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DESIGUALDADE E POLÍTICA

The great gap: inequality and the politics of redistribution in Latin America. 2011. Blofield, Merike. University Park: The Pennsylvania University Press, 416 p.

A América Latina é frequentemente apontada como a região mais desigual do mundo, segundo índices como Gini e Theil (ver CEPAL, 2012CEPAL. (2012). Social panorama of Latin America. Santiago: UN-ECLAC.). Mais do que isso, os grandes conflitos políticos e a violência que também caracterizam a região costumam ser mais atribuídos a clivagens socioeconômicas do que a choques culturais ou étnicos (López, 2013López, Matias. (2013). The state of poverty: elite perceptions of the poor in Brazil and Uruguay. International Sociology, 28/3, p. 351-370.). Esse conjunto de fatores, somado à instabilidade política, fizeram com que a América Latina servisse como ilustração quase perfeita de teorias como o "argumento Lipset", que apontava para uma forte relação entre desigualdade e desenvolvimento político. Segundo Lipset (1960)Lipset, Seymour M. (1960). Political man: The social bases of politics. Baltimore: Johns Hopkins University Press., a alta desigualdade impossibilitaria o desenvolvimento de democracias plenas.

Enquanto alguns sociólogos contemporâneos voltaram a enfatizar os riscos políticos da desigualdade (Sorj & Merttuccelli, 2008Sorj, Bernardo & Martuccelli, Danilo. (2008). The Latin American challenge: social cohesion and democracy. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso/The Edelstein Center for Social Research.), outros apontam para novas dinâmicas da desigualdade, que demandam por aperfeiçoamentos conceituais e metodológicos (ver, por exemplo, os trabalhos de Silva & Reis, 2012aSilva, Graziela M. D. & Reis, Elisa. (2012a). The multiple dimensions of racial mixture in Rio de Janeiro, Brazil: From whitening to Brazilian negritude. Ethnic and Racial Studies, 35/3, p. 382-399., 2012bSilva, Graziela M. D. & Reis, Elisa. (2012b). Is Cuba becoming more Latin American? In: Dominguez, Jorge I. et al. (orgs.) Cuban economic and social development: Policy reforms and challenges in the 21st century. Cambridge: Harvard University Press, p. 321-326.). Embora seja acertado apontar para a permanência de entraves a tempo diagnosticados, é igualmente relevante incorporar as mudanças ocorridas nos padrões de comportamento político das massas (novas demandas por distribuição), na composição das elites políticas (um notado giro para a esquerda) e na ação do Estado (o avanço de políticas de distribuição e o reavivamento do estatismo).

O livro The great gap: inequality and the politics of redistribution in Latin America, organizado pela cientista política Merike Blofield atende a essas questões de modo ambicioso e, em minha avaliação, bastante acertado. The great gap fornece ao mesmo tempo um argumento de pesquisa inovador e uma série de achados empíricos relevantes para o estudo da relação entre política e desigualdade na América Latina. Ao longo do livro os autores apresentam alguns dos principais quebra-cabeças na relação entre desigualdade e política na região.

O livro se divide em quatro partes: o "cotexto socioeconômico", "cultura da elite, framing e opinião pública", "agenda setting e a política da desigualdade", "a questão tributária e a política social". No total são onze capítulos, apresentando estudos comparativos e estudos de caso, com metodologias diferentes, que vão do tratamento estatístico à análise de conteúdo. Mas o saldo do conjunto de estudos pode ser reduzido a duas propostas de causalidade:

  1. os efeitos da política na desigualdade (Filgueira, Hughes & Prado; Filgueira et al.; Mahon Jr.; Franzoni & Voored).

  2. os efeitos da desigualdade na política (Blofield; Reis; Blofield & Luna; Campello; Sakurai; Blofield & Haas).

Em meu entendimento, o segundo ponto é o de maior impacto para a sociologia política contemporânea. Ao encarar a desigualdade como causa de fenômenos políticos, e não só como consequência deles, o volume oferece novas perspectivas para entender os mecanismos que circunscrevem esse fenômeno social.

A primeira parte do livro reitera um diagnóstico antigo: a desigualdade latino-americana se relaciona com o caminho percorrido pelo Estado na região. Isto é, a desigualdade é também um fenômeno político. Por outro lado, qualifica-se a desigualdade latino-americana ao apontar para a centralidade da desigualdade de oportunidades como instância que combina desigualdades econômicas (de classe) e culturais (de raça).

Filgueira aborda o estado de bem-estar latino-americano em perspectiva comparada e propõe que pensemos uma via de desenvolvimento típica da região. O autor argumenta que certos tipos de desigualdade podem ser mais funcionais do que outros. Segundo Filgueira, a América Latina está repleta de "más desigualdades". Por exemplo, os Estados na região ainda enfrentam grandes dificuldades em lidar com a reprodução das famílias mais pobres, ao mesmo tempo em que dedicam cada vez mais recursos para uma população crescente de idosos. Crespo & Ferreira demonstram que uma parcela considerável da desigualdade socioeconômica é explicada por outras desigualdades sobre as quais os indivíduos têm pouca ou nenhuma influência: o acesso à educação, a educação dos pais, a região de nascimento e a identidade racial. Essa desigualdade de oportunidades é especialmente forte no Brasil.

A segunda parte explora o efeito da desigualdade no comportamento das elites e dos meios de comunicação, dois mundos altamente conectados. Baseada em dados de survey e em entrevistas qualitativas, Reis aponta que a elite brasileira parece ter admitido a possibilidade de manter um regime democrático em um contexto de desigualdade elevada, contrariando temores característicos do período de redemocratização. Hughes & Prado abordam o modo como os meios de comunicação apresentam problemas nacionais. Os autores argumentam que o enquadramento da desigualdade tem efeitos sobre a reprodução da mesma. Ambos os trabalhos exploram a relação entre desigualdade e valores políticos entre as elites.

O capítulo que fecha essa segunda parte é assinado por Blofield & Luna e também explora a relação entre valores políticos e desigualdade, desta vez no nível da população, usando dados do World Values Survey (WVS).1 1 A World Values Survey é uma pesquisa de valores aplicada em mais de oitenta países e tem sido explorada para a análise da influência de padrões de cultura política no desenvolvimento político e social e vice-versa. Microdados e análises estão disponíveis em <http://www.worldvaluessurvey.org/>. Os autores demonstram uma relação contraintuitiva entre desigualdade e valores: países mais desiguais tendem a valorizar mais a desigualdade, apontando para a necessidade de disparidades para o incentivo individual. Esse efeito da desigualdade fortalece o conceito de distância social apresentado pela autora nesta e em outra publicação (ver Blofield, 2011Blofield, Merike. (2011). Desigualdad y política en América Latina. Journal of Democracy en Español, 3, p. 58-74.). Segundo Blofield, um dos efeitos da distância social é a percepção equivocada em relação às necessidades dos pobres.

Os resultados ganham mais peso se contrastados com outros estudos (por exemplo, Scalon, 2004Scalon, Celi. (2004). Imagens da desigualdade. Belo Horizonte: Ed. UFMG.) que demostram que as populações de países mais desiguais valorizam a desigualdade, embora isso pareça paradoxal. Contudo, não está claro o sentido da causalidade, podendo existir duas relações não excludentes: desigualdade causando valores e valores causando desigualdade.

A parte 3 está mais voltada para a política social e econômica. Campelo mostra os efeitos econômicos da virada para a esquerda em casos com diferentes níveis de estabilidade democrática. A autora relaciona a expectativa gerada nas campanhas vitoriosas das coalizões de esquerda com os resultados, nem sempre ideologicamente coerentes, dos governos encabeçados por essas coalizões. Já Bugarian et al. mostram uma tendência de maiores gastos nas campanhas eleitorais de democracias mais desiguais. O Brasil é apontado como caso típico para ilustrar esse "custo" da desigualdade. Filgueira et al. fazem um retrospecto do desenvolvimento da região, argumentando que em paralelo ao avanço político (a democratização) houve uma crise de incorporação ao mercado, consequência do fracasso de políticas liberalizantes. Os autores argumentam que a virada para a esquerda é uma reação a essa crise. Finalizando a seção, Blofied faz um retrospecto da desigualdade de gênero na América Latina, apontando para pontos de desigualdade política e no trabalho, usando o caso das empregadas domésticas.

A parte 4 aborda a questão fiscal. Mahon Jr. argumenta que a América Latina impõe mais impostos indiretos em comparação com outras regiões, onerando o consumo e dificultando a distribuição. Franzoni & Voorend fazem uma análise intracaso em países com os perfis estatista e liberal, mostrando os efeitos das escolhas e das coalizões políticas no padrão de distribuição. Uma vez mais a desigualdade latino-americana é apresentada como resultado de escolhas políticas.

Por fim, a conclusão de Blofield ressalta alguns diagnósticos apresentados pelo livro sobre as causas e os efeitos da desigualdade na América Latina. A organizadora aponta para a vantagem de políticas social-democratas (como as do Brasil, Chile e Uruguai) frente a políticas populistas baseadas em conjunturas econômicas de curta duração (como as do Equador e da Venezuela). Esse diagnóstico problematiza a ideia de uma "virada" para a esquerda, já que os casos bem-sucedidos são caracterizados por uma série de continuidades, principalmente na política econômica. Os casos malsucedidos se encaixam melhor na ideia de circulação de elites, implícita na noção de "virada para a esquerda". Portanto, podemos dizer que as continuidades têm também um papel importante na explicação da atual conjuntura.

Além disso, há uma importante ausência no livro: a recente queda da desigualdade no continente (ver Birdsall et al., 2012Birdsall, Nancy; Lustig, Nora & McLeod, Darryl. (2012). Declining inequality in Latin America: Some economics, some politics. In: Kingstone, Peter & Yashar, Deborah (orgs.). Routledge handbook of Latin American politics. Nova York: Routledge, p. 158-180.). Se a desigualdade é o efeito e a causa de fenômenos políticos, qual é o efeito político esperado para a redução da desigualdade? Enquanto os economistas ainda debatem as causas dessa queda, sociólogos e cientistas políticos parecem não tê-la incluído no quebra-cabeça da desigualdade latino-americana. Para além desse ponto, em seu conjunto The great gap apresenta bons argumentos teóricos e fortes dados empíricos. Trata-se de uma contribuição única para os pesquisadores que estudam a relação entre desigualdade e política na América Latina.

Matias López é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e participa atualmente de um estudo que compara percepções das elites sobre desigualdade no Brasil, no Uruguai e na África do Sul, no âmbito do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED-UFRJ). Trabalhos de sua autoria podem ser vistos em edições recentes de International Sociology, Sociopedia.isa e no livro Political inequality in the age of democracy: cross-national perspectives, organizado por Joshua Dubrow, com lançamento previsto para 2014. Seus interesses se concentram nas áreas de sociologia política, política comparada e metodologia de pesquisa.

NOTAS

  • 1
    A World Values Survey é uma pesquisa de valores aplicada em mais de oitenta países e tem sido explorada para a análise da influência de padrões de cultura política no desenvolvimento político e social e vice-versa. Microdados e análises estão disponíveis em <http://www.worldvaluessurvey.org/>.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Blofield, Merike. (2011). Desigualdad y política en América Latina. Journal of Democracy en Español, 3, p. 58-74.
  • Birdsall, Nancy; Lustig, Nora & McLeod, Darryl. (2012). Declining inequality in Latin America: Some economics, some politics. In: Kingstone, Peter & Yashar, Deborah (orgs.). Routledge handbook of Latin American politics Nova York: Routledge, p. 158-180.
  • CEPAL. (2012). Social panorama of Latin America Santiago: UN-ECLAC.
  • Lipset, Seymour M. (1960). Political man: The social bases of politics Baltimore: Johns Hopkins University Press.
  • López, Matias. (2013). The state of poverty: elite perceptions of the poor in Brazil and Uruguay. International Sociology, 28/3, p. 351-370.
  • Scalon, Celi. (2004). Imagens da desigualdade Belo Horizonte: Ed. UFMG.
  • Silva, Graziela M. D. & Reis, Elisa. (2012a). The multiple dimensions of racial mixture in Rio de Janeiro, Brazil: From whitening to Brazilian negritude. Ethnic and Racial Studies, 35/3, p. 382-399.
  • Silva, Graziela M. D. & Reis, Elisa. (2012b). Is Cuba becoming more Latin American? In: Dominguez, Jorge I. et al. (orgs.) Cuban economic and social development: Policy reforms and challenges in the 21st century Cambridge: Harvard University Press, p. 321-326.
  • Sorj, Bernardo & Martuccelli, Danilo. (2008). The Latin American challenge: social cohesion and democracy São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso/The Edelstein Center for Social Research.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2013
  • Aceito
    06 Jun 2013
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