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As cidadelas das pesquisas de história da educação no Brasil

Citadels of research in history of education in Brazil

Las ciudades de las investigaciones de historia de la educación en Brasil

Resumo:

A reflexão consentânea aos Grupos de Pesquisas de História da Educação, formalizados nas instituições universitárias brasileiras na década de 1990, ‘em especial, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte’, é, em princípio, um exercício de reconstituição pela memória e pela escrita de uma cultura acadêmica de debates, de estudos, de encontros e de interações recíprocas de pesquisadores. O principal propósito do trabalho é analisar as situações de produção do conhecimento da história da educação e os seus pressupostos teórico-metodológicos, contemplando, em parte, o século XX e, em parte, o século XXI. Por essa reconstituição, constata-se que, desde o início, os grupos de pesquisas de história da educação, que congregam pesquisadores brasileiros e estrangeiros, apresentam-se, para as instituições universitárias, para os grupos de trabalho e para as sociedades científicas, como produtores por excelência do conhecimento da história da educação.

Palavras-chave:
grupos de pesquisas; história da educação; história cultural; instituições universitárias

Abstract:

The proper reflection to the History of Education Research Groups, formalized in Brazilian university institutions in the 1990s, ‘especially at the Federal University of Rio Grande do Norte’ is, in principle, an exercise of reconstitution by memory and writing of an academic culture of debates, studies, meetings and reciprocal interactions of researchers. The main purpose of the work was to analyze the situations of knowledge production in history of education and its theoretical and methodological assumptions, including, in part, the twentieth century and, in part, the twenty-first century. By this reconstitution, we noted that, from the beginning, the History of Education Research Groups, which bring together Brazilian and foreign researchers, present themselves for university institutions, for working groups and for scientific societies, as producers par excellence of knowledge of the history of education.

Keywords:
research groups; history of education; cultural history; university institutions

Resumen:

La reflexión adecuada a los Grupos de Investigaciones de Historia de la Educación, formalizados en las instituciones universitarias brasileñas en la década de 1990, ‘en especial, en la Universidad Federal del Rio Grande del Norte’, es, en principio, un ejercicio de reconstitución por la memoria y la escritura de una cultura académica de debates, estudios, encuentros e interacciones recíprocas de investigadores. El principal propósito del trabajo es analizar las situaciones de producción del conocimiento de la historia de la educación y sus presupuestos teórico-metodológicos, contemplando, en parte, el siglo XX y, en parte, el siglo XXI. Por esa reconstitución, se constata que, desde el inicio, los grupos de investigaciones de historia de la educación, que congregan investigadores brasileños y extranjeros, se presentan para las instituciones universitarias, para los grupos de trabajo y para las sociedades científicas como productores por excelencia del conocimiento de la historia de la educación.

Palabras clave:
grupos de investigaciones; historia de la educación; historia cultural; instituciones universitarias

Introdução

O historiador da educação, Giovanni Genovesi, da Universidade Italiana de Parma (Itália), estima que a historiografia da educação, nesse país, atingiu um nível qualitativo reconhecido desde, pelo menos,o ano de 1970. Isso pode ser comprovado pela renovação teórica e metodológica e pela internacionalização das pesquisas histórico-educacionais e,mais particularmente,pelo mérito das produções de Mario AlighieroManacorda, de Franco Cambi, de Antonio Santori Rugiu, de Luigi Ambrosoli, de Tina Tomasi, entre outros.

Na apreciação de Genovesi (1996Genovesi, G. (1996). A historiografia da educação hoje: tendências e problemas. Educação & Sociedade, 17(54), 14-33., p. 18 e 24), essas e outras produções histórico-educacionais “[...] por um lado, [dão] maior atenção nos confrontos da pesquisa histórica em geral; por outro, [trabalham] com as [...] contínuas interações disciplinares, em particular com aquelas que investigam todos os outros setores da sociedade”.

Já o historiador da educação, Franco Cambi (1999Cambi, F. (1999). História da pedagogia (Álvaro Lorencini, trad.). São Paulo, SP: Editora UNESP., p. 21), da Universidade de Florença (Itália), referiu-se, na introdução de sua História da pedagogia, à renovação dessas produções da seguinte maneira: “Ao longo dos últimos 25 anos, operou-se uma profunda transformação metodológica na pesquisa histórico-educativa, levando a uma radical mudança de orientação [...]”, tanto na história da pedagogia quanto na história da educação. A propósito dessas mudanças, o autor assim se pronuncia:

Já desde o segundo pós-guerra, porém, difundiam-se novas orientações historiográficas, também no campo pedagógico, e, ao mesmo tempo, entravam em crise alguns pressupostos daquele modo tradicional de fazer história da pedagogia. Iniciava-se assim um longo processo que levou à substituição da história da pedagogia pela mais rica, complexa e articulada história da educação, que só em anos recentes aparece definitivamente constituída como modelo-guia da pesquisa histórica em educação e pedagogia (Cambi, 1999Cambi, F. (1999). História da pedagogia (Álvaro Lorencini, trad.). São Paulo, SP: Editora UNESP., p. 23).

Para Nóvoa (2005Nóvoa, A. Prefácio. In C. Monarcha (Org.). (2005). História da educação brasileira: formação do campo (2a ed.). Ijuí, RS: Editora Unijuí.), os anos de 1960 foram de inegáveis rupturas no domínio da pesquisada história da educação.Segundo esse historiador português da educação, adotar os referenciais (principalmente os da nova história cultural) foi fundamental para a reconceitualização do trabalho histórico em educação, considerando o fato de que, por essa via, se priorizava

[...] a atenção aos estilos de interação (apropriação, negociação) e aos termos de diferença (gênero, classe), o esforço para evitar teorias pré-explicativas dos fatos e para valorizar a sua problematização in situ, a construção de argumentos cuidadosos com base nas evidências empíricas e a escolha de um estilo criativo de narração (Nóvoa, 2005Nóvoa, A. Prefácio. In C. Monarcha (Org.). (2005). História da educação brasileira: formação do campo (2a ed.). Ijuí, RS: Editora Unijuí., p. 15).

É certo, para Nóvoa (2005Nóvoa, A. Prefácio. In C. Monarcha (Org.). (2005). História da educação brasileira: formação do campo (2a ed.). Ijuí, RS: Editora Unijuí., p. 14), que as especificidades nacionais orientam os ritmos próprios dos objetos de estudo nos vários domínios da história da educação, “[...] mas o fundo dos debates é comum às diversas comunidades de historiadores da educação”.

Por conseguinte, as décadas de 1960 e de 1970teriam sido de renovação na historiografia educacional em muitos lugares, justamente pela interlocução com a história cultural. No Brasil, sucedeu, praticamente na mesma época, uma situação análoga no campo da história da educação. A historiadora brasileira da educação, Marta Carvalho, cotejando o processo de institucionalização da história da educação como disciplina acadêmica e como campo de pesquisa histórica, observou o impacto das proposições e das concepções historiográficas da história cultural sobre a historiografia educacional brasileira. Na apreciação dessa autora, a nova historiografia educacional

[...] contrapôs-se ao padrão de produção historiográfica sobre educação, até então dominante, que começou a se configurar a partir de um pequeno, mas significativo, conjunto de trabalhos produzidos nas décadas de 1950 e 1960, consolidando-se a partir da década de 1970, quando se institucionalizaram no sistema universitário do país os primeiros Programas de Pós-Graduação em Educação (Carvalho, 2004Carvalho, M. M. C. (2004). Revisitando a historiografia educacional brasileira. In M. C. Menezes (Org.), Educação, memória, história: possibilidades, leituras. Campinas, SP: Mercados de Letras., p. 375).

Nas décadas seguintes (1980 e 1990), conforme indica o trabalho de Nunes e Carvalho (1993Nunes, C., & Carvalho, M. M. C. (1993). Historiografia da educação e fontes. Cadernos ANPEd, (5), 7-64.), haveria um alargamento do domínio historiográfico da história cultural enfatizando a materialidade dos processos de produção, de circulação e de apropriação, quer dos objetos culturais postos em circulação (livros, jornais, revistas),quer da redefinição ampliada de documento educacional (e, ainda, das práticas culturais em suas diferentes interseções)que produzem esses objetos ou que deles se apropriam.

Não obstante, é possível perceber as interseções entre políticas de renovação teórica e metodológica das pesquisas histórico-educacionais, em particular, bem como das práticas implementadas no âmbito de uma instituição universitária: a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Essa instituição universitária foi fundada em dezembro de 1958,mas somente nas décadas de 1970 e de 1980 foram estruturados, articuladamente, os segmentos da pesquisa, da pós-graduação e da iniciação científica.Nessa época,foi criado o seu primeiro curso de mestrado em educação (no ano de 1978), com área de concentração em tecnologia educacional,a que se seguiram11 cursos desse nível de pós-graduação (entre 1978 e 1985).

A articulação desses segmentos tornar-se-ia, na década de 1990, o ponto de partida para a elaboração do documento Diretrizes gerais da administração para o período de 1991-1995 (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1991Universidade Federal Do Rio Grande Do Norte [UFRN]. (1991). Diretrizes gerais da administração para o período 1991/1995 no que se refere à pesquisa, pós-graduação e à capacitação docente (Digitado). Natal, RN: UFRN. Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. ), em que se fazia referência à pesquisa, à pós-graduação, à iniciação científica e à capacitação docente, visando impulsionar a geração de conhecimentos interdisciplinares pelosuporte institucional de grupos de pesquisas, mediante as intersecções do coletivo, do interdepartamental e do interinstitucional.

Ao pesquisarem a documentação referente à institucionalização dos grupos de pesquisa na UFRN, Araújo e Ramalho (2004Araújo, M. M., & Ramalho, B. L. (2004). Apontamentos para uma história da política universitária científica da UFRN - o Centro de Ciências Sociais Aplicadas como objeto de investigação (1975-2003). Revista Educação em Questão, 21(7), 200-216.) mostram que, entre o ano de 1992 e 2003, foram criados 149 grupos de pesquisa: 26 deles pertenciam ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas e 13, ao Departamento de Educação.Entre esses,três grupos de pesquisa eram de história da educação, aprovados pelo Comitê Conjunto CNPq-UFRN: o ‘Grupo de Pesquisa Estudos Histórico-Educacionais; o Grupo de Pesquisa Educação, História, Práticas Culturais e o ‘Grupo de Pesquisa Gênero e Práticas Culturais: Abordagens Históricas, Educativas e Literárias .

Os coordenadores desses grupos de pesquisa (constituídos por professores pesquisadores, doutorandos, mestrandos e discentes de iniciação científica de diferentes áreas de conhecimento) elaboraram os seus projetos de pesquisas de história da educação, fundamentados, preferencialmente, nos pressupostos metodológicos da história cultural, com abertura para uma diversidade de objetos educacionais e educativos, recortes de temporalidades distintas e dilatadas. Ao tratar sobre as produções desses grupos de pesquisa de história da educação (instituídos em 1995), referenciadas pela historiografia, no âmbito da história cultural, e pela interdisciplinaridade, Morais, Paiva e Araújo (2001Morais, M. A. C., Paiva, M., & Araújo, M. M. (2001) A organização da pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte por meio do suporte institucional Bases de Pesquisa (Dossiê História da Educação). Educação em Revista, (34), 197-206. , p. 202) evidenciaram que

[...] os seus pesquisadores (professores orientadores, doutorandos, mestrandos e bolsistas de iniciação científica) tiveram o propósito de integrar projetos de temáticas afins, atentos não apenas aos aspectos macro societários mas também às especificidades advindas do regional, do local, do urbano, do rural, o que delinearam novas e fecundas parcerias das áreas de conhecimento das ciências humanas e sociais e ampliaram os objetos da investigação histórico-educacional.

O historiador francês Roger Chartier (1990Chartier, R. (1990). A história cultural: entre práticas e representações (Maria Manuela Galhardo, trad.). Lisboa, PT: DIFEL., p. 16-17) designou a historiografia da história cultural, tendo, como principal objeto de estudo, a correlação entre o eu e outro investigado, para, assim, “[...] identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler”. Não obstante, tal proposição demandava distintas abordagens e compreensões. Acerca das percepções do social para a historiografia dos Annales, Chartier (historiador entre os mais expressivos da história cultural na contemporaneidade) esclarece que estas

[...] não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outras, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (Chartier, 1991Chartier, R. (1991). O mundo como representação. Estudos Avançados, 11(5), 173-191., p. 17).

O historiador Peter Burke (1991Burke, P. (1991). A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989) (Nilo Odália, trad.). São Paulo, SP: Editora Universidade Paulista.), com a distância crítica do scholar britânico, entende o movimento dos Annales (que assim prefere denominar) como sendo constituído pelas fronteiras interdisciplinares, postulando os seus membros uma história cultural pela emergência de novos objetos de estudo: alfabetização, impressos, leitura e escrita, sistemas sociais e escolares, entre outros. Isso significa, portanto, a constituição de outros territórios de pesquisas para os historiadores: educação, psicologia, sociologia.A título de apreciação do que denomina escola dos Annales e/ou grupo dos Annales, Burke elogia a ousadia deles por promoverem o diálogo com outras áreas do conhecimento, assim se expressando

A mais importante contribuição do Grupo dos Annales foi expandir o campo da história por diversas áreas. [...] Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à colaboração [interdisciplinar] com outras ciências, ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à linguística, da economia à psicologia (Burke, 1991Burke, P. (1991). A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989) (Nilo Odália, trad.). São Paulo, SP: Editora Universidade Paulista., p. 126-127).

A propósito da história da educação na interseção com a historiografia dahistória cultural e intercedida mediante os estudos, no tempo e no espaço, do fenômeno educativo, Castanho (2011Castanho, S. (2011). História cultural e educação: questões teórico-metodológicas. In L. Xavier, E. Tambara & A. C. F. Pinheiro (Org.), História da educação no Brasil: matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória, ES: EDUFES.) indica que o trabalho histórico da educação, necessariamente, abarcaria

[...] as práticas predominantemente escolares [isto é, com que se vivia no cotidiano escolar, a realidade escolar, o ser da escola, os saberes que nela se produziam e reproduziam, o currículo escolar, a avaliação do aprendizado, o significado do tempo, o calendário escolar, as festividades, a disciplina como forma de controle] da educação, suas representações (o pensamento educacional, as propostas educacionais) e a regulamentação dessa atividade (legislação educacional, políticas educacionais) em suas transformações no espaço e no tempo (Castanho, 2011Castanho, S. (2011). História cultural e educação: questões teórico-metodológicas. In L. Xavier, E. Tambara & A. C. F. Pinheiro (Org.), História da educação no Brasil: matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória, ES: EDUFES., p. 129).

O presente trabalho reflete acerca da produção historiográfica da educação mediante os pressupostos teórico-metodológicos no âmbito da história cultural e de sua escrita historiográfica, principalmente, constitutiva de projetos de pesquisas de grupos nacionais e internacionais de história da educação. Em outras palavras, o propósito aqui é analisaras situações de produção do conhecimento da história da educação e seus fundamentos, para, assim, extrair as interpretações históricas que elas indiciam. Para isso, o trabalho está organizado em dois planos: o plano dos estudos da história cultural que antecederam e sucederam a formalização daquelas três bases de pesquisa de história da educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e o plano das práticas de pesquisa dos grupos de pesquisa de história da educação do Rio Grande do Norte, do Brasil e de Portugal.

Plano dos estudos da história cultural

A renovação da história da educação no Brasil é largamente consentânea das reflexões conceituais, metodológicas e historiográficas no âmbito da história cultural, basicamente por parte dos grupos de pesquisadores de instituições universitárias. Nesse sentido, é elucidativo o artigo de Nunes e Carvalho (1993Nunes, C., & Carvalho, M. M. C. (1993). Historiografia da educação e fontes. Cadernos ANPEd, (5), 7-64.), por debater as mudanças de práticas institucionais da pesquisa histórico-educacional (prioritariamente no GT-História da Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd), consubstanciadas em projetos de pesquisadores no início da década de 1990.

O GT-História da Educação [constituiu-se] como um importante fórum de debates, orientado, tanto pelo imperativo de conciliar uma postura de incentivo à inovação teórica, temática e metodológica, no campo da história da educação, quanto por um esforço de construção coletiva de referenciais críticos que permitam fazer avançar a reflexão sobre o conhecimento produzido e sobre a própria prática de pesquisa que o produz (Nunes & Carvalho, 1993Nunes, C., & Carvalho, M. M. C. (1993). Historiografia da educação e fontes. Cadernos ANPEd, (5), 7-64., p. 35).

Em 1995 (como antes evidenciado), os integrantes dos grupos de pesquisa de história da educação (aprovados pelo Comitê Conjunto CNPq-UFRN) elaboraram os primeiros projetos de pesquisas, referenciados pela historiografia da história cultural e da interdisciplinaridade.

O domínio para a produção do conhecimento da história da educação, mediante a apropriação dos referenciais teóricos da história cultural, levou à promoção conjunta dos três grupos de pesquisas de história da educação de um curso de extensão universitária (organizado em 02 módulos no ano de 1998), intitulado ‘Questões conceituais e metodológicas da história cultural: pertinência e intersecção com a história da educação’. Para ministrá-lo, foram convidadas as professoras Clarice Nunes (Universidade Federal Fluminense) e Marta Maria Chagas de Carvalho (Universidade de São Paulo).

O primeiro módulo (desenvolvido por Clarice Nunes) foi dirigido para a produção historiográfica de Roger Chartier. O segundo módulo (desenvolvido por Marta Carvalho) foi voltado para a reflexão dos conceitos de representação, de apropriação, de práticas culturais e de formalidades das práticas, com base no artigo ‘Historiografia da educação e fontes’.

Nesse ano de 1998, por ocasião da 50ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, integrantes do grupo de pesquisa ‘Estudos Histórico-Educacionais’ e do grupo de pesquisa ‘Gênero e Práticas Culturais: Abordagens Históricas, Educativas e Literárias’ ofereceram um minicurso intitulado ‘História da Educação Brasileira: Novas Abordagens e Novos Objetos de Estudos’.

No ano seguinte (1999), em face da agenda das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil (1500-1999) e dos 400 anos da fundação da cidade de Natal (1599-1999), os pesquisadores do grupo de pesquisa ‘Estudos Histórico-Educacionais’ (Departamento de Educação) e do grupo depesquisa ‘Cultura, Ideologia e Representações Sociais’(Departamento de Ciências Sociais) elaboraram um projeto de extensão universitária denominado ‘Ciclo de Estudos Sobre Memória e Heranças Culturais no Plano Global, Nacional, Regional e Local’. Aprovado esse projeto de extensão, foi convidada,para ministrar o primeiro ciclo de estudos, a professora doutora Carlota Josefina Malta Cardoso (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - campus de Araraquara).

Por sua vez, o currículo do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, registra que, no ano de 2000, a proposta de ‘Ateliês de Pesquisa’foi destinada aos mestrandos e doutorandos desse programa de pós-graduação, necessariamente pela interlocução da história cultural, da história da educação e da história cultural da geografia política. Assim, os professores dos departamentos de educação, de história e de geografia puseram em prática,por meio da docência na pós-graduação, o trabalho de interseção interdepartamental e interinstitucional. Havia, na proposta desse ‘Ateliê de Pesquisa’, a intenção prospectiva de uma formação interdisciplinar e/ou transdisciplinar dos pós-graduandos.

Em especial, para o grupo de pesquisa ‘Estudos Histórico-Educacionais’, o artigo ‘Historiografia da educação e fontes’, de autoria de Clarice Nunes e de Marta Maria Chagas de Carvalho (publicado, orginalmente, em Cadernos ANPEd, 1993Nunes, C., & Carvalho, M. M. C. (1993). Historiografia da educação e fontes. Cadernos ANPEd, (5), 7-64.),representa o princípio das leituras pertinentes à proposta de Roger Chartier relativa a uma história cultural da sociedade e de suas formulações teóricas no tocante aos elementos que a constituem, vez que são indissociáveis “[...] uma história dos objetos na sua materialidade, uma história das práticas nas suas diferenças e uma história das configurações dos dispositivos nas suas variações” (Nunes & Carvalho, 1993Nunes, C., & Carvalho, M. M. C. (1993). Historiografia da educação e fontes. Cadernos ANPEd, (5), 7-64., p. 47).

Para se alcançar essa proposição, fez-se indispensável uma atenção pormenorizada e circunstanciada das microalterações constitutivas da historicidade de objetos culturais e igualmente das práticas culturais nos planos local, nacional e das transversalidades dos quadros sociopolíticos mais amplos. A interlocução entre história cultural e história da educação enunciava, em primeiro lugar, o primado atribuído à instituição escolar,em suas interseções com a forma escolar e com as culturas escolares, como uma das instituições mediadoras da sociedade da escolarização.

Em segundo lugar, pela importância que adquire, para estudos sobre os usos dos bens culturais, a determinação rigorosa dos níveis de alfabetização e escolarização. Em terceiro lugar, pela produção maciça de informações sobre a história do impresso e da leitura, estudos cujos resultados não podem ser ignorados pela história da educação (Nunes & Carvalho, 1993Nunes, C., & Carvalho, M. M. C. (1993). Historiografia da educação e fontes. Cadernos ANPEd, (5), 7-64., p. 46).

O artigo de Nunes e Carvalho já postulava uma pedagogia de pesquisa, a princípio circunscrita no estudo do livro clássico de Roger Chartier (A história cultural: entre práticas e representações e do seu artigo ‘O mundo como representação’), que incidia no delineamento dos pressupostos teórico-metodológicos da história cultural, no objeto de estudo, nas fontes de pesquisa e na escrita narrativa. Para Nunes, antes de tudo, o estatuto narrativo é o que permite ao historiador

[...] realizar a tensão necessária entre a teoria e a empiria, [que] leva ao refinamento da análise e, ao mesmo tempo, ao encontro dos dilemas existenciais da vida. A narrativa é, em última instância, a expressão de um caminho possuído, intimamente possuído. Mas é também um formidável problema teórico. [...] A narrativa pode-se referir a práticas próximas, mas não idênticas, como a dos historiadores e demais cientistas sociais e a dos ficcionistas (Nunes, 1995Nunes, C. (1995). Articulação teórica-empírica na pesquisa histórica: notas de estudo. Série Documental, (6), 54-6., p. 60).

Ao mesmo tempo, a história cultural da sociedade, interessada nas formações humanas e sociais e/ou, como qualifica Castanho (2011Castanho, S. (2011). História cultural e educação: questões teórico-metodológicas. In L. Xavier, E. Tambara & A. C. F. Pinheiro (Org.), História da educação no Brasil: matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória, ES: EDUFES.), nas ‘teias simbólica’, construídas pelas sociedades humanas, instigava os integrantes do grupo de pesquisa ‘Estudos Histórico-Educacionais’ a promover um ciclo de estudos do texto de Chartier - Formação social e habitus: uma leitura de Norbert Elias. No seu conjunto, o projeto de Norbert Elias (A sociedade da corte e o processo civilizador: uma história dos costumes e a formação do Estado e civilização) é sociológico, mas o seu objeto de estudo, para Chartier, é

[...] inteiramente histórico, no sentido em que se situa (ou pode ser situado) no passado, mas a sua perspectiva em nada é histórica, uma vez que não se prende a indivíduos, supostos como livres e únicos, mas com posições que existem independentemente deles e com dependências que regulam o exercício da sua liberdade. Estudar não um rei em particular, mas a função de rei, não a ação de um príncipe, mas a rede de condicionamentos em que se inscreve: tal é o próprio princípio da análise sociológica segundo Elias, e a especificidade fundamental que a distingue da abordagem histórica (Chartier, 1990Chartier, R. (1990). A história cultural: entre práticas e representações (Maria Manuela Galhardo, trad.). Lisboa, PT: DIFEL., p. 91-92).

Nesse sentido, ‘a sociedade da corte’que estudou Norbert Elias é explicada, por Chartier (1990Chartier, R. (1990). A história cultural: entre práticas e representações (Maria Manuela Galhardo, trad.). Lisboa, PT: DIFEL.), como sendo uma particular formação social, assim como a feudal (relevo ao passado e aos privilégios) e a sociedade industrial (relevo ao futuro e à acumulação capitalista).

Todavia, era indispensável pôr à prova os dados empíricos, as hipóteses e os conceitos bem como o procedimento do método da comparação. Para Chartier (1990Chartier, R. (1990). A história cultural: entre práticas e representações (Maria Manuela Galhardo, trad.). Lisboa, PT: DIFEL., p. 119), o estudo da sociedade da corte e do processo civilizador (os costumes e a formação do Estado eda civilização) havia de ‘considerar’ os mesmos procedimentos que se observam com as obras clássicas, “[...] inscrevendo-as no seu tempo, escutando-as simultaneamente no presente”. Teria sido,pois, a combinatória desses procedimentos que decorreu um dos trabalhos dos pesquisadores desse grupo de pesquisa, entre outros, como veremos a seguir.

Plano das práticas de pesquisas de grupos de pesquisadores em história da educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

De fato, o estudo das obras de Norbert Elias fundamentoua análisedo corpus documental (assentos de batismo de crianças enjeitadas ou expostas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação,cartas dos Vereadores do Senado da Câmara de Natal, pareceres dos membros do Conselho Ultramarino do Estado Português e outros) de umtrabalho voltado para a história social da criança enjeitada, no Rio Grande do Norte, no século XVIII.

Por um lado, alicerçou-se, metodologicamente, no entendimento de Norbert Elias (1980Elias, N. (1980). Introdução à sociologia. Lisboa, PT: Edições 70., p. 109), quanto aos processos de “[...] dependências e interdependências que ligam as pessoas e que se situam entre os aspectos mais elementares da vida humana”. Por outro lado, no conceito de figuração do próprio Norbert Elias (2006Elias, N. (2006).Escritos & ensaios: 1 − Estado, processo, opinião pública(Sérgio Benevides, Antonio Carlos dos Santos e João Carlos Pijnappel, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), por se referir, expressamente, aos seres humanos em dada formação social.

Nesse século (XVIII), na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação(com sede em Natal), por preponderar uma cultura de vida colonial dependente e interdependente dos mecanismos políticos e jurídicos dos poderes públicos e dos poderes eclesiásticos com suas travas de impedimentos, a educação dos bons costumes (fora da escola) dacriança súdita (enjeitada, legítima, ilegítima, órfã, indigente e livre do cativeiro) figurou-se como o principal padrão de formação social para o exercício da cristandade, com particular atenção para a criança enjeitada.

A forma escolar de educar coletivamente, tal como qualificada por Vincent, Lahire e Thin (2001Vincent, G., Lahire, B., &Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47.), estava sendo, insistentemente, reclamada pelos súditos (por meio dosvereadores do Senado da Câmara de Natal, aos monarcas portugueses) para as crianças de pais legítimos e ilegítimos, incógnitos e filhos de criação, desde pelo menos o ano de 1728,paraser efetuada, concomitantemente, pelos poderes públicos e pelos poderes eclesiásticos. A transição para essa forma escolar foi,acima de tudo, em razão da aprovação da Lei Imperial, de 15 de outubro de 1827 (século XIX), celebrada como a legislação de natureza laica, que regulamentou a escolarização primária (para meninos e meninas), nacionalmente.

Em fins do século XIX e início do século XX, como destaca Valle (2002Valle, L. (2002). Bases antropológicas da cidadania brasileira: sobre escola pública e cidadania na Primeira República. Revista Brasileira de Educação, (19), 29-43.), o fortalecimento do projeto de construção nacional trazia,no seu âmago, a proposição dainstituição de modelos de cidadania, alhures vigentes, cuja concretização advinha daescola pública. Nesse sentido, por um lado, a educação comum para todos eraalmejadapara afastar, definitivamente, os entraves que se opunhamà solidificação da sociedade liberal republicana. Por outro lado, nas denominadas sociedades modernas, como mostra Valle (2002, p. 39), a equivalência entre educação e cidadania definia a própria humanidade: “[...] sem a educação, estar-se excluindo não só da sociedade, mas da própria espécie”.

Nos primeiros anos do século XX, a educação escolar como produto histórico de preceitos políticos de uma multiplicidade de agentes (educadores, políticos, autoridades educacionais) teria sido relativamente capaz de se estender a essas proposições pedagógicas e civis, principalmente nas circunstâncias históricas do Movimento de Renovação Educacional Brasileiro.

Portanto, teria sido na combinação das formulações teóricas da história cultural de Roger Chartiere do projeto de pesquisa ‘A Instituição da escola primária republicana no Brasil e no Rio Grande do Norte (1907-1930 e 1962-1966)’ que se procurou refletir sobre a efetividade das políticas de escolarização associadas com as modalidades das escolas criadas,especialmente no Estado do Rio Grande do Norte, nas primeiras décadas do século XX.

De fato, nas primeiras décadas do século XX, puderam-se constatar, mediante a militância do educador e políticorio-grandense-do-norte José Augusto Bezerra de Medeiros (deputado federal pelo Rio Grande do Norte (1915-1923; 1928-1937; 1945-1955), um dos principais idealizadores da criação da Associação Brasileira de Educação (1924), presidente dessa entidade (1943, 1957, 1960 e 1961), muitas das representações, apropriações e práticas educacionais dos denominados educadores escolanovistas, integrantes da Associação Brasileira de Educação.

Como governador do Estado do Rio Grande do Norte (1924-1927), José Augusto Bezerra de Medeiros empreendeu uma reforma da educação escolar com base no ideário da pedagogia Escola Nova e no método intuitivo, para, assim, ampliar, com alguma qualidade, as instituições educacionais do Estado em suas modalidades diversas. Dessa maneira,a sociedade industrial e democrática, o trabalho produtivo moderno, os serviços públicos eficientes (saúde, principalmente), as referências de cidadania e de educação escolar para todos (mulheres e homens), além dos preceitos escolanovistas, de conformidade com John Dewey (1859-1952), foram os fundamentais pressupostos de uma reforma da sociedade pela reforma da educação de base integral (mental, social, física e moral).

Conforme Araújo (1999Araújo, M. M. (1999). José Augusto Bezerra de Medeiros: político e educador militante. Natal, RN: EDUFRN - Editora da UFRN.), a máxima preocupação de José Augusto com a socialização completa das crianças (de ambos os sexos),em todas as maneiras de aprender, de viver e de encarar a vida moderna, tinha como preceito teórico-prático o ideário escolanovista de John Dewey (1978Dewey, J. (1978). Vida e educação (Anísio Teixeira, trad. e estudo preliminar, 10a ed.). São Paulo, SP: Edições Melhoramentos. , p. 16) quanto a sua proposição: “Vida, experiência, aprendizagem não se pode separar. Simultaneamente vivemos, experimentamos e aprendemos”.

Sem dúvida, a reforma da sociedade pela reforma da educação de base integral incorporava, quase como obrigatoriedade, a difusão de instituições educacionais de modalidades diversas. Como indicam Kuhlmann Jr. e Leonardi (2017Kuhlmann Jr., M., & Leonardi, P. (2017). História da educação no quadro das relações sociais. História da Educação, 21(51), 207-227.), o conjunto de instituições educacionais (entre países e no interior de cada país), destinado para escolarizar as crianças de classes sociais distintas e estruturado por modalidades escolares, já evidencia a ausência de um modelo único da escola moderna.

O estudo comparativo das modalidades escolares do Estado de São Paulo e dos Estados do Nordeste (Sergipe, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Bahia,de 1890 a 1930) concretizou-se mediante o projeto de pesquisa ‘Por uma Teoria e uma História da Escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada -1870-1950’(aprovado pelo edital universal MCT-CNPq n° 014/2010, coordenado pela professora doutora Rosa Fátima de Souza, da Universidade Estadual Paulista de Araraquara).

A ampla e variada legislação educacional desses Estados, naquele período (1890-1930), foi comparada mediante as suas propriedades gerais e suas particularidades, como orienta Nunes (2001Nunes, C. (2001). História da educação e comparação: algumas interrogações. In Sociedade Brasileira de História da Educação [SBHE]. (Org.), Educação no Brasil: história e historiografia. Campinas, SP: Autores Associados.), para se compreender as lógicas sobre as quais se estruturaram à luz de um pensamento global.As modalidades de escolas primárias públicas, implantadas nesses Estados brasileiros, foram analisadas segundo as teorizações de Guy Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin (2001Vincent, G., Lahire, B., &Thin, D. (2001). Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, (33), 7-47.), como constitutivas de determinada forma escolar de socialização, indispensavelmente associadas ao pertencimento da classe social da criança.

Nesse sentido, umas das principais conclusões desse estudo comparativo foi a de que,tanto no Estado de São Paulo quanto nos Estados nordestinos, a forma escolar de socialização primária predominante teria sido pautada,em relação a seus pressupostos sociopolíticos e educacionais, na estruturação da escola moderna no Brasil, com suas diferentes modalidades de escolas (escola modelo, grupo escolar, escola reunida, escola isolada, escola rudimentar, escola ambulante etc.), com suas lógicas socializadoras divergentes, além serem de invariavelmente ligadas à posição de cada criança na pirâmide das classes sociais. Especialmente, sob a ótica de Daniel Thin (2006Thin, D. (2006). Para uma análise das relações entre famílias populares e escolas: confrontação entre lógicas socializadores. Revista Brasileira de Educação, 11(32), 211-225., p. 223), a superioridade e a inferioridade das lógicas socializadoras educacionais, não por acaso, são “[...] produtos de relações sociais cujo equilíbrio de forças é desigual”.

Já no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945),o problema da educação de jovens e de adultos analfabetos sobre levou-se às autoridades políticas das denominadas novas e velhas nações.Na apreciação do educador brasileiro, Lourenço Filho (2000Lourenço Filho, M. B. (2000). O problema da educação de adultos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,81(197), 116-127. ), o jovem e o adulto iletrados eram um obstáculo ao progresso econômico e à fundamentação democrática de uma nação moderna.

A par dessa inquietação de Lourenço Filho, oproblema da educação de jovens e deadultos analfabetosde uma denominada nova nação (Brasil), comparativamente com uma denominada velha nação (Portugal), foi estudadomediante aCampanha de Educação de Jovens e Adultos (oficializada no Brasil no período de 1947 a 1949) e da Campanha Nacional de Educação de Adultos (oficializada em Portugal entre os anos de 1952 a 1954), por integrantes do ‘Grupo de Pesquisa Estudos Histórico-Educacionais’(Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e do Grupo de Políticas Educativas e Dinâmicas Educacionais do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (Universidade de Coimbra).

A intenção dos historiadores da educação (brasileiros e portugueses), ao optar pelo procedimento histórico-comparativo, erarefletir sobre a afirmação de Alves (2001Alves, G. L. (2001). O nacional e regional na história da educacional brasileira: uma análise sob a ótica dos Estados Mato-Grossenses. In Sociedade Brasileira de História da Educação [SBHE]. (Org.), Educação no Brasil: história e historiografia (p. 163-188). Campinas, SP: Autores Associados., p. 164), a propósito de o singular e o universal serem indissociáveis numa ordem social mundial. Essa ideia alicerça a compreensão de que “[...] os objetos de pesquisa só são suficientemente captados quando revelam essa indissociabilidade”.

No Brasil, o Plano Geral de Ensino Supletivo da‘Campanha de Educação de Adultos’(1947-1949) foi essencialmente coerente com as resoluções eas recomendações da Conferência da União Panamericana (1944), da Carta das Nações Unidas (1945), especialmente em observância às resoluções e às recomendações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), fundada em 16 de novembro de 1945, na cidade de Londres (Inglaterra).

Em Portugal, o Plano Nacional de Educação Popular que orientou a Campanha Nacional de Educação de Adultos (1952-1954) tinha, como principal referente,as experiências desenvolvidas em outros países no ‘combate’ ao analfabetismo (a exemplo do Brasil), as resoluções e as recomendações dos congressos e seminários internacionais da Unesco (a exemplo do VI Seminário Interamericano de Alfabetização e Educação de Adultos realizado em Petrópolis, Rio de Janeiro, em 1949) e, ainda, a literatura especializada em matéria de educação, divulgada pela própria Unesco, que circulava,com constância, mundialmente. Isso pelo fato, segundo Araújo, Alcoforado e Ferreira (2015Araújo, M. M., Alcoforado, J. L. M., & Ferreira, A. G. (2015). A educação supletiva nas Campanhas de Jovens e Adultos no Brasil e em Portugal (Século XX). Revista Educação em Questão, 53(39), 12-44.), de a nação portuguesa somente haver sido integrada como membro efetivo da Unesco, respectivamente, em 1955 (14 de dezembro de 1955) e em 1965 (11 de março de 1965).

Como mostra Nunes (1995Nunes, C. (1995). Articulação teórica-empírica na pesquisa histórica: notas de estudo. Série Documental, (6), 54-6.), a educação é, inequivocamente, um objeto compósito por possuir dimensões ideológicas, institucionais, econômicas, culturais e políticas (nacionais e internacionais). Pelo ângulo dos estudos históricos da educação, Cambi assim complementa:

A história da educação é, hoje, um repositório de muitas histórias, dialeticamente interligadas e interagentes, reunidas pelo objeto complexo ‘educação’, embora colocado sob óticas diversas e diferenciadas na sua fenomenologia. Não só: também os métodos (as óticas, por assim dizer) têm características preliminarmente diferenciadas, de maneira a dar a cada âmbito de investigação a sua autonomia/especificidade, a reconhecê-lo como um ‘território’ de investigação histórica (Cambi, 1999Cambi, F. (1999). História da pedagogia (Álvaro Lorencini, trad.). São Paulo, SP: Editora UNESP., p. 29, grifo do autor).

Afinal, a escrita histórica da educação, como repositória de muitas histórias, alicerça-sena existência social mediante a memória e a linguagem, principalmente. O intelectual Alfredo Bosi (1996Bosi, A. (1996). O tempo e os tempos. In A. Novaes (Org.), Tempo e história. São Paulo, SP: Companhia das Letras. , p. 28) traduz bem essa compreensão: “Memória e linguagem, no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível”. Isso faz pensar o convívio do historiador da educação com a diversidade de tempos e lugares, com a simultaneidade e a dessemelhançada existência social com as suas incompletudes e, ainda, com a constatação da universalidade nas singularidades das políticas de educação escolar institucionalizadas em todas as suas latitudes nacionais e internacionais.

Assim sendo, as pesquisas metódicas acerca das políticas da educação escolar no intercruzamento do nacional com o internacional, levadas a cabo pela confluência da teoria com a empiria, como chama a atenção Severino (2002Severino, A. J. (2002). Metodologia do trabalho científico (22a ed.). São Paulo SP: Cortez.), devem, na justa observação de Lourenço Filho (1946Lourenço Filho, M. B. (1946). O nacionalismo e o universalismo na cultura. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,7(21), 421-441. , p. 436, grifo nosso), observar, pela essencialidade do movimento sócio-histórico do capitalismo, a preponderância do universal sobre o nacional ou deste sobre aquele, bem como “[...] da força que o ‘social’dispõe e dos impulsos históricos pelos quais opera”.

É no âmbito dos projetos ‘Ensino Secundário no Brasil em Perspectiva Histórica e Comparada (1942-1961’, aprovado pela chamada Universal 01/2016), e ‘A Educação de Mulheres ao Longo dos Séculos XIX e XX (Brasil e Portugal’, aprovado pela chamada Universal MCTIC/CNPq nº 28/2018), que vigoram estudos para os integrantes do grupo de pesquisa ‘Estudos Histórico-Educacionais’, que visam apreender as políticas nacionais de educação primária e secundária no intercruzamento com as políticas de internacionalização dominantes em cada época.

A operação historiográfica que provém da confluência da teoria (formulações teóricas de Roger Chartier e de Michel de Certeau no tocante às práticas de apropriações) com a empiria (recomendações dos Seminários Interamericanos de Educação Primária e de Educação Secundária, os discursos das autoridades políticas e educacionais, os projetos de legislação) transparece nas formulações educacionais pari passo com a constituição das políticas de internacionalização da educação na esfera da intervenção do Estado (ensino público, por exemplo) e da sociedade (ensino privado, por exemplo).

Conclusão

Nicolau Maquiavel, em uma carta que escreveu para o amigo Francesco Vettori (datada de 10 de dezembro de 1513), discutia a gênese de O Príncipe, obra clássica que fundou a ciência moderna da política. Em uma das passagens do referido texto, esse pensador assim se expressa:

Diz Dante [Alighieri], não se faz ciência sem reter o que se entendeu, eu anotei aquelas coisas que ia fazendo cabedal durante a conversação, e compus uma obrinha, De principatibus, onde me aprofundo quanto posso nas cogitações dessa matéria, disputando o que é um principiado, de que espécie sejam os estados, como se adquirem, como se mantém, porque se perdem (Maquiavel [1513] apud Bosi, 1996Bosi, A. (1996). O tempo e os tempos. In A. Novaes (Org.), Tempo e história. São Paulo, SP: Companhia das Letras. , p. 30).

Uma constatação histórica: a produção do conhecimento científico já aparece anunciada na carta de Maquiavel (nascido no século XVI), que se refere a Dante Alighieri, nascido no século XIII (1265-1321). Como se percebe, em Maquiavel, conhecer e dialetizar sobre o outro (o que é um principado, de que espécie são os Estados, como se adquirem, como se mantêm, porque se perdem)é, essencialmente,decorrência da sensibilidade para com a cultura científica.

No século XX, no que concerne às exigências do exercício da articulação teoria e empiria, assim refletia Nunes (1995Nunes, C. (1995). Articulação teórica-empírica na pesquisa histórica: notas de estudo. Série Documental, (6), 54-6., p. 55): nos momentos iniciais da pesquisa, o historiador “[...] já lida com intuições, pré-noções e primeiras aproximações na construção do objeto de estudo, que desafia o seu entendimento de muitos modos e o obriga a lidar com aspectos heterogêneos, interrogando o real [...]” na interlocução com o tempo histórico humano, político e social.

No reencontro do tempo passado com o tempo presente situa-se, invariavelmente, o trabalho do historiador que o constrói pela memória e a linguagem escrita, mas que, no seu desenrolar, não dispensa o tributo ao deus Chronos (deus do tempo cronológico, por excelência). Se assim for, faz-se percebido, segundo Bosi (1996Bosi, A. (1996). O tempo e os tempos. In A. Novaes (Org.), Tempo e história. São Paulo, SP: Companhia das Letras. , p. 32), “[...] que somos hoje a memória, viva ou entorpecida, do ontem e do anteontem e o prelúdio tateante do amanhã”.

Sem dúvida, no final do século XX (1998 e 1999), com a formalização dos grupos de pesquisas em história da educação, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e, igualmente, em outras instituições universitárias, a pesquisa histórica coletiva e interdisciplinar sobre a educação (no sentido estrito e amplo) deriva-se,principalmente, da matriz historiográfica da história cultural, com atenção às fronteiras dos fenômenos locais, estaduais, nacionais e internacionais.

Como antes visto, a prática de pesquisar e de produzir conhecimentos históricos coletivamente foi deveras requisito para a formalidade dos grupos de pesquisas de história da educação nos planos nacional e internacional. Nisso, havia um convite para uma cultura acadêmica da colegialidade, intermediada por interações humanas recíprocas em razão de projetos associados, simultâneos, institucionais e interinstitucionais.

Não por acaso, os historiadores da educação, na interlocução com os postulados associativos, conjugados a princípios éticos, além das sociabilidades acadêmicas e intelectuais em curso, levaram a efeito a fundação da Sociedade Brasileira de História da Educação [SBHE], no dia 28 de setembro de 1999, durante a 22ª Reunião da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd (realizada em Caxambu - Minas Gerais, de 26 a 30 de setembro de 1999). Por volta de junho de 2001, a sua primeira diretoria lançava a primeira edição da Revista Brasileira de História da Educação, órgão oficial da SBHE.

O século XXI preserva, do século XX, as interações institucionais dos grupos de pesquisas, cidadelas de produção e de renovação do conhecimento histórico e científico em educação, mediante os fundamentos teóricos, conceituais e metodológicos em diálogo com um corpus documental, perpassado de permanências e de mudanças.

Nessa direção, a produção do conhecimento da história da educação, em consonância com os referenciais teóricos da história cultural, prossegue visando à reflexividade das confluências entre história e educação, entre filosofia e vida escolar e entre sociologia e conflitos ideológicos, por intermédio dos diálogos entrecruzados de historiadores da educação.

O historiador Fernand Braudel (1992Braudel, F. (1992). Reflexões sobre a história (Eduardo Brandão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 357) observou que a mudança tende a aderir à não mudança e mais ainda: “[...] segue as fraquezas desta, utiliza suas linhas de menor resistência. Há de um lado, o que se move, do outro lado o que se obstina a permanecer”. Por isso mesmo, esse historiador francês presume o quão é irrisório dizer que o homem faz a história, ele a sofre.

Observando tal princípio, os grupos de pesquisas de história da educação dos projetos ‘Ensino Secundário no Brasil em Perspectiva Histórica e Comparada (1942-1961)’ e ‘A Educação de Mulheres ao Longo dos Séculos XIX e XX no Brasil e Portugal’avançam nos seus estudos pelas fronteiras epistemológicas entre história e educação, pensamento educacional e práticas escolares e entre ideias filosóficas e realidade sociológica,doravante pela pertinência do tempo narrativo eivado de permanências e de diferenças, relativas às próprias permanências e às mudanças. E nem se vislumbra diferente perspectiva, afinal, a escrita histórica é uma escrita interminável para o historiador, como lembra Duarte (1997Duarte, R. H. (1997). Fronteiras da história: considerações introdutórias. Educação em Revista, (26), 15-22., p. 20): “O historiador não terá descanso: ele deverá estar disposto a recomeçar [sempre], já que o saber não é necessariamente acumulativo, devido seu caráter descontínuo”.

Não é outra a tônica deste artigo: os grupos de pesquisas de história da educação apresentam-se, para as instituições universitárias, nesse laborioso tempo de internacionalização, como produtores do conhecimento da história da educação com o habitual espírito crítico,científico e ético.Mesmo porque é difícil despojar a educação e/ou as políticas educativas mundiaisdas suas ambiguidades humanas, sociais e políticas.

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  • 2
    Como citar este artigo: Araújo, M. M. de.As cidadelas das pesquisas de história da educação no Brasil.(2019). Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e085
  • 3
    Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2019
  • Aceito
    16 Jul 2019
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