Acessibilidade / Reportar erro

A periferia em Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro: questões de gênero, raça e classe

The periphery in Conceição Evaristo and Esmeralda Ribeiro: gender, race and class

La periferia en Conceição Evaristo y Esmeralda Ribeiro: género, raza y clase

resumo

O presente trabalho situa-se no contexto da produção contística de autoria feminina afro-brasileira na série literária Cadernos negros (1978-atual). O estudo tem por objetivo a análise crítica de alguns dos contos mais representativos das escritoras Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, de modo a discutir o retrato social da periferia construído pelas narrativas. Por serem construídos a partir de uma perspectiva feminina afro-brasileira, os contos compõem um mosaico de nossa sociedade, que revela a situação de exclusão vivenciada por uma parcela significativa de nossa população.

Palavras-chave:
Cadernos negros; autoria feminina afro-brasileira; Conceição Evaristo; Esmeralda Ribeiro; periferia

abstract

This study is developed in the context of short-story production by Afro-Brazilian female writers in the literary series Cadernos negros (Black Notebooks) (1978-present). The study is aimed to be a critical analysis of some of the most representative short stories of two writers: Conceição Evaristo and Esmeralda Ribeiro, in order to discuss the social portrait of the periphery within the stories. Since they are narrated from an African-Brazilian female perspective, the stories make up a mosaic of our society that reveals exclusion experienced by a significant portion of our population.

Keywords:
Cadernos negros/Black notebooks; Afro-Brazilian women's writing; Conceição Evaristo; Esmeralda Ribeiro; periphery

resumen

Este estudio se desarrolla en el contexto de la producción cuentística de escritoras afrobrasileñas en la serie literaria Cadernos Negros (publicada desde 1978). El estudio tiene como objetivo el análisis crítico de algunos de los cuentos más representativos de Conceição Evaristo y Esmeralda Ribeiro, con el fin de discutir el retrato social de la periferia construido dentro de las narrativas. Por ser construidos desde una perspectiva femenina afrobrasileña, los cuentos conforman un mosaico de nuestra sociedad que revela la situación de exclusión experimentada por una parte significativa de nuestra población.

Palabras clave:
Cadernos Negros; escritura femenina afrobrasileña; Conceição Evaristo; Esmeralda Ribeiro; periferia

O presente artigo tem por objetivo a análise crítica de alguns dos contos mais representativos das escritoras afro-brasileiras Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, de modo a discutir o retrato social da periferia constituído por suas narrativas. Os contos em questão encontram-se publicados na série literária Cadernos negros, motivo pelo qual cabe uma breve apresentação, bem como um panorama da autoria feminina nessa publicação periódica.

Os Cadernos negros consistem em uma edição coletiva anual de contos e poemas, publicados ininterruptamente desde 1978. Cumprindo o papel central de divulgar uma enunciação negra, de temática variada, majoritariamente relacionada à vida, tradição e cultura afro-brasileiras, tal série representa a antologia de literatura afro-brasileira de vida mais longa, constituindo-se em um dos principais veículos que tem contribuído para a inclusão da vertente "afro" na literatura brasileira, especialmente por reunir escritores de diferentes gerações e de diversas partes do Brasil. Assim, seu maior mérito tem sido dar visibilidade a textos que lançam o olhar sobre a realidade brasileira, colocando a população negra como protagonista de seus versos e histórias.

Situados na periferia da instituição literária, os Cadernos negros atendem a uma demanda por um tipo de literatura não oferecida pelo mercado editorial, e seu nome tornou-se uma marca cujo alcance vai além dos limites de distribuição e venda dos livros. Com distribuição para um número relativamente pequeno de livrarias, a publicação é vendida principalmente em grandes eventos de lançamento, os quais contam com performances poético-dramáticas e espetáculos de dança, circulando posteriormente de mão em mão. Sua distribuição busca aperfeiçoar-se a cada ano, procurando chegar a um público mais amplo e diversificado que aquele atingido pelos primeiros volumes, mas a tiragem das edições estabilizou-se na faixa dos 1.000 exemplares.

Maria Nazareth Fonseca (2011FONSECA, Maria Nazareth Soares (2011). Literatura negra: sentidos e ramificações. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG , v. 4, p. 245-278.) defende que, antes do surgimento dos Cadernos negros e da reflexão encaminhada por seus colaboradores, não podemos afirmar ter existido no país movimentos literários que se empenharam em produzir uma literatura de forte conteúdo reivindicativo, a exemplo do Renascimento Negro Norte-Americano ou da Negritude, buscando valorizar outros princípios estéticos. Considerando que, circulando por espaços nem sempre visíveis por olhares desarmados, as coletâneas de literatura afro-brasileira enfrentam a resistência do leitor que não convive com tais textos na escola ou não os identifica nos apelos publicitários das grandes livrarias, a crítica destaca que o trabalho dos Cadernos negros procura "furar o cerco de incompreensões e dificuldades", ao desenvolver "estratégias importantes para continuar publicando os contos e poemas que caracterizam cada um de seus números" (Fonseca, 2011FONSECA, Maria Nazareth Soares (2011). Literatura negra: sentidos e ramificações. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG , v. 4, p. 245-278., p. 262).

Concomitantemente ao espaço conquistado pelos Cadernos negros, a produção de autoria feminina vem se destacando de modo significativo no interior da série. Com efeito, tal publicação coletiva possui participação feminina desde seus primeiros números; escritoras que em sua grande maioria têm aí a principal via de contato com o público leitor. No que tange ao conteúdo dessa produção, desde a publicação do primeiro volume da série, encontram-se textos que discutem as formas diferenciadas de opressão vivenciadas pelas mulheres, particularmente as afro-brasileiras, demonstrando uma consciência em relação às opressões decorrentes de suas condições específicas de gênero e etnia na sociedade brasileira. Além disso, nessa produção, a mulher negra é representada como sujeito e a partir de uma subjetividade feminina afro-brasileira, contestando a tradição literária que insiste em reduzir e fixar as representações de mulheres negras como um corpo objeto e um objeto sexual. Desse modo, o discurso literário feminino afro-brasileiro veiculado nos Cadernos negros proporciona ao leitor uma reflexão sobre as problemáticas do ser mulher na sociedade brasileira, questionando e ressignificando essa condição sob a perspectiva das próprias mulheres negras.

Nesse contexto, destacamos as autoras Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, as quais não somente possuem produções de grande significância, mas também apresentam uma regularidade expressiva de participação na série. Outro fato interessante acerca dessas autoras é que ambas estrearam enquanto escritoras nos próprios Cadernos negros: Ribeiro começou a publicar em 1982, no quinto número da série, enquanto Evaristo passou a integrar a série no ano de 1990, em seu 13º volume.

Conceição Evaristo

Maria da Conceição Evaristo de Brito é mineira, natural de Belo Horizonte, nascida em 29 de novembro de 1946. Na década de 1970, mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de formação acadêmica e melhores condições de trabalho. Graduou-se em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense. Mestre em literatura brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), hoje é doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, Evaristo é uma militante que atua dentro e fora dos marcos da academia. Assim como no caso de sua criação literária, a significativa atuação acadêmica da escritora é profundamente marcada pela condição de mulher negra na sociedade brasileira. Atualmente, é uma escritora negra de projeção internacional e seus textos vêm ganhando cada vez mais leitores e críticos.

A obra literária de Evaristo é composta por poesia, conto e romance. Estreou na literatura em 1990, quando passou a publicar contos e poemas nos Cadernos negros e ensaios em revistas de circulação internacional. Como obra individual, publicou o romance Ponciá Vicêncio, em 2003EVARISTO, Conceição (2003). Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza., e Becos da memóriaEVARISTO, Conceição (2006). Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza., em 2005. Em 2008, publicou Poemas de recordação e outros movimentos, reunião de textos já divulgados nos Cadernos negros e em outras antologias. Em 2011EVARISTO, Conceição (2011). Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nadayala., lançou o livro de contos inéditos Insubmissas lágrimas de mulheres. Por fim, no final de 2014EVARISTO, Conceição (2014). Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional., publicou seu segundo livro de contos: Olhos d´água, mesclando textos inéditos com alguns publicados nos Cadernos negros.

Sua fortuna crítica é considerável, considerando-se que sua carreira encontra-se em plena construção, pois sua produção vem sendo estudada em universidades brasileiras e do exterior. No entanto, os estudos sobre a sua produção contística são ainda relativamente escassos; em sua maioria, os trabalhos críticos sobre a escritora são voltados para os romances, especialmente Ponciá Vicêncio.

Esmeralda Ribeiro

Esmeralda Ribeiro é natural de São Paulo, onde ainda reside. Nascida em 24 de outubro de 1958, é filha de Francisca Maria de Jesus e de Luís Alves dos Santos. Jornalista, escritora e ativista das causas negra e feminina, atualmente se destaca por ser responsável, juntamente com Márcio Barbosa, pelo projeto cultural Quilombhoje, bem como pela coordenação editorial da série Cadernos negros. Além disso, é uma das idealizadoras do Sarau Afro Mix, realizado na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, além de ser integrante do Kult Afro - Rede de Empreendedores e Artistas e do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial (Feder) de São Paulo.

A autora integra o grupo de escritores empenhados no reconhecimento da literatura afro-brasileira e possui intensa atuação como palestrante em eventos nacionais e internacionais. Nessas oportunidades, sempre leva a experiência da escrita feminina com o objetivo de divulgar e incentivar uma maior participação da mulher negra na literatura, defendendo que as escritoras devem invadir o espaço da produção literária afro-brasileira. Nos anos 1980, foi das poucas mulheres a integrar as discussões dos Encontros de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros.

A produção literária de Ribeiro é composta por poemas, contos e textos críticos. Assim como Conceição Evaristo, estreou na literatura nos Cadernos negros, porém quase dez anos mais cedo, em 1982, conforme já mencionado. Desde então, está presente em praticamente todas as edições dos Cadernos negros, além de outras obras coletivas no Brasil e no exterior, em especial antologias de prosa e de poesia negras. Também é coorganizadora dos livros The Afro-Brazilian mind e Black notebooks, ambos lançados nos Estados Unidos em 2007, e da edição comemorativa de Cadernos negros: três décadas (2008BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.) (2008). Cadernos negros: três décadas - Ensaios, poemas, contos. São Paulo: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.). Conforme destaca Maria José Somerlate Barbosa (2011BARBOSA, Maria José Somelarte (2011). Esmeralda Ribeiro. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, v. 3., p. 278), a obra de Esmeralda Ribeiro possui "uma nítida identificação com a postura da chamada Geração Quilombhoje de privilegiar a publicação coletiva em detrimento da obra individual".

Em consonância com o exposto, a autora apresenta somente duas obras individuais publicadas em mais de 30 anos de carreira: o volume Malungos e milongas (1988RIBEIRO, Esmeralda (1988). Malungos e milongas. São Paulo: Edição da Autora.), novela publicada por ocasião do centenário de Zumbi dos Palmares; e Orukomi - meu nome (2007RIBEIRO, Esmeralda (2007). Orukomi: meu nome. Ilustrações de Edmilson Quirino dos Reis. São Paulo: Quilombhoje.), obra infanto-juvenil ilustrada, que trata da história de um menino brasileiro de nome africano e estabelece uma articulação entre as culturas africana e afro-brasileira. Além disso, cumpre destacar Gostando mais de nós mesmos (1999), livro de depoimentos, publicado em coautoria com Márcio Barbosa.

Estudos críticos sobre a produção literária de Esmeralda Ribeiro como um todo são escassos. De modo geral, sua produção literária é notável por retratar a falta de condições cidadãs que afeta a maioria da população afro-brasileira, especialmente a dupla discriminação (racial e de gênero) sofrida pelas mulheres. Em apresentação da escritora, presente na antologia crítica de Duarte e Fonseca (2011DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.) (2011). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG.), os textos de Ribeiro são destacados por criticar o lugar da escritora negra na sociedade brasileira contemporânea em face do discurso dominante e dos grupos hegemônicos de poder, examinando as redes de convivência social, registros históricos e o paternalismo da sociedade brasileira. Com frequência, seus textos em prosa e em poesia, bem como os de reflexão teórica, estabelecem um diálogo intertextual com a história e a literatura brasileira, analisando a questão feminina e examinando o mito da "democracia racial" e ideologia de "branqueamento".

O retrato social da periferia nos contos de Evaristo e Ribeiro

Esta seção apresenta uma leitura dos contos de Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, com vistas à discussão do retrato social da periferia na perspectiva feminina afro-brasileira enquanto característica estruturante das narrativas em questão. Tal perspectiva constitui-se à medida que os contos não simplesmente colocam em cena personagens femininas como o centro de suas tramas, mas caracterizam-nas a partir de uma subjetividade feminina negra. Assim, as protagonistas representam não somente o ser feminino, nem apenas o ser negro no Brasil, mas o ser feminino afro-brasileiro, dotado de especificidades étnico-raciais, de gênero e muitas vezes de classe social.

Os contos selecionados para a análise, por melhor ilustrarem o ponto de vista deste estudo, são: "Ana Davenga" (1998), "Zaita esqueceu de guardar os brinquedos" (2007) e "Olhos D'água" (2005), de Conceição Evaristo; e "Guarde segredo" (1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41.), "Encruzilhada" (2005) e "A moça" (2011), de Esmeralda Ribeiro.

"Ana Davenga" retrata um casal de favelados cujo final é trágico. A história se passa na noite em que Ana, a protagonista que dá nome ao conto, comemora seu aniversário de 27 anos. Ela aguarda em casa o marido, Davenga, um chefe de quadrilha, que já deveria ter chegado de algum ato criminoso. Ana encontra-se preocupada com a sua ausência, mas a chegada dele revela, na verdade, uma festa surpresa para ela, a primeira comemoração de aniversário de sua vida. Após a festa, enquanto dorme, o casal é surpreendido pela polícia, que invade seu barraco em busca de Davenga. Eles acabam assassinados brutalmente pela polícia a tiros de metralhadora, pois o marido resistira à prisão. Vale mencionar que Ana estava grávida.

"Olhos d'água" conta sobre uma mulher que havia anos estava fora de sua cidade natal, pois saíra em busca de melhores condições de vida. Atordoada por não se lembrar da cor dos olhos de sua mãe, ela resolve retornar para vê-la. Desenvolvido através de um processo memorialístico em busca de resposta, a trama constrói-se pelo constante autoquestionamento da protagonista.

Por sua vez, "Zaita esqueceu de guardar os brinquedos" traz a história de uma menina pobre que, um dia, brincando sozinha, descobre que sumiu sua figurinha preferida. O conto gira em torno da busca da menina por esta figurinha em casa, pela vizinhança e depois pelos becos da favela. Distraída em sua busca, a menina não presta atenção a um tiroteio e acaba sendo morta por uma bala perdida.

"Guarde segredo" traz a história de Clara, uma garota de classe baixa que vive com a avó e não resiste aos "encantos" de Cassi Jones, um rapaz branco de classe média. Ao mesmo tempo em que descobre estar grávida, Clara é rejeitada pelo rapaz e pela família dele. Revoltada com a situação, ela resolve assassiná-lo. Consequentemente, impedida de ter sua vida social reestabelecida, a garota foge para um lugar onde ninguém a conhece, esconde esse episódio de sua vida e só o conta anos mais tarde para uma amiga de sua avó, em uma simples carta que escrevera para enviar notícias. Assim, situada temporalmente no passado e espacialmente no subúrbio carioca, a história é contada em primeira pessoa do ponto de vista da protagonista já adulta. Não podemos deixar de ressaltar que o conto estabelece uma intertextualidade histórico-literária de caráter subversivo com o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto.

"Encruzilhada" narra a história do dia em que a mãe da jovem Makini ficou entalada na catraca de um ônibus, ao tentar passar por baixo para economizar a passagem, enquanto retornavam para casa com um grande peixe - "um robalo de 20 kg" (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 54) - doado pela ação assistencialista de um político. O foco, porém, não é na mãe, mas na jovem que se encontrava explorada junto à mãe e às irmãs, não se identificando com o comportamento miserável delas, as quais abusavam da sua bondade. Narrado em terceira pessoa, é durante o ônibus que o leitor tem acesso à subjetividade da protagonista, quando relembra a cena que vivera na fila do peixe: ela ficara sozinha durante horas, enquanto a outras fumavam sentadas; em seguida, a mãe a agredira com uma bofetada na cara por falar mal daquela situação. A lembrança de tais fatos agrava a vontade da garota de romper os laços com a família. Então, Makini foge, aproveitando-se do momento em que todos se distraem com a mãe entalada, enquanto o ônibus encontra-se parado numa encruzilhada, aguardando a chegada dos bombeiros para retirar a mãe.

Por fim, o conto "A moça" apresenta a história de Delícia, uma prostituta que se envolve num relacionamento com um dentista que lhe proporciona todas as mordomias materiais que deseja. Eles chegam a morar juntos, porém ele morre num acidente e ela acaba perdendo tudo o que havia conquistado. De fato, a protagonista embarca num processo de decadência material, mental e física, ao mesmo tempo em que é assombrada pelo espírito do dentista.

Com enorme sensibilidade poética, o retrato do espaço social nos contos revela o universo periférico ainda hoje ocupado por uma grande parcela da comunidade afro-brasileira, com foco especial nas questões relativas às mulheres negras. Os contos representam espaços repletos de vulnerabilidade social, sendo as narrativas construídas a partir de situações diversas de exclusão e violência. Não apenas as condições sociais, mas também as econômicas e culturais consistem em relações vulneráveis, atravessadas por questões étnico-raciais, de gênero e de classe social.

Em "Ana Davenga", o retrato social periférico revela-se pelas condições vulneráveis do casal: eles moram em uma favela; Davenga é o chefe de uma quadrilha e seu barraco é utilizado para os encontros do grupo; o casal sustenta-se com dinheiro ilícito; eles acabam assassinados pela polícia. Além disso, a festa de aniversário para Ana, sendo a primeira (e última) vez na vida que Ana comemorava seu aniversário, reitera o nível de exclusão das personagens. Nesse contexto, encontram-se imbricadas a impossibilidade de um amor duradouro e da maternidade, devido à condição de favelada.

De modo similar, o retrato do espaço social em "Zaita esqueceu de guardar os brinquedos" revela a crueldade do cotidiano nas favelas, ao lado das condições de vida precárias da família da protagonista. A realidade da violência torna Zaita mais uma vítima. Refém de ingenuidade infantil, em busca de um brinquedo, a menina acaba morta por uma bala perdida: "Em meio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam como flores malditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram círculos no corpo da menina" (Evaristo, 2007EVARISTO, Conceição (2007). Zaita esqueceu de guardar os brinquedos. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje , v. 30, p. 35-42., p. 41). Já a situação de pobreza é retratada como uma espécie de condicionamento da classe social das personagens, não por falta de dedicação e esforço, como pode ser visto pelo olhar de um irmão da protagonista, o qual acaba escolhendo a vida do crime por não aceitar tal realidade: "Via os seus trabalharem e acumularem miséria no dia a dia. [...] via mulheres, homens e até mesmo crianças, ainda meio adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram, acumulados de cansaço apenas" (Evaristo, 2007EVARISTO, Conceição (2007). Zaita esqueceu de guardar os brinquedos. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje , v. 30, p. 35-42., p. 38). O mesmo se observa na seguinte passagem, relativa ao contexto familiar da protagonista: "A mãe de Zaita guardou os poucos mantimentos. Teve a sensação de ter perdido algum dinheiro no supermercado. Impossível, levara metade do salário e não conseguira comprar quase nada" (Evaristo, 2007EVARISTO, Conceição (2007). Zaita esqueceu de guardar os brinquedos. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje , v. 30, p. 35-42., p. 39).

Por seu turno, em "Olhos d'água", o espaço social da periferia é retratado com bastante nitidez no contexto em que se desenvolve a infância da protagonista-narradora. Assim como Ana e Zaita, sua família morava em um barraco de favela e há indicação de que a mãe exercia a (sub)profissão de lavadeira, ao revelar que brincar de pentear boneca era uma "alegria que a mãe nos dava [...], deixando por uns momentos o lava-lava e o passa-passa das roupas alheias" (Evaristo, 2005EVARISTO, Conceição (2005). Olhos d'água. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 29-33., p. 30). Além disso, seu nível socioeconômico expressa-se a partir de características físicas da mãe, tais como a "unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo" e a verruga confundida com carrapato: "Um dia [...] encontramos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo dela. Pensamos que fosse carrapato" (Evaristo, 2005EVARISTO, Conceição (2005). Olhos d'água. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 29-33., p. 30).

A caracterização socioeconômica da família da protagonista de "Olhos d'água" é demarcada pela carência material, especialmente a falta de alimento. A realidade da fome é representada no conto com uma sensibilidade poética sem igual: "Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida" (Evaristo, 2005EVARISTO, Conceição (2005). Olhos d'água. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 29-33., p. 30-31). Em outras ocasiões, as filhas sentavam-se com a mãe na soleira e juntas ficavam "contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinho; outras, cachorrinho; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos de esvanecessem também" (Evaristo, 2005EVARISTO, Conceição (2005). Olhos d'água. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 29-33., p. 31). Nesse sentido, salienta-se que a carência material é compensada pelo afeto materno, de modo que elas não se entregassem às moléstias da miséria. Na ausência de condições dignas, de alimento e de amparo social, a mãe utiliza-se da criatividade, recorrendo a brincadeiras para distrair e alegrar as filhas, transformando o "barraco" em espaço de fantasia: "E a nossa fome se distraía" (Evaristo, 2005EVARISTO, Conceição (2005). Olhos d'água. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 29-33., p. 31). Portanto, do ponto de vista das relações familiares, a afetividade da mãe para com as filhas funciona como forma de combate às injustiças desse espaço social excludente.

No caso de "Guarde segredo", o retrato social da periferia constitui-se pelos indicativos da condição de vulnerabilidade socioeconômica de Clara e sua família, fornecidos pela narrativa logo de início, pelo fato de terem sido despejados e não haver outra saída a não ser ir morar com a avó: "Tudo começou quando eu, papai e mamãe fomos despejados de nossa quitinete em Copacabana. Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 65) Vale salientar que a situação remete a uma classe social desfavorável, mas não se trata de uma condição totalmente miserável, já que tiveram a quem recorrer abrigo. Outra ocorrência que ressalta a pobreza é que, quando da mudança para a casa da avó, Clara levara consigo "apenas a mochila e uma trouxa de roupa", além de ter ido a pé, numa caminhada de quase uma hora (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 66). O fato de terem sido despejados pode ser visto ainda como um condicionamento social para o comportamento futuro de Clara, conforme indica o tópico frasal "Tudo começou quando". É importante perceber que o motivo do despejo não é desleixo ou criminalidade, mas o desemprego do pai, por consequência da crise financeira pela qual passava o país. Até então, a família era sustentada com trabalho digno, ainda que suas vidas fossem de carência.

Já a avó de Clara, embora possua uma casa, não apresenta condição socioeconômica privilegiada. Além da residência em si, a avó proporcionava as condições básicas para a menina viver e estudar, mas, por exemplo, não tinham uma empregada para o serviço doméstico; o trabalho era realizado pelas duas, apesar de o esperado fosse que não o fizessem, devido às suas idades, isto é, por uma ser muito nova e outra velha: "Acordávamos cedo um dia sim, outro não. Eu varria e passava vermelhão nos cômodos e lavava o banheiro. [...] Depois da faxina, cuidava da horta" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 67). Por outro lado, isso não quer dizer que a menina fosse explorada pela avó. Tal fato é retratado como sendo parte da normalidade das coisas. Inclusive, Clara tinha tempo para brincar: "brincava no balanço, na gangorra. Brincava sozinha" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 68).

Em "Encruzilhada", temos a caracterização socioeconômica da família de Makini, que aponta para a carência de condições materiais e a vulnerabilidade social do contexto em que mora. Além da vida como pedintes de esmolas e doações, sua casa é descrita como um "quarto e cozinha", localizada numa "vila" (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 59), o que é um forte indicativo de pobreza. A criminalidade e a violência das periferias fazem-se presentes e visíveis quando a narrativa conta que dona Estela, mãe de Makini, comumente deparava-se com "presuntos encontrados na esquina de sua casa, geralmente jovens, com olhos abertos, arregalados, com a boca aberta, [...] os defuntos jovens da vila" (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 59).

Por meio de uma severa criticidade social, a passagem a seguir descreve o que a protagonista fazia para ganhar dinheiro, ao mesmo tempo que demonstra uma alternativa aos modos de vida da mãe e das irmãs: "Makini não gostava de envolver-se com políticos, porque as vidas de sua mãe e de suas irmãs nunca iam para frente, só as dos políticos, por isso ela distribuía folhetos de empreendimentos imobiliários nos faróis, nos finais de semana" (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 57). Observemos que distribuir folhetos nos faróis é um trabalho mal pago, que não exige formação escolar, porém trata-se de um trabalho honesto. Isso define a classe social da protagonista, ao mesmo tempo que representa o caráter de Makini: um tipo que prefere viver humilde e honestamente a depender dos outros. Tal personalidade traduz-se igualmente em suas práticas socioculturais, em contraste com a mãe e as irmãs: "Elas recebiam passes de ônibus do candidato, contudo economizavam; dona Estela e as duas filhas usavam os passes para ir ao forró e comprar cigarros. Makini frequentava os centros culturais da cidade" (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 57).

Por último, em "A moça", o retrato da periferia é construído através da vulnerabilidade social da protagonista Delícia, uma das mais significativas, pois a mesma tem origem social extremamente miserável: "Quando pequena, sua família morava na beira da estrada" (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80., p. 77); mais tarde, exerce a profissão de prostituta e termina como catadora de lixo, sendo o local onde vive com sua família supostamente uma favela: "aquela 'cabeça de porco', casa do lado, em cima, um verdadeiro labirinto" (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80., p. 80). Ainda que a prostituição não a permitisse ter uma educação formal - "Por causa de suas viagens, Delícia nunca terminara um ciclo escolar" (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80., p. 79) -, é importante destacar que se trata de uma mulher trabalhadora, a única da família: "era Delícia que sustentava a sua família. [...] Na casa entrava a ajuda de Delícia e a ajuda do governo. Mãe era nova, mas cansada para o trabalho, assim como o restante da família" (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80., p. 77).

Intimamente ligado ao retrato do espaço social periférico nos contos, encontra-se um cenário de denúncia da realidade de exclusão das personagens femininas, especialmente constituído através da discriminação de gênero, exercida pelas personagens masculinas. É o que acontece no caso de "Ana Davenga", assim que Ana vai morar com Davenga. Ela é discriminada por parte dos companheiros de Davenga, os quais "olharam Ana com ciúme, cobiça e desconfiança", porque "O barraco de Davenga era uma espécie de quartel-general, e ele, o chefe", "E de repente, sem consultar os companheiros, mete ali uma mulher. Pensaram em escolher outro chefe e outro local para quartel-general" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 32, grifo nosso). Mais adiante, a narrativa revela que "Não era do agrado de nenhum deles aquela mulher dentro do quartel-general do chefe [...]. Achavam que Davenga iria se dar mal e comprometer todos do grupo" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 34, grifo nosso). Os termos grifados demonstram o enfoque do preconceito na questão de gênero: a narrativa não desenvolve as razões pelas quais os companheiros de Davenga não gostaram da presença dela; o simples fato de ser mulher lhes parece uma ameaça. O problema do preconceito acaba parcialmente resolvido quando "Davenga comunicou a todos que aquela mulher ficaria com ele e nada mudaria" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 32). No entanto, há um critério que leva à aceitação da personagem feminina no grupo formado pelos homens: "Ela era cega, surda e muda no que se referia aos assuntos deles" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 32). Esse é um detalhe revelador da condição de Ana: ela estava condenada ao silêncio.

Nesse contexto, reproduzem-se também os estereótipos da mulher como objeto sexual ou mulher-corpo. Ana é vista pelos companheiros de Davenga como portadora de "delícias que explodiam por todo o seu corpo", a exemplo dos "peitos-maçãs salientes" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 32), o que sugere que se sentiam sexualmente atraídos por Ana, porém, mantinham a devida distância física: "Todos haviam aprendido a olhar Ana Davenga" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 32). Ou seja, ainda que desejassem Ana, eles controlavam seus "instintos". No entanto, não era por respeito (nem ao amigo, muito menos à Ana), mas por medo que os companheiros de Davenga jamais expressariam suas vontades:

Qualquer um que bulisse com ela haveria de morrer sangrando nas mãos dele feito porco capado. [...] E quando o desejo aflorava ao vislumbrar os peitos-maçãs salientes da mulher, algo como uma dor profunda doía nas partes de baixo deles (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 32).

Além disso, o próprio Davenga, na verdade, só conhecera Ana porque foi atraído pelo seu corpo: "Quando Davenga conheceu Ana em uma roda de samba [...] gostou dos movimentos do corpo da mulher. Ela fazia um movimento bonito e ligeiro de bunda"; "Estava atento aos movimentos e à dança da mulher" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 34 e 36).A diferenciação que a narração faz entre "movimentos" e "dança" indica que aqueles são dotados de interpretação erótica por parte do homem, enquanto esta remete a uma performance artística, ligada à tradição afrodescendente da mulher: "Ela lembrava uma bailarina nua, tal qual a que ele vira um dia no filme da televisão. A bailarina dançava livre, solta, na festa de uma aldeia africana" (Evaristo, 1998EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41., p. 36).

No âmbito das relações de gênero, o retrato social aponta ainda para a ocorrência de práticas machistas no comportamento de Cassi Jones, em "Guarde segredo", e do doutor Natanael, em "A moça". O primeiro caso é o retrato de uma cultura de gênero em que o homem se acha no direito trocar de par quando bem entender ou ter quantas mulheres conseguir ao mesmo tempo, sem a mínima necessidade de consentimento da outra parte. Isso é reforçado pela ação da mãe em defesa do filho. Além da discriminação de gênero por que passa Clara, ao ser usada e em seguida abandonada grávida por Cassi Jones, cumpre ressaltar que a ação do rapaz também é sustentada por questões étnico-raciais e classe social, pois o que fica implícito é que somente conseguia tratar desse jeito moças negras de classe baixa, conforme atesta a fala da mãe dele para Clara: "Você é a quinta negra que meu filho deflora" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 70). No caso de doutor Natanael, seu comportamento machista é dado pela necessidade de controle possessivo do homem em relação à mulher, o que ocorre a partir do momento que passa a morar com Delícia, conforme já discutido.

Algumas questões relativas a diferenças de classe social também figuram no retrato social construído nos contos. Em "Guarde segredo" há uma possível reflexão socioeconômica na representação do poder aquisitivo da classe trabalhadora e da burguesia: o pai era quem trabalhava para o sustento da família; seu desemprego os leva à ruína; o namorado, apesar de não trabalhar, detém uma vida de riquezas originárias de sua classe social. Assim, configura-se uma espécie de uma crítica à desigualdade de classes: o pai é um trabalhador que sofre pela falta de emprego, em meio à crise econômica, enquanto o rapaz possui um poder aquisitivo admirável mesmo sem trabalhar.

Diretamente relacionada à classe social, Makini, de "Encruzilhada", encontra-se presa a relações de exploração do trabalho infantil, em que a mãe faz uso das filhas para ganhar esmolas e favores. É justamente por isso que, enquanto suas duas irmãs acompanham cegamente os atos da mãe, Makini não vê a hora de se livrar delas. Em "A moça", temos uma situação similar, porém ainda mais grave, visto que Delícia sofrera exploração sexual por parte da mãe durante a infância, explicando a maneira como entrou para o mundo da prostituição. O fato de a mãe ter introduzido a filha no mundo da prostituição demonstra um contexto de vulnerabilidade socioeconômica e cultural considerável. "Quando pequena, sua família morava na beira da estrada e a menina era cobiçada pelos caminhoneiros. A sua mãe ensinou-lhe a chamá-los de 'pais'" (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80., p. 77). Paralelamente, essa violência contra o corpo e a dignidade infantil acarreta uma segunda forma de violência, a do aborto: "As bonecas que cresciam dentro do ventre da menina eram expulsas pela tia" (Ribeiro, 2011RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80., p. 77). Não podemos deixar de lembrar que a mãe é a maior responsável pela situação, justamente ela de quem os filhos devem esperar a máxima proteção. Assim, nessa representação, temos o retrato de uma sociedade em que a instituição familiar já se encontra deturpada.

Outra questão social retratada que merece atenção verifica-se em "Guarde segredo". Sem condições legais nem psicológicas para se reintegrar à sociedade, Clara vivencia um apagamento social. Ao final do conto, o realismo impera sobre a fantasia, e por ter se tornado uma assassina procurada, a única saída para a protagonista é a vida marginal, não por continuar no mundo do crime, mas por viver às escondidas. Após o assassinato do ex-namorado, vive se escondendo, e isso não a deixa imune a certo abalo psicológico: "Aqui ninguém sabe quem sou, mas, mesmo assim, estou atordoada. Sim essa é a palavra certa, atordoada. A insônia me persegue"; "Nunca mais esquecerei aquele dia"; "eu não poderia olhar mais para a minha família"; "Depois daquele dia, nunca mais voltei àquela casa. [...] Tenho muito medo. A insônia me persegue. Aqui onde moro ninguém sabe desse fato. Troquei meu nome" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 65, 70, 71). Portanto, verificamos a situação de completa alienação social da protagonista como estratégia de sobrevivência, sendo este o caro custo por ter enfrentado a realidade da opressão.

Em "Encruzilhada", a cena em que a mãe da protagonista acaba entalada na catraca do ônibus representa o quanto a condição de exclusão social pode levar a acontecimentos tragicômicos:

Dona Estela, distraída, contraiu as duas pernas e começou a maratona. Era gordinha, barriga um pouco estufada, era toda roliça. Passou até o estômago, depois a mulher ficou entalada, tentaram, mas sem sucesso, fazer com que dona Estela voltasse, dois homens puxavam-na pelos braços, outros dois tentavam abaixar a sua barriga, facilitando o trabalho daqueles que a puxavam pelos braços, porém nada acontecia (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 58).

Por fim, verificamos que o retrato social configurado nos contos aponta também para vulnerabilidades afetivas. Por exemplo, Clara e seus pais revelam relações familiares enfraquecidas, pois a menina acaba morando sozinha com a avó, após a ocorrência do despejo, sendo de algum modo abandonada pelos pais, e o ocorrido justifica-se por um motivo banal: "Apesar de mamãe ser a filha única de vovó, as duas eram geniosas. Quando ficavam juntas, brigavam sem parar. Embora papai adorasse vovó, eles foram obrigados a morar com um irmão de papai"; "Elas tinham o mesmo gênio. Mamãe também era firme e autoritária" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 65 e 67). E o enfraquecimento das relações é reforçado pelo fato de que a mãe se torna absolutamente ausente na vida da filha: "Sabíamos de mamãe através de papai" (Ribeiro, 1998RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72., p. 69). Por outro lado, o fato de seus pais terem ido morar com um tio reforça a condição de classe baixa da família da protagonista: eles não a deixaram para morar sozinhos; ainda dependem de outrem para residir.

Makini igualmente passa por uma experiência de extrema vulnerabilidade afetiva, porque se vê impelida a afastar-se da mãe e das irmãs e a viver nas ruas para não sofrer exploração familiar. Assim, verificamos não só um enfraquecimento, mas o absoluto dilaceramento das relações familiares. Contudo, vale observar que, antes mesmo da separação, a relação entre elas já não se demonstrava afetiva; pelo contrário, era baseada na exploração e na agressividade, pois, além do chute no tornozelo e da bofetada na cara que a mãe de Makini lhe dera quando esta se manifestara contrária à vida que levavam, temos um exemplo da péssima relação entre as irmãs: "- Por que você desembrulhou o peixe, sua idiota? - Disse uma das irmãs de Makini. - Idiota é você - retrucou Makini" (Ribeiro, 2005RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60., p. 60). Além disso, "embora morassem só mulheres naquele quarto e cozinha, nenhuma sabia da intimidade uma das outras" (Ribeiro, 2005, p. 59), o que reforça a carência de afeto dessa família.

Ao construírem as narrativas sob uma perspectiva feminina afro-brasileira, os contos de Evaristo e Ribeiro compõem um mosaico de nossa sociedade, que revela a situação de exclusão vivenciada por uma parcela significativa de nossa população. Assim, seus textos servem como forma de conhecimento de um mundo à parte, realizando uma espécie de mediação entre o público leitor e o espaço marginalizado que é representado. Nos contos, o leitor é testemunha de situações que privilegiam a encenação dos conflitos sociais geralmente de forma sutil e poética, e as personagens estruturam-se a partir de diferenças que demarcam as diversas formas de discriminação étnico-racial, de gênero e/ou de classe social. Verifica-se, ainda, uma espécie de crítica da não diluição dessas marcas na sociedade contemporânea.

Desse modo, os contos em questão constituem uma visão crítica da sociedade, sob a perspectiva feminina afro-brasileira. As autoras adotam uma linguagem que reflete e realça a presença de estruturas sociais excludentes associadas às mulheres negras em nossa cultura, sendo as condições de miséria e exclusão representadas a partir da lógica dos próprios sujeitos marginalizados, o que torna o retrato do espaço social estreitamente ligado à constituição da subjetividade feminina afrodescendente. Com inspiração própria e de forma original, verifica-se um retrato peculiar do universo da periferia, a partir de uma visão humana, social e cultural. Entrelaçando temas como miséria, criminalidade, violência e brutalidade, discriminação, desigualdade etc., o olhar crítico dessas escritoras vê tais questões não apenas a partir de uma perspectiva subjetiva e emocional, mas igualmente considera os fatores sociais, constituindo um retrato dos dramas pessoais de uma classe social desfavorecida historicamente. Além disso, enquanto parte de um movimento maior, do sistema literário conhecido como literatura afro-brasileira, mas articulando uma linguagem própria, a escritura em questão rompe com o discurso da cultura tradicional e se manifesta como um elemento de resistência.

Por fim, vale destacar o fato de que os contos surgem como uma maneira de encenar um cotidiano protagonizado por personagens historicamente excluídos. Ao narrar problemas que afligem a vida especialmente das mulheres negras, os contos aqui discutidos constituem não uma mera escrita sobre o negro, mas uma produção literária que explicita a fala das próprias mulheres negras enquanto sujeito que demanda a afirmação de sua própria voz. Assim, o processo de construção discursiva nos contos produz uma compreensão das situações narradas a partir da lógica do sujeito representado.

Referências

  • BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.) (2008). Cadernos negros: três décadas - Ensaios, poemas, contos. São Paulo: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
  • BARBOSA, Maria José Somelarte (2011). Esmeralda Ribeiro. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, v. 3.
  • DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.) (2011). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG.
  • EVARISTO, Conceição (1998). Ana Davenga. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 31-41.
  • EVARISTO, Conceição (2003). Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza.
  • EVARISTO, Conceição (2005). Olhos d'água. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 29-33.
  • EVARISTO, Conceição (2006). Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza.
  • EVARISTO, Conceição (2007). Zaita esqueceu de guardar os brinquedos. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje , v. 30, p. 35-42.
  • EVARISTO, Conceição (2011). Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nadayala.
  • EVARISTO, Conceição (2014). Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional.
  • FONSECA, Maria Nazareth Soares (2011). Literatura negra: sentidos e ramificações. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG , v. 4, p. 245-278.
  • RIBEIRO, Esmeralda (1988). Malungos e milongas. São Paulo: Edição da Autora.
  • RIBEIRO, Esmeralda (1998). Guarde segredo. In: QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, p. 65-72.
  • RIBEIRO, Esmeralda (2005). Encruzilhada. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 28, p. 53-60.
  • RIBEIRO, Esmeralda (2007). Orukomi: meu nome. Ilustrações de Edmilson Quirino dos Reis. São Paulo: Quilombhoje.
  • RIBEIRO, Esmeralda (2011). A moça. In: BARSOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, v. 34, p. 75-80.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Out 2015
  • Aceito
    Mar 2016
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com