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Religião, compadrio e hierarquia social: faces da monarquia portuguesa de Antigo Regime em Goiás (séculos XVIII-XIX)

Religion, godparenting, and social hierarchy: facets of the Ancien Régime Portuguese monarchy in Goiás, Portuguese America (eighteenth and nineteenth centuries)

Religión, compadreo y jerarquía social: rostros de la monarquía del antiguo régimen en Goiás (siglos XVIII-XIX)

RESUMO

Referente à Vila Boa de Goiás de meados do século XVIII até a terceira década do século XIX, o artigo se baseia na hipótese de que os ataques de índios hostis interferiram decisivamente nas relações e redes de compadrio entre senhores e seus escravos de origem africana. Pautada na ideia de que hierarquia, autogoverno, escravidão e disciplina católica compunham os pilares da monarquia pluricontinental portuguesa na América, cujos ecos ressoaram no início do império do Brasil, conjunturas de instabilidade política e de conflitos geraram uma configuração própria à escravidão em Vila Boa de Goiás. Para realizar o estudo, cruzam-se registros de batismo com documentos político-administrativos.

Palavras-chave:
hierarquias; disciplina católica; indígenas; escravos; sociedade

ABSTRACT

This article, which discusses the Vila Boa de Goiás during the mid-eighteenth century, argues that attacks on hostile Indians had a decisive effect on the relationships and godparenting networks among enslaved people of African origin and slave owners. The paper is based on the idea that hierarchy, self-government, slavery, and Catholic discipline constituted the foundations of the multi-continental Portuguese monarchy in America, whose echoes reverberated during the early years of the Brazilian Empire. We contend that the combination of political instability and conflict engendered a unique configuration with regards to slavery in Vila Boa de Goiás. The research for this study is based on cross-referencing baptismal records and administrative sources.

Keywords:
hierarchies; Catholic discipline; Indians; slaves; society

RESUMEN

Referente a Vila Boa de Goiás de mediados del siglo XVIII hasta la tercera década del siglo XIX, el artículo se basa en la hipótesis de que los ataques de indígenas hostiles interfirieron de manera decisiva en las relaciones y redes de compadreo entre amos y sus esclavos de origen africano. Partiendo de la idea de que jerarquía, autogobierno, esclavitud y disciplina católica formaban los pilares de la monarquía pluricontinental portuguesa en América, cuyos ecos resonaron al inicio del imperio brasileño, coyunturas de inestabilidad política y de conflictos generaron una configuración propia a la esclavitud en Vila Boa de Goiás. Para realizar el estudio, se cruza los registros de bautismos con documentos políticos administrativos.

Palabras clave:
jerarquías; disciplina católica; indígenas; esclavos; sociedad

Em 16 de janeiro de 1784, Tristão da Cunha Menezes, governador da capitania de Goiás, escreveu a Martinho de Melo e Castro, secretário da Marinha e Ultramar, explicando que a situação com os índios hostis, mormente os Caiapó, o levou a aumentar o contingente das companhias de pedestres. Quiçá, para melhor explicitar a situação, anexou os relatos os administradores dos aldeamentos de São José de Mossâmedes e D. Maria I.1 1 O aldeamento de São José de Mossâmedes foi construído durante a governança de José de Almeida Soveral e Carvalho, conhecido por barão de Mossâmedes, que governou Goiás entre 1772-1778; destinava-se aos Acroá. O de D. Maria I foi construído a mando do governador Luís da Cunha Menezes (1778-1783) e estava reservado aos Caiapó. O primeiro anexo foi redigido por João Gaudio Ley e, com data de 9 de dezembro do ano anterior, destinava-se ao alferes comandante José da Silva Maldonado de Eça, seu superior imediato. Ley relatou que, naqueles dias, pela manhã, chegaram ao aldeamento cinco casais com suas famílias alegando que queriam ficar por lá. Segundo o intérprete, alegavam medo pois “seus parentes estavam para se levantar”; embora com motivos para não acreditar em tudo o que ouvia, Ley “julgava ser mais verdade do que mentira” a notícia que o intérprete2 2 Na documentação é comum os intérpretes serem chamados de “língua”. Sobre os “língua” nos aldeamentos de Goiás, vide Dias (2017). dava sobre a proximidade de um levante. O entra-e-sai de índios o inquietava, pois nem todos viviam naquele aldeamento. Devido a frequência dos rumores, solicitou o envio de pólvora e chumbo, com urgência, pois estava sem guarnição. Em respeito à hierarquia, solicitou a seu superior que “ponha esta parte na presença de S.Exa. e ele determinará o que for servido”.3 3 Ofício do governador Tristão da Cunha Menezes ao secretário da Marinha e Ultramar. AHU_ACL_CU_008, Cx. 35, D. 2131.

O segundo anexo é datado de 5 de janeiro de 1784. A carta foi escrita pelo sargento José Luís Pereira ao capitão José Pinto da Fonseca e versava, sem floreios, sobre as condições do aldeamento D. Maria I onde era regente. Nas primeiras linhas justificou: “precisava relatar”. Ele disse que via os índios com muita “nocividade” por seus frequentes sumiços. Numa ocasião, seguindo seus rastros, descobriu que eles, a mando do intérprete, mataram o soldado Jacinto Gonçalves no sítio do Pary. E que “estiveram com maldade de se levantarem, por que no Rio da Fartura, da Aldeia de S. José, esteve uma grande maloca de emboscada e no Mato da Bocaina estava outra [...]”. Numa ocasião, indo ao rio se lavar, ouviu um tropel que se silenciou após pegar sua arma. Dias depois, uma índia o indagou se ele tinha algo que o livrasse dos perigos: “só tenho as minhas contas.” Ao questioná-la, ela respondeu que os índios estiveram para pegá-lo, mas não se atreveram e tentaram fazer o mesmo com outros que ele enviou.

Na carta, relatou que naquele aldeamento de D. Maria I, os Caiapó, recusando-se ao trabalho, diziam: “se quiserem, mandem os negros trabalhar”. Numa ocasião, mandando “a hum índio buscar um feixe de capim, respondeu-lhe o tal índio se o seu cavalo era Anta para criar cacho para eles comer e [...] estava prontos para o matarem na roça”. Ele inquietava-se, pois, o “língua é falso e eles, absolutos”. Não havia dia em que não matavam gado nas fazendas e “quando sucede encontrarem com os vaqueiros, logo se põem todos em franquia com seus arcos prontos”. Informações trazidas pelas índias Francisca e Mariana e outros rapazes leais, o levaram a concluir que nem no aldeamento, nem na vila havia segurança; por isso, solicitava uma guarnição de soldados. Caso contrário, “não só havemos de padecer, como também a Aldeia de S. José e toda sua circunferência.” Seu medo tinha fundamentos. Entre os Caiapó havia “600 e tantos homens de guerra”; no corpo militar, apenas 27 homens, quantidade insuficiente “para os sujeitar”; ademais, os Caiapó avisaram que uma “maloca” no sopé da Serra Dourada era suficiente para pôr Vila Boa, capital da capitania, abaixo.4 4 Idem.

Essas situações contribuíram para que o governador aumentasse a companhia de pedestres “ao estado completo de 178 praças de soldados para pôr 80 soldados naquela aldeia”. Dentre os soldados pedestres foram incluídos alguns índios Acroá que viviam no aldeamento de São José. Foram escolhidos por serem inimigos dos Caiapó e por reconhecerem “com mais facilidade alguma traição” e, também, por muitos receberem soldo.5 5 Idem.

Os relatos do sargento Pereira e do capitão João Gaudio Ley e as decisões do governador Tristão da Cunha deixam entrever que a capitania de Goiás já era parte da monarquia pluricontinental,6 6 A América lusa é compreendida aqui como parte do reino português a cujas normas de Antigo Regime (catolicismo, monarquia e autogoverno) acresceu-se a escravidão. Resumidamente, com variações espaço-temporais, incluiu, além de escravos e senhores, indígenas e aqueles com (ante)passado escravo (FRAGOSO 2017; 2018; FRAGOSO; GUEDES; KRAUSE, 2013). uma sociedade com traços de Antigo Regime (FRAGOSO, BICALHO & GOUVEA, 2001FRAGOSO, João. Poderes e mercês nas conquistas americanas de Portugal (séculos XVII e XVIII): apontamentos para as relações centro e periferia na monarquia pluricontinental lusa. In: FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno G. (orgs.). Um reino e suas repúblicas no atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 49-100.) e escravista na região central da América portuguesa. Na própria documentação percebem-se suas bases: hierarquia, disciplina católica,7 7 Tais pressupostos condiziam com a Segunda Escolástica, cuja matriz era o pensamento medieval, sustentado no pensamento judaico-cristão e no aristotelismo. Suas principais características eram uma concepção corporativa de sociedade, cuja ordem “natural” incluía todas as coisas e seres. De um ponto de vista político e social, promovia a imagem de uma sociedade hierarquizada, “naturalmente ordenada”, na qual direitos e deveres constituíam a lógica de seu funcionamento. Ver: Hespanha e Xavier (1998, p. 121); Hespanha (2010). Preceitos da Segunda Escolástica são primordiais entre os estudiosos de Antigo Regime nos trópicos, com maior ênfase nas obras de Fragoso. governo de base corporativa, autogoverno local. O fluxo das correspondências aponta a hierarquia: o administrador dos aldeamentos enviava uma carta ao capitão, que a relatava ao governador, que a enviava ao secretário que deve tê-la recebido, mas não sabemos se a repassou ao Conselho Ultramarino ou ao rei. Qual a resposta? Não obstante haver um rei, nada sugere um pronunciamento de além-mar. Logo, a solução tinha que ser local. O autogoverno, além de evidente, era imprescindível numa capitania tão distante. Em consonância com os preceitos pombalinos, José de Almeida Soveral e Carvalho (1772-1778), Luís da Cunha Menezes (1778-1783), Tristão da Cunha Menezes (1783-1800) incluíram em suas estratégias de governança, índios e pardos.

Àqueles pilares acrescem-se a escravidão e seus vocabulários sociais8 8 Sobre vocabulário social relativo à cor, entre outros, vide Guedes (2015; 2014; 2006). típicos e conhecidos até pelos Caiapó: negro era sinônimo de escravo, se quiserem, mandem os negros trabalhar. Como afirmou Schwartz: “ser índio, em alguns casos, era uma maneira de não ser negro” (2003, p. 40).9 9 No “Tratado Proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se conservaram levantados” ficou célebre a condição que seus escravos crioulos propuseram: “se quiser comer mariscos mande os seus pretos Minas” (SCHWARTZ, 2001, p. 119). Evidentemente, isso expõe a existência de hierarquias, inclusive dentro das senzalas. Sobre elites nas senzalas, vide Fragoso (2014). Ser pardo também era muito diferente de ser negro. Aliás, distinções de qualidades de cor (GUEDES, 2017GUEDES, Roberto. Senhoras pretas forras, seus escravos negros, seus forros mulatos e seus parentes sem qualidades de cor (Rio de Janeiro no limiar do século XVIII): uma história de racismo ou de escravidão? In: DEMETRIO, Denise; SANTIROCCHI, Ítalo; GUEDES, Roberto. Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos. (Brasil e Angola - séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. p. 109-123.), ocorriam costumeiramente entre egressos do cativeiro. Tributária de concepções em que a ordem do mundo era divina, a escravidão ressoava como castigo contra os homens, uma punição “que resultante do pecado ou de um defeito natural da alma que impedia uma conduta virtuosa” (DAVIS, 2001, p. 109). Nessa concepção, vigente deste a Idade Média, negro aludia àquele a quem a graça divina não alcançara (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, Anderson J. M. de. A Igreja e a escravidão africana no Brasil Colonial. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. V. 10, n. 18, jul-dez. 2007.). Catequisados, não é difícil imaginar por que até os Caiapó classificavam.

Considerando tais aspectos e o contexto bélico na capitania de Goiás, certas marcas - como grande distância das capitanias litorâneas e de outros centros de poder, cercada de índios hostis por todos os lados, escravista de ponta a ponta e hierarquizada - ao que parece, produziram relações de proximidade entre senhores e seus próprios escravos via compadrio. Sem excluir a violência intrínseca à escravidão, mas também sem tomar a transformação do escravo em afilhado como engodo, este artigo apresenta resultados de uma pesquisa cujo escopo é abordar o papel da presença do indígena hostil na configuração da escravidão de origem africana. A freguesia de Vila Boa, capital da capitania de Goiás, na região central da América portuguesa, é o epicentro desta exposição.

O cruzamento de diferentes tipos documentais, como livros de registro de batismo de escravos, correspondência político-administrativa, atos dos governadores permite analisar se e como a presença indígena contribuiu para delinear especificidades nas relações senhor-escravo em Goiás. Identificar a interação entre diferentes indivíduos em seu mundo de escolhas possíveis e “usos estratégicos das normas sociais” (LEVI, 1998LEVI, Giovanni. Comportamentos, recursos, processos: antes da “revolução” do consumo. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Trad: Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 203-224., p. 223) foi possível com o emprego da micro-história italiana (LEVI, 2019LEVI, Giovanni. Frail Frontiers? Past and Present, v. 242, Issue Supplement-14, p. 37-49, nov. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1093/pastj/gtz037. Acesso em: 6 jan. 2020.
https://doi.org/10.1093/pastj/gtz037...
; 2009LEVI, Giovanni. Reciprocidade mediterrânea. In: OLIVEIRA, Mônica R. de; ALMEIDA, Carla M. de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. p. 51-86.; 2000LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.); a isso agrega-se o cruzamento onomástico (GINZBURG, 1991GINZBURG, Carlo. O nome e o como. In: A micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.). Isso permitiu trazer à tona o estreitamento dos laços entre senhores e escravos a ponto de tornaram-se padrinhos e afilhados. O catolicismo e suas bases afetivas ampliam a percepção de que papeis sociais (senhores e escravos) poderiam se diluir em padrinhos e afilhados sem que as hierarquias sociais - de base escravista - caíssem por terra.

Administrando a capitania e suas gentes: católicos e gentios

Os recorrentes descimentos e bandeiras que saíram de São Paulo em busca de índios levaram ao achamento de ouro na região das Minas Gerais por volta de 1692 e no Mato Grosso em 1719. Em Goiás, foi encontrado abundantemente por volta de 1725, fez surgir vários arraiais: Barra, Ferreiro, Anta, Ouro Fino, Santa Rita e Pilar. O primeiro arraial, SantA’nna, tornou-se vila, Vila Boa, em 1736. Doze anos depois, as Minas de Goiás foram desmembradas da de São Paulo. Antes do ocaso da primeira metade do Setecentos, também ao norte - atual Estado do Tocantins - havia vários arraiais (SALLES, 1992SALLES, Gilka V. F. de. Economia e escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992.).

Segundo Silva e Souza, (1967, p. 12), a descoberta do ouro fez “[soar] ao longe a notícia desta grandeza, e a fama ainda lhe deu os acréscimos que costuma, correram de outras capitanias os homens, e em menos de dois anos era imenso o povo que se havia ajuntado [...]”.10 10 Após concluir seus estudos religiosos na Europa, chegou a Goiás em 1790, aos 26 anos de idade. Apesar do sangue “plebeu”, sua formação e contato com o mundo europeu o marcaram indelevelmente. Militar, presbítero secular do Hábito de São Pedro, prelado da prelazia de Goiás, Silva e Souza foi professor de latim e retórica. Não foram, porém, as obras literárias que projetaram esse padre militar como fonte para pesquisadores. Silva e Souza tornou-se leitura obrigatória por suas “Memórias.” Uma escrita em 1812, a outra em 1832 (LEMKE, 2012, primeiro capítulo). É certo que eram milhares. Mas é difícil estimar a quantidade de almas que se deslocou para cá pois, nos primeiros tempos, a cada vez que os veios se exauriam, mineiros arrastavam suas gentes, escravos e camaradas para regiões ainda não exploradas, formando novos povoados nos quais nem sempre permaneciam. Às vezes por descobertas de novos veios. Outras, por ataques de indígenas hostis.

Exagerando ou não, Gregório da Dias da Silva, superintendente-geral das Minas de Goiás, relatou à Coroa, em 1735, que o arraial Pilões foi abandonado. Segundo ele, os moradores temiam que a eles ocorresse o mesmo que ao bastardo Estevão Cabral da Costa. Este infeliz teve a carne do corpo raspada até o osso, mantendo-se apenas a cabeça intacta.11 11 Carta do Superintendente das Minas de Goiás, Gregório Dias da Silva, AHU_ACL_CU_008, Cx. 1, D. 17. O relato criava um cenário de terror para quem o lia e ouvia. E não foi o único.

Outro caso que revela que a população, dispersa no imenso território, tinha motivos para viver com medo sucedeu em 1755. “Uma grande multidão do gentio cayapó” surpreendeu Manuel da Costa Portela enquanto administrava seus escravos “no útil exercício de minerar”. No Córrego da Onça, junto com Portela, foram mortos 43 escravos seus. À pobre viúva, Dona Rita Rodrigues das Neves, só restou apelar à graça real para se livrar dos cobradores que insistiam em vexá-la em praça pública.12 12 Requerimento de Rita Rodrigues Neves e os órfãos seus filhos, AHU_ACL_CU_008, Cx. 18, D. 1072.

A viuvez de dona Rita ocorreu no tempo em que Dom Álvaro Xavier Botelho de Távora, o Conde de São Miguel (1755-1759), governou Goiás. Este, numa de suas cartas ao então secretário do Estado de Negócios Estrangeiros, Sebastião José de Carvalho e Melo, reclamou que o problema da capitania era a falta de punição ao gentio bravo. Reunido com seus ministros, camaristas e “demais povo” em maio de 1756, rememorou que o sertanista Wenceslau Gomes da Silva rechaçou os Caiapó de tal forma em Natividade, norte da capitania, que “chegou hum córrego a correr mais sangue, do que água, matando-lhe as molheres, só perdoando os inocentes”.13 13 Sobre essa guerra, vide também Apolinário (2006) e Dias (2017). Preferiu não decidir sozinho sobre fazer guerra justa e, quem sabe, dar início a outra matança: “Como havemos de salvar huma ordem de El Rey, que totalmente nos prohibe este genero de guerra, Reforçada esta prohibição com huma declaração Pontificia a favor da Liberdade dos mesmos Indios?” 14 14 Arquivo Histórico Estadual de Goiás (AHEGO), Livro de Correspondências da Secretaria do Governo da Capitania de Goiás 1756-1777, f. 9.

O conde referia-se, certamente, à política pombalina de incorporação de indígenas que, além de preconizar sua liberdade, valorizava casamentos com e entre indígenas e o governo leigo dos índios nas aldeias. Suas observações deixam entrever que o nascente Diretório dos Índios começava a lançar suas bases sertões adentro.15 15 Sobre o Diretório dos índios, ver Perrone-Moisés (1992). Seu dilema incluía uma questão moral: “como me livraria eu de me fazer responsável à Coroa, e a Igreja de tomar sobre mim somente esta decisão [...]?”.16 16 AHEGO, Livro de Correspondências da Secretaria do Governo da Capitania de Goiás 1756-1777, f. 10. O governador tinha lá suas inquietações que, diga-se de passagem, eram pertinentes pois integrava uma sociedade permeada pela angústia com o castigo divino e a danação eterna. A monarquia católica pluricontinental se expressava aí de forma latente porque envolvia fé, serviço ao rei, escravidão e conquista, tudo ao mesmo tempo sendo (re)construído na capitania de Goiás em formação.

Alguns dos maiores aldeamentos foram construídos durante a governança de homens ligados à política pombalina. Um deles, indicado diretamente por Pombal, José de Almeida Soveral e Carvalho (o barão de Mossâmedes) (1772-1778) que, segundo Dias (2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás (1721-1832). Tese (Doutorado em História). Goiânia, UFG, 2017.), provavelmente, desenhou a planta daquele aldeamento. Em formato quadrangular, as casas de sobrado em cada canto serviam como torres de observação. De um lado, a capela; no lado oposto, bem em frente, a casa do governador (DIAS, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás (1721-1832). Tese (Doutorado em História). Goiânia, UFG, 2017., p. 63-65); metaforicamente, estavam, frente a frente dois sustentáculos da monarquia pluricontinental: a religião e o autogoverno local. O aldeamento de São José destinava-se aos Acróa, conhecidos por inimigos acérrimos dos Caiapó.

Embora os Acroá pudessem ser inconstantes aos olhos dos portugueses, as alianças catolicamente ritualizadas (casamento e compadrio) eram necessárias a fim de combater índios hostis. Não deve causar estranheza a mudança de lado dos indígenas, pois oscilações de escolhas de aliados e de inimigos faziam parte das culturas políticas indígenas (FERNANDES, 2006FERNANDES, Florestan [1952]. A função social da guerra na sociedade tupinambá. 3. ed. São Paulo: Globo, 2006.; FAUSTO, 1992FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manoela C. da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 381-396.). Porém, eram lidas como inconstância e traição política pelos portugueses, que operavam com uma cultura política assentada na fidelidade cristã. Além disso, reconheciam as vantagens da amizade com grupos indígenas para guerrear contra outros. Uma das motivações era a própria natureza. Dom Marcos de Noronha (1755) acreditava que a única forma de vencer índio bravo era com “índio manso”, pois brigavam com armas iguais. Os pedestres e soldados faziam toda a passagem pelos caudalosos rios a nado. Com isso, as armas de fogo tornavam-se inúteis diante do inimigo.17 17 Carta do [governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha, ao rei [D. José], sobre os ataques dos índios Acroás aos moradores, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 466. A derrota era certa nesses casos.

Entrava governador, saía governador e muita tinta foi gasta para informar à Coroa sobre as medidas tomadas, a exemplo do relatório que abre este artigo. Várias vezes recorreu-se à contratação de sertanistas. Estes vinham acompanhados de grupos indígenas. Por volta de 1744, Antônio Pires de Campos saiu de Cuiabá com sua gente Bororo para deter os Caiapó em Goiás (DIAS, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás (1721-1832). Tese (Doutorado em História). Goiânia, UFG, 2017.). Nas Minas Gerais, aquele sertanista propunha que, sendo impossível reduzi-los ao grêmio cristão, devia-se “aterra-los à força de ferro e fogos quando rebeldes [...] ou arruiná-los de todos para que vivam sossegados os moradores [...]” (AMANTINO, 2006AMANTINO, Márcia. As Guerras Justas e a escravidão indígena em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Varia História [online], v. 22, n. 35, p. 192, 2006., p. 192). Assim, entre conflitos e alianças, governava-se os sertões de Goiás.

A consonância com os preceitos pombalinos, foi sistemática desde que Mossâmedes iniciou seu governo. Bandeiras de paz, distribuição de ferramentas, promessas de proteção começaram a dar seus frutos em novembro de 1774. Naquele ano, pouco após lançarem-se as bases do aldeamento de S. José, os Acroá entraram em Vila Boa. Com pompa, esmero e “sob o amparo do Altíssimo”. No palácio, estavam o governador, a “Nobreza Militar, e popular, e na praça a Luzida Companhia dos Pardos Forros”. Não poderia ser maior a alegria, afinal, a paz parecia reinar. Thomás de Souza, com o exagero dos que narram os feitos dos governadores, registrou: “[...] muitas Pessoas, que com as mãos Levantadas aos Ceos Louvando a Deos, choravão de gosto, e dizião = Feliz governo em cujo tempo vemos Creaturas tão feras humilharem-se [...]”. Naquele dia, o governador consagrou o maioral indígena capitão de suas próprias gentes prometendo que os governaria com “amor, charidade e Justiça”. Após a mercê, empregando o princípio da hierarquia e do privilégio, apadrinhou duas crianças Acroá.18 18 SOUZA, Thomaz de. Arquivo da Biblioteca Nacional, doravante BN, coleção de notícias da Capitania de Goiás vindas às mãos de particulares assim por diários e cartas, como por cópias de papéis de ofício, e deduzidas por sua ordem (1772-1777). Vila Boa de Goiás. Loc. 07,4, 070, p. 68-69.

“Senhores da terra” e suas mulheres participaram das cerimonias de casamentos e batismos. Além de ritualizarem a lealdade política ao governador e ao rei, reiteravam a crença de que todo aquele amor com o qual Deus criou o mundo devia ser retribuído com a “obediência amorosa (ou obediência voluntária) [...] tão fortemente sentida que se confundia com o amor de Deus ou daqueles que faziam as suas vezes na terra - os pais, os curas da alma, os governantes” (HESPANHA, 2011HESPANHA, Antônio M. Introdução: os poderes, os modelos e os instrumentos de controle. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da vida privada em Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. p. 12-31., p. 13).

No entanto, a boa relação com os Acroá durou pouco. Dois meses depois, teriam intentado um levante, rapidamente castigado. Entre os quatro enforcados estava o próprio cacique. Numa típica punição pública, exemplar e pedagógica (LARA, 1988LARA, Silvia H. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.) de Antigo Regime, os quatro tiveram suas cabeças cortadas dispostas em altos postes ao redor do recém-criado aldeamento de São José. A fidelidade do índio responsável por delatar a “conjuração” foi compensada com o posto de cabo.19 19 Ibidem, Loc. 07,4, 070, f. 72. A lógica da retribuição por serviços e lealdades continuava bem e redundava no “obrigado”.

Condizente com a política de alianças, os Acroá, em 1774-75, eram inimigos e foram enforcados; mas, em 1784, integravam as tropas de pedestres dos portugueses. Bem ou mal ajustados, indígenas compunham a monarquia pluricontinental portuguesa como súditos que, aos olhos das autoridades, deviam ser vassalos fiéis. O problema era classificá-los com um vocabulário político que empregava termos diversos: índio, caiapó, acroá, branco, preto, negro, pardo etc. A única certeza foi a proibição do Diretório dos Índios de se chamarem os índios de negros, pois este termo era reservado aos escravos. Lembremos do que os Caiapó disseram ao sargento Pereira: “se quiserem, mandem os negros trabalhar.” Em Goiás do século XVIII, portanto, diferente de São Paulo do século XVII, os índios não eram negros, muito menos “negros da terra” (MONTEIRO, 1994MONTEIRO, John. Negros da Terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.).

Contando e classificando gentes da freguesia de Vila Boa

Nesse universo populacional, apesar de não ser possível aferir a presença indígena em termos numéricos, nem por isso deixaram de ser importantes. Pelo contrário. A governança das gentes nos sertões tinha-os como tema recorrente, conforme demonstrado. De um lado, os que buscavam aval régio para as guerras justas; de outro, os que os incorporavam ao seio da cristandade, ao mundo do Antigo Regime católico, mediante batismos, apadrinhamentos e casamentos.20 20 Casamentos entre portugueses e indígenas moldaram aspectos políticos em São Paulo; uma elite mameluca nasceria naquela sociedade ainda no século XVII (GODOY, 2017).

Segundo a “Notícia Geral da Capitania de Goiás”, escrita por ordem do então governador Luís da Cunha Menezes (BERTRAN, 1997BERTRAN, Paulo. Notícia geral da Capitania de Goiás. Tomos I e II. Goiânia: Editora da UCG, Editora da UFG; Brasília: Solo Editores, 1997.), em 1783 a freguesia de Vila Boa teria pouco mais de oito mil almas. O recenseador daquele ano classificou a população em brancos, pretos e pardos, priorizando a condição jurídica, condizente com uma sociedade escravista de antigo regime impactada pela mineração.

Quadro 1:
Qualidade de cor e condição jurídica da população (Freguesia de Vila Boa, 1783)

Os cativos perfaziam 57% da população daquela freguesia, entre pardos e pretos. 43% eram sem condição jurídica especificada (livres ou forros, certamente). Só os pretos foram considerados forros perfazendo 7,4% (604) da população, e corresponderiam a 12,8% e a 24,4%, respectivamente, do contingente escravo e do livre (brancos e pardos). Pode-se dizer que para cada quatro brancos ou pardos livres havia um preto forro, e que para cada dez escravos havia um forro, ou que os pretos forros representavam cerca da metade da população livre, parda ou branca. Logo, para cada dois brancos, havia um preto forro, o mesmo para cada dois pardos.

Por sua vez, os 1.216 brancos eram 14,9% da população total, ou 25,6% da população escrava (um livre para cada quatro escravos). Eram pouco menos da metade do conjunto dos livres, ou, um pouco mais que o dobro do contingente forro. Os pardos livres atingiram 15,4% da população total, equivaliam a 26% dos escravos e, como os brancos, eram pouco mais do que o dobro dos forros. Não é possível saber na população escrava quantos eram pardos ou pretos, mas, entre livres e forros, os brancos representavam 39,4%, enquanto pardos livres e pretos forros eram, respectivamente, 40,9% e 19,7%.

Além de não citar negros naquele quadro, merece ser mencionado que, excluídos os escravos pardos, os demais pardos foram descritos sem alusão à sua condição jurídica, ainda que pudessem ser livres ou libertos. Este silêncio marcava, para os livres em geral e para os pardos em particular, uma diferença essencial. Provavelmente, os pardos eram naturais de Goiás ou de outras partes da América portuguesa. Pelo menos, havia quase o mesmo número de homens e mulheres entre os pardos, com pouca primazia para as mulheres. Este equilíbrio condiz com uma população que se repõe, principalmente, por reprodução natural.

O avesso disso se observa entre os forros. Considerando a atração da atividade mineradora, os pretos forros eram aqueles trazidos d’África. No grupo, o desequilíbrio demográfico mais acentuado em prol das mulheres confere com a historiografia que indica a prevalência de mulheres entre alforriados. Devia ter muitas pretas minas entre as forras.21 21 Sobre forras, especialmente as Mina, ver Oliveira (1979), Soares (2000) Furtado (2001; 2003), Faria (2001) e Paiva (2001). Preto só podia ser escravo ou forro, diferente de brancos e pardos. Ainda que entre estes últimos houvesse cativos, se livres ou forros, nem precisava ser dito. Lembremos que a capitania de Goiás era formada por pequenos núcleos populacionais dispersos, nos quais, em cada um, todo mundo se conhecia.

De acordo com a “Notícia Geral”, aquelas 8.159 almas estavam distribuídas em 1.184 “fogos ou casas”. Destas, 211 seriam ao norte do rio, 345, ao sul (referia-se ao Rio Vermelho, que cortava a vila); sítios e fazendas nos arredores somavam 630 (BERTRAN, 1996, p. 113). Ao fim e ao cabo, a população da capitania era muito menor do que a das Minas Gerais. Em 1821, às vésperas da independência do Brasil, em Goiás viviam cerca de 50.000 habitantes. Nesse contingente, estima-se que havia entre dez mil escravos por volta de 1735 e pouco mais de 19 mil em 1804 (SOARES, 2011SOARES, Márcio de S. Fronteiras hierárquicas na fronteira do Império: os homens pardos em Vila Boa de Goiás, c. 1778 - c. 1804. Anais do VEncontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2011., p. 3). Em Minas Gerais, a população cativa era 170 mil em 1819 (ALMEIDA, 1994ALMEIDA, Carla M. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana - 1750-1850. Tese (Doutorado em História). Niterói: UFF, 1994., p. 65).

O censo de 1783, como toda essa tipologia documental, se destinava à contagem populacional para informar sobre suas potencialidades econômicas, fiscais e militares (MARCÍLIO, 2000MARCÍLIO, Maria L. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700-1836). São Paulo: Hucitec, 2000.). Acresce-se a isso o desafio de criar uma listagem com todas as classificações sociais cotidianas, uma vez que uma tabulação demográfica almeja sintetizar informações. Assim, incluir cabras, mulatos e negros, entre outras qualidades de cor variava conforme o comportamento, o objetivo da fonte, o olhar do observador etc. Cotidianamente, essas classificações eram fluidas e o olhar do observador e a estima alcançada22 22 Sobre estima, ver Guedes (2007). eram fundamentais.

Por exemplo, o bacharel e capitão-mor Antônio de Souza Telles e Menezes, ao narrar à rainha a crescente distribuição de mercês, escreveu que pardos e pretos forros da infantaria viveriam soberbos. Os soldados da Cavalaria Auxiliar se achariam “tão influídos nas mesmas honras e privilégios que até querem isenção dos escravos para seus pajens” (BERTRAN, 1997BERTRAN, Paulo. Notícia geral da Capitania de Goiás. Tomos I e II. Goiânia: Editora da UCG, Editora da UFG; Brasília: Solo Editores, 1997., p. 40). Salvo algum exagero, Telles dá uma pista sobre quão hierárquica, prenhe de privilégios e igualmente de mobilidade social era aquela sociedade.

A questão era o espraiamento dessa população. Dispersos, era difícil contá-los. E proteger-se. A baixa densidade demográfica e a dispersão trouxeram implicações práticas. Chegar à vila não era fácil, o deslocamento do pároco às fazendas, idem. Diante disso, alguns engenhos e fazendas tinham seu próprio oratório que, a bem da verdade, resolvia muita coisa para além de ministrar sacramentos. Havia uma simbologia porque um oratório aumentava a proteção espiritual; era um cabedal nada desprezível, representava status social (CHAHON, 2008CHAHON, Sergio. Os convidados para a ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do Catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820). São Paulo: EdUSP, 2008.; SILVA, 2017SILVA, Michele H. P. da. Morte, escravidão e hierarquias na freguesia de Irajá: um estudo sobre os funerais e sepultamentos escravos (1730-1808). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2017.). Acresce-se o prestígio diante dos vizinhos que se tornavam clientes, afilhados, compadres que, por lealdade e subordinação, pegavam em armas (COSTA, 2013COSTA, Ana P. P. Potentados locais e seu braço armado: as vantagens e dificuldades advindas do armamento de escravos na conquista das Minas. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, p. 18-32, jan./jul. 2013.; LIMA, 2002LIMA, Carlos A. M. Escravos de peleja: a instrumentalização da violência escrava na América portuguesa (1580-1850). Rev. Sociol. Polít., Curitiba, n. 18, p. 131-152, jun. 2002.; FRAGOSO, 2001FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F; GOUVÊA, Maria de F. O Antigo Regime nos trópicos - a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 29-71.). Viver nestas vastíssimas regiões sem família, consanguínea ou espiritual, poderia ser, quando não inviável, difícil. Ainda mais com tanto índio hostil ao redor. Não custa lembrar o receio do sargento Pereira: caso os Caiapó atacassem, não sobraria muito da vila. Lembremos ainda de Dona Rita das Neves que perdeu seu marido e 43 escravos de uma só vez. Para os habitantes de Goiás, onde tudo era ermo, só capelas e Jesus salvavam. Aí, o parentesco entre senhores e escravos também era fundamental.

Com tanto a temer, não foi por acaso que templos eram construídos. Em 1751, Vila Boa já contava com a matriz dedicada à Senhora Sant’Anna; a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a de Nossa Senhora da Lapa e a de Nossa Senhora da Boa Morte. A estas foram acrescidas, na década de 1780, a Senhora das Barrancas e a Capela da Senhora do Carmo, ambas eretas por particulares. A quantidade de irmandades reforça que a sociedade da mineração se estruturava em torno da vida religiosa (MORAES, 2012MORAES, Cristina de C. Do corpo místico de Cristo. Goiânia: Editora da UFG, 2012.).

Aos viajantes do século XIX pareceu uma quantidade exagerada de templos. Austríaco e protestante, Johann E. Pohl acreditava que, em Vila Boa, a religião consistia na forma, não na essência (1976, p. 141). Certo é que, naqueles sertões da monarquia lusa, não havia arraial sem capela. Não havia aldeamento sem capela. E nem poderia. Afinal, um dos princípios dos aldeamentos era a conversão à fé cristã. Como apontou Almeida (2019ALMEIDA, Maria R. C. de. Catequese, aldeamentos e missionação. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de F. (orgs.). O Brasil colonial (ca. 1443 - ca.1530). 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. p. 435-478., p. 435), era uma “dimensão religiosa da expansão ultramarina portuguesa e aponta para o papel relevante desempenhado pelos missionários e índios nesse projeto”.

Nesse sentido, cabe destacar que em 1780, o bispo do Rio de Janeiro (à qual parte da capitania estava subordinada espiritualmente), Dom José Justiniano Mascarenhas Castello Branco criou a freguesia de São José de Mossâmedes “no lugar e Aldeia de São José” por haver ali “avultada população de moradores índios que desprezando a Barbaridade de sua vida e Custumes se tem segundo os princípios de N. Santa Religião foram Baptizados e estão vivendo em sociedade cristham e civil [...].”23 23 Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC), Cópia da Primeira e Última Vizita que fez o Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas de Goyaz - 1734-1824, f.83-84v. A criação daquela freguesia sugere que a quantidade de almas era numerosa o suficiente para tornar capela freguesia. Com isso, provavelmente, os índios batizados foram registrados num livro destinado àquela circunscrição eclesiástica. Considerando o aspecto corporativo daquela sociedade, qual parte aquelas gentes Caiapó ingressou no corpo da monarquia lusa via compadrio e, no caso da freguesia de São José, dentro daquele aldeamento, como e com quem estabeleciam redes de parentesco? O universo era limitado àquele aldeamento? São questões que permanecerão, neste momento, sem resposta.

Entre as contas do Rosário e a pia batismal: disciplina católica

As expressões da hierarquia de base católica estavam por toda parte naquela sociedade. A darmos crédito ao escriba que narrou a entrada dos Acroá em Vila Boa em 1774, o barão de Mossâmedes e toda a gente da vila recebeu os Acroá com amorosidade. De igual forma o fez Luís da Cunha Menezes. Em 12 de outubro de 1782 quando a bandeira para fazer amizade com os Caiapó adentrou Vila Boa, foram recebidos com missa e Te Deum Laudamus. Tal como seu antecessor, Luís da Cunha empregou o princípio da hierarquia e cravou o momento de privilégios: entre as 99 crianças batizadas, apadrinhou apenas João, o filho do cacique.24 24 Dias (2017, p. 275-277) suspeita que uma das maiores intérpretes que atuava entre os Caiapó, Damiana da Cunha, tenha sido neta desse cacique. Isso explicaria, por exemplo, o apelido Cunha. Vários oficiais de patente e homens do governador apadrinharam indígenas naquele dia de felicidade para o povo de Vila Boa. Na matriz de Sant’Anna, os pais índios mantiveram os nomes de origem e, diante de Deus e da comunidade local, tornaram-se vassalos reais. Já diante sua parentela, de grupos amigos e inimigos, ampliaram o prestígio.

O batismo coletivo no governo de Luís da Cunha foi registrado e enviado a Lisboa. No documento constam nomes dos padrinhos e seus afilhados. Não houve madrinhas. Quiçá, nem precisasse. Além do governador, contribuíram para consolidar a aliança com os Caiapó, homens com patente militar e religiosos. Lá estavam o vigário João Antunes de Noronha, o capitão e bacharel Antônio de Souza Telles e Menezes, João Gaudio Ley e José Pinto da Fonseca; estes dois últimos pacificadores, responsáveis em distintos momentos, por bandeiras “para fazer paz e amizade”: o primeiro aos Acroá, o segundo, aos Caiapó. A eles, acrescem-se o reverendo visitador e o doutor ouvidor sem referência a nomes e alguns tenentes e capitães.25 25 AHU_ACL_CU_008, Cx. 33, D. 2076.

Apesar da dúvida quanto à longevidade dessas alianças, os legítimos representantes de um mundo de hierarquias estavam juntos diante da pia batismal. Alguém poderá afirmar que tenha sido uma estratégia para demonstrar poder. Que seja. No entanto, a formação de clientelas em diferentes estratos da sociedade aponta prestígio. Não há contradição alguma entre prestígio e exercício de poder porque, nestas regiões, ambas eram fundamentais para garantir a governança, na perspectiva de uma monarquia católica pluricontinental.

Compreendendo o contexto, podemos, enfim, tratar sobre o apadrinhamento de escravos pelos próprios senhores na freguesia de Vila Boa. Para este estudo, consultei os livros de registro de batismo de escravos da freguesia de Vila Boa, de 1764 a 1834. Computei 4.343 batismos válidos conforme quadro abaixo.26 26 Já descontados 38 assentos ilegíveis. Apesar de haver apenas três categorias jurídicas, optei por indicar a diversidade de classificações, que deixam entrever como desapareciam ou permaneciam qualificações. Os três índios adultos administrados eram Caiapó e foram batizados em 1768. Antônia “da casa de Salvador Jorge” e Maria, “sujeita, na forma das reais ordens, a Thereza Soares de Araújo”, também Caiapó, foram registradas em 1773.27 27 Arquivo Geral da Diocese de Goiás (doravante AGDG), Livro de Registro de Escravos, 1764-1787, f.154 e 155v, respectivamente. Nos livros em apreço, após esta data, não há mais referências a batizados de índios adultos. Inocentes indígenas aparecem no intervalo de 1765 a 1805, mas nenhum como administrado. É possível que os indígenas incorporados ao corpo da monarquia lusa tivessem sido registrados nos livros dos forros e demais livres;28 28 O problema é que verificar isso é praticamente impossível. Em 1923 Joaquim Siqueira lamentava n’O Democrata a falta daquela documentação, sua hipótese era de que os livros da paróquia de Sant’Anna tenham se perdido sob os escombros da matriz, várias vezes desmoronada no século XVIII e outra em 1921 (LEMKE, 2012, p. 123). ou, com a criação da Freguesia de São José de Mossâmedes em 1780, tenham sido registrados em livros daquela circunscrição eclesiástica.

Quadro 2:
Classificações dos batizandos - Freguesia de Vila Boa-1764-1834

Já se vão 30 anos desde que Gudeman e Schwartz asseveraram que a escravidão e o apadrinhamento dos próprios cativos eram irreconciliáveis. Ao que a historiografia indica, a prática era rara. Para Brügger, os senhores, uma forma de domínio e controle sobre a escravaria; para estes, uma distinção. Segundo esta autora, em São João del Rei, entre 1736 e 1850, 150 crianças foram apadrinhadas diretamente por seus senhores, correspondendo a 1,1% do total de batismos analisados (2006). Na freguesia de Inhaúma, não houve nenhum escravo apadrinhado pelo próprio senhor; mas, entre escravos, o índice de apadrinhamento foi significativo (GÓES, 1993GÓES, José R. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitória/ES, Lineart, 1993.); a mesma raridade de conciliação entre escravidão e apadrinhamento foi verificada por Schwartz (2001)SCHWARTZ, Stuart B. Tapanhuns, negros da terra e curibocas: causas comuns e confrontos entre negros e indígenas. Afro-Ásia. Salvador, v. 29/30, p. 13-40, 2003. em São José dos Pinhais, entre 1750 e 1820. Mais recentemente, Maia (2010, p. 42), estudando os batismos na antiga Vila do Carmo, entre 1715 a 1750, constatou que em 1.125 atas batismais, apenas 17 senhores apadrinharam filhos de cativas de sua propriedade e apenas um deles declarou-se pai e padrinho.

Salvo melhor juízo, nenhum dos autores citados constatou apadrinhamento direto de adultos recém-chegados por seus senhores. Ainda que excepcionais, os casos que apresentarei indicam quão plástica e adaptável era aquela sociedade ciosa de suas diferenças. Em capitanias como o Rio de Janeiro, os fidalgos tinham seus parentes pretos e se valiam deles para sua proteção (FRAGOSO, 2007FRAGOSO, João. Poderes e mercês nas conquistas americanas de Portugal (séculos XVII e XVIII): apontamentos para as relações centro e periferia na monarquia pluricontinental lusa. In: FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno G. (orgs.). Um reino e suas repúblicas no atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 49-100.), atuando como “braço armado do senhor”, como ocorreu em Minas Gerais (MATHIAS, 2006AMANTINO, Márcia. As Guerras Justas e a escravidão indígena em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Varia História [online], v. 22, n. 35, p. 192, 2006.; COSTA, 2013COSTA, Ana P. P. Potentados locais e seu braço armado: as vantagens e dificuldades advindas do armamento de escravos na conquista das Minas. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, p. 18-32, jan./jul. 2013.; 2010ARQUIVO Geral da Diocese de Goiás (AGDG), Livro de Registro de Batismo de Escravos 1794-1834.), não parece impossível torná-los afilhados. Num cenário de extensão territorial considerável, ataques indígenas constantes, existência de quilombos, inimizades marcadas por mortes e perseguições, a aproximação via compadrio, entre senhores e seus escravos era uma escolha possível e não havia impedimento canônico para tal. Quiçá, deve ter sido esse o pensamento que norteou os que estão no quadro abaixo.

Quadro 3:
Senhores apadrinhando seus cativos adultos - Vila Boa - 1764-183429 29 Nesta datação mantive a data dos livros de batismo e não a dos assentos.

Os números indicam que se tratava, de fato, uma prática excepcional. Por outro lado, sob o ponto de vista da amplitude no tempo: de 1764 a 1827, e por ser praticada por pessoas de diferentes condições e qualidades como Vitória da Roza, parda forra; o capitão Miguel Alves da Ora, o reverendo Bernardino Ribeiro “dos estados da Espanha” e dona Escolástica Delfina de Araújo merece ser observada e tomada em relevo.

O apadrinhamento direto de crianças escravas contabiliza 65 casos. O capitão Antônio José Felix de Avelar apadrinhou todos os quatro filhos naturais de Simplícia, sua escrava crioula. É possível que o sujeito nada mais fazia do que mal disfarçar a culpa e que tais crianças fossem, na verdade, seus filhos. Uma análise em outras tipologias documentais indicará se foram libertas posteriormente. Certo é que, na ocasião do batismo não o foram. A mulher do capitão, dona Gertrudes Maria de Avelar, aparece como madrinha nas quatro vezes, numa delas por procuração. Ou seja, ela não estava pelas bandas de Goiás.

Tal como com escravos adultos, senhores de diferentes condições e qualidades seguiram apadrinhando os próprios escravos inocentes. Com efeito, no caso das crianças escravas, seus pais gozavam de maior proximidade com seus senhores e, neste caso, não é exagero tomar emprestada a expressão “elite das senzalas” (FRAGOSO, 2014FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; SAMPAIO, Antônio C. J. de. (orgs.). Arquivos paroquiais e História social na América lusa: métodos e técnicas na reinvenção de um corpus documental. Rio de Janeiro: Mauad X/ART, 2014.) para nos referirmos aos pais dessas crianças. Inclusive mães pretas, como Catarina angola, mãe da inocente Maria, registrada natural e pai incógnito que, além da sua senhora Ana Joaquina da Soledade teve o padre Anastácio Álvares da Costa como padrinho. No assento, datado de janeiro de 1824, nem sinal de que fora liberta.30 30 AGDG, Livro de Registro de Batismo de Escravos 1794-1834, f.203.

Por um lado, senhores garantiam alguma lealdade ao promoverem hierarquias e privilégios entre suas gentes cativas. Mas não é só. Ao mesmo tempo, estendiam compadrios com pessoas de outras qualidades. Isso sem esquecer que criar afilhados era muito mais familiar do que escravos. Insisto, era mais fácil rebelar-se contra um senhor; mas, contra um padrinho, não. Enfim, cada qual, à sua maneira, dentro da ordem, a partir de preceitos da disciplina católica, conseguia, bem ou mal, sobreviver nos sertões, configurando e fortalecendo os pilares da monarquia pluricontinental.

Os (potenciais) levantes de índios batizados não puseram por terra as práticas políticas viabilizadas pelo compadrio que formava alianças em uma monarquia católica escravista cercada por índios por todos os lados, mas também por índios aliados que eram cabos, sem qualidade de cor nos livros de batismo. Mesmo considerando a exiguidade da presença portuguesa em Goiás, vis-à-vis a outros grupos, não há certeza se os índios estavam entre os pais, mães, senhores, padrinhos e madrinhas que participaram dos batismos. Porém, nenhum índio foi batizado como escravo no livro de batismo de Goiás. Eles sabiam que escravidão era, ou deveria ser, coisa para “negros”. O Diretório dos Índios, antes de tudo, os definiu como não negros. Naquele contexto em que tudo era incerteza na imensidão do sertão, selar a paz diante da pia batismal, era normal. Os governadores pensavam nos aldeamentos; senhores das mais diferentes condições, em suas senzalas.

Considerações finais

Os governadores José de Almeida Vasconcelos e Luís da Cunha Menezes sobreviveram às experiências no sertão dos Goyazes. Com a devida ordem real, rumaram para governar gentes e garantir vassalos em outras paragens. O primeiro foi para Angola; o segundo, ­Minas Gerais.31 31 Segundo Venâncio, Luís da Cunha Menezes apadrinhou 23 crianças em Vila Rica em menos de cinco anos que permaneceu como governador de Minas Gerais; Rodrigo César de Menezes governou Minas Gerais por três anos e apadrinhou 11. Tristão da Cunha Menezes permaneceu em Goiás, atazanando a governança de seu primo dom João da Cunha. Todos conviveram com pardos e índios, de uma forma ou de outra. Com efeito, dificilmente seria possível governar tamanha imensidão territorial sem incluir súditos índios e pardos.

O sargento Pereira foi um deles. Na descrição dos feitos dos governadores até o ano de 1783, foi referenciado por seu papel de trazer os Caiapó à paz em 1782 na conquista de Luís da Cunha a quem o “céu destinou esta empresa”: “hum homem pardo chamado José Luiz Pereira, destemido, mas muito obediente [...]”; e que tinha, em sua companhia, um “Cayapó, filho de um cacique, de idade de dez ou doze anos, que o havia tomado numa empresa [...] era batizado e chamava-se Feliciano José Luíz, [...] e se amavam tão reciprocamente, que o índio o apelidava de pai, e ele de filho” (BERTRAN, 1997BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Planalto Central: eco-história do Distrito Federal: do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000., p. 62).

Difícil saber se o jovem Feliciano José Luís já estava ao lado do sargento Pereira quando os índios do aldeamento D. Maria I, Caiapó como ele, bradaram que não eram negros e que trabalhar era coisa de negro, de escravo. De qualquer forma, evidentemente, assim como o apadrinhamento dos indígenas pelos governadores, tais relações não podem ser tomadas como engodo, mas uma das faces do autogoverno que não prescindia da obediência amorosa (CARDIM, 1999CARDIM, Pedro. Amor e amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII. Lusitania Sacra, 2ª série, 11, p. 21-57, 1999.). E isso se estendia a diferentes estratos daquela sociedade.

Como outros pardos, o sargento Pereira estava cercado de muitos índios. Alguns hostis. Outros, o ajudavam a cuidar da boa ordem da república, para tomar emprestada uma expressão de Russel-Wood (2000). Considerando a data das correspondências em que é citado, manteve-se vivo administrando índios até, pelo menos, 1789. Quando Antônio de Souza escreveu à rainha sobre os desmandos de Tristão da Cunha, relatou que As ditas aldeias estão ao desamparo e [tratadas] como coisa que não é da proteção e conta de Vossa Magestade”. Temos, portanto, uma versão de como estavam os dois aldeamentos que abrem este artigo cinco anos depois. Em 1789, dizia Telles, no aldeamento de “São José está um alferes de Pedestres que é um pobre homem sem disposição e que pouco ou nada faz”. Do aldeamento de D. Maria I, “que é do Caiapó, está o pardo José Luiz, Sargento de Pedestres que por si nada pode fazer mais do que ir conversando e animando o Gentio ao sossego e trabalho” (BERTRAN, 1997BERTRAN, Paulo. Notícia geral da Capitania de Goiás. Tomos I e II. Goiânia: Editora da UCG, Editora da UFG; Brasília: Solo Editores, 1997., p. 40-45, grifo meu).

O sargento Pereira retrata uma população que convivia com o medo e o vislumbre de potenciais ataques de homens versados na arte guerra com o arco e a flecha, justificando seu apego “às contas”. Sem pólvora para abastecer a arma que carregava numa mão, com a outra (se) fiava (n)um rosário. Quiçá, recorrer à misericórdia dos céus era o que se podia fazer em meio ao cerco de indígenas hostis de Goiás, como alhures nos sertões da América portuguesa.

No plano do governo dos escravos, essas incertezas podem ter contribuído para aproximar senhores e seus cativos. Numa sociedade em que uma das bases era a religião, o compadrio e o alargamento dos laços familiares garantiram a “paz em suas senzalas” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José R.P. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.) incluindo pretos d’África recém-chegados e até escravos aquilombados, como fizeram a parda forra Vitória da Roza e dona Ana Margarida da Silva. Citando o governador Tristão da Cunha uma última vez, em janeiro de 1784 justificou o aumento das tropas em face da situação nos aldeamentos. Em dezembro daquele ano reclamou da escassez do ouro e da absurda despesa com os aldeamentos e esclarecia que, nos portos do mar “os gêneros de exportação obrigão cada um dos moradores para o seu tráfico a servirem dos índios assalariados”. Desta forma, com pouco trabalho e despesa conseguia-se civilização dos índios “que logo entram a ser úteis a si, e aos moradores e ao Estado, em lugar de que nesta capitania, não se cuidando athé o prezente mais do que na mineração, para cujo trabalho serve só o braço negro, não quer ninguém na sua casa hum só Índio”.32 32 Carta do governador e capitão-general de Goiás, Tristão da Cunha Menezes, à rainha, sobre o estado decadente em que se encontra a Fazenda Real, AHU_ACL_CU_008, Cx. 35, D. 2169. Exagero ou não, isso leva a compreender a configuração do aldeamento de São José. Segundo Dias (2017)DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás (1721-1832). Tese (Doutorado em História). Goiânia, UFG, 2017., ao lado da casa destinada ao governador, havia algumas para escravos, sugerindo que, para eles, era mais fácil manter proximidade com escravos do que com índios aldeados.

O apadrinhamento dos próprios cativos, embora pouco comum, teve amplitude suficiente para fazer jus à expressão “excepcional normal” (GRENDI, 2009GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica R.; ALMEIDA, Carla M. C. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. p. 39-50.). Com tanta incerteza, garantir lealdade era uma das chaves de sobrevivência nos sertões. Nada melhor do que um afilhado, ainda que estrangeiro. Embora excepcionais, aquelas situações permitem formular a hipótese de que os ordenamentos hierárquicos típicos de uma sociedade com traços de Antigo Regime e escravista foram plásticos o suficiente para transformar cativos recém-chegados em afilhados sem que bases da monarquia pluricontinental fossem abaladas.

Fontes documentais

  • ARQUIVO Geral da Diocese de Goiás (AGDG), Livro de Registro de Batismo de Escravos 1794-1834.
  • ARQUIVO Geral da Diocese de Goiás (AGDG), Livro de Registro de Escravos, 1764-1787.
  • ARQUIVO Histórico Estadual de Goiás (AHEGO), Livro de Correspondências da Secretaria do Governo da Capitania de Goiás 1756-1777.
  • CARTA do [governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha, ao rei [D. José], sobre os ataques dos índios Acroás aos moradores, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 466.
  • CARTA do superintendente das Minas de Goiás, Gregório Dias da Silva, AHU_ACL_CU_008, Cx. 1, D. 17.
  • INSTITUTO de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC), Cópia da Primeira e Última Vizita que fez o Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas de Goyaz - 1734-1824.
  • OFÍCIO do [governador e capitão-general de Goiás], Luís da Cunha Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a civilização dos índios Caiapós AHU_ACL_CU_008, Cx. 33, D. 2076.
  • OFÍCIO do governador Tristão da Cunha Menezes ao secretário da Marinha e Ultramar. AHU_ACL_CU_008, Cx. 35, D. 2131.
  • REQUERIMENTO de Rita Rodrigues Neves e os órfãos seus filhos, AHU_ACL_CU_008, Cx. 18, D. 1072.
  • SOUZA, Thomaz de. Arquivo da Biblioteca Nacional, coleção de notícias da Capitania de Goiás vindas às mãos de particulares assim por diários e cartas, como por cópias de papéis de ofício, e deduzidas por sua ordem (1772-1777). Vila Boa de Goiás. Loc. 07,4, 070.

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    » https://doi.org/10.1093/pastj/gtz037
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  • 1
    O aldeamento de São José de Mossâmedes foi construído durante a governança de José de Almeida Soveral e Carvalho, conhecido por barão de Mossâmedes, que governou Goiás entre 1772-1778; destinava-se aos Acroá. O de D. Maria I foi construído a mando do governador Luís da Cunha Menezes (1778-1783) e estava reservado aos Caiapó.
  • 2
    Na documentação é comum os intérpretes serem chamados de “língua”. Sobre os “língua” nos aldeamentos de Goiás, vide Dias (2017).
  • 3
    Ofício do governador Tristão da Cunha Menezes ao secretário da Marinha e Ultramar. AHU_ACL_CU_008, Cx. 35, D. 2131.
  • 4
    Idem.
  • 5
    Idem.
  • 6
    A América lusa é compreendida aqui como parte do reino português a cujas normas de Antigo Regime (catolicismo, monarquia e autogoverno) acresceu-se a escravidão. Resumidamente, com variações espaço-temporais, incluiu, além de escravos e senhores, indígenas e aqueles com (ante)passado escravo (FRAGOSO 2017; 2018; FRAGOSO; GUEDES; KRAUSE, 2013).
  • 7
    Tais pressupostos condiziam com a Segunda Escolástica, cuja matriz era o pensamento medieval, sustentado no pensamento judaico-cristão e no aristotelismo. Suas principais características eram uma concepção corporativa de sociedade, cuja ordem “natural” incluía todas as coisas e seres. De um ponto de vista político e social, promovia a imagem de uma sociedade hierarquizada, “naturalmente ordenada”, na qual direitos e deveres constituíam a lógica de seu funcionamento. Ver: Hespanha e Xavier (1998, p. 121); Hespanha (2010). Preceitos da Segunda Escolástica são primordiais entre os estudiosos de Antigo Regime nos trópicos, com maior ênfase nas obras de Fragoso.
  • 8
    Sobre vocabulário social relativo à cor, entre outros, vide Guedes (2015; 2014; 2006).
  • 9
    No “Tratado Proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se conservaram levantados” ficou célebre a condição que seus escravos crioulos propuseram: “se quiser comer mariscos mande os seus pretos Minas” (SCHWARTZ, 2001, p. 119). Evidentemente, isso expõe a existência de hierarquias, inclusive dentro das senzalas. Sobre elites nas senzalas, vide Fragoso (2014).
  • 10
    Após concluir seus estudos religiosos na Europa, chegou a Goiás em 1790, aos 26 anos de idade. Apesar do sangue “plebeu”, sua formação e contato com o mundo europeu o marcaram indelevelmente. Militar, presbítero secular do Hábito de São Pedro, prelado da prelazia de Goiás, Silva e Souza foi professor de latim e retórica. Não foram, porém, as obras literárias que projetaram esse padre militar como fonte para pesquisadores. Silva e Souza tornou-se leitura obrigatória por suas “Memórias.” Uma escrita em 1812, a outra em 1832 (LEMKE, 2012, primeiro capítulo).
  • 11
    Carta do Superintendente das Minas de Goiás, Gregório Dias da Silva, AHU_ACL_CU_008, Cx. 1, D. 17.
  • 12
    Requerimento de Rita Rodrigues Neves e os órfãos seus filhos, AHU_ACL_CU_008, Cx. 18, D. 1072.
  • 13
    Sobre essa guerra, vide também Apolinário (2006) e Dias (2017).
  • 14
    Arquivo Histórico Estadual de Goiás (AHEGO), Livro de Correspondências da Secretaria do Governo da Capitania de Goiás 1756-1777, f. 9.
  • 15
    Sobre o Diretório dos índios, ver Perrone-Moisés (1992).
  • 16
    AHEGO, Livro de Correspondências da Secretaria do Governo da Capitania de Goiás 1756-1777, f. 10.
  • 17
    Carta do [governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha, ao rei [D. José], sobre os ataques dos índios Acroás aos moradores, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 466.
  • 18
    SOUZA, Thomaz de. Arquivo da Biblioteca Nacional, doravante BN, coleção de notícias da Capitania de Goiás vindas às mãos de particulares assim por diários e cartas, como por cópias de papéis de ofício, e deduzidas por sua ordem (1772-1777). Vila Boa de Goiás. Loc. 07,4, 070, p. 68-69.
  • 19
    Ibidem, Loc. 07,4, 070, f. 72.
  • 20
    Casamentos entre portugueses e indígenas moldaram aspectos políticos em São Paulo; uma elite mameluca nasceria naquela sociedade ainda no século XVII (GODOY, 2017).
  • 21
    Sobre forras, especialmente as Mina, ver Oliveira (1979), Soares (2000) Furtado (2001; 2003), Faria (2001) e Paiva (2001).
  • 22
    Sobre estima, ver Guedes (2007).
  • 23
    Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC), Cópia da Primeira e Última Vizita que fez o Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas de Goyaz - 1734-1824, f.83-84v.
  • 24
    Dias (2017, p. 275-277) suspeita que uma das maiores intérpretes que atuava entre os Caiapó, Damiana da Cunha, tenha sido neta desse cacique. Isso explicaria, por exemplo, o apelido Cunha.
  • 25
    AHU_ACL_CU_008, Cx. 33, D. 2076.
  • 26
    Já descontados 38 assentos ilegíveis.
  • 27
    Arquivo Geral da Diocese de Goiás (doravante AGDG), Livro de Registro de Escravos, 1764-1787, f.154 e 155v, respectivamente.
  • 28
    O problema é que verificar isso é praticamente impossível. Em 1923 Joaquim Siqueira lamentava n’O Democrata a falta daquela documentação, sua hipótese era de que os livros da paróquia de Sant’Anna tenham se perdido sob os escombros da matriz, várias vezes desmoronada no século XVIII e outra em 1921 (LEMKE, 2012, p. 123).
  • 29
    Nesta datação mantive a data dos livros de batismo e não a dos assentos.
  • 30
    AGDG, Livro de Registro de Batismo de Escravos 1794-1834, f.203.
  • 31
    Segundo Venâncio, Luís da Cunha Menezes apadrinhou 23 crianças em Vila Rica em menos de cinco anos que permaneceu como governador de Minas Gerais; Rodrigo César de Menezes governou Minas Gerais por três anos e apadrinhou 11.
  • 32
    Carta do governador e capitão-general de Goiás, Tristão da Cunha Menezes, à rainha, sobre o estado decadente em que se encontra a Fazenda Real, AHU_ACL_CU_008, Cx. 35, D. 2169.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2020
  • Aceito
    06 Jan 2021
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