72). A guerra, aqui, pode ser interpretada como a resistência própria daqueles que querem se manter livres, íntegros e plenos de si mesmo:

“Sê ao menos meu inimigo!” Assim fala o verdadeiro respeito, que não ousa pedir amizade. Se se quer ter um amigo, então também se deve querer fazer guerra por ele; e para fazer guerra, é preciso poder ser inimigo. Mesmo na pessoa do amigo, se deve honrar o inimigo. És capaz de chegar-te muito perto do teu amigo, sem te passares para o lado dele? Deves ter no teu amigo o teu melhor inimigo. É quando o contrarias que deves estar mais próximo dele com o coração (Za/ZA, Do amigo, KSA 4.72).

A ideia de guerra está ligada, assim, à resistência que cada um deve ter em relação aos demais. Esse aspecto é tão importante, que serve mesmo para a definição de amor - mesmo o amor entre os sexos: “Houve ouvidos para escutar minha definição do amor? É a única digna de um filósofo. Amor - em seus meios a guerra, em seu fundo o ódio mortal dos sexos” (EH/EH, Por que escrevo tão bons livros, 5, KSA 6.305).

Como se nota, portanto, a amizade é a alternativa afetiva ao amor possessivo e se apresenta como um sentimento de plenitude, no qual estão incluídas as ideias de infidelidade, distanciamento e traição, já que essas seriam consequências necessárias quando aquele que se ama continua a construir o seu destino sem passar para o lado do outro: “não é o modo como um alma se aproxima de outra, mas em como se afasta dela que reconheço seu parentesco e relação com a outra” (MA II/HH II, OS, 251, KSA 2.489). Talvez a passagem que melhor expresse essa experiência apareça em A gaia ciência, 279. Nela, Nietzsche escreve, em tom pessoal, sobre a sua relação com Paul Rée. O título do aforismo é Amizade de astros:

Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já́ fizemos - e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um só́ destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca nos vejamos de novo - ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sois nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos - elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. - E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra (FW/GC, 279, KSA 3.523).

A beleza da passagem é complementada com a força argumentativa que liga a amizade àquilo que, geralmente, estaria fora do amor: o respeito às escolhas, necessidades e natureza do outro. Isso também aparece em um fragmento póstumo de 1878: “Amigos. Nada nos obriga, mas nos gostamos reciprocamente até o ponto de que um favorece o caminho tomado por outro ainda quando seja diametralmente oposto ao seu (Nachlass/FP 27 [95], KSA 8.502)”. O amigo não se exonera que seja ele mesmo, portanto, inclusive quando e se tal coisa exigir que o afeto entre ambos seja altercado pela distância. Uma ideia que aparece em outro fragmento muito sugestivo de A gaia ciência:

Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte - mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não existe mais “terra”! (FW/GC, 124, KSA 3.480).

A experiência do rompimento é, portanto, dolorosa e perigosa, mas imprescindível para que os indivíduos construam relações afetivas plenas. Essa é a condição mesmo da nobreza, nascida dessa prática afetiva nova do grande amor, cujo símbolo é a amizade: “o refinamento no conceito de amizade, uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, por assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo)” (JGB/BM, 260, KSA 5.208 ). Nota-se, com isso, que Nietzsche associa o amor (na forma da amizade) à plena liberdade daquele que adquire, por coragem, o direito de continuar a ser quem é ou, como sugere a rica fórmula que dá subtítulo ao livro autobiográfico de Nietzsche, tornar-se quem é.

V. Considerações finais

A análise do amor, como o sentimento moral por excelência, fornece uma espécie de chave de entrada em muitos campos teóricos sobre os quais a filosofia nietzschiana se ergue, seja porque favorece uma compreensão do seu procedimento de crítica à metafísica, seja porque expressa a crítica do filósofo à tradição socrático-platônica, judaico-cristã e moderna. Dessa forma, embora aparentemente secundário no corpus teórico, o tema oferece inúmeras possiblidades de análise, tornando-se extremamente rico do ponto de vista teórico e - por que não dizer - biográfico.

Nietzsche, assim, não apenas desenvolve uma nova perspectiva de análise do sentimento amoroso, como sobretudo, uma nova forma de vivência, articulada com o convite de Zaratustra para a fidelidade à terra, ao corpo e às coisas humanas, demasiado humanas. Essa nova espécie de amor, por isso, traduz a tarefa de construção de novos valores, pela via dos conceitos de “eterno retorno”, “amor fati” e “transvaloração dos valores”.

Referências

  • CHAVES, Ernani. A arte das paixões: Nietzsche, leitor de Prosper Mérimée.Estudos de Nietzsche, v. 4, n. 1, 2013.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Herausgegeben von Colli und Montinari. Berlin/ München: Walter de Gruyter/DTV, 1988.
  • NIETZSCHE F,. Crepúsculo dos ídolos (ou como filosofar com o martelo). 2 ed. Trad. de Marco Antônio casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. (Conexões, 8).
  • NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
  • NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
  • NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra Um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  • NIETZSCHE, F. Ecce homo Como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
  • NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano II Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
  • PIAZZESI, Chiara. “Was Alles Liebe genannt wird” (“Tudo o que é chamado de amor”).Cadernos Nietzsche, n. 27, p. 73-115, 2010.
  • PLATÃO. O banquete In: Platão; Diálogos (Os pensadores). Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
  • 1
    Em referência a Musset e Wagner, Nietzsche escreve sobre os “homens de 1830”, precisamente aqueles que “impulsionaram uma absurda divinização do amor” (Nachlass/FP, 11 [34], 1887-1888, KSA 13.19).
  • 2
    Carmen é assumida por Nietzsche como uma espécie de alternativa antirromântica. A respeito da obra, Nietzsche escreve, entusiasmado: “Finalmente o amor, o amor retraduzido em natureza! Não o amor de uma ‘virgem sublime’! Nenhum sentimentalismo de Senta! Mas o amor como fado, como fatalidade, cínico, inocente, cruel - e precisamente nisso natureza! O amor que em seus meios é a guerra, e no fundo o ódio mortal dos sexos! - Não sei de caso em que a ironia trágica que constitui a essência do amor seja expressa de maneira tão rigorosa, numa fórmula tão terrível, como no último grito de Don José, que conclui a obra” (WA/CW 2, KSA 6.15).
  • 3
    “Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. (...) Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” (...) Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher — o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo.” (Platão, 1991PLATÃO. O banquete. In: Platão; Diálogos (Os pensadores). Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991., p. 56-57).
  • 4
    Piazzesi (2010)PIAZZESI, Chiara. “Was Alles Liebe genannt wird” (“Tudo o que é chamado de amor”).Cadernos Nietzsche, n. 27, p. 73-115, 2010. demonstrou como esse aforismo serve como indicação do procedimento genealógico em Nietzsche, a começar por uma crítica ao preconceito presente na linguagem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2020
  • Aceito
    15 Out 2020
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