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DIFERENCIAÇÃO E INTEGRAÇÃO SISTÊMICAS EM FLORESTAN FERNANDES* * Este artigo é mais um resultado da frutífera interlocução e produção intelectual no interior do projeto de pesquisa “Florestan Fernandes e os dilemas sociais brasileiros: história do tempo presente”, coordenado por Eliane Veras Soares (UFPE) e integrado pelos professores, pesquisadores e amigos Ana Rodrigues Cavalcanti Alves (UFBA), Aristeu Portela (UFRPE), Diogo Valença Costa (UFRBA) e Remo Mutzenberg (UFPE), aos quais agradeço carinhosamente. Gostaria de agradecer também, de modo enfático, aos pareceristas anônimos e aos editores da revista Sociologia & Antropologia, que, com paciência e profissionalismo exemplar, contribuíram para uma significativa elevação da qualidade do texto. As falhas ainda presentes são de minha inteira responsabilidade.

SYSTEM DIFFERENTIATION AND INTEGRATION IN FLORESTAN FERNANDES

Resumo

Este artigo pretende demarcar a especificidade dos conceitos de diferenciação e integração sistêmicas na reflexão de Florestan Fernandes sobre o Brasil. Após esclarecer a distinção entre os problemas da diferenciação/integração sistêmica e da diferenciação/integração social, é apresentado, sucintamente, como o primeiro problema aparece no funcionalismo normativo de Talcott Parsons, assumindo-o como instância de controle teórico-comparativo. Finalmente, é analisado como Fernandes trabalha criativamente os conceitos em foco, contrastando com os resultados da seção anterior e em diálogo crítico com esforços de periodização de sua obra.

Palavras-chave:
Diferenciação Sistêmica; Integração Sistêmica; Modernidade; Teoria Sociológica; Florestan Fernandes

Abstract

This paper discusses the concepts of system differentiation and integration in Florestan Fernandes’ reflection regarding Brazil. After clarifying the distinction between the problems of system differentiation and integration and social differentiation/integration, it briefly presents how the former appears in Talcott Parsons’ normative functionalism, taken as an example of theoretical-comparative control. Finally, it analyzes how Fernandes creatively employs these concepts, comparing it with the previous discussion and in a critical dialogue with efforts to contextualize his work.

Keywords:
System Differentiation; System Integration; Modernity; Sociological Theory; Florestan Fernandes

INTRODUÇÃO

Neste artigo, pretendo inquirir como os enunciados das diferenciação e integração sistêmicas, apresentados a seguir, são modulados em um período específico da obra de Fernandes, abrangendo textos produzidos desde o ano de 1954 até, principalmente, 1967. O objetivo é refletir, para utilizar a terminologia dos Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada (Fernandes, 1976bFernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.) e dos Elementos de Sociologia Teórica (Fernandes, 1974Fernandes, Florestan. (1974). Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Editora Nacional .), sobre como categorias básicas da Sociologia Sistemática são reformuladas na operação substantiva de uma Sociologia Comparativa e Diferencial que tem como objeto a formação social brasileira.

A distinção entre integração social e integração sistêmica, proposta em 1964 por David Lockwood (1976Lockwood, David. (1976). Social integration and system integration. In: Zollschan, George & Hirsch, Walter (eds.). Social change: explorations, diagnoses, and conjectures. New York: Halsted, p. 370-383.), visava oferecer clareza no interior da contundente crítica ao funcionalismo normativo parsoniano pelas teorias do conflito. Tratava-se de evitar reducionismos e dicotomias entre aquelas formas de integração.

Lockwood defende, assim, o que Archer (1996Archer, Margaret. (1996). Social integration and system integration: developing the distinction. Sociology, 30/4, p. 679-699.: 691) denomina o seu “dualismo analítico”, isto é: em primeiro lugar, uma clara distinção entre “integração social” e “integração sistêmica” - a primeira atentando para as “relações ordenadas ou conflituosas entre os atores” de um sistema social, e a segunda centrando-se nas “relações ordenadas ou conflituosas entre as partes” (Lockwood, 1976Lockwood, David. (1976). Social integration and system integration. In: Zollschan, George & Hirsch, Walter (eds.). Social change: explorations, diagnoses, and conjectures. New York: Halsted, p. 370-383.: 371) daquele mesmo sistema; e em segundo lugar, a proposição analítica de que a distinção integração social/sistêmica pode ser aplicada, como perspectiva, a todas as “esferas institucionais” (Mouzelis, 1997Mouzelis, Nicos. (1997). Social and system integration: Lockwood, Habermas, Giddens. Sociology, 31/1, p. 111-119.: 115) de determinada formação social.

Dada a articulação necessária entre problemas de diferenciação e integração, parece-me produtivo recuperar a distinção de Lockwood retrospectivamente, ou seja, pensá-la no que se refere ao conceito de diferenciação: considerando como social a diferenciação de classes, grupos e indivíduos; e considerando como sistêmica a diferenciação das “partes”, ordens ou esferas constitutivas de um todo social.

Tal distinção permite especificar a diferenciação sistêmica, objeto de interesse deste artigo, em relação a um léxico muito mais consagrado, quando se fala em diferenciação social. Este último conceito se refere, segundo Bottomore e Outhwaite (1996Bottomore, Tom & Outhwaite, William. (1996). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.: 207), “ao reconhecimento e à constituição como fatos sociais de diferenças entre grupos ou categorias particulares de indivíduos”, como a diferenciação “entre os sexos, entre grupos etários (especialmente importantes nas sociedades tribais primitivas), entre grupos étnicos e linguísticos, entre categorias profissionais e entre classes e grupos de status”.

Permite também particularizar a problemática sobre a qual me debruçarei, sendo ela a diferenciação/integração sistêmica, da perspectiva analítica da diferenciação/integração social, especialmente estudada por Mariosa (2003Mariosa, Duarcides. (2003). Hibridismo e integração nas obras de Florestan Fernandes interpretativas do Brasil. Dissertação de mestrado. PPGS/Universidade Estadual de Campinas.), ao abordar a obra de Florestan Fernandes.

Amparado em fortuna crítica já consolidada sobre a obra do sociólogo paulista, defenderei que a passagem da prevalência de uma apropriação crítica da “demora cultural” para a formulação do conceito de “capitalismo dependente”, na apreciação dos dilemas sociais brasileiros, indica também, e especificamente, uma forma inovadora de pensar a diferenciação e a integração entre as “partes” ou esferas (economia, política, sociedade, cultura) da civilização moderna capitalista.

Buscarei, na primeira seção deste artigo, salientar os aspectos decisivos para pensar os conceitos articulados de diferenciação e integração sistêmicas na última fase da obra de Talcott Parsons. A escolha de Parsons como referência de controle teórico-comparativo para a leitura do problema da diferenciação/integração sistêmica em Fernandes fundamenta-se, por um lado, no seu incontornável caráter neoclássico, tomado como ponto de partida para esforços amplamente reconhecidos de sistematização da teoria social contemporânea (Alexander, 1987Alexander, Jeffrey. (1987). Twenty lectures: sociological theory since World War II. New York: Columbia University Press.; Joas & Knöbl, 2017Joas, Hans & Knöbl, Wolfgang. (2017). Teoria social: vinte lições introdutórias. Petrópolis: Vozes.). Assim, torna-se de particular relevância voltar a Parsons em um esforço de, a partir de um problema específico, sugerir o alcance global e a atualidade de certas contribuições teóricas do autor paulista.

Por outro lado, pode-se dizer que está em Parsons o esforço mais sistemático de formalizar um modelo teórico de diferenciação e integração sistêmicas, ao aplicar o esquema AGIL para pensar os sistemas sociais e desenvolver conceitos como meios simbólicos generalizados e zonas de interpenetração. Modelo que, reconstruído em seus aspectos centrais, permitirá ver melhor, a partir dos contrastes, as contribuições de Florestan.

Na segunda parte, tratarei exclusivamente da obra de Florestan, enfatizando as modulações da problemática da diferenciação/integração sistêmica no recorte que vai de 1954 a 1967. Na terceira parte, evidenciarei a interlocução, explícita ou silenciosa (no sentido das comparações possíveis), entre as obras de Parsons e Fernandes para assim delimitar a singularidade, principalmente a partir da formulação do capitalismo dependente, da problemática da diferenciação/integração sistêmica, reelaborada nestas paragens pelo sociólogo brasileiro.

Nas considerações finais, buscarei sugerir, no contraste com Lockwood, algumas peculiaridades de Florestan, ao pensar, sob a ótica de uma sociologia histórico-comparativa, as relações entre as dimensões sistêmica e social dos processos de diferenciação e integração.

DIFERENCIAÇÃO E INTEGRAÇÃO SISTÊMICAS EM TALCOTT PARSONS

No lastro da elaboração de uma “análise funcional dos sistemas sociais” (Johnson, 2008Johnson, Doyle Paul. (2008). Contemporary sociological theory: an integrated multi-level approach. New York: Springer.: 75), é a partir de Working Papers in The Theory of Action, de 1953 - como bem salientam Alexander (1983Alexander, Jeffrey. (1983). Theoretical logic in sociology. Volume four: The modern reconstruction of classical thought: Talcott Parsons. Berkeley: University of California Press.), Münch (2005Münch, Richard. (2005). Talcott Parsons. In: Ritzer, George (ed.). Encyclopedia of social theory. California: Sage publications, p. 550-555 (vol. 2).) e Domingues (2008Domingues, José Maurício. (2008). A Sociologia de Talcott Parsons. São Paulo: Annablume.) -, que Parsons começa a desenvolver a sua contribuição particular para a questão da diferenciação e integração sistêmicas, transitando da abordagem triádica do sistema de ação (social, cultural, personalidade) para a elaboração do amplamente conhecido esquema AGIL.

Profundamente afim a Durkheim (2010Durkheim, Émile. (2010). Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes.: 285), em sua obra Da Divisão do Trabalho Social, quando reflete sobre as sociedades de solidariedade mecânica, onde “tudo que é social é religioso”, Parsons (1969Parsons, Talcott. (1969). Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli & Cia. LTDA.: 58, grifo do autor) escreve que não só o sistema social das sociedades pré-modernas é particularmente indiferenciado, mas também o sistema de ação, que, quão mais “primitivo”, mais “indiferenciado no nível social, no cultural e no de personalidade”.

A diferenciação funcional, tipicamente moderna, é concebida como uma resposta do sistema social, visando alcançar “uma condição de equilíbrio”, aos “quatro problemas sistêmicos básicos” (Parsons & Smelser, 1956Parsons, Talcott & Smelser, Neil J. (1956). Economy and society: a study in the integration of economic and social theory. New York: Routledge & Kegan Paul Ltd.: 46): Adaptation, preenchido pelo subsistema econômico; Goal-attainment, preenchido pelo subsistema político; Integration, por meio da “institucionalização de padrões valorativos” e “mecanismos de controle” (Parsons & Smelser, 1956Parsons, Talcott & Smelser, Neil J. (1956). Economy and society: a study in the integration of economic and social theory. New York: Routledge & Kegan Paul Ltd.: 48); Latent pattern-maintenance, preenchido pela “cultura institucionalizada” através do “processo de socialização” (Parsons & Smelser, 1956Parsons, Talcott & Smelser, Neil J. (1956). Economy and society: a study in the integration of economic and social theory. New York: Routledge & Kegan Paul Ltd.: 49).

Com a formulação do esquema AGIL, a “produção, reprodução, renovação e transformação da ordem”, escreve Richard Münch (2005Münch, Richard. (2005). Talcott Parsons. In: Ritzer, George (ed.). Encyclopedia of social theory. California: Sage publications, p. 550-555 (vol. 2).: 552), torna-se “um problema do cumprimento equilibrado das funções específicas pelos subsistemas e de suas interpenetrações equilibradas”, o conhecido “modelo de intercâmbio” (Alexander, 1983Alexander, Jeffrey. (1983). Theoretical logic in sociology. Volume four: The modern reconstruction of classical thought: Talcott Parsons. Berkeley: University of California Press.: 83) entre as quatro funções, na fase tardia da obra de Parsons.

A diferenciação do subsistema econômico realiza o intercâmbio funcional primário com o meio orgânico através da dinâmica própria de “dinheiro” e “mercado”, regulados pelas “instituições de contrato e propriedade” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 22). O subsistema político se diferencia por meio da “organização” e “mobilização de recursos para a realização de objetivos de determinada coletividade”, tarefa crescentemente centralizada no governo como “órgão especializado da sociedade” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 28-29). O subsistema cultural, quanto mais diferenciado for, mais inclui, além de valores religiosos, valores morais, estéticos e cognitivos (cf. Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 27). Por fim, o subsistema social ou comunidade societária apresenta um grau maior de diferenciação quão mais for capaz de, mesmo numa sociedade extremamente complexa e diversificada em termos de papéis e status, “articular um sistema de normas com uma organização coletiva que tenha unidade e coesão” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 23, grifo do autor).

Outro aspecto fundamental da concepção parsoniana de diferenciação sistêmica é a proposição de que cada subsistema tende a constituir um “meio simbólico generalizado” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 26), exclusivo e intransitivo, para operar sua função e intercambiar com os outros subsistemas: o dinheiro na economia; o poder na política; a influência (ou prestígio) na cultura; a lealdade na comunidade societária.

Modernidade em Parsons não significa, portanto, apenas mais especialização e diferenciação funcional, mas também crescente interdependência e integração entre os subsistemas, sem que isso prejudique a autonomia das diversas funções. Em sua obra tardia, a integração sistêmica é pensada em termos de estruturas emergentes em “zonas de interpenetração” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 17) dos sistemas, válidas para pensar a integração tanto dos subsistemas do sistema de ação como dos subsistemas do sistema social, a exemplo, neste caso, da função do contrato na mediação entre economia e sistema integrativo, ou do “crédito” e dos “impostos” (cf. Parsons e Smelser, 1956Parsons, Talcott & Smelser, Neil J. (1956). Economy and society: a study in the integration of economic and social theory. New York: Routledge & Kegan Paul Ltd.: 56-63) na relação entre economia e governo.

No que diz respeito à questão sobre a primazia (ou não) de uma das partes da sociedade na integração sistêmica das sociedades modernas, Parsons é explícito. Embora o problema do sentido, mediado pelo sistema cultural, seja o aspecto decisivo na singularização das sociedades humanas, em relação a outros sistemas de ação (cf. Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 12), “o núcleo de uma sociedade ou de um sistema social é”, para Parsons (1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 23), o “subsistema integrador”, a chamada comunidade societária, que tem as normas como seu componente estrutural decisivo e a lealdade como meio simbólico generalizado. Sua centralidade reside precisamente na função de (re)produzir a ordem social, “ao definir as obrigações de lealdade à coletividade societária” e assim “impedir que as relações humanas degenerem até o ponto de uma ‘guerra de todos contra todos’” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 23-24).

Para que tal função seja realizada (cf. Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 24-25), faz-se necessário que o sistema de normas definido e exigido pela comunidade societária não seja apenas imposto através dos instrumentos de governo (sistema político), mas que seja legítimo de acordo com o sistema de valores (sistema cultural) de uma determinada sociedade. Isso indica que a primazia normativa no esquema parsoniano não suprime a importância da interdependência sistêmica, mas não o impede de afirmar que “os elementos normativos são mais importantes para a mudança social do que os ‘interesses materiais’ de unidades constitutivas” (Parsons, 1969Parsons, Talcott. (1969). Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli & Cia. LTDA.: 176-177).

A primazia funcional atribuída à comunidade societária joga um importante papel na construção, na obra tardia de Parsons, de um esquema evolutivo da modernização, coroado pelos EUA do seu tempo ou, na plástica expressão de Alexander (1987Alexander, Jeffrey. (1987). Twenty lectures: sociological theory since World War II. New York: Columbia University Press.: 73, tradução nossa), “a teoria da modernidade bem sucedida”.

Parsons (1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 121-122) escreve que, desde o início do processo de “secularização” desencadeado pelo Renascimento e pela Reforma na Europa medieval, “o sistema societário passou por uma série de ‘declarações de independência’ com relação à ‘supervisão’ cultural estrita - principalmente religiosa”, tendo como “focos principais” e sucessivos: “ordem jurídica, inicialmente institucionalizada na Inglaterra do século XVII; ordem nacional-política, sobretudo na França pós-revolucionária; ordem de economia de mercado, sobretudo depois da revolução industrial”.

“O novo tipo de comunidade societária dos Estados Unidos”, continua Parsons (1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 139), “mais do que qualquer outro fator isolado, justifica que lhe demos primazia na última fase de modernização”, na medida em que “sintetiza em elevado grau a igualdade de oportunidade acentuada no socialismo”, “pressupõe um sistema de mercado, uma forte ordem jurídica relativamente independente do governo e um ‘Estado-nação’ emancipado do controle religioso e étnico específico”. Soma-se a estes elementos a “revolução educacional”, “considerada como uma inovação decisiva, sobretudo com relação à acentuação do padrão associativo, bem como com relação à abertura de oportunidades” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 139).

Parsons (1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 139) conclui que “acima de tudo, a sociedade norte-americana foi mais longe do que qualquer sociedade ampla e comparável em sua separação com relação às antigas desigualdades atributivas e na institucionalização de um padrão basicamente igualitário”.

Longe de restringir-se ao momento de elaboração de uma teoria da evolução dos sistemas sociais, Uta Gerhardt (2002Gerhardt, Uta. (2002). Talcott Parsons: an intellectual biography. Cambridge: Cambridge University Press.: 276) deixa claro como desde “o período entre 1938 e 1945” Parsons já identificava “sem hesitação democracia, epítome da sociedade humana, com os Estados Unidos”, sobretudo em contraste com os desvios nazifascistas da modernidade. Identificação que a autora também percebe em The Social System, de 1951 (Gerhardt, 2002Gerhardt, Uta. (2002). Talcott Parsons: an intellectual biography. Cambridge: Cambridge University Press.: 277).

Jeffrey Alexander, por sua vez, aponta uma importante inflexão na obra do sociólogo estadunidense. Primeiro, há o Parsons dos “ensaios de 1937-1950”, cujo “relato comparativo da sociedade capitalista do século XX” não escondia um tom “profundamente pessimista” sobre as tendências estruturais “autodestrutivas” das sociedades ocidentais (Alexander, 1987Alexander, Jeffrey. (1987). Twenty lectures: sociological theory since World War II. New York: Columbia University Press.: 73). Em contraste, a partir dos anos 1950, Parsons transita, ideologicamente, de um liberalismo “crítico” para um “liberalismo relativamente complacente” (Alexander, 1987: 74-75), que se desdobra teoricamente em um “viés ingênuo para o progresso” (Alexander, 1987Alexander, Jeffrey. (1987). Twenty lectures: sociological theory since World War II. New York: Columbia University Press.: 76), quando observa processos de mudança social e modernização.

Interessa destacar aqui a transversalidade da tendência, observada por Alexander (1983Alexander, Jeffrey. (1983). Theoretical logic in sociology. Volume four: The modern reconstruction of classical thought: Talcott Parsons. Berkeley: University of California Press.: 75) desde A Estrutura da Ação Social, a um “viés empiricista”, ou melhor, a tratar de problemas “analíticos” em termos “concretos”. O que também se revela na “profunda ambiguidade” de seu “modelo tardio da vida moderna”, que, por um lado, é elaborado “como um modelo geral que denota um tipo social abstrato”, mas, por outro, é apresentado “como uma descrição da América pós-guerra”, produzindo um modelo “idealizado e excessivamente unilateral”, incapaz de “cobrir todas as diferentes possibilidades da mudança moderna” (Alexander, 1987Alexander, Jeffrey. (1987). Twenty lectures: sociological theory since World War II. New York: Columbia University Press.: 80).

Nesse movimento pouco esclarecido, que Giddens (2003Giddens, Anthony. (2003). A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes .: 322) acusa de “ilusão normativa”, acontece o que Frank Lechner (1991Lechner, Frank J. (1991). Parsons and modernity: an interpretation. In: Robertson, Roland & Turner, Bryan S. Talcott Parsons: theorist of modernity. London: Sage publications, p. 166-186.: 177) formulou agudamente sobre Parsons: “enquanto a sua imagem da modernidade é pluralista, a teoria é monista”. Consolida-se, como resultado, uma “compreensão unilinear” (Giddens, 2003Giddens, Anthony. (2003). A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes .: 322) de mudança social, particularmente importante na constituição de uma “sociologia da modernização” cujo “pressuposto básico” é de “que o processo de expansão da sociedade moderna geraria sempre os mesmos efeitos sociais, ainda que a ritmos distintos, independentemente das trajetórias e das contingências históricas dos casos analisados”, “como se a sociedade moderna fosse definida por um conjunto de variáveis sistêmicas interligadas e prontamente generalizáveis” (Brasil Jr., 2013cBrasil Jr., Antonio. (2013c). Linhas retas ou labirintos? A tradução da sociologia da modernização nos textos de Florestan Fernandes e de Gino Germani (1960-1970). RBCS, 28/82, p. 141-163.: 142).

Como bem percebem Joas e Knöbl (2010Joas, Hans & Knöbl, Wolfgang. (2017). Teoria social: vinte lições introdutórias. Petrópolis: Vozes.: 107), “[a]inda que Parsons tenha tentado produzir uma teoria fundamentalmente multidimensional da mudança social […], é bastante evidente que é o processo de diferenciação que orienta as suas afirmações substantivas”. Algo claramente perceptível em System of Modern Societies, onde, embora o processo de diferenciação sistêmica seja pensado como um dos “quatro processos básicos de mudança estrutural que, por interação conjunta, constituem a evolução ‘progressiva’ para níveis mais elevados do sistema” (Parsons, 1974Parsons, Talcott. (1974). O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira .: 40), os outros processos (ascensão adaptativa; inclusão; generalização de valor) aparecem claramente subordinados àquele, entendido como de nível mais profundo.

Abre-se então margem, como consequência, para um salto do modelo analítico de diferenciação/integração funcional (esquema AGIL) para a compreensão do desenvolvimento histórico de formações socionacionais, ou, nos termos de Fernandes (1974Fernandes, Florestan. (1974). Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Editora Nacional .), de uma Sociologia Sistemática para uma Sociologia Diferencial (Histórica). A hipertrofia dada ao problema da diferenciação sistêmica, na concepção de mudança social forjada pelo sociólogo estadunidense, tende a reduzir, de forma mecânica e não esclarecida, a integração social (inclusão abrangente de grupos, atores e seus valores) à integração sistêmica (definida pela simultânea autonomia e interdependência das funções diferenciadas, com primazia do subsistema integrativo). Operação típica de um “funcionalismo normativo” (Lockwood, 1976Lockwood, David. (1976). Social integration and system integration. In: Zollschan, George & Hirsch, Walter (eds.). Social change: explorations, diagnoses, and conjectures. New York: Halsted, p. 370-383.) tendente a equalizar “diferenciação e democratização” (Brasil Jr., 2013cBrasil Jr., Antonio. (2013c). Linhas retas ou labirintos? A tradução da sociologia da modernização nos textos de Florestan Fernandes e de Gino Germani (1960-1970). RBCS, 28/82, p. 141-163.: 145).

DIFERENCIAÇÃO E INTEGRAÇÃO SISTÊMICAS EM FLORESTAN FERNANDES

Fernandes (1975Fernandes, Florestan. (1975). Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação, 2, p. 5-86.: 12), que confessa ter sido, durante um período de sua trajetória, “seduzido pela ideia” de especializar-se “em temas lógicos e metodológicos”, concentrando-se “no estudo dos modelos de explicação sociológica”, tomou para si a necessidade de uma apropriação refletida de categorias básicas da sociologia feita no seu tempo.

Em Elementos de Sociologia Teórica, o léxico da diferenciação é utilizado de forma mais tradicional, para indicar processos de complexificação das formas de existência: inorgânicas, orgânicas, vegetais, animais, humanas. O ser humano, e suas formas de sociabilidade, é tomado como ápice de tal processo por, “além de ser um animal social”, ser “um animal criador de cultura” (Fernandes, 1974Fernandes, Florestan. (1974). Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Editora Nacional .: 48).

Nos limites da explicação sociológica, os problemas de diferenciação e integração, que já constituem objeto de reflexão no nível mais abstrato da Sociologia Sistemática, manteriam a sua centralidade em áreas de menor abstração e maior concretude investigativa, como as Sociologias Descritiva, Diferencial, Comparada e Aplicada.

Parsons é pensado como um praticante da Sociologia Sistemática. Por um lado, ao elaborar uma “espécie de semântica sociológica”, quando combina a “via axiomática” (Florestan menciona Tönnies, Simmel, Scheler, von Wiese, Gurvitch) e a via “empírico-indutiva” (Florestan menciona Weber, Znaniecki, Thomas) na construção de “conceitos precisos de aplicação universal (como os conceitos de ação e de relação sociais, de instituições, de grupo, de ordem social, de integração e de diferenciação sociais, etc.)” (Fernandes, 1974Fernandes, Florestan. (1974). Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Editora Nacional .: 92-93, grifo do autor). Por outro lado, quando procede “ao que os sociólogos modernos (Parsons, Levy, etc.), chamam de reconhecimento dos requisitos estruturais e funcionais de integração e diferenciação do sistema social” (Fernandes, 1974Fernandes, Florestan. (1974). Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Editora Nacional .: 93).

Ambas as formas de realização de uma Sociologia Sistemática, sob as quais Parsons é enquadrado, a primeira de orientação micro e a segunda de orientação macrossociológica, “malgrado seu fundamento empírico-indutivo, não são nem poderiam ser ‘históricas’”, na medida em que, escreve Fernandes (1974Fernandes, Florestan. (1974). Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Editora Nacional .: 94),

são relativamente vazias diante do “acontecer histórico” e apanham dinamicamente a “realidade histórico-social” através de aspectos que são gerais e se repetem ou variam de forma regular e previsível (de acordo com o padrão de integração estrutural-funcional do sistema social considerado e com as tendências que permitem reconhecer a sua manifestação nas sociedades concretas que dele compartilham.

E, de fato, Parsons está ausente quando Fernandes discorre sobre as particularidades da Sociologia Comparada e da Sociologia Diferencial.

Para além de seus trabalhos em “metassociologia” (Fernandes, 1975Fernandes, Florestan. (1975). Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação, 2, p. 5-86.: 12), Fernandes demonstra não só coerência com aquela transversalidade da problemática da diferenciação/integração nos diversos subcampos da sociologia (do nível mais abstrato ao histórico-concreto), mas também a simetria do seu esforço de reflexão sobre o Brasil com a tradição sociológica: é no ímpeto de compreender uma sociedade em mudança que Fernandes aplica e (re)elabora os conceitos de diferenciação/integração.

No que diz respeito à narrativa clássica sobre a passagem da pré-modernidade à modernidade, presente desde Durkheim a Parsons, é cristalina a presença em Fernandes (2006bFernandes, Florestan. (2006b). A função social da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Globo .), quando estuda os tupinambá, daquela apreciação que considera a religião como o elemento totalizante, fator de indiferenciação das sociedades pré-modernas, onde tudo que é social é religioso. As particularidades surgem quando o autor busca compreender os efeitos da expansão da “civilização ocidental moderna” (Fernandes, 2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 171) na sociedade brasileira, recém-saída de um regime colonial, escravocrata e estamental.

Diferenciação/Integração Sistêmica e Demora Cultural

Na conferência “Existe uma Crise da Democracia no Brasil?”, de 1954, Fernandes (2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 101, grifo do autor) evidencia a sua vinculação com “uma das hipóteses mais penetrantes da moderna interpretação sociológica”, a “da demora cultural”. Amplamente utilizado na sociologia americana, especialmente na primeira metade do século XX, o conceito de cultural lag foi cunhado nos anos 20 por William Ogburn e “em sua acepção original dizia respeito aos ritmos distintos da mudança social nas esferas materiais - sobretudo as invenções tecnológicas - e não materiais da cultura, produzindo ‘desajustamentos de várias ordens’” (Brasil Jr, 2013aBrasil Jr., Antonio. (2013a). Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo: Hucitec.: 158-159). Para Fernandes (2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 101), “consiste na presunção de que, quando não é homogêneo o ritmo da mudança das diversas esferas culturais e institucionais de uma sociedade dada, umas esferas podem se transformar com maior rapidez do que outras, introduzindo-se um desequilíbrio variável na integração delas entre si”.

Exemplo utilizado é o descompasso entre o grau de transformação do “sistema econômico das fazendas paulistas” em fins do século XIX e, por um lado, a “inércia cultural” dos setores dominantes que, após a Abolição, continuavam a tratar como escravizado o trabalhador livre, e, por outro lado, a “esfera da vida política”, onde a “consagração da República” como “igualdade política aos cidadãos brasileiros” teve caráter meramente “formal” (Fernandes, 2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 101-102).

Tal estado de coisas marcado pelo “desequilíbrio”, e as “tensões” e “atritos” daí emergentes, é apresentado em contraste com a “maior harmonia entre a organização política e as condições nacionais de existência social” que existiram nos processos de modernização “de países europeus e dos Estados Unidos” (Fernandes, 2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 102). No marco conceitual da demora cultural, diferente de uma crise da democracia brasileira, como se ela já tivesse existido plenamente numa fase anterior, haveria no Brasil “uma democracia ainda na fase de elaboração sócio-cultural” (Fernandes, 2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 97).

Sob este crivo analítico, o Brasil pós-colonial, pós-escravocrata e republicano aparece como uma modernidade singular por sua incompletude (ver Tavolaro, 2005Tavolaro, Sergio. (2005). Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro. RBCS , 20/59, p. 5-22.), uma modernidade amputada, quando comparada a um modelo apriorístico da modernização europeia e estadunidense. Diagnóstico explícito em texto original de 24 de junho de 1959 (Relações culturais entre o Brasil, o Ocidente e o Oriente), onde Fernandes aponta “a realização”, no Brasil, “quase sempre parcial, incompleta ou deformada” dos “modelos ideais de comportamento, de nível de vida, de organização das instituições, de aspirações intelectuais ou morais e de reforma social de países como a França, a Inglaterra, os Estados Unidos, a Alemanha, a Itália, etc.”. Isto, “em virtude das bases econômicas, sociais ou culturais de vida não oferecerem, no meio brasileiro, as principais condições requeridas pelo pleno desenvolvimento normal daqueles modelos” (Fernandes, 2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 172). Condições desfavoráveis como estas impuseram as “descontinuidades e o ritmo lento” típicos da “reconstrução dos modos ocidentais de existência numa sociedade tropical subdesenvolvida” (Fernandes, 2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 173).

Sucede ao diagnóstico do caso brasileiro, a partir do conceito de demora cultural, uma orientação programática em prol, primeiramente, da “sincronização, na medida do viável, das mudanças das várias esferas do sistema social”, com “intervenções deliberadas” que incidam, “preferencialmente, nos fatores extra-econômicos do equilíbrio social e da construção da ordem social (como no sistema educacional, no sistema familiar, no sistema jurídico, no sistema político, etc.)”; e, em segundo lugar, do “controle ativo dos focos de desorganização social, resultantes da própria mudança social progressiva” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.a: 269). Trata-se, então, de uma orientação coerente com as diretrizes da Sociologia Aplicada, definida nos últimos anos da década de 1950 (ver Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.b).

Em importante texto de 1962, Reflexões sobre a mudança social no Brasil, onde a “noção de dilema social brasileiro começou a ser empregada de maneira sistemática por Florestan Fernandes” (Brasil Jr., 2013cBrasil Jr., Antonio. (2013c). Linhas retas ou labirintos? A tradução da sociologia da modernização nos textos de Florestan Fernandes e de Gino Germani (1960-1970). RBCS, 28/82, p. 141-163.: 146), continua-se a falar das “motivações desfavoráveis à mudança social”, causadas pelo vínculo entre “o comportamento dos agentes econômicos” e “fatores psicossociais e sócio-culturais” definidos por “um apego irracional ao status quo” (Fernandes, 1976aFernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.: 204, grifo do autor). O Brasil configuraria “uma modernidade postiça, que se torna temível porque nos leva a ignorar que os sentimentos e os comportamentos profundos da quase totalidade das ‘pessoas cultas’ se voltam contra a modernização” (Fernandes, 1976aFernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.: 205, grifo do autor).

O dilema social brasileiro é resultado (no que parece em completo acordo com o léxico do cultural lag): da “inconsistência estrutural e dinâmica que nasce da oposição entre o comportamento social concreto e os valores morais básicos” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.a: 208) da formação social brasileira; das tensões entre as exigências de modernização das disposições e o caráter conservantista do universo sociocultural; e do “desnivelamento cultural, produzido pela transplantação de instituições econômicas de países adiantados por nações subdesenvolvidas” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.a: 250), como o caso do Brasil.

No entanto, a despeito da permanência de uma terminologia da “inconsistência estrutural” e do diagnóstico da “modernidade postiça”, em 1962, Fernandes (1976Fernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.a: 210) afirma abandonar uma abordagem da “situação sócio-cultural do Brasil como uma alternativa da teoria da demora cultural, como ela é formulada por Ogburn”, assim como diz superar a consciência ingênua de que a solução para “o dilema social brasileiro estaria em ajustar as esferas da sociedade brasileira, que não se transformaram ou que se transformaram com menor intensidade, às esferas que se alteraram com maior rapidez e profundidade”.

O sociólogo paulista chega, nesse momento, a uma percepção aguda de que as próprias “forças sociais inovadoras”, supostamente modernizantes, apresentam uma “resistência residual ultra-intensa à mudança social, que assume proporções e consequências sociopáticas” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.a: 211, grifo do autor). Isso ocorre não por “ligação emocional e moral íntegra e produtiva com o passado”, mas pela “preservação pura e simples do status quo”, colocando “acima de tudo” a preservação das “posições alcançadas na estrutura de poder da sociedade” e encarando “assuntos de importância vital para a coletividade” com os “critérios que possuíam eficácia no antigo regime” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.a: 211-212, grifo do autor).

A partir daí, Fernandes tensiona cada vez mais criticamente o uso do conceito de demora cultural para pensar o Brasil. Ao final do segundo volume d’A Integração do Negro na Sociedade de Classes, de 1964, considera como “um fenômeno de demora cultural”, de “natureza sociopática”, que o “desenvolvimento da ordem social competitiva” no Brasil sofra “com deformações estruturais na esfera das relações raciais” (Fernandes, 1978Fernandes, Florestan. (1978). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática.: 460-461), emergindo e expandindo-se “como um autêntico e fechado mundo dos brancos” (Fernandes, 1978Fernandes, Florestan. (1978). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática.: 457, grifo do autor).

Em texto do ano imediatamente posterior, 1965, A dinâmica da mudança sociocultural no Brasil, mesmo que o conceito de demora cultural não seja explicitamente citado, ele opera, por exemplo, quando Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 106-108, grifo do autor) indica a especificidade do “tempo” e do “ritmo” da Revolução Burguesa no Brasil, “processo extremamente lento, descontínuo e convulsivo”, no qual “o chamado elemento tradicionalista continua vivo, operante e com grande vitalidade”.

Assim, diferentemente de Liedke Filho (2005Liedke Filho, Enno D. (2005). A sociologia no Brasil: história, teorias e desafios. Sociologias, 14/7, p. 376-437.), que delimita a Hipótese da Demora Cultural (1954-1959) como um primeiro momento da Etapa da Sociologia numa Era de Revolução Social (1952-1967) da obra de Fernandes, percebe-se que aquela hipótese continua ativa, de forma tensa e ambivalente, para além de 1959.

A expressão “demora cultural” é utilizada repetidamente em A Integração do Negro na Sociedade de Classes (ver Fernandes, 1965Fernandes, Florestan. (1965). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus (vol. 2).: 165, 202, 224, 231, 277, 381, 388, 391). No sexto capítulo de A Revolução Burguesa no Brasil, escrito em 1973, Fernandes ainda usa a expressão (ver Fernandes, 2006aFernandes, Florestan. (2006a). A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo .: 330), mas com uma importância analítica subordinada frente aos desenvolvimentos teóricos alcançados pelo autor.

O caráter nuançado, repleto de matizes, idas e vindas, continuidades e descontinuidades da trajetória intelectual de Fernandes, dá razão à crítica de Bastos (1996Bastos, Elide Rugai. (1996). A questão racial e a questão nacional. In: Faleiros, Maria Izabel Leme & Crespo, Regina Ainda (orgs.). Humanismo e compromisso: ensaios sobre Octavio Ianni. São Paulo: Ed. Unesp, p. 79-99.) e a seu esforço de estabelecer fases bastante delimitadas da obra do sociólogo paulista. Melhor do que em fases, seria mais adequado falar, parafraseando Bastos (1996Bastos, Elide Rugai. (1996). A questão racial e a questão nacional. In: Faleiros, Maria Izabel Leme & Crespo, Regina Ainda (orgs.). Humanismo e compromisso: ensaios sobre Octavio Ianni. São Paulo: Ed. Unesp, p. 79-99.), em “patamares de reflexão” ou em “modulações”, para usar termo preferido por Gabriel Cohn ao pensar a obra de Florestan (ver entrevista com Botelho, Brasil Jr., Hoelz, 2018Botelho, André et al. (2018) Florestan Fernandes entre dois mundos: entrevista com Elide Rugai Bastos, Gabriel Cohn e Mariza Peirano. Sociologia & Antropologia, 8/1, p. 15-43.: 24). O que a imagem de fases e etapas não consegue captar é um movimento contínuo de apropriação, criação, centralização e periferização de categorias analíticas orientadas para a explicação da realidade concreta.

Apesar do uso transversal da expressão demora cultural na obra de Fernandes, é clara, nos textos citados de 1962 a 1965, a perda de esperanças numa sincronização tendencial ou programática que levaria à superação da demora cultural e à identificação entre diferenciação e democratização, esperanças estas que em grande medida embasavam a orientação “acadêmico-reformista” (Freitag, 2005Freitag, Barbara. (2005). Florestan Fernandes: revisitado. Estudos avançados , 19/55, p. 231-243.) de Fernandes, em momento anterior. As resistências sociopáticas à mudança, evidenciadas nas reações à Campanha em Defesa da Escola Pública e, depois, na experiência do Golpe de 1964 (ver Soares, 1997Soares, Eliane Veras. (1997). Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo: Cortez.), sinalizam para condições estruturais mais profundas envolvidas na reprodução de uma particular relação entre arcaico e moderno, no nível da integração sistêmica da formação social brasileira.

Diferenciação/Integração Sistêmica e Capitalismo Dependente

Se no texto de 1959 (Relações culturais entre o Brasil, o Ocidente e o Oriente), a noção de dependência aparece sem desenvolvimento conceitual específico na obra de Fernandes (2008bFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .), remetendo à “dependência cultural” no sentido de uma “alienação intelectual e moral” das elites brasileiras (cf. Cardoso, 1996Cardoso, Miriam Limoeiro. (1996). Florestan Fernandes: a criação de uma problemática. Estudos avançados, 10/26, p. 89-128.: 106), em texto de setembro de 1966 (Crescimento Econômico e Instabilidade Política no Brasil), já se pode perceber claramente um desdobrar conceitual antes ausente (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.).

O objetivo do artigo é precisamente delinear “os contornos e a qualidade da ‘revolução burguesa’ nos países economicamente subdesenvolvidos e dependentes” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 126), mais especificamente no Brasil, onde o “padrão de crescimento econômico que regula […] a organização e a expansão das atividades econômicas […] é típico de uma economia capitalista diferenciada, mas ‘periférica’ e ‘dependente’”, padrão esse triplamente “insuficiente”, quando comparado aos “moldes da civilização vigente”: a) no “nível estrutural”, “para promover a integração balanceada, em escala nacional, da produção, da circulação e do consumo”; b) no “nível dinâmico”, “para promover o desenvolvimento econômico autossustentado e autônomo”; e c) no “nível do sistema sociocultural global”, “para dar lastro econômico adequado à integração, ao funcionamento e ao desenvolvimento da ordem social” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 128-129).

Os “três quartos de século da experiência republicana” não levaram, para o Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 133) de 1966, a um “nível de integração da ordem social-democrática” capaz de comportar “a tolerância diante do inconformismo, a solução construtiva das tensões ou dos conflitos sociais e o respeito pela equidade independentemente do grau de riqueza, prestígio e poder”.

Já na conferência “O desenvolvimento como problema nacional”, realizada no dia 13 de março de 1967, Fernandes discorre sobre a tendência de generalização da “moderna civilização industrial” para todas as nações do globo, fazendo com que a “mudança” se torne “o meio fundamental de preservação do equilíbrio social” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 146-147). Formula-se, como enunciado geral, a ideia de que quanto maior for a integração de uma formação social nos termos da civilização moderna industrial, mais ela requer mudança e instabilidade cultural como condições de equilíbrio. O Brasil e as nações dependentes, embora se insiram no processo daquela civilização, “encontram sérias dificuldades para engendrar culturas nacionais, dotadas de relativa autonomia de crescimento interno e de certa autossuficiência na reprodução dos dinamismos socioculturais” compatíveis com o “padrão de equilíbrio da mencionada civilização” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 148).

Tal padrão só seria possível em condições onde “industrialização” e “crescimento econômico” se articulam a “uma verdadeira independência econômica social e cultural”, através de “uma vontade nacional que se afirme coletivamente por meios políticos” e que “tome por seu objetivo supremo a construção de uma sociedade nacional autônoma” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 155). Por isso, o “desenvolvimento” deve ser considerado como “problema macrossociológico, que afeta toda a organização da economia, da sociedade e da cultura e que diz respeito, essencialmente, a todo o ‘destino nacional’, a curto ou longo prazo” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 156).

As “tentativas de acelerar o crescimento econômico” não podem, assim, manter “as demais esferas da sociedade e da cultura inalteradas ou estagnadas” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 156). Não se pode mais falar em crescimento e desenvolvimento econômicos sem tratar da “democratização da renda, do prestígio social e do poder”, condição necessária para “dar origem e lastro a um ‘querer coletivo’ fundado em um consenso democrático, isto é, capaz de alimentar imagens do ‘destino nacional’ que possam ser aceitas e defendidas por todos, por possuírem o mesmo significado e a mesma importância para todos” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 157).

A análise detida dos textos confirma a assertiva de Miriam Limoeiro Cardoso (1996Cardoso, Miriam Limoeiro. (1996). Florestan Fernandes: a criação de uma problemática. Estudos avançados, 10/26, p. 89-128.: 91) de que, entre “1965 e 1967, [Fernandes] completa a sua definição de capitalismo dependente”. Arruda (2010Arruda, Maria Arminda do Nascimento. (2010a). A sociologia de Florestan Fernandes. Tempo social, 22/1, p. 9-27.a: 20), discorrendo especificamente sobre A Revolução Burguesa no Brasil, “escrita entre 1966 e 1974”, também indica uma “nítida clivagem no âmbito do pensamento do autor”. Confirma-se também, como veremos a seguir, o destaque dado tanto por Cardoso (1996Cardoso, Miriam Limoeiro. (1996). Florestan Fernandes: a criação de uma problemática. Estudos avançados, 10/26, p. 89-128.) como por Brasil Jr. (cf. 2013aBrasil Jr., Antonio. (2013a). Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo: Hucitec.: 254) ao texto escrito em 1967 para “um Colóquio na Universidade de Münster sobre ‘Problemas das Sociedades em Desenvolvimento’” (Cardoso, 1996Cardoso, Miriam Limoeiro. (1996). Florestan Fernandes: a criação de uma problemática. Estudos avançados, 10/26, p. 89-128.: 112), e que depois se torna o capítulo primeiro, “Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento”, de livro homônimo (cf. Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.).

Nesse texto, Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 23) toma para si a tarefa de analisar as “influências estruturais e dinâmicas da ordem social global sobre a absorção e a expansão do capitalismo no Brasil, uma sociedade nacional do ‘mundo subdesenvolvido’”. Entendendo “capitalismo” não como “apenas uma realidade econômica”, mas “também, e acima de tudo, uma complexa realidade sociocultural, em cuja formação e evolução histórica concorreram vários fatores extra-econômicos (do direito e do Estado nacional à filosofia, à religião, à ciência e à tecnologia)”.

Tal compreensão abrangente de “capitalismo” coroa um esforço presente em boa parte da obra de Fernandes. Trata-se “de buscar encontrar a formulação especificamente sociológica dos problemas em que está vivendo” (Cohn, 1986Cohn, Gabriel. (1986). Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernandes. In: Moraes, Ricardo; Antunes, Ricardo & Ferrante, Vera (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, p. 125-148.: 137). Algo perceptível em outro conceito utilizado amplamente, o de ordem social competitiva, como “substrato social do capitalismo industrial” (Cohn, 2002Cohn, Gabriel. (2002). Florestan Fernandes: A integração do negro na sociedade de classes. In: Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2. ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, p. 385-402 (vol. 2).: 401), ou, precisamente, que “designa uma forma de organização da sociedade em que posições sociais, riqueza, e poder são disputados em campo aberto, sem respeito por barreiras tradicionais, e a capacidade empreendedora e inovadora ganha relevo no elenco das qualidades socialmente valorizadas” (Cohn, 2004Cohn, Gabriel. (2004). Florestan Fernandes: A revolução burguesa no Brasil. In: Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 4. ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo , p. 393-412 (vol. 1).: 403). Trata-se de um esforço sociológico que persiste no conceito de capitalismo dependente.

No texto de 1967, a persistência do subdesenvolvimento é tomada como efeito da dupla polarização que caracteriza o “capitalismo dependente” brasileiro, formação socionacional que, diferentemente dos EUA, não alcançou “a neutralização e a superação definitiva das estruturas coloniais pela ordem social competitiva emergente” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 35).

Forma-se aqui uma “economia nacional duplamente polarizada”: um polo é o “setor de exportação de produtos primários, no qual a vigência dos princípios capitalistas só é plena, em regra, no nível da comercialização e no qual se concretiza ao máximo a dependência em relação ao exterior”; o outro é o “setor interno de produção, circulação e consumo de bens, ainda sujeito a fortes influxos externos, mas impulsionado por tendências irreversíveis de consolidação da economia de mercado capitalista existente” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 35). No primeiro polo, tal economia funciona como “entidade subsidiária e dependente”, “fonte de incrementação ou de multiplicação do excedente econômico das economias capitalistas hegemônicas” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 37); neste último, como “entidade especializada, no nível da integração do mercado capitalista mundial” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 36).

Embora o argumento continue a se sustentar, como nos textos da década de 50, num contraste com o “modelo democrático-burguês” (Fernandes, 2006aFernandes, Florestan. (2006a). A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo .: 340), a partir do conceito de capitalismo dependente abandona-se uma compreensão da formação social brasileira como um desvio patológico, postiço, amputado da modernidade e do capitalismo. Para Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 51, grifo do autor),

a sociedade capitalista subdesenvolvida não é uma redução patológica daquele tipo social [sociedades avançadas ou desenvolvidas], considerado em determinado estágio do seu desenvolvimento. Ao contrário, ela constitui, através de suas diversas variantes, o que se poderia entender como manifestação normal daquele tipo, nas condições que deram origem e mantiveram o capitalismo dependente.

Atreladas ao abandono de uma abordagem clínica do problema, também as terminologias da “demora” e da “inércia” cultural, ao pensar a integração das esferas no Brasil em transição para a “ordem social competitiva”, perdem proeminência analítica. Sob as lentes do conceito de “capitalismo dependente”, passa-se a conceber as possibilidades de que “o arcaico e o moderno nem sempre” entrem “em choque decisivo” e de que se estabeleçam “várias espécies de fusões e de composições, que traduzem os diferentes graus de identificação dos homens com a herança tradicional e com a modernização” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 53).

A dupla polarização passa a ser também decisiva para entender os atributos políticos e socioculturais de uma sociedade subdesenvolvida, para além da inércia sistêmica ou disposicional do passado. Em favor da reprodução do próprio padrão capitalista duplamente polarizado, “as demais funções do regime de classes (no plano cultural, político e social) se atrofiam ou se manifestam com menor vigor relativo” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 75) - regime de classes esse peculiar, na medida em que se adapta “normalmente, em termos funcionais, a iniquidades econômicas insanáveis, a tensões políticas crônicas e a conflitos sociais insolúveis, elevando a opressão sistemática, reconhecida ou disfarçada, à categoria de estilo de vida” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 75).

Outra peculiaridade do capitalismo dependente, fundamental quando se analisa da perspectiva da diferenciação/integração sistêmica, é que “[t]udo se passa como se o capitalismo fosse aceito segmentarmente, como forma econômica, e repudiado como um estilo de vida, isto é, em suas formas jurídico-políticas e societárias” democráticas, caracterizando “o subdesenvolvimento” pela “falta de conjugação entre mudanças econômicas, sociais e políticas, congelada ou impedida pela classe social que deveria jogar seus interesses econômicos em tal conjugação” (Fernandes, 2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 86-87, grifo do autor).

A falta de “conjugação” não é concebida, novamente, em termos de “inércia” ou “demora cultural”, já que “os mecanismos econômicos não se corrigem nem se transformam automaticamente”. “São os homens”, continua Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 87), “que promovem tais correções e transformações. Privado de suas formas sociais e jurídico-políticas, o capitalismo foi despojado de qualquer impulso dinâmico construtivo e revolucionário”.

DIFERENCIAÇÃO E INTEGRAÇÃO SISTÊMICAS DE PARSONS A FERNANDES

Nos textos de Fernandes até aqui analisados, percebe-se a manutenção da exigência, como pressuposto analítico necessário, de assumir uma perspectiva global na análise da formação social brasileira: seja como “moderna civilização ocidental”, “ordem social competitiva” ou “capitalismo”, entendido como síntese de fatores econômicos e extraeconômicos.

Em texto de 1965, O Conceito de Sistema Social, Fernandes é particularmente explícito sobre esse ponto, quando escreve que a noção de sistema é amplamente usada na ciência “para indicar que os fenômenos investigados ocorrem segundo condições que permitem descrevê-los e interpretá-los como elementos ou partes interdependentes de um todo” (Fernandes, 1976bFernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.: 85). Em seu uso na sociologia, na pena de autores tão díspares como “Parsons, Mauss, Radcliffe-Brown ou Marx” (Fernandes, 1976bFernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.: 89, grifo do autor), sempre se “tem em vista, de uma maneira ou de outra, a teia de atividades, ações ou relações sociais, reciprocamente ajustadas e interdependentes, que delimita estruturalmente e configura dinamicamente uma totalidade social integrada”.

Como já foi mencionado, no âmbito de uma sociologia sistemática de orientação macrossociológica, uma finalidade central é o “reconhecimento dos requisitos estruturais e funcionais de integração e diferenciação do sistema social” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.b: 93), tendo o sociólogo “liberdade de supor alternativas ‘que poderiam ter se concretizado’ ou que ‘não chegaram a se concretizar’, em função das combinações prováveis dos requisitos estruturais e funcionais do sistema social global em dada civilização ou conjunto de civilizações” (Fernandes, 1976Fernandes, Florestan. (1976b). Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira.b: 94).

Ao descrever a prática da sociologia histórica orientada pela noção de sistema social, aquela liberdade especulativa é restringida. Fernandes (1976Fernandes, Florestan. (1976a). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.b: 102-104) indica que, ao tomar “a sociedade brasileira de nossos dias” como objeto, esta deve ser, antes de qualquer coisa, concebida como parte do sistema social mais amplo denominado “civilização ocidental moderna”, no interior da qual se particularizam “tipos de ordenação das relações sociais”, tais como a “ordem social competitiva”, a “ordem social planificada” e os “regimes mistos”.

O Brasil, especificamente, “compartilha da ‘civilização ocidental moderna’ ao nível da ordem social competitiva” e “nos limites do capitalismo”, regendo-se assim “por normas, valores e instituições que regulam as relações humanas sob a égide do ‘sistema de produção capitalista’”. A partilha dos “princípios de organização” não significa plena adequação da sociedade brasileira àquele sistema mais amplo. Na medida em que “o Brasil não possui todas as condições psicossociais e socioculturais essenciais à plena realização histórico-social dessas normas, valores e instituições sociais”, pode-se dizer que “lhe faltam requisitos estruturais e funcionais exigidos pelo grau de integração e diferenciação da ordem social competitiva”, fazendo com que, aqui, “os princípios organizatórios vigentes encontrem viabilidade reduzida, insuficiente ou deformadas, embora a intensidade com que essa circunstância ocorre varie regionalmente”.

Desse ponto de vista, Fernandes aparece sob uma luz que o aproxima de Parsons, que considera, numa abordagem evolucionista-comparativa das sociedades, o sistema das sociedades modernas como totalidade integrada mais ampla, no interior do qual se inserem diversas sociedades em níveis distintos de desenvolvimento dos requisitos daquele sistema. Em ambos autores, requisitos abstratos de diferenciação e integração do sistema mais amplo são tomados como o critério por excelência para analisar formações sociais histórico-concretas.

As diferenças tornam-se mais pronunciadas a partir da formulação do conceito de capitalismo dependente. Como vimos, entre 1954 e 1961, concebe-se a articulação de uma economia moderna com atributos socioculturais e políticos conservadores como um descompasso patológico, tendente a ser superado pela sincronização, ora espontânea, ora programática, das esferas. Entre 1962 e 1965, a intelecção da resistência sociopática à mudança como núcleo do dilema social brasileiro transfere a indicação patológica: do descompasso sistêmico entre as esferas (demora cultural) para a ação deliberada de grupos e classes orientados para o monopólio máximo de recursos e possibilidades.

Nos termos de Lockwood (1976Lockwood, David. (1976). Social integration and system integration. In: Zollschan, George & Hirsch, Walter (eds.). Social change: explorations, diagnoses, and conjectures. New York: Halsted, p. 370-383.), poderíamos falar que Fernandes passa de uma ênfase no problema da (des)integração sistêmica no processo de mudança da sociedade brasileira (de uma ordem estamental para uma ordem competitiva) para uma centralização do problema da (des)integração social neste mesmo processo de mudança. Em outras palavras: o dilema social brasileiro passa a ser pensado menos da perspectiva da “equiparação entre o ritmo e o padrão de transformação dos diversos setores da sociedade” (Portela Júnior, 2013Portela Júnior, Aristeu. (2013). A problemática da democracia brasileira no pensamento de Florestan Fernandes. Dissertação de mestrado. PPGS/Universidade Federal de Pernambuco.: 52), segundo os requisitos da civilização ocidental moderna, do que pela ação permanente e organizada de indivíduos, grupos e classes na manutenção de um padrão de organização social arcaico e fundamentalmente antidemocrático.

A partir de 1966, por sua vez, para além da linguagem clínica, a articulação entre arcaico e moderno é pensada como uma integração normal entre as esferas sociais numa configuração histórica e estrutural específica do capitalismo, o capitalismo dependente. Abandona-se, crescentemente, um resíduo evolucionista que percebe a aliança entre modernização, diferenciação e democracia como um telos necessário e passa-se a conceber a possibilidade de múltiplas variações e arranjos, de acordo com as condições históricas de ocorrência dos processos de modernização.

Atrelada a este movimento, no pensamento de Fernandes, está uma redefinição da própria forma de conceber o tempo social, que Gabriel Cohn (2015Cohn, Gabriel. (2015). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais , Rio de Janeiro, 10/28, p. 11-28.: 16) soube captar de maneira exemplar: “o passado aparece como complexo de oportunidades (ganhas ou perdidas), o presente se configura como campo de forças e o futuro como conjunto de alternativas a serem (seletivamente) ‘dinamizadas’. O passado não é um jogo de memória (como em Gilberto Freyre), mas um inventário de desafios e obstáculos”.

Embora não desenvolva, como Parsons, uma discussão específica sobre as zonas de interpenetração dos diferentes subsistemas funcionais, Fernandes oferece uma contribuição particular para a discussão sobre integração sistêmica. O faz quando deixa de considerar o “desenvolvimento desigual e combinado” das “diferentes esferas da sociedade, econômica, social, política e cultural” (Bastos, 2011Bastos, Elide Rugai. (2011). Atualidade do pensamento social brasileiro. Revista Sociedade e Estado, 26/2, p. 51-70.: 57-58) como uma anomalia, ou um mero estágio no caminho da modernização, para pensá-lo como uma possibilidade histórica normal, condicionada, inclusive, pelo desenvolvimento desigual e combinado do próprio sistema capitalista enquanto totalidade integrada mais abrangente e pelas relações funcionais entre formações socionacionais autônomas e heterônomas.

No que se refere ao problema do primado de uma das partes ou esferas da vida na integração sistêmica, sob o prisma do cultural lag, a dimensão sociocultural (a constelação resiliente de valores e atitudes retrógradas, de caráter estamental) é enfatizada como causa do “atraso” brasileiro. Também é a consolidação de valores e normas de cunho democrático e universalista, no âmbito da sociedade nacional, que aparece como principal solução para o dilema brasileiro, meio para superar a resistência sociopática à mudança, como formulado em 1962.

A partir de 1966, por sua vez, podemos falar que há um momento preponderante conferido à esfera econômica, na medida em que a dupla polarização aparece como ponto de partida explanatório da ordem social autocrática brasileira, orientada para a reprodução de condições de extrema concentração da riqueza (econômico), do poder (político) e do prestígio (sociocultural), tríade categorial que funciona, em Florestan, de forma análoga aos meios simbólicos generalizados do modelo AGIL parsoniano.

Contudo, se o capitalismo dependente enfatiza a determinação em última instância do econômico, a superação de tal condição passa pela generalização e institucionalização de valores democráticos, e pela orientação crescente dos fins político-governamentais por uma vontade nacional e popular organizada, agora não mais em um sentido “acadêmico-reformista”, que ainda nutria esperanças num esclarecimento nacional-desenvolvimentista das elites empresariais, mas numa clara tomada de posição “político-revolucionária” (Freitag, 2005Freitag, Barbara. (2005). Florestan Fernandes: revisitado. Estudos avançados , 19/55, p. 231-243.: 236) socialista.

O desenvolvimento teórico-conceitual de Fernandes se distancia ainda mais de Parsons pela centralidade conferida pelo sociólogo brasileiro às dimensões da ação coletiva (luta entre grupos e classes sociais) na conformação das funções e dos sistemas de uma sociedade. Em entrevista de 1975 à revista Trans/Form/Ação, em pleno acordo com a defesa, feita em Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, da análise funcional “como instrumento da explicação sociológica” e contra a conversão do “funcionalismo” em “disciplina científica independente” (Fernandes, 1972Fernandes, Florestan. (1972). Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Editora Nacional.: 292, grifo do autor), Fernandes (1975Fernandes, Florestan. (1975). Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação, 2, p. 5-86.: 56, grifo do autor) é claro: “Não devemos exorcizar nem a palavra função, nem a análise causal resultantes de elaborações interpretativas estruturais-funcionais. Elas são instrumentais. O que se deve exorcizar é uma concepção naturalista de Ciências Sociais: esse é que é o busílis da questão”.

Para Fernandes (1975Fernandes, Florestan. (1975). Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação, 2, p. 5-86.: 57), “a análise estrutural-funcional” é particularmente útil para pensar “aspectos estáveis da vida social”, não por acaso “foi mais usada no estudo de sociedades primitivas ou de pequenas comunidades camponesas”. A crítica a tal forma de análise incide quando esta privilegia, em detrimento do uso da “explicação dialética”, “o status quo e a estabilidade social”. Critica-se também a análise estrutural-funcional, escreve Fernandes (1975Fernandes, Florestan. (1975). Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação, 2, p. 5-86.: 55), quando ligada “à formalização, à construção de conceitos e, principalmente, à análise axiomática no campo da sociologia sistemática. O que se critica são autores como Parsons e outros - que, realmente, lidam com o sistema social concebido no plano a-histórico”.

A rejeição de uma concepção naturalista de ciência social passa, assim, em Fernandes, pela centralidade da agonística social e da história como margem de contingência e abertura a contratendências frente aos condicionamentos sistêmicos e funcionais, quando se consideram as dinâmicas específicas da mudança social.

Novamente, vale notar, essa apropriação crítica e refletida do método funcionalista já se encontrava consolidada no Fernandes dos anos 1950. Por um lado, contra as tendências estáticas da análise funcional, a princípio “o equilíbrio social é concebido como instável e descontínuo” (Fernandes, 1972Fernandes, Florestan. (1972). Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Editora Nacional.: 311). Por outro lado, quanto à pergunta sobre “a importância intrínseca da análise funcional”, Fernandes (1972Fernandes, Florestan. (1972). Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Editora Nacional.: 313) responde que o valor desta só pode ser esclarecido no “plano mais elevado da confluência dos métodos de interpretação e de síntese de seus resultados”, ou seja, em sua contribuição específica pensada em conjunto com o método dialético e o método compreensivo.

Nesse sentido, o conceito de função social - entendido “como a conexão que se estabelece quando unidades do sistema social concorrem, com sua atividade, para manter ou alterar as adaptações, os ajustamentos e os controles sociais de que dependam a integração e a continuidade do sistema social” (Fernandes, 1972Fernandes, Florestan. (1972). Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Editora Nacional.: 304) - tem evidente valor heurístico para captar aspectos parciais importantes na reconstrução científica da realidade social, mas de modo algum pode ser tomado como suficiente e unívoco nesta tarefa.

O seu antinaturalismo também se revela quando centra a “problemática sociológica”, de forma cada vez mais explícita em sua trajetória intelectual, “no drama e na tragédia cotidianos vividos pelas camadas populares marginalizadas da participação nos rumos do país e excluídas das conquistas civilizadas e que explicam os dilemas do Brasil no trânsito do moderno” (Arruda, 2010Arruda, Maria Arminda do Nascimento. (2010a). A sociologia de Florestan Fernandes. Tempo social, 22/1, p. 9-27.b: 13).

Essas diferenças, em relação à perspectiva parsoniana, têm consequências para pensar a especificidade da diferenciação/integração sistêmica em Fernandes. De um lado, se a perspectiva sistêmica e estrutural de análise social é defendida por Fernandes, a ênfase nas variadas respostas históricas às exigências funcionais dos processos de modernização, nas lutas sociais em prol do estreitamento ou ampliação das oportunidades econômicas, políticas, socioculturais, e a tomada de posição normativa pelos “deserdados” impedem que a perspectiva sistêmica se torne um determinismo míope à dinâmica social de atores, sobretudo coletivos. O que não se converte, como na teoria do conflito, em uma redução de questões de integração sistêmica a questões de integração social, na medida em que medir, com a força do intelecto, o peso dos constrangimentos sistêmicos e estruturais aparece como condição necessária para a construção de uma democracia radical.

Cohn (2015Cohn, Gabriel. (2015). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais , Rio de Janeiro, 10/28, p. 11-28.: 26) enumera três principais níveis de problemas macrossociológicos do interesse de Fernandes: a) as “condições históricas e correntes de integração de uma sociedade, em especial no tocante à constituição de uma ordem social competitiva”; b) a “mudança social, propiciada (com obstáculos) pelo padrão e pelo grau de integração alcançado pela sociedade”; e c) as “condições de transformação do complexo social como um todo”.

Nos três níveis, há uma abordagem “não convencional”, na qual a “‘saturação’ dos papéis” e o “preenchimento dos ‘vazios’” assumem importância analítica central. Do ponto de vista da integração, trata-se de, ao contrário de “tomar como dado o centro organizador do conjunto e com isso a definição da margem”, demonstrar “a difícil constituição da margem e como esta funciona como requisito para a constituição do conjunto todo, portanto também do seu centro” (Cohn, 2015Cohn, Gabriel. (2015). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais , Rio de Janeiro, 10/28, p. 11-28.: 26-27). Ou, como escreve Bastos (2015Bastos, Elide Rugai. (2015). Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar. Sinais Sociais, 10/28, p. 29-54.: 49), Fernandes “opera com a afirmação de que o elo mais fraco da corrente social ilustra o funcionamento da sociedade”.

Quanto à mudança social, realiza-se uma “inflexão da atenção, que passa a ver os âmbitos dos vazios sociais mais propriamente como obstáculos” (Cohn, 2015Cohn, Gabriel. (2015). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais , Rio de Janeiro, 10/28, p. 11-28.: 27, grifo do autor). Vazios no sentido de oportunidades não realizadas, na medida em que foram perversamente saturados por forças opositoras à mudança.

Quanto à ordem, por fim, evidencia-se que esta não se dá por “equilíbrio adaptativo” ou por conflito permanente por recursos, mas politicamente.

Trata-se da democracia, a perene e nunca completada busca da igualdade sustentada em direitos universais. É por isso que em Florestan a democracia não se esgota no plano da aquisição e gozo de direitos. Cidadão, para ele, é mais do que portador de direitos. É portador de impulsões igualitárias, sem as quais todo o resto perde sentido, não se criam as condições para um estilo democrático de vida, para usar muito expressivo termo seu (Cohn, 2015Cohn, Gabriel. (2015). A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais , Rio de Janeiro, 10/28, p. 11-28.: 28, grifo do autor).

Utilizando o argumento de Gabriel Cohn nos termos do nosso problema, podemos afirmar que, no curso da obra de Fernandes, a formação social brasileira paulatinamente deixa de ser pensada em termos abstratos que hiperdimensionam a importância dos requisitos de diferenciação/integração sistêmicos da ordem competitiva ou do sistema capitalista que, quando confrontados com a nossa concretude, demonstrariam a sua ausência, seja por demora cultural (desintegração sistêmica em processo de mudança social), seja por resistência sociopática (desintegração social por parte de atores e grupos conservadores).

Abandonando uma visão do equilíbrio sistêmico da ordem social competitiva, a formulação do capitalismo dependente permite lançar luz sobre a formação social brasileira como um campo de possibilidades abertas: por um lado, durante um momento específico de expansão do sistema capitalista mais amplo (em sua fase monopolista); por outro, aos grupos e classes em luta em prol da manutenção do padrão autocrático de dominação burguesa ou da radicalização democrática rumo ao socialismo. Em poucas palavras, a diferenciação e a integração sistêmicas só podem ser vistas, agora, sem qualquer resquício teleológico, como estrutura de possibilidades reproduzidas, transformadas ou subvertidas por meio da (re)ação dos atores coletivos em luta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, num estudo específico sobre a modulação do problema da diferenciação/integração sistêmica em Fernandes, podemos sugerir, conclusivamente, que sua especificidade está nos três pontos explicitados a seguir.

Primeiramente, está na ruptura com um modelo abstrato de modernização, saturando de história, desde uma perspectiva periférica, a abordagem sobre os processos de diferenciação/integração sistêmicos. Aspecto particularmente salientado no trabalho de Antonio Brasil Jr. (2013aBrasil Jr., Antonio. (2013a). Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo: Hucitec.).

Em segundo lugar, quando considera o desenvolvimento desigual na integração entre as esferas ou subsistemas sociais como possibilidade histórica normal (nem patologia, nem mero estágio de transição) no interior do desenvolvimento desigual e combinado do próprio sistema capitalista. Nesse aspecto, aproxima-se e distingue-se do dualismo analítico de Lockwood (1976Lockwood, David. (1976). Social integration and system integration. In: Zollschan, George & Hirsch, Walter (eds.). Social change: explorations, diagnoses, and conjectures. New York: Halsted, p. 370-383.), que, como bem sintetiza Mouzelis (1998Mouzelis, Nicos. (1998). David Lockwood. In: Stones, Rob (ed.). Key sociological thinkers. London: MacMillan Press LTD, p. 163-175.: 166), diz respeito não só à distinção entre social e sistêmico nos termos de relação entre atores e relações entre partes de um sistema, entre perspectiva internalista e perspectiva externalista, mas também implica em pensar a “integração/desintegração” social sobretudo em termos de “conflito/cooperação”, enquanto a integração/desintegração sistêmica é pensada em termos de “compatibilidade/incompatibilidade entre partes sistêmicas”.

Como espero ter deixado claro, a sociologia histórico-comparativa levada a cabo para compreender as revoluções burguesas periféricas, o subdesenvolvimento e a dependência desvincula incompatibilidade e desintegração e permite pensar a primeira como forma possível de integração sistêmica, algo estranho ao marco da demora cultural e ao evolucionismo parsoniano, mas plenamente aceitável no jogo entre os binários analíticos propostos por Lockwood. Para além deste, Fernandes oferece, embora de forma não sistemática, contínuas sugestões para uma reflexão sobre a integração sistêmica capaz de desatrelar-se do próprio léxico da incompatibilidade, dado que a atualidade de princípios estruturais heterogêneos, ou a “contemporaneidade de situações históricas não coetâneas” (Fernandes, 2015Fernandes, Florestan. (2015). Poder e contrapoder na América Latina. São Paulo: Expressão popular.: 37), tende a fazer fenecer o sentido de uma atribuição essencialista e rígida às temporalidades que constituem as partes de um sistema ou de uma formação social específica.

Em terceiro e último lugar - como estímulo à reflexão que foge do escopo deste artigo -, Fernandes contribui também para uma apreciação particular da relação entre as dimensões sistêmica e social da diferenciação/integração, que, mais uma vez, tanto apresenta afinidades como difere do dualismo analítico lockwoodiano.

Converge com este na medida em que a perspectiva internalista e a perspectiva externalista não são dicotomizadas como referentes a classes de fenômenos substancialmente distintas. Tanto em A Integração do Negro na Sociedade de Classes como em A Revolução Burguesa no Brasil pode-se ler, em um estado prático, o uso interdependente de uma perspectiva dos atores (social) e de uma perspectiva sistêmica (das “partes” em jogo de uma perspectiva global e internas a uma formação socionacional) para analisar processos sociológicos e históricos de longa duração.

Como se sabe, Lockwood (1976Lockwood, David. (1976). Social integration and system integration. In: Zollschan, George & Hirsch, Walter (eds.). Social change: explorations, diagnoses, and conjectures. New York: Halsted, p. 370-383.) retorna a Marx para apontar como neste, em contraste com o funcionalismo normativo de Parsons, encontra-se um arcabouço produtivo para pensar tanto a (des)integração sistêmica - as compatibilidades/incompatibilidades entre forças produtivas e relações sociais de produção -, como para pensar a (des)integração social - os modos de cooperação/conflito entre interesses de indivíduos, classes e os problemas da (falsa) consciência. Contra a ênfase na dinâmica de interesses (e a distorção destes), Lockwood retorna ao antiutilitarismo durkheimiano para pensar as hierarquias de status e as dinâmicas institucionais que conformam as relações sociais.

Embora continuamente enfatize a produtividade da heurística de Lockwood, Mouzelis (1998Mouzelis, Nicos. (1998). David Lockwood. In: Stones, Rob (ed.). Key sociological thinkers. London: MacMillan Press LTD, p. 163-175.) não deixa de criticá-lo por manter-se acrítico a uma compreensão não normativa ou puramente material de um dos elementos básicos da integração sistêmica em Marx: as forças produtivas ou a tecnologia de uma forma mais ampla. Compreensão que leva a ignorar o caráter “simbolicamente construído” e a “regulação normativa” que perpassa todo o social e suas “esferas institucionais” (Mouzelis, 1998Mouzelis, Nicos. (1998). David Lockwood. In: Stones, Rob (ed.). Key sociological thinkers. London: MacMillan Press LTD, p. 163-175.: 173). Considerando que tanto as forças produtivas como as relações de produção envolvem elementos materiais e normativos, “melhor seria”, continua Mouzelis (1998Mouzelis, Nicos. (1998). David Lockwood. In: Stones, Rob (ed.). Key sociological thinkers. London: MacMillan Press LTD, p. 163-175.:173), trabalhar com “a distinção entre arranjos mais ou menos duráveis institucionalmente”.

Nesse aspecto, podemos indicar em Fernandes um enfrentamento constante de uma compreensão puramente material ou não normativa da dinâmica das forças produtivas e tecnológicas. Mesmo antes da formulação do conceito de capitalismo dependente, percebe-se como nos diagnósticos tanto da demora cultural como da resistência sociopática à mudança social a persistência de padrões culturais e normativos arcaicos é fundamental para entender os dilemas de uma sociedade periférica, não só para a democratização das relações sociais e a incorporação do conflito como atributo constituinte da mudança em sociedades modernas, mas também para um padrão de modernização e industrialização consistente e autônomo.

Em 1967, como vimos, Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.) defende continuamente, contra um imaginário puramente econômico de crescimento, a interdependência entre economia, sociedade e cultura e a democratização articulada de renda, prestígio e poder para um efetivo projeto de desenvolvimento como problema nacional. Também vimos como Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008b). Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global .: 23) rejeita a compreensão do capitalismo como “apenas uma realidade econômica”, e propõe abordá-lo como “uma complexa realidade sociocultural”. No mesmo texto, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Fernandes (2008aFernandes, Florestan. (2008a). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global.: 87) é enfático ao indicar como “os mecanismos econômicos não se corrigem nem se transformam automaticamente”.

Conclusivamente, pode-se dizer que a reflexão sobre o capitalismo dependente, a dupla articulação e a dominação autocrática são, de ponta a ponta, também uma reflexão sobre como o problema do desenvolvimento das forças produtivas é perpassado constitutivamente pelas dimensões política e normativa, pelos padrões de mentalidade dos grupos dominantes e pelo esforço contínuo destes em desatrelar os setores subalternos (o Povo, nas palavras de Fernandes) do controle, participação e deliberação sobre recursos materiais, políticos e culturais.

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NOTAS

  • *
    Este artigo é mais um resultado da frutífera interlocução e produção intelectual no interior do projeto de pesquisa “Florestan Fernandes e os dilemas sociais brasileiros: história do tempo presente”, coordenado por Eliane Veras Soares (UFPE) e integrado pelos professores, pesquisadores e amigos Ana Rodrigues Cavalcanti Alves (UFBA), Aristeu Portela (UFRPE), Diogo Valença Costa (UFRBA) e Remo Mutzenberg (UFPE), aos quais agradeço carinhosamente. Gostaria de agradecer também, de modo enfático, aos pareceristas anônimos e aos editores da revista Sociologia & Antropologia, que, com paciência e profissionalismo exemplar, contribuíram para uma significativa elevação da qualidade do texto. As falhas ainda presentes são de minha inteira responsabilidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2019
  • Revisado
    24 Maio 2021
  • Aceito
    22 Jul 2021
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