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RELAÇÕES ENTRE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E APOIO RELIGIOSO: UM ESTUDO DE CASO NAS ELEIÇÕES DE 2018* * Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradecimentos à Capes pelo fomento de bolsa no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf).

RELATIONSHIPS BETWEEN POLITICAL REPRESENTATION AND RELIGIOUS SUPPORT: A CASE STUDY IN THE 2018 ELECTIONS

Resumo

Este artigo articula a complexa relação entre representação política e apoio religioso durante as eleições de 2018. A partir de teóricos do campo das ciências política e sociais, analisa-se como a igreja Assembleia de Deus, do Maranhão, assumiu seu apoio ao candidato Jair Bolsonaro e, por outro lado, de que forma a senadora assembleiana eleita Eliziane Gama assume posição favorável ao candidato Fernando Haddad. No caso da senadora, observa-se que o poder político das organizações religiosas não se constrói e nem se afirma no sistema religioso, mas sim no sistema político, de acordo com o primado da lógica de busca e manutenção do poder. No contexto desse primado da disputa pelo poder, o uso de recursos políticos oriundos da religião pode ter maior ou menor proeminência, a depender da importância de outros recursos políticos ligados aos partidos ou a grupos políticos informais, suas redes, identidades e semânticas.

Palavras-chave:
Representação política; Assembleia de Deus; Eliziane Gama; Bolsonaro; Eleições (2018)

ABSTRACT

This article articulates the complex relationship between political representation and religious support during the 2018 elections. From theorists in the field of political and social sciences, it analyzes how the Assembly of God church, in Maranhão, assumed its support for the candidate Jair Bolsonaro, and, on the other hand, how the elected senator from the Assembly, Eliziane Gama, assumes her position in favor of candidate Fernando Haddad. In the case of the senator, we see that the political power of religious organizations is not built nor affirmed in the religious system, but rather in the political system according to the primacy of the logic of seeking and maintaining power. In the context of this primacy of the power struggle, the use of political resources derived from religion may have greater or lesser prominence, according to the importance of other political resources linked to parties or informal political groups, their networks, identities, and semantics.

Keywords:
Political representation; Assembly of God; Eliziane Gama; Bolsonaro; Elections (2018)

INTRODUÇÃO

Torna-se cada vez mais complexo o quadro da representação política de religiosos no Brasil. Em análise sobre a 55ª Legislatura, por exemplo, pesquisas do Datafolha - entre os dias 1 e 3 de setembro de 2014 e nos dias 15 de setembro e 9 de outubro de 2015; cf. Diap (2014)Diap - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. (2014). Radiografia do novo Congresso: legislatura 2015-2019. Brasília, DF: Diap. Disponível em <Disponível em https://www.diap.org.br/index.php/publicacoes?task=download.send&id=414&catid=13&m=0 >. Acesso em 13 out. 2022.
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- demonstraram que a grande maioria dos parlamentares evangélicos não representam os eleitores do mesmo segmento religioso em temas específicos como educação, saúde, segurança, mas tão somente em pautas de comportamento e de moral.

As eleições de 2018 parecem ser um grande exemplo de que essa não representatividade ou é desconhecida entre eleitores evangélicos ou é ignorada, uma vez que o debate no interior das organizações religiosas acerca desse tema permanece com seu foco voltado ao comportamento do indivíduo. Dentro desse campo cabe, inicialmente, perguntar: o que é, afinal, representar alguém na política? E o que deve fazer um representante? O representante é o povo ausente? E quem é o povo? Antes de mais nada, é preciso reconhecer que “povo” não é uma categoria econômica, mas política: são pessoas submetidas a um governo. Dessa forma, “povo se opõe exatamente a governo: povo e governo são antípodas na relação de dominação política própria das mais diversas sociedades humanas” (Miguel, 2014Miguel, Luis Felipe. (2014). Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Unesp.: 20), e o que conecta esse povo à democracia representativa são as eleições (Przeworski, 1994Przeworski, Adam. (1994). Democracia e mercado no Leste Europeu e na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.; Manin et al., 2006Manin, Bernard et al. (2006). Eleições e representação. Lua Nova, 67, p. 105-138.).

Przeworski (1994Przeworski, Adam. (1994). Democracia e mercado no Leste Europeu e na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.) dirá que na representação por mandato são analisadas duas questões: a) os programas de governo e; b) os candidatos que realmente podem cumprir suas promessas. Todavia, não se pode afirmar que o indivíduo eleito cumprirá o papel estabelecido pelo partido1 1 A votação da Reforma da Previdência, ocorrida em julho de 2019 na Câmara dos Deputados, ilustra bem este ponto. O PDT havia orientado todos os seus membros a votarem contra a Reforma. A deputada federal Tabata Amaral e mais sete deputados contrariaram a orientação de seu partido. O PDT abriu um processo disciplinar contra eles. e nem as promessas feitas aos seus eleitores - o que ajuda a compreender o cenário da 55ª Legislatura. Na concepção de Przeworski, deveria haver, no mínimo, uma obrigatoriedade para que o eleitor tenha certeza de que sua escolha será respeitada - por isso a prestação de contas acontece quando os eleitores votam e o representante age de acordo com os interesses de quem lá os colocou. Porém, essa maneira não é totalmente eficaz, uma vez que os eleitores não têm informações completas na prestação de contas. Daí, um outro aspecto ajuda a compreender essa forma de representação: o uso do voto - que também será associado com “pedras de papel”, conceito popularizado por Przeworski (1998Przeworski, Adam. (1998). Deliberation and ideological domination. In: Elster, Jon (org.). Deliberative democracy. Cambridge: Cambridge University Press, p. 140-160.: 49) -, não apenas para a simples eleição, mas também para que o cidadão demonstre, por meio das informações que colheu sobre as atividades passadas dos candidatos, uma forma de punir ou premiar os representantes. Aqui, a racionalidade do “não voto” como forma punitiva provocaria nos políticos uma atenção maior para manterem-se virtuosos. Após esses breves aspectos teóricos acerca da representação política, uma outra questão introduz o objeto de nossa pesquisa: de que maneira instituições religiosas operaram na construção da representação política? Przeworski (1994)Przeworski, Adam. (1994). Democracia e mercado no Leste Europeu e na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. e outros autores, como Joseph Schumpeter (1976Schumpeter, Joseph A. (1976). Capitalism, socialism and democracy. New York: Harper Perennial.) e Hanna Pitkin (1967Pitkin, Hanna Fenichel. (1967). The concept of representation. Berkley: University of California Press.), identificam as diferentes democracias e seus níveis de representatividade popular. Przeworski, em especial, alerta para o fato de que os eleitores devem ser capazes de imputar responsabilidade sobre o governo e de votar (nas eleições ou “pedras de papel”) para retirar partidos com desempenho insatisfatório.

Seguindo a categoria da representação, a teoria pluralista afirma que os cidadãos são guiados por um “entendimento esclarecido de seus interesses (demandas) comuns” (Dahl, 2006Dahl, Robert. (2006). A poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.: 132), e é a partir desses que se mobilizam. Em outras palavras, só haverá participação política dos indivíduos no momento que seus interesses estiverem em discussão. Isso faz com que a política seja reduzida a um processo de escolha, o que poderia legitimar, inclusive, ditaduras paternalistas, nas quais os cidadãos comuns receberiam de certas elites uma cartilha de “verdadeiros” interesses para toda a sociedade. E se as eleições são “a essência da democracia”, como já apontava Samuel Huntington (1994Huntington, Samuel. (1994). A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Ática.: 16), como fazer com que os atores da sociedade se envolvam com a política, independentemente se seus interesses estão ou não em pauta?

Duas questões são destacadas aqui. A primeira envolve o estágio “eleitoral e o entre eleições” (Dahl, 2006Dahl, Robert. (2006). A poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.: 70-71). Uma organização eclesiástica, por exemplo, tem, em seu rol de membros, aspectos demasiadamente semelhantes, produzindo uma manifestação de preferências entre alternativas plurais. Isso seria resultado de um “treinamento social” entre eleições (Dahl, 2006Dahl, Robert. (2006). A poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.: 76).

O “treinamento social” empreende normas na/pela família, nas/pelas escolas, por meios de comunicação, assim como nas/pelas igrejas. Para Dahl, dentro de cada grupo há um consenso diante das normas. Isso se dá por meio de um treinamento. A proposta do autor não é que tais coletivos ofereçam uma alternativa a seus membros, mas que todos os indivíduos tenham informações idênticas das múltiplas alternativas (Dahl, 2006Dahl, Robert. (2006). A poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.: 73), o que geraria uma educação para a cidadania. Para que isso se torne realidade, um consenso entre os líderes de cada setor é indispensável. Tomando a igreja como exemplo, a segunda questão é: até que ponto as lideranças se servem de um discurso para “treinamento social” para discussão de liberdade democrática?

Neste artigo, trazemos uma análise da relação entre religião e política tendo como referência a igreja evangélica Assembleia de Deus (AD), do estado do Maranhão, e sua inclinação pela representação política tanto no Legislativo quanto no Executivo. Utilizaremos o exemplo da ex-deputada federal e hoje senadora Eliziane Gama (Partido Popular Socialista [PPS]-MA)2 2 A sigla PPS foi modificada em março de 2019. O partido passou a se chamar Cidadania. na eleição para o Senado em 2018, a fim de destacar a complexidade da representação política de parte do meio evangélico pentecostal e do discurso de alguns líderes da AD como uma espécie de “treinamento social” para a democracia. O caso da senadora Eliziane não serve evidentemente como demonstração empírica de nenhuma tese geral sobre a relação entre religião e política. O que propomos explicar neste artigo são apenas as condições de possibilidade de variação do comportamento da própria senadora em relação à linha política hegemônica adotada pela AD. Para além dos autores e das categorias mencionados, a sociologia política de Niklas Luhmann (2008Luhmann, Niklas. (2008). Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp .) pode ser útil para desenvolver uma análise dessa relação complexa entre os subsistemas funcionais da política e da religião3 3 Na teoria dos sistemas, há investigações que questionam o status de sistema social da religião em Luhmann. Como o meio de comunicação simbolicamente generalizado que Luhmann propõe como traço indispensável da religião é a fé, alega-se (Bachur, 2011) que, em condições modernas de privatização da experiência religiosa, a fé torna-se uma operação da consciência, não servindo de base para uma forma específica de comunicação enquanto operação genuinamente social. Esse questionamento é conceitualmente preciso, pois se não constituir uma forma específica de comunicação, nenhum fenômeno (incluindo o religioso) pode ser considerado um sistema social. No entanto, outras investigações (Petzke, 2013), inspiradas na experiência de religião pública em países como os Estados Unidos, identificam não apenas os limites da tese da privatização da experiência religiosa como um traço geral da modernidade, como também entendem o caráter social da fé enquanto forma de operação simbolicamente institucionalizada na construção de comunidades de fé. Em comunidade, como ocorre com os testemunhos da presença do transcendente na vida pessoal entre evangélicos pentecostais, a fé constitui forma de comunicação orientada pelo código religioso transcendente/imanente. , uma vez que ela busca combinar diferenciação com acoplamento entre tais subsistemas. Portanto, adotaremos principalmente sua teoria para analisar o caso exposto neste artigo e justificaremos em breve e específica seção. Após apresentação da teoria luhmanniana para análise da relação entre política e religião, o texto seguirá para delimitação do tema, cujo foco recai sobre a trajetória de inserção política da AD, destacando como o perfil mais descentralizado de suas estruturas organizacionais favorece à pluralização de estratégias eleitorais e formas de mobilização de elementos religiosos por parte dos candidatos religiosos. Posteriormente, analisaremos as tensões e os conflitos envolvendo o vínculo religioso e as pretensões eleitorais e de representação política da senadora Eliziane Gama (AD), do Maranhão. Por último, discutiremos como o caso da senadora em tela pode ser interpretado no contexto mais amplo das relações entre política e religião em uma sociedade diferenciada em subsistemas funcionais (Luhmann, 2002Luhmann, Niklas. (2002). Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp .). Nesse contexto, nossa hipótese inicial é que a variedade das estratégias e formas de instrumentalização político-eleitoral da religião esteja ligada tanto ao primado da lógica política como às possibilidades de instrumentalização da religião oferecidas pela estrutura do sistema religioso.

A TEORIA LUHMANNIANA E A COMPLEXA RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA

Em seus primeiros trabalhos de sociologia da religião, Luhmann (1977Luhmann, Niklas. (1977). Funktion der Religion. Frankfurt am Main: Suhrkamp.) afirma, com foco na Europa, que a religião tem encontrado dificuldades para estabelecer e estruturar relações de interdependência com outros subsistemas, o que explicaria, por exemplo, sua perda da relevância na esfera política em democracias competitivas. No entanto, ao olhar para o cenário religioso brasileiro no fim de sua vida e obra, Luhmann (2002)Luhmann, Niklas. (2002). Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp . considerou a possibilidade de uma vitalidade religiosa especificamente moderna, exemplificada sobretudo pelo pentecostalismo e sua capacidade de lidar com problemas de exclusão social em uma sociedade funcionalmente diferenciada4 4 “Grande parte da população mundial encontra-se praticamente excluída de todos os sistemas funcionais: sem trabalho, sem dinheiro, sem documentação, sem direitos, sem educação, muitas vezes nem sequer a menor escolaridade, sem cuidados médicos adequados e com tudo isto novamente: sem acesso ao trabalho, sem acesso à economia, sem perspectiva de obter justiça contra a polícia ou no tribunal. As exclusões reforçam-se mutuamente […]. Mas também existem sistemas funcionais que não necessariamente participam desta espiral para baixo, mas que promovem inclusão mesmo que outros sistemas tenham excluído. Isto aplica-se à família, na medida em que esta ainda exista nestas áreas e poderia aplicar-se acima de tudo à religião”. (Luhmann, 2002: 242-243) . Inspirado pela possibilidade apontada por Luhmann, Petzke (2013Petzke, Martin. (2013). Weltbekehrungen: Zur Konstruktion globaler Religion im pfingstliche-evangelikalen Bewegung. Bielefeld: Transcript Verlag.) ressalta o protagonismo pentecostal na construção de uma esfera religiosa global desde o fim do século XIX e ao longo do século XX. As relações de diferenciação e interdependência entre religião pentecostal e política, no entanto, têm sido pouco trabalhadas do ponto de vista da construção teórica. Neste artigo, a partir de uma análise de caso sucinta, gostaríamos de analisar a relação entre religião e política a partir do problema da construção de coletividades, vontades coletivas e formas de representação política da religião.

Luhmann fala do povo como construção interna da política. A construção de identidades coletivas, como mostra Nassehi (2003Nassehi, Armin. (2003). Der Begriff des Politischen und die doppelte Normativität der, soziologischen Moderne. In: Nassehi, Armin & Schroer, Markus (orgs.). Der Begriff des Politischen. Baden-Baden: Nomos, p. 133-170.), faz parte da função da política em prover a capacidade de tomada de decisões coletivamente vinculantes. Segundo ele, a definição de Luhmann sobre a função da atividade política precisa ser esclarecida em um aspecto fundamental: as coletividades que sustentam as decisões coletivamente vinculantes não podem ser vistas como precedentes à política. Elas são, pelo contrário, produto do sistema político, um público que o sistema constrói para si mesmo e diante do qual a atividade política deve sempre legitimar-se (Nassehi, 2003Nassehi, Armin. (2003). Der Begriff des Politischen und die doppelte Normativität der, soziologischen Moderne. In: Nassehi, Armin & Schroer, Markus (orgs.). Der Begriff des Politischen. Baden-Baden: Nomos, p. 133-170.). Assim, a função da política não é produzir apenas decisões coletivamente vinculantes, mas também coletividades visíveis e imputáveis, o que torna possível a natureza vinculante das decisões políticas.

Contudo, não é apenas o sistema político que constrói internamente as identidades coletivas que considera relevantes para suas próprias operações. Em uma sociedade funcionalmente diferenciada, coletividades são construídas por processos de imputação de expectativas e capacidades de ação e participação em cada sistema funcional. E, como tais processos de imputação são sempre práticas comunicativas específicas e constitutivas de cada sistema social, a especialização sistêmica também se torna uma das características definidoras das identidades coletivas modernas. Embora fatores e referências do ambiente sejam levados em conta nesses processos internos de imputação de expectativas sociais (assim como a identidade religiosa é levada em conta na construção da identidade política), nenhum sistema social importa identidades coletivas como um fato dado de seu ambiente5 5 Coletividades, em condições modernas, são recortes contingentes produzidos por sistemas sociais sobre a população em um horizonte de outras possibilidades. Tanto na vida cotidiana como na ciência a construção social de coletividades (classes, nações, identidades étnicas e de gênero etc.) opera com generalizações que reduzem a complexidade das possibilidades individuais de comportamento. O comportamento de cada indivíduo concreto é sempre mais complexo do que as expectativas com as quais eles são observados como exemplares de um determinado coletivo. Se os indivíduos são microdiversos quando comparados uns aos outros, então toda coletividade composta por muitos indivíduos pode ser observada como uma população no sentido que a biologia evolutiva confere a esse conceito. Toda coletividade moderna é um recorte populacional que generaliza similaridades e, assim, se diferencia de outras coletividades e da população mais ampla. Porém, quando observamos a composição microdiversa desse recorte populacional, vemos que toda coletividade é uma redução de complexidade que ignora grande parte da variação comportamental individual, e essas variações individuais funcionam como base para a dinâmica de mudança em sistemas sociais e para a evolução social como um todo. Na política, por exemplo, indivíduos microdiversos são caracterizados pela diversidade de articulação de interesses e preferências. Os processos e estruturas do sistema político (partidos e programas políticos, narrativas) precisam reduzir a complexidade desses interesses e preferências microdiversos, construindo generalizações coletivas capazes de agregar escolhas individuais em maiorias ou minorias politicamente relevantes. Nenhum fato social é ontologicamente anterior às práticas sociais especializadas com a diferenciação sistêmica da sociedade (Ahlers et al., 2021). . Nesse sentido, a noção política de povo pode ser equiparada à noção religiosa de cristãos enquanto coletividades construídas em sistemas funcionais específicos. No entanto, como nesses processos internos de construção sistêmica referências do ambiente podem ser mobilizadas e instrumentalizadas, as coletividades do sistema religioso frequentemente tornam-se relevantes para a construção de identidades coletivas na política. Esse parece ser exatamente o caso do catolicismo e do pentecostalismo evangélico, para os quais as noções de “povo cristão” e “povo de Deus” indicam uma relevância pública e política sintetizada na articulação política (“povo”) de atributos religiosos (“cristãos”, “de Deus”). Para o argumento deste artigo, é importante reter a ideia de uma relação não determinista entre sistema e ambiente no processo de construção de coletividades: o que a política, por exemplo, constrói a partir do ambiente de identificações coletivas de ordem religiosa depende da política e varia com ela. Nesse quadro, a instrumentalização da religião para a construção de coletividades e de pretensões de representação política pode assumir um papel proeminente, já que a modernidade religiosa não significa necessariamente o confinamento da religião à esfera privada, mas sim a abertura de um horizonte de possibilidades variadas de organização e prática do religioso (Dutra, 2016Dutra, Roberto. (2016). A universalidade da condição secular. Religião & Sociedade, 36/1, p. 151-174.), entre as quais se destaca, para Luhmann (2002Luhmann, Niklas. (2002). Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp .: 301-302), o papel moderno da religião na identificação coletiva de grupos e camadas sociais. No entanto, o significado da identificação coletiva religiosa para a política é politicamente construído. Pode variar, por exemplo, entre concepções de povo marcadamente distintas na forma e no conteúdo: entre uma concepção mais abstrata e geral que entende o povo como o conjunto microdiverso, capaz de abarcar diferentes coletividades, e outra mais concreta, particular e tangível, que toma como referência não a unidade abstrata que engloba o diverso, mas sim a audiência presencial de adeptos que sustenta o seu líder (Lessa, 2021Lessa, Renato. (2021). Democracia.20XX: qual horizonte? Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. (Saúde Amanhã. Textos para discussão, vol. 62). Disponível em <Disponível em https://saudeamanha.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/05/LESSA-R-2021-Democracia-20XX-Fiocruz-Saude-Amanha-TD-062.pdf >. Acesso em 7 out. 2022.
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: 32).

No Brasil, a fragmentação recente do sistema religioso (Brandão & Jorge, 2019Brandão, André Augusto Pereira & Jorge, Amanda Lacerda. (2019). A recente fragmentação do campo religioso no Brasil: em busca de explicações. Revista de Estudios Sociales, 69, p. 79-90. Disponível em <Disponível em https://doi.org/10.7440/res69.2019.07 >. Acesso em 7 out. 2022.
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) potencializa a variedade e a complexidade das formas de instrumentalização política da religião. Essa fragmentação produziu não apenas o atual pluralismo de denominações evangélicas, mas também uma variedade de organizações religiosas que se distinguem especialmente pelo nível de centralização e descentralização de suas estruturas e processos decisórios internos. Por exemplo, enquanto a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) e a Igreja Mundial do Poder Deus (IMPD) possuem estruturas e processos decisórios mais hierarquizados e centralizados, a AD se destaca pela sua descentralização.

A complexidade da relação entre religião e política, como poderemos observar no caso sobre a atuação da então deputada Eliziane Gama, consiste na contingência e na abertura de sentido sobre a coletividade sociopolítica que a deputada evangélica propõe representar. A contingência e abertura de sentido resultam do fato de que a construção de coletividades politicamente relevantes com base na religião, ou seja, da representação política de uma vontade coletiva associada ao pertencimento religioso, não se dá pelo vínculo religioso do candidato ou do partido. Os estudos sobre a mobilização política de religiões pentecostais em períodos eleitorais têm demonstrado enorme variedade de intensidade, forma e estilo no uso de elementos religiosos para a construção da identidade política e das coletividades que os candidatos pretendem representar (Mezzomo & Pátaro, 2019Mezzomo, Frank Antonio & Pátaro, Cristina Satiê de Oliveira. (2019). Religião católica, evangélica e afro-brasileira em disputa eleitoral: acionamento de elementos religiosos na campanha à Assembleia Legislativa do Paraná. Tempo e Argumento, 11/26, p. 456-485.).

ASSEMBLEIA DE DEUS E O SISTEMA POLÍTICO

Nesta seção, consideramos importante observar, ainda que brevemente, parte da história da AD no enquadramento da política brasileira. O crescimento de pentecostais nessa esfera se deu no momento em que a igreja evangélica se tornou uma religião de massas e, à medida que crescia, percebeu a necessidade de certa representação política. Para além disso, evangélico era sinônimo de honestidade, o que favorecia o ingresso na área (Freston, 1994Freston, Paul. (1994). Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba: Encontrão.: 14-16). No caso da AD, a participação na política não era uma decisão solitária, mas oligárquica (Freston, 1994Freston, Paul. (1994). Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético. Curitiba: Encontrão.: 14-16).

A figura do assembleiano Antônio Torres Galvão teve seu destaque na política nacional. Presidiu o sindicato dos Trabalhadores de Fiação e Tecelagem de Paulista, ajudou a fundar o Partido Social Democrático (PSD) e elegeu-se para a Constituinte Estadual de 1947. Nessa época, era o único deputado de origem humilde juntamente com alguns integrantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi reeleito em 1950 e tornou-se presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco. Com a morte do governador Agamenon Magalhães, Galvão ocupou por quatro meses esse posto em 1952.

Nas eleições de 1982, esse cenário foi modificado quando o vereador carioca Ivanir de Mello, membro da AD, foi eleito pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Os discursos foram ampliados e um candidato a deputado estadual (SP) pelo Partido dos Trabalhadores (PT) utilizou o slogan “Trabalhador pentecostal vota em trabalhador pentecostal”6 6 Comunicações do Iser, 3, dezembro de 1982: 16-17. Disponível em <https://www.iser.org.br/publicacao/comunicacoes/3/>. Acesso em 15 set. 2018. . Em 1978, o Mensageiro da Paz já antecipava: “crente vota em crente” (Gonçalves, 1990: 82), mas o jornal demonstrou parcialidade com o envolvimento dos membros da AD na política. Em maio de 1981, foi decidido que “o ministro titular […] que deseje [sic] exercer a política partidária […] se licencie das atividades pastorais” (Carvalho, 1981Carvalho, José Pimentel de. (1981). 25a Assembléia Geral da CGADB. Mensageiro da Paz, maio 1981. Disponível em <Disponível em https://mega.nz/folder/0dNyQIqI#6WlOSrdHvnzoswSgXnhGNQ/folder/JNFFQAab >. Acesso em 25 set. 2018.
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: 4). Isso fez com que a liderança motivasse outros a se candidatarem. Foi o caso de José Fernandes, o primeiro membro da AD a chegar ao Congresso Nacional. Além disso, Alcebíades Vasconcelos era pastor presidente no Amazonas e defensor da projeção social da igreja. José Fernandes foi eleito deputado federal pelo PDS (Partido Democrático Social) nos anos de 1978, 1982 e 1986. De 1979 a 1982 foi nomeado prefeito de Manaus. Em 1986, filiou-se ao PDT (Partido Democrático Trabalhista) e se reelegeu como deputado federal constituinte, defendendo a família e votando contra o aborto7 7 Disponível em <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-de-oliveira-fernandes>. Acesso em 10 set. 2018. . A partir de 1985, o Mensageiro da Paz passou a falar de política em quase todos os volumes. Na edição de dezembro de 1985, destacou: “[Para os candidatos a candidato], induzindo os crentes a imaginarem que a liberdade corre perigo, fica mais fácil se apresentarem […] como candidatos a paladinos do Evangelho no Congresso” (Carvalho, 1985Carvalho, José Pimentel de. (1985). Mensageiro da Paz, dez. 1985.: 4). Um ano depois, o livro Irmão vota em Irmão, do assembleiano Josué Sylvestre, trazia textos bíblicos para dar apoio à sua tese: “Bastaria o argumento do amor cristão para fazer com que os crentes votassem nos crentes. Porque quem ama, não quer ver o seu irmão derrotado […] Crente vota em crente, porque, do contrário, não tem condições de afirmar que é mesmo crente” (Sylvestre, 1986Sylvestre, Josué. (1986). Irmão vota em irmão. Brasília: Pergaminho.: 53-54).

Toda essa onda de identificação e sentimento de pertença, por meio do segmento religioso evangélico com fins políticos, teve seu desdobramento acompanhado e discutido por Machado (2006Machado, Maria das Dores Campos. (2006). Política e religião. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas., 2012Machado, Maria das Dores Campos. (2012). Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, 32/2, p. 29-56.), Camurça (2019Camurça, Marcelo. (2019). Religião, política e espaço público no Brasil: perspectiva histórico/sociológica e a conjuntura das eleições presidenciais de 2018. Estudos de Sociologia, 2/25, p. 125-159.), entre outros, revelando as dificuldades que a defesa de determinadas pautas traz para a relação entre igrejas e o Estado laico. Embora não seja o foco de nosso artigo, é importante registrar que tal discussão não se limitou às eleições para o Executivo e Legislativo nos âmbitos federal e estadual. Encontra-se presente no campo das eleições municipais trazendo à baila, por exemplo, o tema do catolicismo carismático como um não espelhamento da participação evangélica na política (Carranza, 2017Carranza, Brenda. (2017). Modus operandi político de evangélicos e católicos: consolidações e inflexões. Debates do NER, 18/32, p. 87-116.).

Já dentro do setor evangélico, Cunha e Lopes (2012Cunha, Christina Vital da & Lopes, Paulo Victor Leite. (2012). Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.) buscaram entender de que maneira a exploração de temas que envolvem as pautas morais e de comportamento estão presentes na disputa eleitoral. Foi observado, entre outras questões, como determinados líderes religiosos “vêm atuando unidos em prol da promoção de uma sociedade moralizada e civilizada a partir de seus termos” (Cunha & Lopes, 2012Cunha, Christina Vital da & Lopes, Paulo Victor Leite. (2012). Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.: 180), o que sugere uma certa associação com a categoria de “treinamento social”. Em pesquisa sobre as eleições de 2014, Cunha et al. (2017)Cunha, Christina Vital da et al. (2017). Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições de 2014. Rio de Janeiro: Heinrich Boll Stiftung: Iser. registraram os agenciamentos de campanhas dos principais evangélicos, para cargo de Presidência da República e para o Governo do Estado do Rio de Janeiro, percebendo composições estratégicas de partidos e igrejas. Mais recentemente, destacaram como as narrativas de fundo moral têm tido grande destaque na política brasileira (Cunha & Evangelista, 2019Cunha, Christina Vital da & Evangelista, Ana Carolina. (2019). Estratégias eleitorais em 2018: o caso das candidaturas evangélicas ao legislativo brasileiro. Revista Internacional de Direitos Humanos, 16/29, p. 87-100.).

Retomando o caso das AD’s, alguns personagens ganham, na atualidade, relevância no Congresso Nacional, como o caso do pastor Marcos Feliciano (Partido Social Cristão [PSC]-RJ), Sóstenes Cavalcante (Partido Democratas [DEM]-RJ), Zequinha Marinho (líder do PSC-PA). Todavia, para o enquadramento específico de nosso estudo de caso, outra personagem importante na inserção política atual da AD é a assembleiana Eliziane Gama. Jornalista formada na Universidade Federal do Maranhão (Ufma) e membro da AD, foi eleita pela primeira vez em 2006 como deputada estadual com mais de 15 mil votos e reeleita em 2010 com mais de 37 mil. Tentou a prefeitura de São Luís em 2012, mas ficou em terceiro lugar, com cerca de 70 mil votos. Em 2014, foi a única mulher eleita deputada federal no Maranhão, com 133.575 votos8 8 No ano de 2014, dos 27 estados nacionais, 9 não elegeram deputados federais ligados à AD: Acre, Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Piauí, Sergipe e Tocantins. Mas tiveram eleitos para outros cargos para a Câmara em outros estados, exceto em Alagoas, Paraíba, Piauí e Tocantins. No Acre, foram eleitos deputados estaduais. . Eliziane presidiu a Comissão de Meio Ambiente e outras importantes comissões no Poder Legislativo do Maranhão, como a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Combate à Pedofilia e Abuso Sexual Infantil, a Comissão de Direitos da Mulher, a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão de Infância, Juventude e Idoso9 9 Disponível em: <https://www.eleicoes2014.com.br/eliziane-gama/>. Acesso em: 28 jul. 2018. . Em seus discursos no plenário da Câmara (2015-2018) destacam-se as temáticas das comissões nas quais exerceu algum tipo de atividade. Quando utilizou expressões religiosas foi para destacar o papel da AD na sociedade em relação à educação e formação de profissionais autônomos, com escolas e pastores voltados a essa prática. O Congresso em Foco a considerou, em 2015, uma das mais atuantes e influentes parlamentares e a segunda que menos gastou com verbas indenizatórias na Câmara dos Deputados. No mesmo ano, destacou-se pelo seu trabalho na CPI da Petrobras, no Conselho de Ética e em comissões da Câmara10 10 Disponível em <http://diegoemir.com/2016/01/eliziane-economiza-e-segunda-parlamentar-com-menor-gasto-na-camara-dos-deputados/>. Acesso em 28 jul. 2019. . A partir de experiências familiares, religiosas e sociais, a deputada apontou, em seus discursos, questões sobre tráfico e consumo de drogas, bem como investimentos e esforços para enfrentá-los, o aumento da violência e mortes no país, os números crescentes de prostituição infanto-juvenil e o analfabetismo. Eliziane julga ser nesses setores que a igreja tem um “papel extremamente preponderante” e afirma que o “trabalho da literatura cristã, da bíblia, da escola bíblica dominical e de toda literatura que é utilizada reduz de forma significativa os indicadores de analfabetismo dentro da igreja evangélica”11 11 Em: 09/06/2015; sessão 142.1.55.O; fase: homenagem. . Além dessas áreas, a Assembleia também tem um importante papel na recuperação e ressocialização de presos. Segundo a deputada, a igreja, assegurada pela Constituição Federal, já realiza tal serviço por meio de capelanias12 12 Em: 13/06/2017; sessão 157.3.55.O; fase: breves comunicações. .

ELEIÇÕES DE 2018: COMPLEXA INTERFACE ENTRE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E APOIO RELIGIOSO

Pensando nas eleições de 2018 ao senado, a deputada Eliziane ganhou o apoio da Convenção Estadual das Assembleias de Deus no Maranhão (Ceadema)13 13 Segundo o Ceadema, há 7.890 igrejas assembleianas com 8.450 obreiros e 1.350.000 membros. Disponível em <https://ceadema.com.br/>. Acesso em 28 jul. 2018. , da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) e do governador do estado, que se denomina católico, Flávio Dino, filiado à época ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em dezembro de 2017, durante a 78ª Assembleia Geral da AD, evento ocorrido em Chapadinha (MA), o presidente do Conselho Político da CGADB, o pastor Eliazar Ceccon, destacou a história política de Eliziane Gama e deixou claro o apoio do Conselho ao Senado:

O Conselho Político da CGADB reafirma o seu apoio a [sic] pré-candidatura ao Senado da deputada Eliziane. Por sua voz firme em defesa do Maranhão e sem abrir mão dos princípios cristãos , a deputada Eliziane merece não só o nosso apoio, mas também o nosso empenho nesta pré-candidatura que pode fazer a diferença para o estado14 14 Disponível em <https://www.marcoaureliodeca.com.br/2018/06/13/evangelicos-lancam-sabado-pre-candidatura-de-eliziane-gama-ao-senado/>. Acesso em 28 jul. 2018. (grifo nosso).

Durante o evento, a candidata propôs reestruturação, preservação e conservação dos rios, ampliação da rede de proteção à mulher e combate ao feminicídio - questões que não envolvem diretamente pautas morais, tão prioritárias na história de alguns políticos assembleianos. Além disso, prometeu convocar um plebiscito para anular a Reforma Trabalhista e da Previdência15 15 Nada ocorreu em relação ao plebiscito, mas Eliziane, após eleita ao Senado, votou contra tais reformas. Disponível em <https://luiscardoso.com.br/politica/2018/10/eliziane-gama-anuncia-voto-em-haddad-e-lider-das-assembleias-de-deus-reprova/>. Acesso em 15 out. 2018. Nada ocorreu em relação ao plebiscito, mas Eliziane, após eleita ao senado, votou contra tais Reformas. . Esse ponto é importante, pois indica a construção de uma identidade política que diverge da tendência geral de avanço de pautas morais, como aborto e orientação sexual (Cunha & Lopes, 2012Cunha, Christina Vital da & Lopes, Paulo Victor Leite. (2012). Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.), na construção das estratégias e formas de instrumentalização da religião pela política, a fim de construir representação e a própria identidade coletiva política do grupo representado. Nessa mesma convenção esteve presente o governador Flávio Dino, que ressaltou a importância da AD no estado e recebeu homenagem da Capelania da Polícia Militar. Dino destacou o papel que a AD tem nas capelanias, as quais contribuem muito para a segurança pública do estado16 16 Disponível em <http://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/gestao/relacoes-institucionais/em-chapadinha-governador-flavio-dino-participa-de-convencao-anual-das-assembleias-de-deus>. Acesso em 22 jun. 2019. . Um dado relevante é que durante o governo da família Sarney já era comum a nomeação para o cargo de capelão ao invés da realização de concurso público para tal exercício, mas durante o governo de Flávio Dino, de 2016, o número passou para 50 capelães nomeados, dentre esses, sobretudo, líderes das AD do ministério Madureira. Com o apoio da denominação religiosa e do governo do estado, Eliziane foi eleita senadora para a 56ª Legislatura, com 1.539.916 votos. Foi a segunda mais bem votada do Maranhão. Mas não apenas Eliziane como membro da AD foi eleita: Mical Damasceno (Partido Trabalhista Brasileiro [PTB]), filha do pastor Pedro Aldi Damasceno e presidente da Ceadema, foi eleita deputada estadual. O PTB tinha coligação com o partido do governador Flávio Dino, assim como o PPS. Segundo Mical,

O povo evangélico dessa vez entendeu que havia a necessidade de uma representatividade evangélica e nós conseguimos essa grande vitória. Houve uma organização das Assembleias de Deus e eu faço parte do projeto político e social de todas as congregações da Assembleia de Deus.

Meu pai nunca me motivou a entrar para a política. Eu fui a primeira vez candidata, a segunda e ele não aprovou, mas na terceira ele disse que se eu realmente queria ele iria me ajudar e agora deu tudo certo. Dessa vez eu entendi que nem tudo é do jeito que a gente quer. Eu ouvi os conselhos das lideranças e segui o caminho certo. Eu sou fruto da força política da Assembleia de Deus. Agora a igreja acordou.

A minha equipe trabalhou com o projeto de reeleição do nosso governador, o meu pai trabalhou também e ele [Flávio Dino] soube respeitar a nossa posição e sabe que nós não iríamos apoiar o candidato dele [Fernando Haddad] e que nós estávamos com Bolsonaro17 17 Disponível em <https://www.blogsoestado.com/zecasoares/2018/11/28/mical-diz-que-e-fruto-da-assembleia-de-deus/>. Acesso em 17 jun. 2019. (grifo nosso).

O discurso de Mical demonstra bem a influência da denominação e seu interesse por representatividade política, bem como a orientação em relação à reeleição de Flávio Dino e seu não voto ao candidato Haddad (PT) no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Nesse aspecto, há outras razões que podem ser problematizadas em relação à representatividade, a começar por Haddad. O que o político fez (ou o que representa) para merecer o não voto? Esse conceito trazido Przeworski, como anunciado na introdução deste artigo, que traduz o exercício político da “punição” diante daquele que não atingiu beneficamente a sociedade com seus planos de governo (e por isso deve ser substituído), poderia ser ampliado quando os líderes de igrejas utilizam seus espaços para “treinamento social”, no sentido de orientar seus filiados em quem se deve ou não votar? O movimento contra Haddad e o apoio a Bolsonaro representam um mecanismo litúrgico que indica a existência desse “treinamento social”. Um mês antes das eleições de 2018, a AD iniciou uma campanha de jejum e oração “pelo Brasil”. A ideia era mobilizar todas as igrejas a fim de que o elemento da fé fosse o argumento legitimador da orientação do voto, uma vez que seria o próprio Deus quem direcionaria a escolha pelo candidato (Figura 1). Assim dizia o texto no Instagram da CGADB:

Uma crise moral, social, econômica e política, tem assolado nossa nação nos últimos anos, e a nossa principal esperança de mudança é o Senhor Jesus […] Serão trinta dias ininterruptos […] orando por nosso país; em seu lar, sempre que estiver reunido com sua família em um momento de adoração a Deus, clame pelo Brasil; em todos os cultos e reuniões da Igreja que está sob seus cuidados, de igual modo, faça uma oração especial pelo Brasil. Oremos para que Deus nos direcione a votar em homens, mulheres comprometidos não só com o bem e o futuro da nação, mas acima de tudo, comprometidos com Deus e a sua palavra, que afirma “Quando os justos governam, o povo se alegra” Pv. 29:2a. Não fique de fora deste projeto, mobilize a Igreja do Senhor no seu bairro, município, estado, a fazer parte deste momento especial […] (grifo nosso).

Figura 1
Postagem no Instagram da CGADB, de 6 set. 2018

As eleições seguiram para o segundo turno e o presidente da CGADB, o pastor José Wellington Costa Júnior, encontrou-se com o candidato à Presidência, o ex-deputado Jair Messias Bolsonaro (Partido Social Liberal - PSL), na tarde do dia 18 de outubro, quinta-feira. Durante a reunião, o pastor declarou oficialmente o apoio da AD, que é a maior denominação evangélica do país, com 95.732 pastores e mais de 20 milhões de fiéis (dados dinâmicos). Bolsonaro, à época, avisou aos evangélicos: “tenham certeza que, se for a vontade de Deus que eu seja eleito, vocês terão na presidência alguém afinado com aquilo que a Igreja defende; o Brasil é laico, mas nós somos cristãos” (Lellis, 2019Lellis, Nelson. (2019). Representação política, educação e religião: um Brasil que ainda visita o confessionário. Revista Senso, 1 mar. 2019. Disponível em <Disponível em https://revistasenso.com.br/2019/03/01/representacao-politica-educacao-e-religiao-um-brasil-que-ainda-visita-o-confessionario >. Acesso em 7 out. 2022.
https://revistasenso.com.br/2019/03/01/r...
, grifo nosso).

Durante a campanha para o segundo turno, uma nota oficial foi emitida e divulgada no mesmo Instagram:

A Campanha Nacional de Oração das Assembleias de Deus no Brasil idealizado [sic] pela CGADB foi prorrogada; em virtude do Segundo turno para Presidente e também governadores em diversos estados, conclamamos a todos a permanecerem orando e jejuando de forma intensiva por nossa nação. Sem dúvida Deus agirá mediante o clamor de seu povo. Em todos os momentos de culto em sua Igreja, no seu lar, em sua empresa, ore por nosso país. Incentive outros a orarem também (grifo nosso).

Prorrogar a campanha de oração seria o mesmo que continuar utilizando do recurso litúrgico para orientação ao voto e ao não voto, visto que as razões apresentadas para a oração são desfavoráveis ao candidato do PT. Há poucos dias das eleições, José Wellington publicou uma nota oficial (Figura 2) em que outrora já havia justificado que a decisão pela candidatura de Jair Bolsonaro não era apenas por seu “perfil conservador”, mas “acima de tudo pelo respeito que o mesmo demonstra para com a família e a Igreja, sendo contra a ideologia de gênero, legalização das drogas, aborto e tantos outros itens que vem contra o que nos ensina a palavra de Deus”18 18 Disponível em <https://pleno.news/brasil/eleicoes-2018/cgadb-declara-apoio-ao-candidato-jair-bolsonaro.html>. Acesso em 20 dez. 2018. :

Figura 2
Nota oficial de José Wellington, em 25 out. 2018

O pastor Pedro Damasceno apoiou, em consonância com a CGADB, o candidato Bolsonaro, que declarou estar “afinado com aquilo que a Igreja defende”. Todavia, Damasceno trabalhou pela reeleição do comunista Flávio Dino ao governo do estado, que se mostrou afinado a pautas semelhantes às de Haddad e Manuela d’Ávila, sua vice. Com relação ao candidato do PCdoB, o apoio não foi unânime e, por isso, Damasceno recebeu uma carta de repúdio do pastor Anselmo Cardoso, da AD de Buriticupu (MA), em que dizia:

Ele [pastor Pedro Damasceno], hoje, está do lado dos comunistas e pode ser também um deles. Em um país comunista, quem não apoia o governo, é preso, torturado e morto. […] Essa posição do Pr. Pedro Aldi Damasceno, traz indignação à maioria dos membros da CEADEMA. E, eu, particularmente, demonstro o meu REPÚDIO e INDIGNAÇÃO contra essa posição desagradável. […] Tudo isso, são coisas que, nós, os verdadeiros evangélicos, repudiamos19 19 Disponível em <https://www.marcoaureliodeca.com.br/2018/06/26/pastor-da-assembleia-de-deus-repudia-apoio-da-lideranca-da-igreja-a-flavio-dino/>. Acesso em 17 jun. 2019. (grifo nosso).

Como registrado anteriormente, não apenas Damasceno apoiou a reeleição de Flávio Dino, mas também sua filha Mical, eleita deputada estadual. Porém, outra personagem trouxe desconforto à denominação acerca de seu apoio político: Eliziane Gama. Roberto Freire, presidente do PPS, anunciou no dia 10 de outubro (ou seja, eleição para o segundo turno) que o partido faria oposição às duas candidaturas por considerar que ambos os projetos flertavam com ditaduras. Eliziane posicionou-se contra a orientação de seu partido e de sua igreja e, juntamente com o governador reeleito do Maranhão Flávio Dino, demonstrou apoio a Haddad. Em evento do PCdoB, a senadora eleita afirmou: “Eu acredito que precisamos orar, pedindo a Deus, para que o povo brasileiro possa, de fato, escolher o melhor para nossa nação e nós, aqui do Maranhão, daremos a nossa contribuição nesse projeto”20 20 Disponível em <https://oimparcial.com.br/politica/2018/10/eliziane-declara-apoio-a-haddad-e-igreja-repudia/>. Acesso em 2 dez. 2018. (grifo nosso), que era o apoio ao Haddad. Após declaração, Eliziane também recebeu a seguinte moção de repúdio:

A Assembleia de Deus em Itinga do Maranhão, representada por seu presidente Pr. José Cardoso, e o ministério local da Igreja, formado pelos pastores dirigentes e obreiros, líderes de Departamentos (Circ. de Oração e Mocidade) repudia a atitude da senadora eleita Eliziane Gama, ao declarar (no dia 07/10/2018) apoio no segundo turno da eleição presidencial ao candidato do PT Fernando Haddad, o qual em mandatos anteriores (prefeito de São Paulo e Min. da Educação), implementou ações explícitas contra a Bíblia Sagrada, e contra a Igreja, e que o mesmo em seu plano de governo pretende fomentar em escala de maior dimensão tais ações. Informamos aos irmãos que se esta afirmativa de apoio da senadora tivesse sido feita antes do pleito eleitoral jamais teríamos apoiado a referida candidata, assim como o não fizemos com a candidata a presidente Marina Silva, que também é uma crente e apoia tais princípios ideológicos. Deixo para reflexão o texto bíblico de 1 Rs 16 29. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. A paz do Senhor (grifo nosso).

Um áudio do pastor Damasceno foi divulgado e nele três questões importantes são tratadas: uma nota de agradecimento aos seus colegas e às igrejas pela eleição de sua filha e de Eliziane ao senado; uma nota de repúdio ao apoio de Eliziane ao candidato Haddad; e uma nota de alerta para que ninguém votasse em Haddad, por ele ser inimigo da igreja e ter projetos para fechá-la21 21 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=m5mmqzG_MXI>. Acesso em 15 jan. 2019. . Damasceno lembrou, em outra ocasião, que Eliziane foi eleita senadora com voto dos evangélicos e que o candidato à Presidência e sua vice, Manuela d’Ávila, não gostavam de igrejas22 22 Idem. - declaração comumente utilizada por muitos membros de igrejas sobre candidatos da esquerda. É importante sublinhar, também, que Eliziane não citou a Ceadema em seu discurso de vitória, o que causou certa irritação aos fiéis. Ou seja, em que medida o apoio ao candidato do PT alteraria a imagem representativa de Eliziane? Verificando comentários em seu perfil no Instagram (membros da AD), notamos as seguintes manifestações após a senadora ter parabenizado Flávio Dino pela campanha de Haddad no Maranhão:

Lamentavelmente! e a senhora, infelizmente não nos representa, nunca mais ganha com meu voto.

Você é uma vergonha, você foi um erro, vamos te aguardar nas urnas, sua hipócrita, o povo maranhense se arrepende de te colocar no senado, aproveita o tempo lá dentro, pois nunca mais será eleita.

Lamentável, sua estratégia e articulação política foi inteligente, mas infelizmente em troca de ‘valores’ e princípios que são irrevogáveis. Você envergonha os Cristãos do Brasil (grifo nosso).

Comentários de membros da AD aproximam-se do uso do não voto como punição diante da decisão de Eliziane em apoiar o candidato Haddad. Contudo, a questão da punição não está ligada ao fato de a senadora ter conduzido suas ações políticas como parlamentar de forma criminosa, ou por desempenho insatisfatório ou algo semelhante, mas por ter apoiado alguém que supostamente era contra a igreja.

Em outra postagem, Eliziane alertou que segmentos da população brasileira flertavam com programas autoritários e chamou atenção para a necessidade de construir pontes entre a política progressista e a sociedade. Diante de tal declaração, recebeu os seguintes comentários23 23 Disponível em <https://noticias.gospelmais.com.br/senadora-assembleia-de-deus-apoiar-haddad-103216.html>. Acesso em 18 jun. 2019. :

O que o pessoal aí não entendeu é que ela [Eliziane] foi eleita pelos evangélicos para defender os mesmos valores. E que não apoiam Hadad e ao vencer ela viro as costas p os seus eleitores.

Enganou aos irmãos de fé, e declarou apoio total à marmita de Lula, o ladrão, criminoso, condenado e preso! Mas que vagabunda! (grifo nosso).

O pastor Damasceno fez contato com a senadora para esclarecimentos a respeito de seu apoio ao Haddad, que estava ligado diretamente ao apoio dado pelo governador Flávio Dino, responsável por praticamente triplicar o número de capelães no estado e ajudar sua filha a ser eleita deputada estadual. Em nota, a coordenação do Ceadema chamou atenção dos pastores para alguns aspectos, entre eles que ninguém antecipasse “juízo de valor contra a irmã Eliziane”, pois “pela primeira vez, tivemos a oportunidade de eleger uma Senadora da República”24 24 Disponível em <http://linhares.info/dois-anos-apos-votar-pelo-impeachment-eliziane-gama-quer-pt-de-volta/>. Acesso em 17 jun. 2019. . O conflito da senadora eleita com a AD, a qual lhe concedeu apoio oficial durante a campanha, é um caso que exibe aspectos e problemas centrais da relação complexa entre religião e política, especialmente em períodos eleitorais. Ao decidir apoiar Haddad no segundo turno contra Bolsonaro, Eliziane parece ter se orientado primariamente por um cálculo político e eleitoral e pelos riscos que vislumbrou em apoiar qualquer um dos dois candidatos à Presidência da República em 2018. O cálculo político e a avaliação dos riscos são aspectos centrais da relação entre religião e política em um cenário de fragmentação do sistema religioso: o primado da política na definição das estratégias e formas de utilização da religião em tempo de eleição. Não é a lógica da religião, mas sim a lógica da conquista e manutenção do poder político que comanda o cálculo político exitoso sobre como, quando e em que medida usar ou não usar politicamente elementos religiosos. Embora não sirva evidentemente como demonstração empírica de nenhuma tese geral sobre o objeto aqui tratado, a complexidade envolvida na decisão de Eliziane é um caso de contingência na relação entre política e religião no Brasil. No entanto, o nível de generalização desse tipo de contingência na sociedade precisa ser investigado em pesquisas capazes de testar hipóteses com pretensões de generalização, o que não ocorre nesta análise.

Ao decidir se juntar a Haddad, a senadora eleita arriscou claramente perder o apoio da AD nas próximas eleições para consolidar sua relação com o grupo político do governador reeleito Flávio Dino. De acordo com a sociologia de Luhmann (1984Luhmann, Niklas. (1984). Soziale systeme Grundriß einer allgemeiner zur sozialstruktur und sozialen ungleichheit. Wiesdaben: theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp .), podemos entender a situação complexa da decisão de Eliziane a partir da combinação entre as dimensões temporal (Zeitdimension), social (Sozialdimension) e objetiva (Sachdimension).

Na dimensão temporal, cabe destacar que a senadora, no momento de sua decisão, dispunha de um mandato de oito anos para o Senado da República como perspectiva de futuro, período mais do que suficiente para recuperar o apoio da AD. E, mesmo com a concretização da vitória de Bolsonaro sobre Haddad, a consolidação da relação com o governador reeleito de seu estado lhe garantia uma base alternativa de apoio, que tornava possível e eleitoralmente viável tencionar seu vínculo com a AD. Na dimensão social, sabendo que a lógica política é a que predomina em sua situação, Eliziane poderia ainda contar com a probabilidade de que uma possível (e provável) crescente impopularidade de Bolsonaro no Maranhão afastasse o eleitorado evangélico das classes populares da orientação conservadora preconizada pelas lideranças da AD, abrindo um flanco promissor para reconquistar o eleitorado religioso sem ter que se submeter às orientações eleitorais e à pauta moral encampada pela denominação evangélica. Eliziane sabia que o eleitorado evangélico não olha a política apenas pelas lentes da religião, atualmente focadas na pauta moral e de comportamento25 25 Nosso argumento é que a moralização de questões ligadas a gênero e sexualidade constitui apenas uma forma de mobilização política da religião, ao lado de muitas outras possíveis e existentes. Isso ocorre porque religião e moral são fenômenos distintos, embora possam estar articulados de diferentes modos. Na teoria dos sistemas, enquanto a religião se define pelo código transcendente/imanente, a moral é constituída pelo código consideração/desconsideração, envolvendo valores e outros critérios que definem o que e quem merece consideração e desconsideração (Luhmann, 1997: 244-245). Além disso, as condições e critérios que definem a moral e seu uso não se circunscrevem aos temas de gênero e sexualidade. Existem outras moralidades sociais que podem ser mobilizadas pela religião e pela política. . Na dimensão objetiva, podemos observar como a identidade política da senadora eleita nunca esteve muito ligada às questões morais e de comportamento. Sua plataforma de atuação sempre priorizou temas da política social como saúde, educação e assistência. A prevalência desse eixo temático em relação a temas morais como aborto e “ideologia de gênero” (Cunha & Lopes, 2012Cunha, Christina Vital da & Lopes, Paulo Victor Leite. (2012). Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.) facilita consideravelmente uma aproximação com a esquerda, hegemônica na região Nordeste e em seu estado, sem inviabilizar uma possível reaproximação com sua base evangélica, que, em uma realidade política de fracasso ou impopularidade do governo Bolsonaro, estaria mais voltada para a política social e menos interessada na pauta moral. A combinação das dimensões temporal, social e objetiva cria uma situação concreta de decisão em que a lógica política prevalece sobre a religiosa.

Essa prevalência significa, nesse caso, que a senadora se orienta pelo código político poder/não poder na construção de seu perfil político, e não pelo código religioso transcendente/imanente. Mesmo diante de situações variadas e com públicos variados, na construção de seu perfil (dimensão social), a senadora parece observar primariamente a variação da temática política (dimensão objetiva) ao longo do tempo (dimensão temporal). A diferenciação funcional entre política e religião se mostra no imperativo de que apenas estratégias, estruturas e processos especificamente políticos podem assegurar o êxito de religiosos que decidem construir carreira no sistema político. A referência ao transcendente, mesmo quando presente, é, na prática política, um fator do ambiente social que a política mobiliza para construir decisões coletivamente vinculantes (como o voto), e não a orientação predominante. A política segue sendo produzida pela política. A recursividade específica desse campo se mantém diferenciada da recursividade de práticas religiosas. O encontro do código religioso com o político, que ocorre na instrumentalização da religião pela política em organizações religiosas e políticas, não significa a fusão dos dois sistemas funcionais e de suas respectivas lógicas. Organizações e sistemas funcionais têm níveis distintos de formação e diferenciação sistêmica.

Nem tudo o que ocorre em organizações religiosas são práticas puramente religiosas. Organizações articulam lógicas e códigos de diferentes sistemas funcionais. Nesse sentido, formas organizacionais que articulam o político com o religioso não significam desdiferenciação funcional. Esse é o caso do trabalho social, elemento marcante no perfil da senadora Eliziane. Com o trabalho social, a religião geralmente articula o sentido religioso da transcendência com o engajamento na mitigação ou superação de problemas de inclusão e exclusão social em diferentes sistemas sociais, o que pode também estar vinculado à construção de carreiras políticas. O trabalho social pode ter, simultaneamente, um sentido religioso para quem o realiza orientado pelo transcendente, um sentido econômico para seus destinatários e um sentido político para quem eventualmente obtém e/ou mantém posições de poder político com base nele. Embora realizado historicamente pelas mais variadas religiões, o trabalho social não se confunde com a inclusão religiosa em si. Ele pode ser realizado por organizações religiosas sem que produza inclusão religiosa de todos os envolvidos: “Só se trata de inclusão religiosa quando se consegue ativar o código e a função da religião” (Luhmann, 2002Luhmann, Niklas. (2002). Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp .: 243).

POLITIZAÇÃO DA RELIGIÃO, O PRIMADO DA POLÍTICA E AS ESTRUTURAS DO SISTEMA RELIGIOSO

A diferenciação do sistema político foi historicamente marcada pela consolidação da “razão de estado” (Staatsraison) em substituição à moralidade religiosa, no esforço de monopolizar e centralizar o uso legítimo da violência física em um determinado território. Em Maquiavel (1998Maquiavel, Nicolau. (1998). The prince. Oxônia: Oxford University Press.), esse problema fundamental aparece formulado como paradoxo moral do “príncipe” que, para alcançar o fim moralmente justificado de assegurar a “ordem, a paz e a justiça”, precisa agir de forma moralmente reprovável, assassinando ou deportando potenciais usurpadores do poder. Uma vez assegurada a diferença entre governantes e governados (povo) por meio da concentração do poder e da violência, o problema deixa de ter tal necessidade de afirmar a autonomia das exigências funcionais da atividade política diante das exigências da moral religiosa. No lugar da questão da “razão de estado” entra o problema do controle do uso arbitrário do poder. O exercício do poder, uma vez que não pode mais estar baseado no “cheque em branco” constituído pela fórmula da “razão de estado”, precisa então ser legitimado pela observação dos direitos do cidadão e do sistema de “freios e contrapesos”/divisão de poderes. Trata-se aqui da passagem da monarquia absolutista para o Estado constitucional.

É precisamente esse processo de “constitucionalização do poder” (Neves, 2008Neves, Marcelo. (2008). Verfassung und Öffentlichkeit. Zwischen system Differenzierung, Inklusion und Anerkennung. Der Staat. Zeitschrift für Staatslehre und Verfassungsgeschichte deutsches und europäischesöffentliches Rechts, 4, p. 477-509.: 481) que resulta na formação de direitos políticos igualitários - a serem exercidos segundo procedimentos eleitorais juridicamente controlados - como expressão da noção de soberania popular, concebida enquanto fonte última de legitimação do poder. Na medida em que o acesso e o exercício do poder são regulados por procedimentos jurídicos destinados a garantir tanto a expressão da vontade popular como o uso constitucional do poder, espera-se neutralizar a influência direta do poder social sobre o poder político, assim como o uso arbitrário desse último para obter vantagens e corromper o funcionamento de outras esferas sociais - como a esfera privada, a econômica, os meios de comunicação etc. Ou seja, a constitucionalização do poder deve assegurar o acesso (ainda que potencial) de todos ao poder político, e, ao mesmo tempo, cuidar para que ele não seja exercido arbitrariamente sobre outras esferas da vida social e individual, garantindo, assim, a diferenciação entre política e sociedade. É nesse contexto que as “teorias de reflexão” se ocuparão primariamente dos problemas relativos à (insuficiente) universalização dos direitos do cidadão e ao controle do uso arbitrário do poder (a divisão de poderes e os “freios e contrapesos”). Como sintetiza Luhmann (1997Luhmann, Niklas. (1997). Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp , vol. 1 e 2.: 968): “a teoria política torna-se teoria do Estado constitucional”.

Acontece que, ao tornar-se teoria do Estado constitucional, a teoria política perde de vista a dimensão não constitucional da política, exercida, para Luhmann (1981Luhmann, Niklas. (1981). Machtkreislauf und Recht in Demokratien. Zeitschrift für Rechtssoziologie, 2/2, p. 158-167.), especialmente no “circuito informal do poder”. Ao trabalhar com a distinção entre poder formal e poder informal, Luhmann aborda a política não só para além do Estado e sua dimensão oficial, mas também para além do ideal constitucional de um poder político plenamente imune ao poder social desigualmente distribuído.

O poder formal que o cidadão transfere pelo voto ao governante é, por definição, normatizado, já que expressa a própria “constitucionalização do poder”. Já o poder informal não é alcançado pela normatização constitucional, contrastando com a igualdade política normativamente esperada no espaço do poder formal. Trata-se de um circuito de poder que se torna parte do dia a dia dos sistemas políticos modernos e no qual

[…] a política não pode funcionar sem as orientações da administração. Assim como o público torna-se dependente da pré-seleção de pessoas e programas dentro da política e a administração passa a depender, na medida em que se expande para campos de forças mais complexos, da atuação voluntária do público, sendo obrigada a concedê-lo alguma influência (Luhmann, 1981Luhmann, Niklas. (1981). Machtkreislauf und Recht in Demokratien. Zeitschrift für Rechtssoziologie, 2/2, p. 158-167.: 164).

As relações de poder informais visadas referem-se especialmente aos vínculos seletivos e particularistas que são criados entre a administração e setores do público de cidadãos, sobretudo setores organizados. Como as organizações de interesse (que nem sempre se apresentem enquanto tal) são o meio mais importante de exercício do poder informal sobre a administração, o público, no espaço do poder informal, acaba se segmentando em um setor organizado e outro não organizado. Isso, por sua vez, como a literatura sobre corporativismo e cidadania tem demonstrado para o caso brasileiro, resulta em enormes e estáveis assimetrias de poder, as quais, ao serem replicadas e reforçadas nas chances de influenciar a produção de decisões coletivamente vinculantes, podem até mesmo levar a uma exclusão política estável do segmento pouco ou nada organizado do público de cidadãos.

O crescimento e o adensamento das estruturas organizacionais envolvendo a administração e o público, incentivados pela expansão do estado de bem-estar social, elevam a complexidade das situações de decisão com as quais a administração se vê diariamente confrontada em função de suas relações informais com o público. Em geral, isso faz com que a administração se torne cada vez mais dependente da cooperação dos segmentos organizados do público, isso porque tais segmentos têm uma margem de atuação e influência sobre a implementação de políticas públicas que não se deixa controlar pela cadeia de mando estatal juridicamente fixada, ou seja, pelo poder constitucionalizado e pelos programas decisórios oficiais.

Segundo a imagem oficial, a administração toma decisões e as implementa independentemente do público afetado. A questão seria apenas o controle jurídico da decisão e de sua observância, ou seja, se apresenta como um problema do estado de direito e da vigilância de sua execução […]. Na medida em que o estado de bem-estar social vai se desenvolvendo, a administração, por razões políticas, é cada vez mais incumbida de programas cuja execução depende da cooperação do público. Esta dependência, por sua vez, não pode ser mais controlada pelo direito ou por obrigações jurídicas; e também nem sempre está afinada com os interesses daqueles de cuja atuação conjunta depende a administração. Esta dependência refere-se mais a parceiros organizados com os quais se vai lidar novamente em outras constelações do que a indivíduos dotados de direitos subjetivos […]. Na prática, isto cria uma complexa articulação de interesses à margem da legalidade e até mesmo para além de seus limites. Aquele de cuja cooperação depende a administração pode sempre exigir uma contrapartida (Luhmann, 2008Luhmann, Niklas. (2008). Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp .: 260-261).

Nesse contexto, a política desenvolve relações variadas de interdependência com outros subsistemas da sociedade. Essas relações podem ser baseadas tanto no poder formal como no informal. A “constitucionalização do poder” é um exemplo de relação de interdependência (acoplamento estrutural) entre política e direito baseada no poder formal. As estratégias e formas de mobilização da religião na política eleitoral podem ser vistas como modalidades de interdependência informal entre esses dois subsistemas. Assim, o envolvimento de organizações religiosas como a AD na administração do sistema prisional (como no caso da relação da Assembleia com o governador Flávio Dino, por meio da nomeação de cargos nas capelanias) é outro exemplo de interdependência pelo poder informal26 26 O uso do poder informal na mobilização da religião pela política eleitoral suscita a questão sobre os limites ou até mesmo o colapso do primado da diferenciação funcional da sociedade. No entanto, a emergência de interdependências informais entre sistemas funcionais não basta para caracterizar um processo de desdiferenciação funcional. Embora processos de desdiferenciação ocorram de forma localizada no nível das organizações religiosas, que ao serem mobilizadas pelo poder informal contribuem no desempenho da função política de produzir decisões coletivamente vinculantes, esses processos encontram limites em expectativas cognitivas e normativas que asseguram a diferenciação funcional como fato social que transcende e se reproduz apesar da fusão localizada entre organizações religiosas e políticas. Em termos de expectativas cognitivas, essa fusão localizada não produz uma diluição da diferença entre os códigos binários da política (poder/não poder) e da religião (transcendente/imanente) na sociedade e, com isso, o colapso da própria diferença funcional entre religião e política. Só podemos falar de desdiferenciação funcional se o desaparecimento de certos sistemas funcionais ou certas diferenças sistema/ambiente for reconhecível. Não basta, por exemplo, que o código da política (poder/não poder) tenha uma enorme influência sobre o voto e comportamento político de religiosos; a própria fé religiosa teria de ser substituída por decisões coletivamente vinculantes com base no poder para que tal desdiferenciação fosse concluída no nível dos sistemas funcionais. Em termos normativos, esses processos localizados de mobilização política com pertencimento religioso são também limitados por normas formais supralocais que asseguram a diferenciação funcional como fato social normativo (Mascareño, 2012: 52-53). De fato, a sustentação teórica da diferenciação funcional entre política e religião é desafiada ao tratar de casos empíricos. No entanto, os casos aqui se referem ao nível organizacional de formação de sistemas sociais, em que, como o próprio Luhmann considera em suas análises, as lógicas funcionais diferenciadas se entrelaçam. Organizações são sistemas sociais nos quais as lógicas funcionais se encontram e se entrelaçam enquanto premissas decisórias. Contudo, as organizações não representam os sistemas funcionais e não abarcam a totalidade de suas operações: na medida em que uma pluralidade de outras organizações (como partidos políticos e igrejas) e endereços sociais individualizados e coletivizados (fiéis, eleitores) servem de ponto de atribuição para a produção reiterada e recursiva de comunicações funcionais baseadas na diferença entre os códigos da política e da religião, pode-se sustentar, empiricamente, a tese da diferenciação entre estes dois subsistemas da sociedade, mesmo que suas lógicas possam ser entrelaçadas em muitas organizações. .

Em seu processo de constituição, o sistema político se diferencia do sistema social da religião, mas a diferenciação entre os dois subsistemas também abre possibilidades de instrumentalização mútua. Ao olhar para a realidade brasileira, Luhmann identificou possibilidades de recolocação da religião na sociedade funcionalmente diferenciada. O desenvolvimento de acoplamentos estruturais entre religião e outros subsistemas como a família e a política confirmam, de certo modo, essa possibilidade.

Nas análises de Luhmann, os acoplamentos estruturais se referem a estruturas institucionais formais como a Constituição (acoplamento entre política e direito) e a propriedade (acoplamento entre direito e economia). A formalidade assegura a estabilização das estruturas que filtram e canalizam as influências entre um sistema funcional e outro, o que ocorre sobretudo no nível das organizações, mas sem ficar restrita a ele. No entanto, estruturas informais também podem se estabilizar e constituir relações institucionalizadas entre sistemas funcionais. Nos parece que as formas de colonização e instrumentalização recíproca entre religião e política, mesmo quando surgem a partir de estruturas informais como as exemplificadas nesse texto, podem ser abarcadas pelo conceito de acoplamento estrutural, pois elas são capazes de estabilização e institucionalização de influências e interdependências. Além disso, ainda que o nível de institucionalização e estabilização dessas diferentes estruturas seja variado, isso não invalida o uso do conceito, já que institucionalização e estabilização são processos históricos que sempre podem ser desafiados por processos de desinstitucionalização e desestabilização.

Os acoplamentos entre religião e política podem ser identificados em distintos níveis da realidade social: nos níveis das organizações, das redes de relações, da construção da identidade pessoal dos agentes e da semântica política. O estudo de Mezzomo e Pátaro (2019Mezzomo, Frank Antonio & Pátaro, Cristina Satiê de Oliveira. (2019). Religião católica, evangélica e afro-brasileira em disputa eleitoral: acionamento de elementos religiosos na campanha à Assembleia Legislativa do Paraná. Tempo e Argumento, 11/26, p. 456-485.) sobre o uso da religião nas eleições para a Assembleia Legislativa do Paraná de 2014 identifica uma variedade de intensidades, formas e estilos de politizar a religião em época eleitoral que remete claramente a esses níveis da realidade social. A variedade depende especialmente se o candidato é escolhido oficialmente como candidato de uma denominação (nível da organização), se recebe o apoio de lideranças religiosas (nível das redes de relações pessoais), se constrói sua identidade política (identidade) com base em símbolos, vestimenta ou linguagem da religião ou se elabora sua plataforma de campanha (semântica) com base em temas presentes no discurso religioso. O mesmo candidato pode, evidentemente, lançar mão de todos esses níveis de relação entre religião e política, mas as combinações possíveis entre eles produzem, de fato, um panorama muito variado de instrumentalização política da religião.

No caso da senadora Eliziane Gama, o nível da organização está claramente presente no apoio oficial que recebeu da AD, denominação que tem se destacado pela oficialização e planejamento de candidaturas para eleições legislativas em distintos níveis da federação. O nível das redes de relações também está presente e provavelmente se potencializa com o apoio oficial da denominação, que legitima o uso de posições e cargos para construir ou ampliar relações pessoais de apoio político e eleitoral. No nível da identidade pessoal, a senadora eleita não se destaca por um uso intenso de símbolos, vestimentas e linguagens da religião na construção de sua imagem política. Por fim, sua semântica política é, de certo modo, desviante da linguagem oficial da AD e serve para legitimar sua decisão de apoiar Haddad, e não Bolsonaro, o candidato oficial da AD, no segundo turno da eleição para presidente da República. Enquanto a AD assume uma pauta moral como fundamento para recusar Haddad e apoiar Bolsonaro, a senadora eleita insiste em sua agenda de política social em detrimento da agenda moral que orienta a decisão política da organização religiosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos considerar, após análise do caso em questão, que um fator importante para compreender a multiplicidade das relações entre religião e política é a evolução da estrutura do sistema religioso. No Brasil, a fragmentação do sistema religioso e a variedade interna de suas organizações favorecem a diversificação das estratégias e formas de instrumentalizar eleitoral e politicamente o vínculo religioso. Nesse contexto, vimos que a AD exibe um nível importante de descentralização de suas estruturas e processos decisórios, o que sugere, inclusive, abandonar a ideia de uma unidade organizacional para tal denominação.

A descentralização de estruturas e processos decisórios parece ter influência importante sobre as formas e estratégias de uso da religião e de seus elementos na política. Quando a organização religiosa tem maior autonomia local (estrutura descentralizada) para decidir sobre sua inserção na política, isso tende a favorecer a diversificação não apenas das formas de instrumentalização da religião pela política, mas também dos perfis político-ideológicos dos candidatos, potencializando conflitos que costumam ser mais raros em organizações religiosas mais centralizadas e hierarquizadas.

Na combinação entre os quatro níveis de relações entre religião e política elencados na última seção, o apoio da organização parece ser o recurso político mais importante que Eliziane Gama conseguiu por meio de sua vinculação religiosa. Uma eleição depende de dinheiro, sobretudo porque depende de organização. Por isso, o apoio de uma denominação religiosa com grande capilaridade garante quase sempre uma máquina eleitoral difícil e custosa de ser construída por outros meios. Portanto, a decisão de desobedecer a AD e apoiar Haddad deve ser entendida a partir da seguinte questão: que outros recursos a senadora eleita tinha em mãos e no seu horizonte de atuação que lhe permitiram assumir o risco de perder, pelo menos durante um período, o apoio político oficial de uma denominação religiosa de tanta relevância política como a AD? Como já pontuamos, a consolidação de sua relação política com o grupo do governador reeleito Flávio Dino, a identidade pessoal vinculada à agenda da política social, o horizonte temporal de um mandato de oito anos e a perspectiva de reconquistar ou manter o apoio dos eleitores evangélicos pobres possivelmente são os recursos que viabilizaram uma decisão arriscada como essa.

Nessa combinação de recursos e níveis de relações entre religião e política há um primado da lógica política de busca e manutenção do poder, ainda que se possa admitir que motivos morais também expliquem ações individuais. Entretanto, a racionalidade estratégica em torno da busca e manutenção do poder, em um contexto de democracia de massas no qual o voto de eleitores evangélicos pode ser conquistado e fidelizado com o uso de estratégias distintas, é a única que pode garantir cursos de ação exitosos no sistema político. Eliziane parece ter apostado na estratégia de combinar sua imagem ligada à política social com perspectivas de poder geradas pelo sucesso político-eleitoral de Flávio Dino e pela agenda de centro-esquerda no Nordeste e no Maranhão. Os riscos que assumiu ao apoiar Haddad poderiam lhe garantir uma base política suficiente para não deixar à AD melhores alternativas que a reaproximação com a senadora.

Nesse contexto, a variedade de estratégias de mobilização da religião na política depende tanto do primado da lógica política na carreira de políticos religiosos quanto das possibilidades de instrumentalização da religião oferecidas pelo sistema religioso. No caso da senadora do Maranhão, a estrutura descentralizada da AD acaba favorecendo uma boa perspectiva de poder, no sentido de reconquistar o apoio não apenas de eleitores evangélicos, mas também de lideranças e organizações, já que elas têm um grau de autonomia estadual e local que facilita desalinhamentos com orientações centralizadoras. A perspectiva de reconquista de apoio das organizações religiosas é importante porque a carreira política de Eliziane parece ter sido bastante impulsionada pelo poder político de tais organizações. Seu grande desafio parece ser a necessidade de reconstruir uma base eleitoral que não pode prescindir de eleitores evangélicos, sem poder contar com a narrativa religiosa mais poderosa atualmente. Nessa perspectiva, revela-se um novo e conflituoso aspecto acerca do “treinamento social” para o ambiente eclesiástico: a existência de alternativas de representação política dos evangélicos sem adesão à agenda moral promovida por esse treinamento. Contudo, isso significa também que essa alternativa, que explora a complexidade e a contingência da relação entre religião e política e busca o voto sem a mediação direta da organização religiosa e das normas morais que ela promove (“treinamento social”), trará para si a imagem, ainda que temporária, de uma “ovelha desgarrada”.

Portanto, a alternativa que a senadora percorre - e que realça a dissonância com o “treinamento social” promovido naquelas igrejas - parece ser a da reconstrução da identidade e da vontade coletiva, as quais um político pretende representar política e eleitoralmente. Além disso, no caso de Eliziane, o poder político das organizações religiosas não se constrói e nem se afirma no sistema religioso, e sim no sistema político e de acordo com o primado da lógica de busca e manutenção do poder. No contexto desse primado da disputa pelo poder, o uso de recursos políticos (organizações, redes, identidades e semânticas) oriundos da religião pode ter maior ou menor proeminência, de acordo com a importância de outros recursos políticos ligados aos partidos ou a grupos políticos informais, suas redes, identidades e semânticas.

Isso não significa que a disputa pelo poder esteja ausente na organização religiosa. Ao contrário, está muito presente, como ocorre inclusive com quase toda organização. No entanto, a presença da disputa por poder não significa necessariamente que a lógica da religião, fundada no código binário transcendente/imanente, seja substituída pela lógica da política. Isso só seria o caso se o poder determinasse diretamente o emprego da diferença entre transcendência e imanência em todas as suas possibilidades. As articulações entre o código religioso (transcendente/imanente) e o código político (poder/não poder) que ocorrem na instrumentalização da religião pela política em organizações religiosas e políticas não significam a fusão dos dois sistemas funcionais e de suas respectivas lógicas. Organizações e sistemas funcionais constituem níveis diferentes de estruturação de sistemas sociais. Enquanto nas organizações verificamos as articulações entre diferentes lógicas funcionais, os sistemas funcionais se constituem precisamente pela diferenciação reiterada de cada uma dessas lógicas em nível maior de generalização do que aquele abarcado por organizações. E a generalização da diferenciação funcional entre religião e política nesse nível da vida societária é condição de possibilidade para a própria identificação de articulações e misturas entre as diferentes lógicas funcionais em organizações e outros contextos sociais.

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NOTAS

  • 1
    A votação da Reforma da Previdência, ocorrida em julho de 2019 na Câmara dos Deputados, ilustra bem este ponto. O PDT havia orientado todos os seus membros a votarem contra a Reforma. A deputada federal Tabata Amaral e mais sete deputados contrariaram a orientação de seu partido. O PDT abriu um processo disciplinar contra eles.
  • 2
    A sigla PPS foi modificada em março de 2019. O partido passou a se chamar Cidadania.
  • 3
    Na teoria dos sistemas, há investigações que questionam o status de sistema social da religião em Luhmann. Como o meio de comunicação simbolicamente generalizado que Luhmann propõe como traço indispensável da religião é a fé, alega-se (Bachur, 2011Bachur, João Paulo. (2011). A diferenciação funcional da religião na teoria social de Niklas Luhmann. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 26/76, p. 177-190.) que, em condições modernas de privatização da experiência religiosa, a fé torna-se uma operação da consciência, não servindo de base para uma forma específica de comunicação enquanto operação genuinamente social. Esse questionamento é conceitualmente preciso, pois se não constituir uma forma específica de comunicação, nenhum fenômeno (incluindo o religioso) pode ser considerado um sistema social. No entanto, outras investigações (Petzke, 2013Petzke, Martin. (2013). Weltbekehrungen: Zur Konstruktion globaler Religion im pfingstliche-evangelikalen Bewegung. Bielefeld: Transcript Verlag.), inspiradas na experiência de religião pública em países como os Estados Unidos, identificam não apenas os limites da tese da privatização da experiência religiosa como um traço geral da modernidade, como também entendem o caráter social da fé enquanto forma de operação simbolicamente institucionalizada na construção de comunidades de fé. Em comunidade, como ocorre com os testemunhos da presença do transcendente na vida pessoal entre evangélicos pentecostais, a fé constitui forma de comunicação orientada pelo código religioso transcendente/imanente.
  • 4
    “Grande parte da população mundial encontra-se praticamente excluída de todos os sistemas funcionais: sem trabalho, sem dinheiro, sem documentação, sem direitos, sem educação, muitas vezes nem sequer a menor escolaridade, sem cuidados médicos adequados e com tudo isto novamente: sem acesso ao trabalho, sem acesso à economia, sem perspectiva de obter justiça contra a polícia ou no tribunal. As exclusões reforçam-se mutuamente […]. Mas também existem sistemas funcionais que não necessariamente participam desta espiral para baixo, mas que promovem inclusão mesmo que outros sistemas tenham excluído. Isto aplica-se à família, na medida em que esta ainda exista nestas áreas e poderia aplicar-se acima de tudo à religião”. (Luhmann, 2002Luhmann, Niklas. (2002). Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp .: 242-243)
  • 5
    Coletividades, em condições modernas, são recortes contingentes produzidos por sistemas sociais sobre a população em um horizonte de outras possibilidades. Tanto na vida cotidiana como na ciência a construção social de coletividades (classes, nações, identidades étnicas e de gênero etc.) opera com generalizações que reduzem a complexidade das possibilidades individuais de comportamento. O comportamento de cada indivíduo concreto é sempre mais complexo do que as expectativas com as quais eles são observados como exemplares de um determinado coletivo. Se os indivíduos são microdiversos quando comparados uns aos outros, então toda coletividade composta por muitos indivíduos pode ser observada como uma população no sentido que a biologia evolutiva confere a esse conceito. Toda coletividade moderna é um recorte populacional que generaliza similaridades e, assim, se diferencia de outras coletividades e da população mais ampla. Porém, quando observamos a composição microdiversa desse recorte populacional, vemos que toda coletividade é uma redução de complexidade que ignora grande parte da variação comportamental individual, e essas variações individuais funcionam como base para a dinâmica de mudança em sistemas sociais e para a evolução social como um todo. Na política, por exemplo, indivíduos microdiversos são caracterizados pela diversidade de articulação de interesses e preferências. Os processos e estruturas do sistema político (partidos e programas políticos, narrativas) precisam reduzir a complexidade desses interesses e preferências microdiversos, construindo generalizações coletivas capazes de agregar escolhas individuais em maiorias ou minorias politicamente relevantes. Nenhum fato social é ontologicamente anterior às práticas sociais especializadas com a diferenciação sistêmica da sociedade (Ahlers et al., 2021Ahlers, Anna L. et al. (2021). Democratic and authoritarian political systems in 21st century world society. Bielefeld: Transcript.).
  • 6
    Comunicações do Iser, 3, dezembro de 1982: 16-17. Disponível em <https://www.iser.org.br/publicacao/comunicacoes/3/>. Acesso em 15 set. 2018.
  • 7
  • 8
    No ano de 2014, dos 27 estados nacionais, 9 não elegeram deputados federais ligados à AD: Acre, Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Piauí, Sergipe e Tocantins. Mas tiveram eleitos para outros cargos para a Câmara em outros estados, exceto em Alagoas, Paraíba, Piauí e Tocantins. No Acre, foram eleitos deputados estaduais.
  • 9
    Disponível em: <https://www.eleicoes2014.com.br/eliziane-gama/>. Acesso em: 28 jul. 2018.
  • 10
  • 11
    Em: 09/06/2015; sessão 142.1.55.O; fase: homenagem.
  • 12
    Em: 13/06/2017; sessão 157.3.55.O; fase: breves comunicações.
  • 13
    Segundo o Ceadema, há 7.890 igrejas assembleianas com 8.450 obreiros e 1.350.000 membros. Disponível em <https://ceadema.com.br/>. Acesso em 28 jul. 2018.
  • 14
  • 15
    Nada ocorreu em relação ao plebiscito, mas Eliziane, após eleita ao Senado, votou contra tais reformas. Disponível em <https://luiscardoso.com.br/politica/2018/10/eliziane-gama-anuncia-voto-em-haddad-e-lider-das-assembleias-de-deus-reprova/>. Acesso em 15 out. 2018. Nada ocorreu em relação ao plebiscito, mas Eliziane, após eleita ao senado, votou contra tais Reformas.
  • 16
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  • 21
    Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=m5mmqzG_MXI>. Acesso em 15 jan. 2019.
  • 22
    Idem.
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    Nosso argumento é que a moralização de questões ligadas a gênero e sexualidade constitui apenas uma forma de mobilização política da religião, ao lado de muitas outras possíveis e existentes. Isso ocorre porque religião e moral são fenômenos distintos, embora possam estar articulados de diferentes modos. Na teoria dos sistemas, enquanto a religião se define pelo código transcendente/imanente, a moral é constituída pelo código consideração/desconsideração, envolvendo valores e outros critérios que definem o que e quem merece consideração e desconsideração (Luhmann, 1997Luhmann, Niklas. (1997). Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp , vol. 1 e 2.: 244-245). Além disso, as condições e critérios que definem a moral e seu uso não se circunscrevem aos temas de gênero e sexualidade. Existem outras moralidades sociais que podem ser mobilizadas pela religião e pela política.
  • 26
    O uso do poder informal na mobilização da religião pela política eleitoral suscita a questão sobre os limites ou até mesmo o colapso do primado da diferenciação funcional da sociedade. No entanto, a emergência de interdependências informais entre sistemas funcionais não basta para caracterizar um processo de desdiferenciação funcional. Embora processos de desdiferenciação ocorram de forma localizada no nível das organizações religiosas, que ao serem mobilizadas pelo poder informal contribuem no desempenho da função política de produzir decisões coletivamente vinculantes, esses processos encontram limites em expectativas cognitivas e normativas que asseguram a diferenciação funcional como fato social que transcende e se reproduz apesar da fusão localizada entre organizações religiosas e políticas. Em termos de expectativas cognitivas, essa fusão localizada não produz uma diluição da diferença entre os códigos binários da política (poder/não poder) e da religião (transcendente/imanente) na sociedade e, com isso, o colapso da própria diferença funcional entre religião e política. Só podemos falar de desdiferenciação funcional se o desaparecimento de certos sistemas funcionais ou certas diferenças sistema/ambiente for reconhecível. Não basta, por exemplo, que o código da política (poder/não poder) tenha uma enorme influência sobre o voto e comportamento político de religiosos; a própria fé religiosa teria de ser substituída por decisões coletivamente vinculantes com base no poder para que tal desdiferenciação fosse concluída no nível dos sistemas funcionais. Em termos normativos, esses processos localizados de mobilização política com pertencimento religioso são também limitados por normas formais supralocais que asseguram a diferenciação funcional como fato social normativo (Mascareño, 2012Mascareño, Aldo. (2012). Strukturelle und normative Interdependenz in der Weltgesellschaft und der lateinamerikanische Beitrag. In: Birle, Peter; Dewey, Matias & Mascareño, Aldo (orgs.). Durch Luhmanns Brille. Herausforderungen an Politik und an Recht in Lateinamerika und in der Weltgesellschaft. Heidelberg: Springer/VS Verlag, p. 29-57.: 52-53). De fato, a sustentação teórica da diferenciação funcional entre política e religião é desafiada ao tratar de casos empíricos. No entanto, os casos aqui se referem ao nível organizacional de formação de sistemas sociais, em que, como o próprio Luhmann considera em suas análises, as lógicas funcionais diferenciadas se entrelaçam. Organizações são sistemas sociais nos quais as lógicas funcionais se encontram e se entrelaçam enquanto premissas decisórias. Contudo, as organizações não representam os sistemas funcionais e não abarcam a totalidade de suas operações: na medida em que uma pluralidade de outras organizações (como partidos políticos e igrejas) e endereços sociais individualizados e coletivizados (fiéis, eleitores) servem de ponto de atribuição para a produção reiterada e recursiva de comunicações funcionais baseadas na diferença entre os códigos da política e da religião, pode-se sustentar, empiricamente, a tese da diferenciação entre estes dois subsistemas da sociedade, mesmo que suas lógicas possam ser entrelaçadas em muitas organizações.
  • *
    Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Agradecimentos à Capes pelo fomento de bolsa no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2020
  • Revisado
    16 Ago 2021
  • Aceito
    07 Set 2021
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