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Entre ruas e casas: mulheres, racialização e redes de vizinhança na cidade de São Paulo, 1776

Between streets and homes: women, racialization, and neighborhood networks in the city of São Paulo, 1776

Entre calles y casas: mujeres, racialización y redes vecinales en la ciudad de São Paulo, 1776

RESUMO

O presente artigo constrói uma articulação entre a análise das informações extraídas da Lista Geral de População de 1776 e sua territorialização, baseada no desenho da Planta da Cidade de São Paulo, de 1810. As fontes censitárias permitem trazer à luz populações frequentemente obliteradas pelas documentações oficiais, tais como livres pobres, escravizados e mulheres. Além da visada geral sobre os habitantes da cidade no período, a espacialização dos dados do arrolamento em questão possibilita examinar a conformação de grupos sociais e a criação de redes de vizinhança, elucidando assim estratégias sociais e modos de vida dos contingentes subalternizados. O estudo ora apresentado indica como a proximidade de moradia e concentração territorial era central para a sobrevivência de mulheres chefes de domicílio e população negra e “parda” na São Paulo setecentista.

Palavras-chave:
São Paulo (cidade); demografia histórica; georreferenciamento; mulheres; racialização

ABSTRACT

This paper builds a connection between census data in the Lista Geral de População de 1776 and related georeferenced data, based on the Planta da Cidade de São Paulo, from 1810. Demographic censuses bring to life populations that are frequently overlooked in official documents, such as the free lower class, the enslaved, and women. In addition to providing an overview of the city’s inhabitants at the time, spatialized information also enables an examination of social group configuration and the creation of neighborhood networks, thus illuminating subordinated groups’ social strategies and ways of life. This study shows the relevance of housing proximity and territorial concentration for the survival of ­­ female-headed household and black and brown population in eighteenth-century São Paulo.

Keywords:
São Paulo (city); historical demography; geo-referencing; women; racialization

RESUMEN

El presente artículo construye una articulación entre el análisis de las informaciones extraídas de la Lista Geral de População de 1776 y su territorialización, basada en el diseño de la Planta da Cidade de São Paulo, de 1810. Las fuentes censitarias permiten traer a la luz poblaciones frecuentemente excluidas por los documentos oficiales, tales como libres pobres, esclavos y mujeres. Más allá de la vista general sobre los habitantes de la ciudad en el periodo, la espacialización de los datos del alistamiento en cuestión permite examinar la conformación de los grupos sociales y la creación de redes de vecinales, mostrando así estrategias sociales y modos de vida de las proporciones subordinadas. El estudio ahora presentado, indica cómo la proximidad de domicilio y concentración territorial era central para la sobrevivencia de las mujeres jefes de familia y de la población negra y “parda” en el São Paulo del siglo XVIII.

Palabras Clave:
São Paulo (ciudad); demografía histórica; georreferenciación; mujeres; racialización

Introdução1 1 Versão ampliada e revisada de apresentação realizada no IX Congresso Brasileiro de História Econômica e 10ª Conferência Internacional de História de Empresas, em 2011, cujo texto está disponível em CD. Agradeço os comentários de pareceristas, que contribuíram enormemente para a melhor formatação deste artigo.

Poucas são as possibilidades de realização de pesquisas históricas em que os grupos subalternizados sejam sujeitos, em oposição a sua posição de objetos de estudo na literatura tradicional (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 47-69). As fontes comumente mobilizadas nesses trabalhos são originalmente confeccionadas segundo as próprias lógicas entrecruzadas de opressão, racialização2 2 Uso o termo racialização como o processo de atribuição de definições de raça a pessoa ou grupo em função de características fenotípicas, tais como cor de pele ou traços faciais. Sobre a segunda metade do século XIX, Hebe Mattos (2013, p. 106) afirma: “[…] a noção de ‘cor’, herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas”. e hierarquização, em que certos grupos possuem voz e ação enquanto outros ganham contornos apenas por meio da fala e das interpretações dos primeiros.

Desde a década de 1980, historiadoras e historiadores vêm debruçando-se sobre documentações produzidas pelo poder público nos períodos colonial e imperial, questionando seu estatuto de registros imparciais e investigando os atravessamentos de discursos e ideologias que as permeiam. A partir de interesses diversos, esses trabalhos: apontam para a construção do que se pode chamar de “outridade” do olhar branco sobre as vidas de pessoas escravizadas (SLENES, 1988SLENES, Robert W. Lares negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 189-203, mar./ago. 1988.); permitem recolocar as populações escravizadas na historiografia como agentes de resistência e criação, e não apenas reproduzir a criminalização de suas condutas (MACHADO, 2018MACHADO, Maria Helena P. T. [1987]. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Edusp, 2018.);3 3 Sobre a constante atuação de grupos de pessoas negras fugidas, cativas e indígenas entre os séculos XVII e XIX, é imperativo remeter-se ao trabalho precursor de Clóvis Moura (1959), ainda que não faça parte do processo ora tratado. e questionam a história do trabalho que exclui indígenas, escravizados e livres pobres da América portuguesa e do Brasil imperial (LARA, 1998MARINS, Paulo César Garcez. Através da rótula: sociedade e arquitetura no Brasil, séculos XVII a XX. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.).

Deslocando-se da centralidade das atividades agroexportadoras, os estudos mais recentes apontam a inserção da capitania paulista na economia colonial, questionando seu suposto isolamento (BORREGO, 2006BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765). Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.; BLAJ, 2002BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2002.). É notável o giro em direção aos contextos urbanos, antes obliterados pela pujança das grandes lavouras exportadoras e dos movimentos de conquistas territoriais nos sertões, sendo ambos contextos em que indígenas e pessoas negras ganhariam mais destaque, por fazerem parte das dinâmicas produtivas ou necessárias à produção nesses espaços. A partir da década de 1950, quando o país passa por uma reconfiguração de suas áreas rurais e urbanas e da relação entre elas, novos estudos passam a abarcar outras dinâmicas e partes do território colonial, deixando de enxergar as cidades apenas como apêndices do campo, irremediavelmente subordinadas a ele (SIMONSEN, 1978SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil. São Paulo: IBEP Nacional, 1978.; PRADO Jr., 2000PRADO FILHO, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 2000.; FREYRE, 2006FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.; HOLANDA, 1995HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.). A partir dos anos 1970, pesquisas de diferentes campos debruçam-se sobre dados quantitativos que joguem luz em questões teóricas propostas nas obras clássicas acerca da formação da sociedade brasileira. Outras fontes passam a ser sistematicamente compiladas, organizadas e trabalhadas, das quais destaco os mapas e plantas de fundação de vilas e cidades, as Sisas urbanas e os Códigos de Posturas (GLEZER, 2007GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda , 2007.; BUENO, 2005BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Tecido urbano e mercado imobiliário em São Paulo: metodologia de estudo com base na Décima Urbana de 1809. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 59-97, jan./jun. 2005.; MARINS, 1999MARINS, Paulo César Garcez. Através da rótula: sociedade e arquitetura no Brasil, séculos XVII a XX. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.), os inventários post mortem e os testamentos, as listas nominativas, os documentos alfandegários e os códices referentes a compra, venda e registro de escravos.4 4 Pode-se dizer, resumidamente, que esses últimos tipos de fontes foram usados para tratar de temas referentes à acumulação de riqueza, à relação entre riqueza e escravidão e à própria estrutura de posse de cativos, como se vê em artigos e monografias de Iraci Del Nero da Costa, Francisco Vidal Luna, Nelson Nozoe, José Flávio Motta e Renato Leite Marcondes. O olhar para o território e o interesse renovado nas fontes cartográficas constituíram outro vetor de transformação nos estudos históricos (DELSON, 1979DELSON, Roberta Marx. New Towns for Colonial Brazil: Spatial and Social Planning of the Eighteenth Century. Ann Arbor, Mich.: Published for Dept. of Geography, Syracuse University, by University Microfilms International, 1979.; REIS FILHO, 1968REIS F FILHO, Nestor Goulart. Evolução urbana do Brasil, 1500-1720. São Paulo: Livraria Pioneira, 1968.).

Em outro recorte, as vistas para o espaço urbanizado inauguraram as possibilidades de territorialização das dinâmicas, construções, trânsitos e grupos populacionais, elucidando aspectos das relações sociais eminentemente marcados pela corporalidade e pela materialidade. O território deixa de ser mero cenário da vida social e passa a ser apreendido como elemento formado e formador da mesma. Em trabalho de sistematização e georreferenciamento dos dados da primeira Décima Urbana - imposto predial do Império português que se estendeu à totalidade de suas vilas e cidades em 1808 -, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (2005) observa que, ainda que o território de São Paulo parecesse pouco diferenciado em termos de distribuição espacial dos usos (majoritariamente residenciais), outros aspectos configuravam segregações e especializações, tais como a concentração de edificações comerciais, sobrados e casas mais valorizadas em determinadas ruas. Nessas regiões, o preço dos imóveis e de seus aluguéis era substancialmente mais elevado do que em outras partes, criando um panorama que justifica a presença recorrente desse tipo de bem na “composição de riqueza” das elites paulistanas (BUENO, 2005BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Tecido urbano e mercado imobiliário em São Paulo: metodologia de estudo com base na Décima Urbana de 1809. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 59-97, jan./jun. 2005., p. 86-87).

No campo da demografia histórica, pesquisas quantitativas vêm permitindo compor panoramas gerais e localizar diferenças e especificidades em dinâmicas econômicas e sociais da América portuguesa. De forma geral, as pesquisas na área dedicam-se ao estudo da população e aos fenômenos que incidem sobre sua constituição, nos períodos anteriores ao estabelecimento de levantamentos censitários e do uso do instrumental estatístico moderno (MOTTA; COSTA, 1997MOTTA, José Flávio; COSTA, Iraci del Nero da. Demografia histórica: da semeadura à colheita. Revista Brasileira de Estudos de População, Brasília, v. 14, n. 1/2, p. 151-158, 1997.). É fundamental a tais estudos o próprio exame da documentação e sua historicidade, não limitando as análises às informações e descritivos contidos nas fontes com que trabalham, o que resultaria na reprodução acrítica das lógicas intrínsecas de produção desses materiais.5 5 No Brasil, destaca-se o trabalho pioneiro de Maria Luiza Marcílio após período de formação em Paris (2014 [1973]).

No panorama de desenvolvimento dos programas de pós-graduação das universidades brasileiras, a partir da década de 1970, configuram-se aproximações e articulações entre os estudos demográficos e as áreas da história econômica e social, aprofundando análises sobre a territorialidade e movimentos da população (na escala intraurbana ou regional) e as populações desclassificadas, como escravizados e livres pobres. Com as devidas ressalvas, a demografia histórica constitui importante visada sobre grupos desclassificados, pouco presentes em outras fontes, especialmente a partir da mobilização dos chamados Maços de População - listagens populacionais realizadas pelas administrações de vilas e cidades, com grande variedade regional, mas geralmente contendo nomes, idades e informações produtivas dos habitantes, arrolados por domicílio ou “fogo”, nos termos então vigentes. Essa documentação permite contrapor à visibilidade da branquitude masculina, lugar a partir do qual foram majoritariamente elaborados os documentos produzidos no período colonial, a presença de contingentes negros, “pardos” e de mulheres em fazendas, vilas e cidades, sendo assim propícia à contribuição dos estudos sobre racialização - isto é, o processo de construção de distinções e hierarquias sociais associadas a marcadores fenotípicos de raça, marcadamente a cor de pele - e genderização.

Articulando os debates acerca da construção histórica das categorias racial e de gênero às metodologias de territorialização das informações contidas nas fontes primárias, o presente artigo ilumina a presença e circulação dos corpos de grupos de mulheres na cidade de São Paulo, na segunda metade do século XVIII, detidamente na porção sul, onde se concentrava uma maioria de chefes de domicílio solteiras ou viúvas e de população indicada como “preta” ou “parda”. Em diálogo com bibliografia sobre camadas intermediárias da vida urbana colonial, com ênfase no cotidiano e na presença feminina, apresento a seguir o estudo espacial de documento quantitativo, por meio de análise em cross section - ou de dados em uma série temporal - de uma lista nominativa, datada de 1776. A territorialização dos dados demográficos, tomados a partir de diferentes recortes, apreende a formação de redes de vizinhança e solidariedade entre mulheres pobres e, principalmente, negras ou “pardas”. Tal dinâmica, apontada na historiografia a partir de suas aparições fragmentárias, em documentos tais como atas camarárias e registros criminais, é aqui observada em sua materialização espacial, compreendida na especialização e segregação do tecido urbano paulistano.

Sobre as fontes documentais utilizadas

A realização da análise da configuração socioespacial da cidade ora proposta tem por base a utilização combinada de duas fontes, a saber, a Lista Geral de População de 1776, constante no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), e a Planta da Cidade de São Paulo, de 1810 (Figura 1), cujo original encontra-se no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). A Planta foi encomendada como parte do processo de ordenação dos registros prediais na cidade para a implementação da mencionada Décima Urbana, no início do século XIX (GLEZER, 2007GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda , 2007.), de forma que seu escopo de representação se limita à área sobre a qual passaria a vigorar o tributo.

A Lista Geral, ainda que sem relação direta com dinâmicas tributárias, era também parte de esforços sistemáticos da administração colonial com vistas à ampliação do conhecimento sobre a população, sua distribuição no território e as atividades produtivas que realizava. Data de 1765, ano de restauração da autonomia de governo da capitania de São Paulo, após quase duas décadas de submissão à do Rio de Janeiro, a instauração do arrolamento populacional anual como política pública nos municípios - em termo contemporâneo - da América portuguesa. Como parte da política pombalina, inicialmente implantada em São Paulo sob os auspícios de d. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão - que viria a ser o 4º morgado de Mateus -, o mapeamento demográfico servia declaradamente aos interesses de recrutamento militar e avanço econômico na capitania (BELLOTTO, 2007BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conto no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). São Paulo: Alameda, 2007.; MATOS, 2017MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec; Edusp, 2000., p. 641). Em São Paulo, a prática será mantida até a década de 1830, sofrendo algumas modificações nos critérios de levantamento e apresentação dos dados, constituindo, assim, um corpus documental privilegiado e único para as análises seriadas em territórios coloniais (MARCÍLIO, 2000MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec; Edusp, 2000., p. 44-45).

A Lista Geral, em seu Mapa da População, aponta 534 fogos, num total de 2.026 habitantes.6 6 Os dois números apresentam defasagens em relação à tabulação realizada - em que foram computadas 535 fogos e 2.024 habitantes -, em função de erros na documentação. Esse tipo de imprecisão era comum nas listagens do período, podendo ser atribuída à baixa qualificação dos recenseadores, ao seu desinteresse na tarefa ou mesmo às dificuldades do processo. Ela especifica nomes, idades, relações de parentesco ou agregação e ofícios desempenhados. Algumas informações não são apontadas sistematicamente, de modo que sua avaliação não pode ser feita sem ressalvas. É o caso dos apontamentos sobre cor, feitos apenas para 198 habitantes, sendo a maioria agregados, forros ou não. O documento de 1776 faz parte de um período em que a indicação racial não tinha sequer parâmetros explícitos. A Lista Geral, portanto, foi confeccionada a partir de categorizações fortemente influenciadas pelos contextos locais, pelas escolhas e interpretações pessoais do oficial encarregado e pelo uso em voga (MATOS, 2017MATOS, Paulo Teodoro. Imaginar, contar e descrever as populações coloniais portuguesas, 1776-1875: notas de uma pesquisa em curso. Revista Brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v. 34, n. 3, p. 635-648, set./dez. 2017.; NAZZARI, 2001NAZZARI, Muriel. Vanishing Indians: The Social Construction of Race in Colonial São Paulo. The Americas, v. 57, n. 4, p. 497-524, abr. 2001.). Mesmo após a definição explícita do arrolamento das “etnicidades”, pode-se dizer que “As categorias dos censos assumiam-se como construções sociais e políticas que resultavam da negociação com as autoridades locais” (MATOS, 2017MATOS, Paulo Teodoro. Imaginar, contar e descrever as populações coloniais portuguesas, 1776-1875: notas de uma pesquisa em curso. Revista Brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v. 34, n. 3, p. 635-648, set./dez. 2017., p. 640). As observações de Silvia Hunold Lara (2007MOTTA, José Flávio; COSTA, Iraci del Nero da. Demografia histórica: da semeadura à colheita. Revista Brasileira de Estudos de População, Brasília, v. 14, n. 1/2, p. 151-158, 1997.) acerca da complexidade das definições de cor na documentação censitária da cidade do Rio de Janeiro, em fins do século XVIII, são igualmente apropriadas para a análise aqui proposta. Diferentemente do contexto de racismo configurado a partir do oitocentos - “que adotava critérios científicos para diferenciar e hierarquizar as ‘raças’” (LARA, 2007MOTTA, José Flávio; COSTA, Iraci del Nero da. Demografia histórica: da semeadura à colheita. Revista Brasileira de Estudos de População, Brasília, v. 14, n. 1/2, p. 151-158, 1997., p. 141) -, o período em questão foi marcado pelos dispositivos de distinção social próprios do Antigo Regime.

Nas Colônias, a cor de pele ou outros traços fenotípicos faziam parte do conjunto de elementos que operavam como marcadores de posição social, especialmente relevantes para a “massa indistinta, socialmente inferior e, sobretudo, apartada da liberdade” (LARA, 2007MOTTA, José Flávio; COSTA, Iraci del Nero da. Demografia histórica: da semeadura à colheita. Revista Brasileira de Estudos de População, Brasília, v. 14, n. 1/2, p. 151-158, 1997., p. 147). Nas declarações feitas ao recenseador ou nas atribuições desse, aspectos como cor ou modo de apresentação poderiam significar importantes caracterizações para o crescente contingente de livres pobres, forros e libertos. Antes do advento do racismo científico, no contexto geral da formação e das conquistas das Coroas ibéricas, a religião era fator de demarcação de diferenças e hierarquias no interior das populações. No esteio iluminista da catalogação de tudo e todos que existissem sobre a superfície conhecida do globo, a ideia de raça foi, aos poucos, atravessando, articulando-se e substituindo esse critério (NAZZARI, 2001NAZZARI, Muriel. Vanishing Indians: The Social Construction of Race in Colonial São Paulo. The Americas, v. 57, n. 4, p. 497-524, abr. 2001., p. 501-502; MCCLINTOCK, 2010MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.).

O recenseamento de 1776 não aponta explicitamente a existência de pessoas indígenas ou escravizadas, que aparecem apenas em situações de exceção, indicando questões relevantes com relação a essas populações e à feitura dos levantamentos populacionais. No caso dos contingentes ameríndios, apenas a agregada de Joana Barbosa de Lima, Maria, é descrita como “índia”, sendo provavelmente recém-chegada ao domicílio. Aos cativos, são feitas algumas menções, em geral em função de matrimônios, o que aponta para a formação de famílias entre a população escravizada, forra e livre pobre. É o caso do fogo do alfaiate Máximo, onde também reside a parda Maria e suas duas filhas. Esta é descrita como “casada com um escravo da casa” que não é arrolado. Dado que Maria, seu esposo e suas filhas moravam então sob o mesmo teto, ganha força a hipótese de que o escravo era o pai das duas moças.

As listas nominativas produzidas na capitania de São Paulo entre 1765 e 1797 davam pouca ou nenhuma atenção a essas populações. Os primeiros levantamentos não incluíam o contingente escravizado presente na cidade, critério esse que seria oficialmente alterado apenas com a expedição da Ordem Régia de 21 de outubro de 1797. Até a introdução dessas mudanças nas diretrizes de recenseamento, os parâmetros de arrolamento e categorização da população - majoritariamente livre - seriam a idade reprodutiva, para as mulheres, e a idade produtiva, para os homens, balizada também pela possibilidade de recrutamento para as companhias de milícias, questão central e frequentemente conflituosa para a administração colonial naquele momento (MARCÍLIO, 2000MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec; Edusp, 2000., p. 37-38). A partir dos maços de população de 1798, a presença de cativos e os apontamentos de produtos e valores de importação e exportação passam a integrar obrigatoriamente as informações coletadas.

A presença ou ausência dos habitantes indígenas nas listagens, ainda que tenha relação com o contexto geral de construção social da ideia de raça, apresenta contornos específicos no panorama local da capitania paulista. Desde os primeiros esforços de consolidação da empreitada colonial, a definição de “mamelucos” foi central para o sucesso das empreitadas de povoamento e construção de alianças entre colonos e ameríndios. Filhos de homens portugueses e mulheres indígenas eram tidos como agentes indispensáveis nas explorações territoriais levadas a cabo em entradas pelos sertões coloniais, enquanto filhas dos mesmos garantiam a continuidade de linhagens de parentesco e a possibilidade de novos enlaces familiares propícios. Nos recenseamentos da segunda metade do século XVIII, essa classificação - que em si já eliminava qualquer menção a “índios” ou suas “nações” - é inexistente, sendo ocupada pelos termos “bastardo” e “pardo”.

Segundo Muriel Nazzari (2001NAZZARI, Muriel. Vanishing Indians: The Social Construction of Race in Colonial São Paulo. The Americas, v. 57, n. 4, p. 497-524, abr. 2001.), a categoria “índio” era usada apenas em referências àqueles que estavam aldeados, ou seja, que integravam as aldeias, majoritariamente sob supervisão religiosa. Indígenas “descidos” - retirados das matas, forçosamente ou por meio de acordos, e encaminhados às vilas e estabelecimentos coloniais - que eram realocados para as casas de particulares leigos, os chamados “administrados”, não eram nomeados “índios” na documentação, sendo frequentemente alocados na categoria de agregados.7 7 Para os fins deste estudo, foram considerados agregados apenas aqueles expressamente descritos como tal, a fim de não gerar falsas relações entre os habitantes. As análises longitudinais da autora, referentes aos maços da população da freguesia de Santana, entre 1765 e 1825, demonstram como os mesmos habitantes têm suas classificações alteradas em listagens sucessivas, indicando que certas circunstâncias - casamento próprio ou de parentes, atividades econômicas empreendidas ou impressões do recenseador - interferiam na dinâmica de racialização. O estudo permite afirmar que o desaparecimento dos indígenas, praticamente inexistentes na contagem populacional no período, deveu-se a uma combinação de sua mobilidade territorial com o desenrolar dos critérios de atribuição de cor a partir da segunda metade do setecentos, que vão passar paulatinamente a incluir esses habitantes na denominação “pardo”.

As idades conferidas aos habitantes na Lista Geral apontam para o fato de que se trata de uma lista nominativa feita a partir de levantamento de campo e não de uma atualização de uma listagem anterior. Das 2.024 entradas, mais de um quarto são de idades em dezenas - dez, vinte, trinta e assim por diante -, o que leva a crer que foram atribuições estimadas pelo habitante ou pelo recenseador, dada a imprecisão com que se computavam tais dados no período. Das 533 idades que podem ser chamadas de “arredondadas”, 232 eram de chefes de fogo. As proles ou os grupos de irmãs e irmãos que moravam no mesmo fogo tinham suas idades posicionadas em função disso, do que resultam mais números “quebrados”.

O estado civil dos habitantes foi por mim descrito como solteiro, casado ou viúvo (com suas variações de gênero), a partir das indicações fornecidas na listagem. Do total, 1.232 habitantes não possuem indicação sobre seu estado conjugal. Não é possível, no entanto, defini-los como solteiros, visto que a constituição de famílias não passava, em todos os casos, pela regularização da situação matrimonial. O boticário Cosme da Silva Antunes, de 51 anos, é listado como solteiro, vivendo em sua casa com a agregada Gertrudes de 18 anos. Ainda que não se possa afirmar com certeza se havia relações consensuais entre ambos, não se pode tampouco descartar tal hipótese, que poderia ter maior comprovação por meio da análise do inventário ou testamento de Cosme, pela documentação paroquial ou ainda pela observação continuada das listas nominativas subsequentes.

Os ofícios, em geral atribuídos aos chefes de fogo, apresentam uma variação considerável. Os mais de cem tipos de entradas foram categorizados em 30 campos, além dos não identificados. Dos 408 habitantes listados como possuidores de algum tipo de ofício, 326 eram chefes de fogo - ou cabeças de domicílio, pessoas consideradas centrais à estruturação da moradia e do grupo de indivíduos ali residentes, com os quais tinham relações familiares, consanguíneas ou não, de agregação, de apadrinhamento, de senhorio ou outras.

Os cônjuges ausentes ou residentes em outras localidades são comuns dentro dessa lista nominativa. São 54 habitantes apartados de seus cônjuges, sendo apenas oito deles homens: metade desses eram casados no Rio de Janeiro ou em Portugal e metade é descrita como tendo “mulher ausente”. Dentre as mulheres, três apresentavam justificativas para a ausência do marido, a saber, dois eram militares e um estava “em Minas”. Das 46 esposas cujos maridos não se encontravam na cidade, 32 eram chefes de fogo, apontando que o panorama estudado por Maria Odila Dias (1984DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984.) para o século XIX já estava constituído, décadas antes, isto é, era fenômeno recorrente a constituição de domicílios encabeçados por mulheres, que, na prática, acabavam realizando cotidianamente não apenas atividades tradicionalmente aceitas para seu gênero e não remuneradas (trabalhos domésticos e cuidado de filhas e filhos), mas igualmente ocupações que poderiam reunir ganhos para a manutenção da família, executadas dentro ou fora das casas.

Além das descrições e categorizações supracitadas, a Lista Geral apresenta os fogos de acordo com sua distribuição por vias ou trechos da cidade, prática regular nos levantamentos demográficos coloniais, mesmo antes da instituição da Décima Urbana. Excetuando-se os domicílios do sargento-mor, do capitão-mor, do capitão e do alferes da cidade, apresentados em destaque no início do documento, os demais são levantados a partir de sua localização, seja essa em rua, travessa, grupo de ruas ou bairro. Alguns trechos tiveram seu levantamento interrompido e continuado em seguida, de modo que realizei reagrupamentos nos trechos originais, preservando denominações originais e continuidades espaciais. As 33 partes constantes da listagem foram alocadas em 30 trechos mais os fogos isolados.

Figura 1:
Planta da Cidade de S. Paulo, de 1810

O primeiro mapa da cidade de São Paulo de que dispomos8 8 Atualmente, a planta original encontra-se no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, sendo a versão aqui apresentada uma reprodução da publicada pela Comissão do IV Centenário (PREFEITURA do Município de São Paulo, 1954). - a sobredita Planta, reproduzida na Figura 1 - data do ano de 1810, passadas, portanto, mais de três décadas da listagem populacional aqui pesquisada. Essa cartografia contém ruas e porções da cidade que não tinham ocupação significativa anteriormente ou nem sequer eram arruadas. Como se observa na Figura 2 - que contém a segmentação por trechos adotada no recenseamento populacional -, a listagem dos fogos restringe-se principalmente às ruas entre os conventos de São Bento, de São Francisco e do Carmo.

Características da população e a distribuição espacial

Conforme citado anteriormente, a população listada na cidade de São Paulo, em 1776, era de 2.024 pessoas, distribuídas em 535 casas. Eram 40,37% homens e 59,63% mulheres, sendo a razão de gênero9 9 Razão de gênero equivale ao número de homens para cada cem mulheres, sendo calculada segundo a fórmula que segue: , onde R é razão de gênero, H é população masculina e M é população feminina. global de quase 68, explicitando a preponderância da população feminina (Tabela 1). É preciso notar que o mencionado recrutamento militar, ao qual também servia o recenseamento no período, resultava, não raro, em estratégias das famílias para ocultamento dos homens, sendo forçoso examinar com cautela a disparidade em relação ao número de mulheres.

Tabela 1:
Dados de gênero

A razão de gênero para população em idade produtiva (15 a 60 anos) é de pouco mais de 50, apontando quase duas mulheres para cada homem, dentro desse grupo. Para os habitantes de 14 anos ou menos, há quase um equilíbrio, o que indica tanto o cenário de evasão masculina quanto a possível proteção contra a arregimentação militar. Restava ainda uma maioria de chefes de fogo do sexo masculino.

Figura 2:
Divisão por trechos10 10 A atribuição dos nomes às vias contidas no mapa foi realizada com o auxílio de cartografias posteriores e outras fontes, o que não exclui a necessidade de possíveis revisões, especialmente em trechos menores. e maiores concentrações populacionais

Legenda

0 Sem identificação de localidade

1 Rua Direita

2 Rua de São Bento

3 Rua da Boa Vista

4 Rua do Rosário

5 Travessa para o Colégio

6 Travessa para o Palácio

7 Pátio da Sé

8 Rua que principia da Lapa até a Misericórdia com suas travessas

9 Travessa da Rua que principia da Lapa até a Misericórdia com suas travessas

10 Rua que vai da Travessa da Quitanda para a Cadeia velha

11 Travessa da Cadeia para Santo Antônio até o Aniceto

12 Rua que vai do Palácio para o Carmo até a Tabatinguera

13 Rua das Flores

14 Travessa para o Campo de São Gonçalo

15 Rua de trás da Sé

16 Travessa do Pátio da Sé a findar na Rua do Palácio para o Carmo

17 Rua que principia do Pátio da Sé até São Gonçalo e suas travessas

18 Travessa para São Francisco

19 Pátio de São Gonçalo e travessas que vão para o Caminho de Santos

20 Travessa para o Pelourinho

21 Rua do Pátio de São Gonçalo que desce para a Misericórdia

22 Travessa para a Sé

23 Rua da Freira e travessa

24 Caminho que vai para Nossa Senhora da Luz

25 Caminho para Santa Efigênia

26 Bairro do Pari

27 Várzea do Carmo

28 Bairro dos Pinheiros

29 Emboaçava

30 Bairro de Pacaembu

Tabela 2:
Dados de gênero e domicílio por trecho (AHM)11 11 A média é a soma de cada valor de trecho dividida pelo total de trechos. A moda indica o valor mais repetido entre todos os trechos. Já a mediana é o valor central dentro do conjunto de valores ordenados. Esses conceitos permitem observar tendências e concentrações nos trechos da cidade.
Tabela 3:
Dados totais de gênero e domicílio (AHM)11 11 A média é a soma de cada valor de trecho dividida pelo total de trechos. A moda indica o valor mais repetido entre todos os trechos. Já a mediana é o valor central dentro do conjunto de valores ordenados. Esses conceitos permitem observar tendências e concentrações nos trechos da cidade.

A população distribuía-se no território conforme se vê na Tabela 2. Os valores da moda e da mediana, indicam concentração populacional em determinadas áreas da cidade. Destacam-se as ruas Direita, São Bento do Rosário e que vai do Palácio para o Carmo até a Tabatinguera (trechos 1, 2, 4 e 12), todas com quarenta ou mais fogos, somando 758 pessoas, mais de um terço da população total.

Figura 3:
Ocorrência de agregados e filhos

Além do chefe de fogo e seu cônjuge (caso o chefe seja homem), os outros componentes da casa podiam ser filhos, familiares (excetuando-se filhos e esposas), agregados e moradores sem relação identificada. Os 813 habitantes listados como “filho(a)” distribuem-se em 281 fogos. Há ainda 140 familiares diversos e 205 agregados. A figura do agregado não traz uma definição específica do tipo de relação que esse pode ter com o chefe do fogo, que pode variar de um quase escravo a um quase familiar (CAMPOS, 1984CAMPOS, Alzira Lobo de A. A configuração dos agregados como grupo social: marginalidade e peneiramento (o exemplo da cidade de São Paulo no séc. XVIII). Revista de História, São Paulo, n. 117, p. 27-69, 1984.; SAMARA, 2005SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Edusp, 2005.). Dentro desse espectro, o agregado pode ser parte da organização de trabalho ou mesmo morar de favor.

Tabela 4:
Trechos com maior número total de agregados
Tabela 5:
Trechos com alto número de agregados por fogo

Pode-se dizer que a ocorrência de agregados (Figura 3) era um fenômeno comum dentro dos limites dos três conventos, sendo praticamente exclusivo a essa porção. Os subúrbios do Pari, de Emboaçava e do Pacaembu e a Várzea do Carmo não possuíam nenhum agregado não familiar, e Pinheiros possuía apenas três distribuídos em três fogos distintos. Movimento oposto ocorria com a concentração de filhos nas casas, morando com pelo menos um de seus progenitores. Em um terço dos trechos, mais de 60% das casas eram habitadas por um ou mais filhos do chefe de fogo. Apenas a Rua do Carmo (trecho 12) apresentava as duas situações, isto é, alta concentração de agregados e filhos; eram 24 chefes que moravam com seus filhos e treze com agregados, sendo que em sete casos os fogos eram compostos por ambos.

Tabela 6:
Trechos com maior número de filhos presentes

A Lista Geral indica praticamente apenas os ofícios do chefe de fogo, sendo que, dos 535, 326 têm sua ocupação especificada, conforme apontado anteriormente. Além desses, restam 82 habitantes em tal situação, somando um total de 408 habitantes com ofício discriminado. Em vinte, dos trinta trechos mais os fogos não localizados, os chefes de fogo com ofício somam 50% ou mais do total. Nas categorias de ofícios atribuídas a partir da listagem, aqueles 408 habitantes distribuem-se da forma que se observa na Tabela 7. A partir dos dados de ofícios declarados por trecho, é possível agrupá-los por ofício predominante, conforme a Tabela 8, espacializada na Figura 4.12 12 É preciso ressaltar que na Travessa para o Palácio (trecho 6) havia apenas uma casa, composta por marido, mulher e seus seis filhos, sem especificação alguma de ofício. Nos trechos 7, 21 e 25 (Pátio da Sé, Rua de São Gonçalo e Caminho para Santa Efigênia) não havia predominância de um ofício entre as poucas ocorrências, que se distribuíam quase igualmente entre os habitantes. A Travessa para o Campo de São Gonçalo (trecho 14) possuía apenas um ofício especificado, de modo que o predomínio apontado não é exatamente comparável aos demais.

Tabela 7:
Distribuição dos habitantes por ofícios
Tabela 8:
Ofícios predominantes por trecho

A concentração de certos ofícios pode mascarar sua difusão entre a população da cidade. O cultivo da terra, segunda atividade com maior ocorrência, estava presente em diversas ruas da cidade (Figura 5), além das áreas afastadas onde predominava, dado o caráter de subsistência da economia da cidade (MORSE, 1970MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo: de comunidade a metrópole. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970., p. 39-55). Era uma ocupação tão disseminada quanto a mais registrada, a atividade mercantil.

Figura 4:
Ofícios predominantes

Figura 5:
Distribuição de ofícios

Do cruzamento dos mapas das Figuras 4 e 5, vemos certa sobreposição entre os trechos com concentração de filhos nos fogos e a predominância de cultivo de terras, pesca e atividades comerciais, sendo essas as principais atividades cuja realização cooptaria todos os membros da família, num tipo de organização que favorecia sua estabilidade. Nota-se que apenas em ruas centrais e próximas à Sé - a saber, trechos 5, 15 e 22 - concentravam-se os estudantes, ou seja, em áreas diversas das anteriormente mencionadas. Alfaiates e sapateiros concentravam-se na Rua do Rosário, enquanto bordadeiras, rendeiras e costureiras espalhavam-se mais pela cidade, margeando as áreas centrais, mas sem se distanciarem delas. A seguir, nos deteremos nessas mulheres e no que sua distribuição espacial indica sobre a dinâmica populacional da cidade.

Constituição dos fogos e localização

Ainda que fosse comum, em cartas e documentos administrativos, a menção à ausência de homens em idade produtiva e reprodutiva na vila e cidade de São Paulo, especialmente desde a intensificação da exploração aurífera nas Minas Gerais desde o início do setecentos, a compilação de dados demográficos aponta para significativa tendência de crescimento do número de domicílios chefiados por mulheres a partir da restauração da capitania. A contar da primeira década do século seguinte, esse tipo de configuração corresponderia a mais da metade das moradias paulistanas (KUZNESOF, 1980KUZNESOF, Elizabeth Anne. The role of the Female-Headed Household in Brazilian Modernization: Sao Paulo 1765 to 1836. Journal of Social History, v. 13, n. 4, p. 589-613, 1980.). Cerca de trintas anos antes, algumas ruas e partes da cidade já se destacavam por esse tipo de ocorrência, como é o caso do trecho 11, nas proximidades da Cadeia, na região sul (Figura 2).

Ali, eram dez mulheres e nove homens na posição de chefe de fogo, sendo sete delas assinaladas como “pardas”. Uma delas morava com a mãe, descrita como “preta”; quatro eram forras ou libertas; e três viviam à custa “de suas agências”. É provável que a proximidade fosse um fator decisivo para essas mulheres, cuja sobrevivência era especialmente delicada, sendo a elas restrita apenas uma pequena quantidade de ocupações possíveis. A análise de recenseamento posterior, realizado em 1798, com maior detalhamento acerca das atividades desempenhadas pela população permite entrever os contornos de tal restrição: das 32 ocupações registradas no documento, cinco eram exclusivamente desempenhadas por mulheres, a saber, cômica, lavadeira, quitandeira, costureira e tutora de meninas, sendo ainda possível que agenciassem escravizados ou participassem de comercializações - atividades essas, em grande medida, limitadas às chefes de domicílios provenientes de famílias remediadas ou ricas, ou seja, com patrimônios amealhados de outras maneiras (SANTOS, 2015SANTOS, Amália Cristovão dos. Em obras: os trabalhadores da cidade de São Paulo entre 1775 e 1809. São Paulo: Alameda, 2015., p. 178-192). As mulheres eram também a maioria das pessoas que acumulavam mais de uma ocupação, o que aponta para o caráter precário de suas possibilidades de sobrevivência dentro de tais circunstâncias.

Os trechos com expressiva ocorrência de mulheres como chefe de fogo não são poucos; dos trintas, doze têm 50% ou mais de mulheres no comando das casas. Elas eram solteiras, viúvas ou casadas apartadas de seus maridos.13 13 Há uma exceção: apenas Rosa Maria, 50 anos, era chefe de fogo com marido presente. As viúvas e casadas, ainda que em posição de autoridade dentro do fogo, viviam situações muito distintas das solteiras. Enquanto aquelas comandavam uma estrutura que - pode-se dizer - havia sido constituída sob a distribuição de funções de uma família nuclear “tradicional”, as últimas eram responsáveis pela formação e manutenção da casa. Destacamos os trechos 2, 13, 18, 19 e 20, em que o número de solteiras é superior a 45%, conforme a Tabela 9. Na Figura 6, é possível observar a localização dos dois tipos de trecho.

Tabela 9:
Estado civil das mulheres chefes de fogo

Aos trechos com predomínio de mulheres solteiras na posição de chefes de fogo, correspondem exatamente os mesmos trechos com preponderância de costureiras, bordadeiras e rendeiras. De acordo com relatos de viajantes europeus que estiveram na cidade no período, estima-se que parte das mulheres denominadas costureiras fizessem uso dessa categoria para encobrir outras atividades, tais como prostituição. Não há dados quantitativos capazes de esclarecer essa questão e não se pode ignorar a possibilidade de tratar-se da reprodução de observações feitas pelos homens de mais ricos, que recepcionavam e hospedavam esses estrangeiros, e que teciam censuras ao desempenho de atividades remuneradas por parte das mulheres pobres e racializadas. É notável ainda que, nos locais listados na Tabela 9, a maioria dos homens não tinha ofício discriminado ou apresentava ofícios variados, sem predominância expressiva.

Figura
6: Mulheres como chefes de fogo

Esses dados nos permitem especular sobre as formas de agrupamento e a constituição de redes de relações, estratégia basilar de inserção e sobrevivência para os ditos “livres pobres” (MATTOS, 2013MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Campinas: Editora da Unicamp, 2013., p. 46) e, como descrevo a seguir, mais ainda para as mulheres livres racializadas. Da mesma forma que certos ofícios puderam ser tabulados e localizados, os modos de vida e convivência distribuem-se e concentram-se no território da cidade. A mesma observação pode ser feita para as menções de cor na Lista Geral, quantificadas na Tabela 10, com destaque para os trechos com maior ocorrência.

Tabela 10:
Ocorrências de racialização, sem e com as indicações de pessoas brancas

Os números correspondem às indicações de pessoas: “crioulas”, “mulatas”, “pardas” ou “pretas”, conforme a nomenclatura original, além das pouquíssimas categorizações de “brancas” - apenas quatro. Considerando a escassez e irregularidade das atribuições de cor à população na Lista Geral, ademais não obrigatória, é seguro afirmar que foram feitas a partir da interpretação do recenseador, em circunstâncias nas quais esse dado fosse importante para a compreensão dos arranjos domiciliares ou da presença desses habitantes nas regiões em que se encontravam.14 14 O incremento econômico atingido a partir do final do setecentos em razão da produção de cana-de-açúcar e, depois, de café marcaria o acirramento das definições raciais, juntamente com a implementação de diretrizes de categorização de cor mais ostensivas por parte da Coroa, eventualmente sedimentando essas indicações entre “brancos”, “mulatos” e “negros”. Estudo aprofundado dessa transformação pode ser visto na obra de Roberto Guedes (2007).

A quase ausência da indicação de pessoa “branca” entre o contingente racializado é indicativa da branquitude como medida “padrão” ou “normal”, sendo, pois, pouco necessário apontá-la.15 15 Ao analisar o desaparecimento das indicações de cor em processos cíveis e criminais do chamado Sudeste Velho, a partir da década de 1850, Hebe Mattos destaca como serão mantidas apenas referências nos casos de aproximação com a escravidão, no momento em questão ou no passado, no caso de forros, apontando “crescente absorção de negros mestiços no mundo dos livres” (MATTOS, 2013, p. 107). Considerando ainda o contexto geral de “representação da liberdade” (MATTOS, 2013MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Campinas: Editora da Unicamp, 2013., p. 44), a indicação como “branco” pode ser tomada como parte de estratégias de distinção entre livres e escravizados.16 16 Na definição em questão, Hebe Mattos refere-se à propriedade de escravizados como medida central e generalizada de indicação de liberdade, que servia para afastar possíveis embaraços relacionados principalmente à pele não branca, para a qual o estatuto de cativo era ameaça constante. É nesse panorama que entendo esses casos excepcionais, que são: um recém-nascido e um menino de 7 anos, expostos, ou seja, crianças abandonadas e deixadas aos cuidados de uma família; e duas mulheres, de 50 e 80 anos, cada uma agregada em um domicílio diferente. Em todos os casos pode-se supor que há o interesse de apropriar-se desse marcador, que indicaria possibilidades importantes para as crianças ou para as famílias receptoras das agregadas. Note-se ainda que os três primeiros casos aqui descritos ocorrem em famílias com chefes ou integrantes classificados como “pardas” ou “pardos”, dentro das quais é especialmente relevante indicar essa diferenciação.

As áreas mais distantes da cidade registradas no recenseamento, Emboaçava e os bairros do Pari, Pinheiros e Pacaembu (trechos 26, 28, 29, e 30), não indicam nenhuma racialização entre seus moradores. Por serem localidades mais isoladas e com famílias de composição similar, pode-se especular sobre a ausência de necessidade de construir distinções de cor. O que está em discussão, portanto, são as atribuições, usos e estratégias em torno da cor - e não a distinção entre brancos e negros, com suas variações -, entendendo a racialização como constructo histórico que associa aspectos fenotípicos, sociais e morais.

Figura 7:
Maiores ocorrências de racialização

A moda da ocorrência de racialização por trecho é zero, isto é, a maioria dos trechos ou bairros não possui sequer uma indicação de cor na Lista Geral, em consonância com a ausência de parâmetros oficiais para a atribuição dessa categoria no período. Considerei os trechos em que se encontram mais apontamentos do que a média como os de maiores ocorrências, espacializados na Figura 7, em que é notável que, dos nove trechos com grandes concentrações, quatro são também as áreas mais populosas da cidade (1, 2, 4 e 12). A sobreposição indica a presença desses habitantes em regiões mais dinâmicas, que sugerem maior possibilidade de obtenção de remunerações, por exemplo, na venda de quitandas por mulheres escravizadas - o que não acontecia sem recorrente criminalização e tentativas de “saneamento” por parte da Câmara (MACHADO, 2004MACHADO, Maria Helena P. T. Sendo cativo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula (org.). História da Cidade de São Paulo, v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 59-99.). Novamente, a necessidade de assinalar diferenciações entre a população pode também explicar a grande ocorrência de racialização nessas áreas.

Boa parte das localidades que concentram as pessoas racializadas na lista nominativa estão em áreas mais marginais da mancha de ocupação da cidade, em direção ao sul e à Igreja de Santa Efigênia. As fímbrias urbanas que se articulam com o caminho para Santos, das quais fazem parte os trechos 19 e 20, são região de especial interesse para os fins dessa análise, onde se localizavam atividades tais como a Casa de Câmara e Cadeia, o pelourinho e o matadouro. O trânsito intenso de chegadas e saídas, os resíduos e cheiros do trabalho com a carne e os distúrbios das punições corporais faziam dessa porção da cidade algo indesejável para os fins da moradia das famílias mais ricas e remediadas. Diferentemente das ruas mais populosas e centrais, nessa região a população escravizada e forra podia constituir vidas mais livres dos olhares e interesses das famílias mais ricas.

É o que indica o exame de dois conjuntos de pedidos de terras urbanas realizados três décadas depois do recenseamento analisado,17 17 Ainda que as informações não correspondam ao período em tela, compreendo que circunscrevem uma dinâmica de longa duração com relação à área em questão, tendo em vista a longevidade da ligação entre a cidade e o porto de Santos, bem como da presença dos demais equipamentos aludidos. sendo um na chamada Cidade Nova - terrenos a oeste do Rio Anhangabaú, incluindo grandes chácaras pertencentes a famílias “pincipais” - e o outro nas imediações da Estrada de Santos. As solicitações feitas nessa última região tinham menos requerentes com patentes militares e nenhum religioso, além de referirem-se a terrenos maiores, o que pode indicar ser uma área menos disputada. Entre os pedidos, destaca-se o de “Feliciana de Medeiros, ‘preta forra’, casada com Sebastião, cativo do alfaiate Joze Roiz Cardim. É dela o menor terreno concedido […]” (SANTOS, 2015SANTOS, Amália Cristovão dos. Em obras: os trabalhadores da cidade de São Paulo entre 1775 e 1809. São Paulo: Alameda, 2015., p. 114-115). Podemos considerar que Feliciana estivesse buscando vizinhanças configuradas por maior número de mulheres também negras ou “pardas” no comando de seus domicílios, com vistas ao estabelecimento de redes de relação que lhe fossem convenientes e proveitosas, lembrando serem as proximidades da Igreja de São Gonçalo uma das regiões da cidade com maior concentração de fogos dessa formação.18 18 É propício remeter aos métodos de “fabulação crítica” (HARTMAN, 2008) e “procedimento analógico” (CAVALCANTE; SAMPAIO, 2012, p. 113) como maneira de avançar nas possibilidades de apreensão das subjetividades de indivíduos subalternizados. A comunicação verbal seria aspecto central da manutenção da vida dessas mulheres e sustento de seus domicílios: “A improvisação da subsistência [de mulheres pobres e livres] no seu dia-a-dia envolvia contínua troca de informações, bate-papos e toda uma rede de conhecimentos e favores pessoais, proteção, compadrio, concubinato” (DIAS, 1984DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 12).

Tal percepção, construída por Dias a partir da mobilização de aparições fragmentárias - e principalmente criminalizadas - dessas mulheres nos documentos camarários, joga luz sobre a relevância da proximidade espacial como elemento basilar das dinâmicas de sobrevivência desse grupo social, observada na análise e espacialização do recenseamento. Por um lado, trata-se da coabitação de mulheres, suas famílias e agregadas em um mesmo fogo, agrupadas em torno de suas atividades econômicas (DIAS, 1984DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 15). Por outro, vê-se também a concentração territorial, em ruas e regiões da cidade, nas quais essas ocupações prevalecem (Figura 4), e onde são predominantes as constituições domiciliares matrifocais (Figura 6). Tomando o cruzamento dessas informações com a maior ocorrência de apontamentos raciais na Lista Geral (Figura 7), é possível localizar as redes de vizinhança das mulheres negras e “pardas”, tal como sugerido por Dias e Bacellar (2008, p. 128), em regiões como as imediações da Ladeira do Carmo, em cujo ribeirão homônimo as lavadeiras reuniam-se, e o entorno da Igreja de São Gonçalo, com grande presença de costureiras, bordadeiras e rendeiras. A territorialização dos dados censitários é, portanto, evidência e medida da forma de organização desses contingentes.

Observações finais

As análises longitudinais de documentos administrativos e censitários tornam evidente a inadequação de critérios binários simplistas para a compreensão das dinâmicas de vida e poder na América portuguesa, tais como “branco” e “negro” ou “senhor” e “escravo”, sendo imprescindível acompanhar nuances, transformações e contextos locais (LARA, 2007MARINS, Paulo César Garcez. Através da rótula: sociedade e arquitetura no Brasil, séculos XVII a XX. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.; NAZZARI, 2001NAZZARI, Muriel. Vanishing Indians: The Social Construction of Race in Colonial São Paulo. The Americas, v. 57, n. 4, p. 497-524, abr. 2001.; MATOS, 2017MATOS, Paulo Teodoro. Imaginar, contar e descrever as populações coloniais portuguesas, 1776-1875: notas de uma pesquisa em curso. Revista Brasileira de Estudos de População, Belo Horizonte, v. 34, n. 3, p. 635-648, set./dez. 2017.). Da mesma maneira, os estudos generificados mostram as diferenças e limites entre possibilidades de sobrevivência de homens e mulheres ou, mais propriamente, de sustento de domicílios encabeçados por uns ou outras (DIAS, 1984DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984.; SANTOS, 2015SANTOS, Amália Cristovão dos. Em obras: os trabalhadores da cidade de São Paulo entre 1775 e 1809. São Paulo: Alameda, 2015.). Neste artigo, os mundos do trabalho, da localização da moradia e da constituição dos fogos na cidade de São Paulo, na segunda metade do século XVIII, foram lidos a partir do atravessamento das oportunidades e contingências dadas, a um só tempo, por critérios raciais e de gênero daquela sociedade, que construíam distinções e hierarquias, dentro e fora dos limites legais. O que se vê é a essencialidade da distribuição no território e o acesso à terra como elementos de manutenção da vida de contingentes desclassificados, como mulheres pobres, principalmente negras e “pardas”.

Para Maria Odila Dias, essas mulheres não estariam à margem dos acontecimentos históricos, tampouco seriam inexpressivas na documentação. Sua ausência historiográfica dar-se-ia por um “esquecimento ideológico” e pela recusa em tratar a condição de mulher como constructo social (DIAS, 1984DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 7). A configuração de domicílios chefiados por essas mulheres e de suas redes de vizinhança, fundamentadas na proximidade e no contato direto, não pode ser tratada como anomalia ou decaimento em relação a um suposto padrão, formado pela família nuclear “tradicional” e pela ideia de um território colonial pouco diferenciado. Menos até do que o “improviso” - ideia com a qual trabalha Dias -, que sugere uma posição de apêndice, esse contingente exercia funções indispensáveis ao funcionamento da vida urbana. Essa dinâmica, em que um grupo social desempenha funções fundamentais ao mesmo tempo em que é severamente desprivilegiado, configura a subalternização e o “desgaste dos corpos” (VERGÈS, 2020VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.), fenômenos da modernidade, formadores dos processos coloniais.

Como visto, as listas nominativas da São Paulo colonial demandam ponderações acerca dos limites e lacunas no arrolamento da população livre pobre, forra, escravizada e indígena. Ainda assim, são propícias não apenas às investigações favorecidas pelo acompanhamento de habitantes, grupos e dinâmicas ao longo do tempo, como também para compor os fragmentos documentais que permitem entrever o cotidiano e as estratégias dessas populações. Por meio da análise apresentada, questiono a noção de que a cidade seria pouco desigual. Ainda que a racialização indicada no recenseamento de 1776 fosse vaga, sem padronização oficial e talvez considerada insípida em relação ao que se desenvolveria nas décadas e séculos seguintes, esse estudo pontual proporciona uma visada inquestionável sobre as marcas do “racismo genderizado” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) nesse território. Na São Paulo colonial, em fins do século XVIII, as mulheres pobres, livres ou forras, que transitavam nas escalas e condições de cor, condicionavam a materialidade, os sons, as vistas e os usos da cidade por meio de seus arranjos domiciliares e de suas vizinhanças.

Fontes documentais

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Referências

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  • VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial São Paulo: Ubu Editora, 2020.
  • 1
    Versão ampliada e revisada de apresentação realizada no IX Congresso Brasileiro de História Econômica e 10ª Conferência Internacional de História de Empresas, em 2011, cujo texto está disponível em CD. Agradeço os comentários de pareceristas, que contribuíram enormemente para a melhor formatação deste artigo.
  • 2
    Uso o termo racialização como o processo de atribuição de definições de raça a pessoa ou grupo em função de características fenotípicas, tais como cor de pele ou traços faciais. Sobre a segunda metade do século XIX, Hebe Mattos (2013, p. 106) afirma: “[…] a noção de ‘cor’, herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas”.
  • 3
    Sobre a constante atuação de grupos de pessoas negras fugidas, cativas e indígenas entre os séculos XVII e XIX, é imperativo remeter-se ao trabalho precursor de Clóvis Moura (1959), ainda que não faça parte do processo ora tratado.
  • 4
    Pode-se dizer, resumidamente, que esses últimos tipos de fontes foram usados para tratar de temas referentes à acumulação de riqueza, à relação entre riqueza e escravidão e à própria estrutura de posse de cativos, como se vê em artigos e monografias de Iraci Del Nero da Costa, Francisco Vidal Luna, Nelson Nozoe, José Flávio Motta e Renato Leite Marcondes.
  • 5
    No Brasil, destaca-se o trabalho pioneiro de Maria Luiza Marcílio após período de formação em Paris (2014 [1973]).
  • 6
    Os dois números apresentam defasagens em relação à tabulação realizada - em que foram computadas 535 fogos e 2.024 habitantes -, em função de erros na documentação. Esse tipo de imprecisão era comum nas listagens do período, podendo ser atribuída à baixa qualificação dos recenseadores, ao seu desinteresse na tarefa ou mesmo às dificuldades do processo.
  • 7
    Para os fins deste estudo, foram considerados agregados apenas aqueles expressamente descritos como tal, a fim de não gerar falsas relações entre os habitantes.
  • 8
    Atualmente, a planta original encontra-se no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, sendo a versão aqui apresentada uma reprodução da publicada pela Comissão do IV Centenário (PREFEITURA do Município de São Paulo, 1954).
  • 9
    Razão de gênero equivale ao número de homens para cada cem mulheres, sendo calculada segundo a fórmula que segue: , onde R é razão de gênero, H é população masculina e M é população feminina.
  • 10
    A atribuição dos nomes às vias contidas no mapa foi realizada com o auxílio de cartografias posteriores e outras fontes, o que não exclui a necessidade de possíveis revisões, especialmente em trechos menores.
  • 11
    A média é a soma de cada valor de trecho dividida pelo total de trechos. A moda indica o valor mais repetido entre todos os trechos. Já a mediana é o valor central dentro do conjunto de valores ordenados. Esses conceitos permitem observar tendências e concentrações nos trechos da cidade.
  • 12
    É preciso ressaltar que na Travessa para o Palácio (trecho 6) havia apenas uma casa, composta por marido, mulher e seus seis filhos, sem especificação alguma de ofício. Nos trechos 7, 21 e 25 (Pátio da Sé, Rua de São Gonçalo e Caminho para Santa Efigênia) não havia predominância de um ofício entre as poucas ocorrências, que se distribuíam quase igualmente entre os habitantes. A Travessa para o Campo de São Gonçalo (trecho 14) possuía apenas um ofício especificado, de modo que o predomínio apontado não é exatamente comparável aos demais.
  • 13
    Há uma exceção: apenas Rosa Maria, 50 anos, era chefe de fogo com marido presente.
  • 14
    O incremento econômico atingido a partir do final do setecentos em razão da produção de cana-de-açúcar e, depois, de café marcaria o acirramento das definições raciais, juntamente com a implementação de diretrizes de categorização de cor mais ostensivas por parte da Coroa, eventualmente sedimentando essas indicações entre “brancos”, “mulatos” e “negros”. Estudo aprofundado dessa transformação pode ser visto na obra de Roberto Guedes (2007).
  • 15
    Ao analisar o desaparecimento das indicações de cor em processos cíveis e criminais do chamado Sudeste Velho, a partir da década de 1850, Hebe Mattos destaca como serão mantidas apenas referências nos casos de aproximação com a escravidão, no momento em questão ou no passado, no caso de forros, apontando “crescente absorção de negros mestiços no mundo dos livres” (MATTOS, 2013, p. 107).
  • 16
    Na definição em questão, Hebe Mattos refere-se à propriedade de escravizados como medida central e generalizada de indicação de liberdade, que servia para afastar possíveis embaraços relacionados principalmente à pele não branca, para a qual o estatuto de cativo era ameaça constante.
  • 17
    Ainda que as informações não correspondam ao período em tela, compreendo que circunscrevem uma dinâmica de longa duração com relação à área em questão, tendo em vista a longevidade da ligação entre a cidade e o porto de Santos, bem como da presença dos demais equipamentos aludidos.
  • 18
    É propício remeter aos métodos de “fabulação crítica” (HARTMAN, 2008) e “procedimento analógico” (CAVALCANTE; SAMPAIO, 2012, p. 113) como maneira de avançar nas possibilidades de apreensão das subjetividades de indivíduos subalternizados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2020
  • Aceito
    04 Fev 2021
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