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MANUAIS ESCOLARES PARA UM ENSINO PRÁTICO

SCHOOLBOOKS FOR PRACTICAL TEACHING

MANUALES ESCOLARES PARA UNA ENSEÑANZA PRÁCTICA

MANUELS SCOLAIRES POUR UN ENSEIGNEMENT PRATIQUE

Resumo

Este artigo indaga sobre o lugar dos manuais escolares no ensino das noções de higiene nas escolas primárias paulistas, ensino que, segundo as orientações e os programas aprovados nas primeiras décadas do século 20, deveria conferir primazia à dimensão prática. Para tanto, toma como fontes manuais escolares que abordam temáticas ligadas a higiene e saúde, em suas articulações com os programas de ensino e com fotografias que põem em cena aspectos das aulas de puericultura nos grupos escolares. A análise proposta visa a capturar, para além dos enunciados presentes nos manuais e dos modos como se articulam no sentido de produzir a interpretação por parte dos pequenos leitores, indícios das práticas escolares engendradas com o intento de conformar os gestos de cuidado com o corpo e a saúde.

Palavras-chave:
manuais escolares; cultura escolar; práticas escolares; higiene; saúde

Abstract

This paper examines the place of schoolbooks in the teaching of hygiene notions in primary schools of São Paulo State, Brazil. According to the guidelines and programs approved during the first decades of the Twentieth Century, that teaching should give priority to the practical dimension. Therefore, the sources used were schoolbooks that deal with issues related to the hygiene and health, in connections with educational programs, as well as photographs that put in scene aspects of childcare classes in schools. The proposed analysis aims to capture - beyond the statements presented in schoolbooks and the ways in which they are articulated to produce children's interpretation - evidence of school practice engendered with the intent of framing the body and health care gestures.

Key-words:
school culture; school practice; hygiene; health.

Resumen

Este artículo indaga el lugar que ocupan los manuales escolares en la enseñanza de las nociones de higiene en las escuelas primarias de São Paulo, Brasil, enseñanza que, según las orientaciones y los programas aprobados en las primeras décadas del siglo 20, debería dar primacía a la dimensión práctica. Para ello, toma como fuentes manuales escolares que abordan cuestiones relacionadas con la higiene y la salud, articulados con los programas de enseñanza y con fotografías que ponen en escena aspectos de las clases de puericultura en los grupos escolares. El análisis propuesto busca captar, más allá de los análisis presentes en los manuales y de las formas en que se articulan para producir la interpretación de los pequeños lectores, los indicios de las prácticas escolares engendradas con la intención de conformar los gestos de cuidado con el cuerpo y la salud.

Palabras-clave:
manuales escolares; cultura escolar; prácticas escolares; higiene; salud

Résumé

Cet article interroge la place occupée par les manuels scolaires dans l'enseignement des notions d'hygiène destinées aux écoles primaires de l'État de São Paulo-Brésil, aux premières décades du 20e siècle. Selon les orientations et les programmes utilisés dans cette période, l'enseignement de ce contenu devrait avoir comme primauté la dimension pratique. Les sources sont constituées par des manuels scolaires qui traitent des questions liées à l'hygiène et santé a partir de ses articulations avec les programmes d'enseignement et des photographies qui portent sur les thèmes concernant à la puériculture dans les écoles. L'analyse proposée souhaite saisir, au-delà des énoncés présents dans les manuels scolaires et dans les manières comme ces énoncés s'articulent dans le sens de produire l'interprétation de la part des petits lecteurs, des indices des pratiques scolaires engendrés avec l'intention de modeler les gestes de soins vers le corps et la santé.

Mots-clé:
manuels scolaires; culture scolaire; pratiques scolaires; hygiène; santé

Introdução

A educação hygienica, na escola primaria, tem por objetivo essencial incutir no alumno habitos uteis, referentes ao asseio, á alimentação, á respiração, ao exercicio. Para isso, em vez de méra distribuição de conselhos, dosada segundo as aperturas do horário, vale muito mais a pratica effectiva da hygiene. Essa pratica deve, pois, entrar na vida escolar quotidiana. (Almeida Junior, 1936, p. 3)

A discussão sobre a aquisição de hábitos de higiene desdobrou-se, nas primeiras décadas do século 20, em um conjunto de indagações sobre o papel da escola na constituição de um padrão de vida considerado saudável, moralmente aceito e civilizado, redundando em iniciativas voltadas para a formação de professores e outros agentes, como as educadoras sanitárias, a produção de manuais escolares e a invenção de práticas, cuja encenação nas escolas tinha em vista sua reduplicação, sobretudo, no espaço doméstico. A advertência com a qual o médico Antonio de Almeida Junior abre a sua Cartilha de hygiene, obra publicada em 1923, pela Editora Monteiro Lobato & C., e adotada nas escolas de São Paulo, Ceará, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro, entre outros Estados brasileiros, é sugestiva do caráter prático que se procurou imprimir ao ensino das questões relacionadas à higiene e à saúde para as crianças que frequentavam as escolas primárias paulistas no período.

Iniciando o seu diálogo com as professoras, o autor - médico formado pela Faculdade de Medicina de São Paulo e professor de Biologia e Higiene na Escola Normal do Braz, com experiência no ensino primário e na administração do ensino - demarca o objetivo que deveria ser perseguido nas práticas escolares cotidianas, indicando os conteúdos a serem privilegiados e ressaltando o valor da "pratica effectiva da hygiene" (Almeida Junior, 1936, p. 3) como meio de aquisição de hábitos. Segundo defendia o médico, a vida cotidiana da escola deveria ser organizada de modo a influir na atividade infantil, inculcando nas crianças hábitos saudáveis de asseio, alimentação, exercício físico. Para tanto, era necessário atentar para aspectos como a configuração da escola, o exemplo do professor, a prática da higiene e, por fim, após adquiridos os hábitos, o aprendizado dos conhecimentos produzidos no campo da higiene.

Entre as práticas prescritas para "incutir no alumno habitos uteis" (Almeida Junior, 1936, p. 3), recomendava: a revista de asseio dos alunos e da escola, a observação e correção da conduta das crianças pelo professor, as mensurações de peso e altura, além da "indagação discreta e habil da vida domestica do alumno" (Almeida Junior, 1936, p. 4), por intermédio da qual seria possível conhecer e corrigir os maus hábitos, notadamente no que se referia ao sono, banho, regime alimentar e consumo do fumo ou do álcool1 1 Sobre as recomendações de Almeida Junior em relação ao ensino de higiene ver Rocha (2003, 2003a). Para uma análise do modo como essas orientações se traduzem nas lições da cartilha ver, especialmente, Rocha (2011). . A publicação da obra visava a contribuir, segundo anunciava o autor, para o ensino dos princípios de higiene, os quais complementariam a educação higiênica. Nesse sentido, frisava que

a parte fundamental da educação hygienica já está feita com a implantação de habitos. Mas o ensino dos principios de hygiene é indispensavel não só para que a creança comprehenda a razão de ser dos habitos que está adquirindo, como tambem para se tornar capaz de adaptar-se às condições novas e imprevistas da vida pratica. (Almeida Junior, 1936, p. 4)

Dotado de um caráter eminentemente prático, o trabalho a ser desenvolvido pelas professoras deveria conduzir, num primeiro momento, à aquisição de hábitos e, em seguida, ao ensino de noções que permitissem compreender o sentido dos comportamentos assimilados. As orientações que emergem do diálogo que o médico procura estabelecer com as professoras podem instigar ao exame dos modos como se organizam os manuais escolares voltados para o ensino das questões de higiene e saúde às crianças. Numa outra perspectiva podem conduzir à indagação sobre as formas como se traduziram nesses manuais as normativas contidas nos programas de ensino que, desde os finais do século 19, incluíam, entre os conhecimentos a serem adquiridos pelos alunos das escolas primárias paulistas, os conteúdos vinculados à higiene. Ademais, suscitam a curiosidade sobre o lugar destinado aos manuais escolares no âmbito de um ensino que deveria se calcar na primazia da dimensão prática, distanciando-se, portanto, da mera "distribuição de conselhos" (Almeida Junior, 1936, p. 3), como insistia o médico.

Procurando aproximar-se do domínio das práticas instituídas na escola primária paulista, nas décadas iniciais do século 20, este artigo toma como fontes manuais escolares voltados para o ensino de temáticas ligadas à higiene e à saúde, em suas articulações com os programas de ensino e com uma série de fotografias que põem em cena aspectos das aulas de puericultura nos grupos escolares da capital, na década de 19302 2 Agradeço a Maria Angela Borges Salvadori pelo apoio no levantamento do material publicado na Revista de Educação sobre os cursos de puericultura ministrados nos grupos escolares. . Inscrito num investimento de pesquisa mais amplo, que tem possibilitado reunir e analisar manuais voltados para o ensino de higiene às crianças das escolas primárias3 3 Trata-se do programa de pesquisa Biblioteca de higiene, financiado pelo CNPq, no âmbito do qual se tem buscado realizar o levantamento, catalogação e análise de manuais escolares destinados ao ensino de higiene aos alunos das escolas primárias paulistas, publicados entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20. , este artigo propõe-se a capturar, para além dos enunciados presentes nos manuais e dos modos como se articulam no sentido de produzir a interpretação por parte dos pequenos leitores, indícios das práticas engendradas com o intento de conformar os gestos de cuidado com o corpo e a saúde4 4 Uma aproximação dessa dimensão das práticas higiênicas nas escolas paulistas foi ensaiada em Rocha (2010). . Sem ignorar as dificuldades que se impõem à investigação dos "gestos escolares da aprendizagem" (Chartier, 2000CHARTIER, Anne-Marie. Fazeres ordinários da classe: uma aposta para a pesquisa e para a formação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 26, n. 2, 2000, p. 157-168. , p. 158), a análise busca reinscrever os manuais escolares nos "fazeres ordinários da classe" (p. 158), tendo em conta a distinção entre as práticas e as prescrições de práticas e, numa outra dimensão, a impossibilidade de se deduzir os usos que os sujeitos fazem dos objetos que lhes são distribuídos ou impostos a par dos próprios objetos, conforme assinala De Certeau (1994).

O exame dos manuais pauta-se nas considerações de Escolano (1997ESCOLANO, Agustín. Introducción. In: ESCOLANO, Agustín (dir.). Historia ilustrada del libro escolar en España: del Antiguo Régimen a la Segunda República. Madri: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1997, p. 13-17.) sobre o seu valor como fontes que permitem aceder à "intrahistoria de la escuela" (p. 15), constituindo-se em chaves que podem elucidar a gramática que preside a organização e o funcionamento interno da instituição escolar, na medida em que eles são, a um só tempo, espaço de memória, suporte curricular e espelho da sociedade. Nesse sentido, operam como registro dos programas da cultura escolar do passado, das imagens dominantes na sociedade que os produziu e os utilizou, bem como do modo de apropriação das disciplinas acadêmicas. Em seus vínculos com o currículo podem ser lidos como uma espécie de "vulgata" escolar, "representación textual reducida, formalizada pedagogicamente, del universo científico o cultural a que se refiere" (p. 15). Seus textos e imagens permitem, ainda, ter acesso ao imaginário da época em que foram produzidos, configurando-se, por essa via, em "espelhos da sociedade" (p. 15).

Para além dessas dimensões os espaços textuais possibilitam, segundo assinala Escolano (1997ESCOLANO, Agustín. Introducción. In: ESCOLANO, Agustín (dir.). Historia ilustrada del libro escolar en España: del Antiguo Régimen a la Segunda República. Madri: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1997, p. 13-17.), uma aproximação das práticas engendradas pelos professores no desenvolvimento do seu trabalho cotidiano, constituindo-se os manuais, nessa perspectiva, numa "huella de los procedimentos que ordenaron la vida cotidiana de los establecimientos educativos, el testimonio de los modelos pedagógicos dominantes que informaron el oficio docente y la condición de aprendiz" (p. 15).

Conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar5 5 O subtítulo faz alusão ao conceito de cultura escolar, segundo o concebe Dominique Julia (2001).

A indagação sobre os vestígios das práticas escolares voltadas para a aquisição de hábitos saudáveis, a que se pode ter acesso por meios dos manuais, requer que se leve em conta as formas como as questões relacionadas à higiene e à saúde foram sendo incorporadas no currículo. Para tanto, mostra-se fundamental um exame dos programas de ensino, atento não apenas ao conteúdo das matérias, mas também aos procedimentos por meio dos quais esse conteúdo deveria ser ensinado e às pautas de comportamento com base nas quais se deveria orientar a educação das crianças, no âmbito da escola elementar.

Como parte do ordenamento legal produzido no contexto de institucionalização da escola primária graduada no Estado de São Paulo, o decreto n. 1.216, de 27 de abril de 1904, pelo qual se aprovou o Regimento interno dos grupos escholares e das escholas modelo, estabelecia os deveres dos alunos dessas instituições. Em meio às pautas de comportamento que deveriam ser seguidas pelos alunos figuram: a assiduidade, as condutas a observar no trato com as autoridades, os empregados da escola e os companheiros, a responsabilidade na preservação do edifício e dos objetos materiais utilizados nas práticas cotidianas da escola. Dois deveres enunciados no código de conduta do aluno remetem às preocupações com a observância, por parte dos pequenos, dos preceitos de higiene: o asseio do vestuário e o asseio corporal:

  • São deveres dos alumnos:

  • 1º. Trajar asseiadamente;

  • 2º. Comparecer diariamente á hora marcada pelo diretor;

  • 3º. Observar os preceitos de hygiene, quanto ao asseio proprio;

  • 4º. Tratar com delicadeza e urbanidade os professores, o auxiliar e o director;

  • 5º. Cumprir as determinações dos professores, do auxiliar e do director;

  • 6º. Tratar com bondade e respeito os empregados do estabelecimento;

  • 7º. Evitar estragos no jardim, no edificio e nos objectos escolares;

  • 8º. Tratarem-se com amizade uns aos outros, evitando brinquedos prejudiciaes, denuncias e delações mal fundadas; devem, entretanto, dizer a verdade, quando tiverem conhecimento de algum facto grave, que entre elles se tenha dado, e sobre o mesmo forem interrogados. (Regimento, 1904, p. 48)

As exigências quanto ao asseio, reafirmadas nos textos legais que sucedem o decreto aprovado em 19046 6 Regulamentando as reformas da instrução pública, os decretos n. 4.101, de 14 de dezembro de 1926, e n. 4.600, de 30 de maio de 1929, mantêm a mesma redação no que diz respeito ao asseio, embora sejam introduzidas alterações em outros aspectos. , podem instigar a curiosidade sobre os modos como a escola procurou conformar a sensibilidade das crianças em relação a questões dessa natureza, suscitando algumas indagações: que práticas se articularam no sentido de despertar essa responsabilidade pelo asseio dos trajes e do próprio corpo? Que relação as condutas prescritas nos textos legais guardam com as práticas enunciadas por Almeida Junior na década de 1920, no diálogo que procura estabelecer com as professoras? Que aspectos, para além do asseio, compunham o rol de preceitos de higiene de que as crianças deveriam se apropriar? Como essas questões se traduziram no currículo da escola primária e nos manuais escolares?

A lei n. 88/1892, que reforma a instrução pública do Estado de São Paulo criando os grupos escolares, prevê, entre as matérias que deveriam compor o currículo, o ensino das "noções de ciências físicas, químicas e naturais nas suas mais simples aplicações, especialmente à higiene". Ao estabelecer os programas de ensino, o decreto n. 1.217/1904 define os conteúdos de higiene a serem trabalhados na matéria, que assumia a denominação Ciências Físicas e Naturais - Higiene. Figurando em quatro dos cinco anos do curso primário, a matéria abordava as seguintes temáticas, apresentadas de uma forma que parece sugerir o vínculo entre o estudo do corpo humano e os preceitos de higiene:

  • [1º ano] Regras elementares de hygiene da alimentação, frugalidade, boa mastigação, abuso dos alimentos assucarados e das frutas verdes. O asseio como auxiliar da hygiene.

  • [2º anno] O homem. As partes exteriores. Generalidades sobre digestão, respiração. O sangue. Os sentidos. Os dentes. Cuidados hygienicos com a alimentação. O asseio. Cuidados com os orgams dos sentidos e com a bocca.

  • [3º ano] O homem. Partes principaes do corpo humano. As principaes funções de nutrição, fugindo a particularidades. Hygiene da alimentação. Hygiene da respiração. O asseio.

  • [5º ano] O homem. Apparelhos e funções. Esqueleto. Sentidos. Systema nervoso, muscular, etc. Hygiene da alimentação, do vestuario e da habitação. O exercício e a hygiene corporal. Cuidados que devem ter para evitar as molestias contagiosas. Primeiros socorros medicos nos casos urgentes. O abuso do fumo e do álcool. (Decreto n. 1.217, 1904, p. 68)

Os preceitos de higiene, que deveriam orientar a conduta das crianças, faziam parte de um programa mais amplo, por meio do qual, gradativamente, elas se apropriariam de conhecimentos sobre os animais e sua classificação; os vegetais, suas partes, funções e utilidade; os minerais e suas aplicações; os estados e as qualidades dos corpos; os fenômenos relativos ao movimento, gravidade, calor, luz, combustão, som, magnetismo, eletricidade; as cores; o ar atmosférico; os estados da água; o corpo humano, com ênfase nos órgãos e seu funcionamento. A essas temáticas se incorporavam, ao longo dos anos, conhecimentos sobre as aplicações da ciência à vida cotidiana, incluindo explicações sobre objetos como campainha elétrica, para-raios, barômetro, balanças ou sobre a iluminação elétrica e os meios de comunicação, entre outros. Duas ordens de questões sobressaem no rol de tópicos relacionados à higiene abordados ao longo do percurso de escolarização: o asseio e a alimentação. A esses tópicos, que incluíam os cuidados com o corpo, as roupas e a habitação, bem como a observação da exigência de moderação no consumo dos alimentos, associavam-se, em menor escala, indicações sobre os exercícios físicos, a prevenção de moléstias e os primeiros socorros em casos de acidentes. Um último tópico referia-se aos riscos do abuso do fumo e do álcool.

Esses mesmos aspectos compõem o programa adotado a partir de 1905 para as quatro séries em que então se organizava o ensino nos grupos escolares7 7 Decretos n. 1.281, de 24 de abril de 1905; 1.915, de 18 de agosto de 1910; 2.225, de 16 de abril de 1912. . Mudanças significativas foram introduzidas em 19188 8 Decreto n. 2.944, de 8 de agosto de 1918. quando a matéria, mantendo a mesma designação, passou a assumir a seguinte organização quanto às temáticas ligadas à higiene: no 1º ano permaneceu a ênfase nas questões ligadas ao asseio e à alimentação, introduzindo-se a discussão sobre os efeitos do fumo e do álcool, até então tratada no 4º ano: "h) regras uteis sobre higiene da alimentação: boa mastigação, frugalidade e sobriedade; regularidade nas refeições. i) conselhos higiênicos sôbre o asseio individual. Efeitos nocivos do fumo e do álcool" (decreto n. 2.944, 8 ago. 1918).

Como se pode observar, as exigências em relação à alimentação tornaram-se mais complexas, acrescentando-se à boa mastigação e à frugalidade, os imperativos de sobriedade e regularidade. No 2º ano o tratamento dos preceitos de higiene passou a articular-se, de forma explícita, ao estudo do corpo humano - "continuação do estudo das partes do corpo humano com observações gerais sôbre higiene: os sentidos. A higiene dos dentes" (decreto n. 2.944, 8 ago. 1918, p. 286). Ausente no programa do 3º ano a matéria incluía, no último ano do ensino primário, além das questões ligadas ao asseio e aos exercícios físicos, um conjunto de aspectos relacionados às doenças, modos de evitá-las e tratá-las:

Higiene da habitação, do vestuario e da alimentação. Exercicios fisicos: sua necessidade e suas vantagens. Repouso e sono. Insetos transmissores de enfermidades. Molestias contagiosas e infecciosas: - Impaludismo, ancilostomose, tuberculose, tracoma, lepra; meios de evita-las e seu tratamento. Sôro antiofídico, antidiftérico e antitetânico. Raiva e seu tratamento. Vaccinação contra a variola e a febre tifoide. (Decreto n. 2.944, 8 ago. 1918, p. 296)

Aos conhecimentos de higiene que compunham o programa dessa matéria, acresciam-se os de duas novas matérias: Economia doméstica, para as classes de 3º ano, e Economia Doméstica e Puericultura, para o 4º ano. O programa do 3º ano incluía, além de assuntos que se relacionavam às ocupações diárias da família, gastos e orçamento familiar, "conhecimentos de receitas de utilidade prática" e "cuidados higiênicos com as crianças, com os enfermos, com os animaes domésticos, etc" (decreto n. 2.944, 8 ago., 1918, p. 291). Os papéis de gênero ficavam demarcados no programa estabelecido para o 4º ano, que contemplava um amplo rol de assuntos relacionados aos cuidados com as crianças pequenas, associados, em grande medida, ao asseio e à alimentação, os quais deveriam ser ensinados às meninas:

Educação doméstica e puericultura

  • a) Necessidade da ordem, da previdencia e da economia.

  • b) Receita e despesa da familia.

Acresce para a secção feminina:

  • c) Escolha de uma boa ama.

  • d) Cuidados com os vestuários e banhos dos recém-nascidos.

  • e) Regras para o aleitamento natural.

  • f) A sede nas crianças; regime alimentício das mesmas.

  • g) O sal na alimentação.

  • h) Escala a observar na alimentação.

  • i) Meios para saber se a alimentação é útil.

  • j) Peso das crianças.

  • k) Dentição normal.

  • l) Exercicios e passeios. Repouso.

  • m) Moléstias da primeira idade. (Decreto n. 2.944, 8 ago., 1918, p. 295)

Abordando temáticas articuladas à preparação para a maternidade, essas matérias parecem não ganhar força no currículo das escolas primárias no período, desaparecendo dos programas para os grupos escolares e escolas isoladas aprovados em 19259 9 Ato do secretário de Estado dos Negócios do Interior, de 19 de fevereiro de 1925. . Mudanças também podem ser observadas em relação à matéria Ciências Físicas e Naturais - Higiene, que foi suprimida nos dois primeiros anos da escolarização, passando alguns dos conteúdos de que se ocupava a serem abordados em uma nova matéria: as Lições de Coisas. Já no terceiro e quarto anos a matéria passou a ser designada Ciências Físicas e Naturais. Ausentes no primeiro ano as questões relacionadas à higiene figuram, no programa de Lições de Coisas do segundo ano, associadas, como nos programas anteriores, ao asseio e à alimentação. Tais questões são apresentadas segundo uma nova formulação, que as articula ao estudo de aspectos que já estavam presentes nos programas da matéria Ciências Físicas e Naturais - Higiene, embora sem um vínculo explícito com a higiene. Assim, a mastigação, por exemplo, surgiu em meio ao estudo dos alimentos e seu preparo; o asseio corporal junto com o tema do vestuário, desaparecendo do programa para esta série o termo higiene, o que não deixa de suscitar indagações sobre as disputas em relação à presença dessas questões no currículo escolar:

1) Os cereais, os legumes e as frutas. A carne e o peixe. O preparo dos alimentos. A digestão. Os dentes e a mastigação. 2) A agua nos tres estados. As nuvens, a chuva, a fonte, as aguas correntes. As bebidas. A embriaguez. Efeitos nocivos do fumo. 3) O ar, vento, a bomba de bicicleta. A vela e as combustões. O arejamento dos quartos. [...] 6) O vestuario. Os tecidos. A circulação do sangue. A pele e o asseio. A limpeza da casa. (1925, p. 42)

Tematizando as questões do asseio e da alimentação, os tópicos do programa de Ciências Físicas e Naturais explicitam a articulação entre os preceitos higiênicos e o estudo do corpo humano. Assim, no 3º ano, seriam abordados os seguintes aspectos:

1) O homem; partes principais do corpo humano. Estudo muito simples do esqueleto. Aparelho digestivo e seus órgãos. A digestão. Alimentos e suas especies. Conselhos higienicos sobre a alimentação. 2) Idéia geral sobre a função da respiração e sobre a circulação. Conselhos higienicos. Cuidados com os órgãos dos sentidos. O asseio; sua importancia e necessidade para a saúde. (1925, p. 64)

O programa do 4º ano incluía, em dois itens, tópicos sobre a higiene individual, em articulação com o estudo dos aspectos anatômicos e fisiológicos, e informações sobre a prevenção de algumas enfermidades:

5) O homem. Orgãos, aparelhos e funções. Noções rudimentares sobre o sistema nervoso e muscular. Os sentidos. A higiene individual; sua necessidade como meio de conservar a saúde e prolongar a vida. Os exercicios físicos. A higiene da habitação. 6) Cuidados necessarios para evitar as molestias contagiosas e infecciosas: amarelão, maleita, tuberculose, tracoma, sarna e lepra. A vacinação. A raiva e a mordedura de cobra. Primeiros socorros medicos em casos urgentes. (1925, p. 90)

As mudanças na forma de nomear a matéria10 10 O programa aprovado em 1925 contemplava a matéria Noções de Cosmografia e Geografia Geral; de Ciências Físicas e Naturais, em suas mais simples aplicações à higiene, à lavoura e às indústrias (decreto n. 4.101, de 14 de dezembro de 1926). Em 1919 os conhecimentos de higiene figuram em uma matéria nomeada Noções Úteis e Instrutivas de Ciências Físicas e Naturais e de Fisiologia e Higiene (decreto n. 4.600, de 30 de maio de 1929). e nos modos de articular os conteúdos não parecem ter produzido grandes alterações na seleção das questões relacionadas à higiene que deveriam ser ensinadas às crianças das escolas primárias paulistas, figurando o asseio e a alimentação como temas recorrentes, aos quais foram, aos poucos, se incorporando informações sobre as doenças e formas de prevenção.

Os arranjos na forma de apresentar os conteúdos não são casuais e isentos de significado e de intencionalidade. A articulação aos estudos sobre o corpo humano, sua anatomia e fisiologia, nos dois últimos anos da escolaridade, por exemplo, pode ser lida como indício do intento de conferir cientificidade aos conhecimentos de higiene e, ao mesmo tempo, de pôr em circulação, por meio da escola, certa forma de pensar os cuidados com o corpo. Nesse sentido, a par do exame dos programas de ensino estabelecidos pela reforma de 1892, Souza (1998SOUZA, Rosa Fátima. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Unesp, 1998.) adverte que as noções científicas foram introduzidas no currículo com o propósito de conformar a leitura da realidade, uma vez que "a ciência como instrução (transmissão de conhecimentos) consistia menos na apropriação de conhecimentos científicos em si e mais na apreensão de uma forma de conceber o mundo e compreendê-lo" (p. 178). Em relação às noções de higiene ressalta que

a aplicação das noções científicas, especialmente à higiene, consubstanciava o ideal de ordenação do universo urbano. Dessa forma, a escola vinculava-se às estratégias de saneamento dos espaços públicos e marcava sua inserção duradoura nos projetos médico-pedagógicos de higienização social. (p. 178)

Para além da investigação sobre os conteúdos que deveriam ser ensinados às crianças, em seu percurso escolar, e as finalidades que justificaram a sua inserção no currículo, a indagação sobre a dimensão das práticas escolares exige que se atente para as orientações sobre os métodos e processos de ensino presentes nos programas aprovados pelo Estado. Nesse sentido, são significativas as recomendações em relação ao ensino dos preceitos de higiene, como parte dos conteúdos que compunham as matérias de ensino nos grupos escolares, em consonância com a diretriz que instituía o método intuitivo nas escolas paulistas. Segundo prescrevia o Regimento interno dos grupos escholares e das escholas-modelo, no capítulo referente ao ensino,

as lições sobre as materias de qualquer dos anos do curso deverão, de acordo com o programma adoptado, ser mais praticas e concretas do que theoricas e abstractas, e encaminhadas de modo que as faculdades das creanças sejam incitadas a um desenvolvimento gradual e harmônico. [...] & unico. Cumpre que o professor tenha em vista desenvolver a faculdade de observação e, para isso, empregue os processos intuitivos. (Art. 6º, 1904, p. 41)

Nessa mesma direção o decreto n. 4.101/1926 determina que,

nas escolas primarias, o methodo natural de ensino é a intuição, a licção de cousas, o contacto da intelligencia com as realidades que se ensinam, mediante a observação e a experimentação, feitas pelos alumnos e orientadas pelos professores. São expressamente banidos da escola os processos que appellem exclusivamente para a memoria verbal, as tarefas de méra decoração, a substituição das cousas e factos pelos livros, os quaes só devem ser usados como auxiliares do ensino. (Art. 109, 1926, p. 195)

Com base nesses princípios os programas de Ciências Físicas e Naturais, matéria que ocupou lugar central na difusão dos preceitos higiênicos, insistirão no caráter prático do ensino. Nessa direção, o programa aprovado em 1904 é enfático quanto à exigência de objetivação, prescrevendo que o ensino seja dado diante do objeto da explicação ou da sua estampa e que se dê prioridade às aplicações em detrimento da apresentação de princípios gerais. Quanto à natureza do trabalho a ser desenvolvido nessa matéria o professor deveria ter presente que "o ensino das sciencias naturaes tem por fim mais ensinar a observar, a experimentar, a classificar do que propriamente o ensino das materias que compõem o programma, isto é, é essencialmente educativo" (1904, p. 70). O caráter formativo e utilitário do ensino das noções de ciências físicas e naturais também pode ser observado no programa das Lições de Coisas aprovado em 1925. Assim, para o 1º ano, recomendava que

as primeiras noções de ciências físicas e naturais serão ministradas nesta classe sob a fórma de pequenas lições de cousas. Deverá, portanto, esse ensino ser feito sempre com o objeto á vista, e nas mãos das crianças, ou, na impossibilidade de obtê-lo, á vista da estampa que o represente. Essas lições não constituem um ensino cientifico, no sentido técnico da palavra; visam principalmente o desenvolvimento intelectual dos alunos, pelo cultivo das faculdades de observação. Serão dadas sem preocupação teórica, encarando-se sobretudo o ponto de vista educativo e utilitario. Sempre que fôr possivel, será conveniente relacionar com o mesmo objeto as diversas lições do dia (a lição de cousas, a de linguagem, a de moral, a de desenho, etc.), de modo que a unidade de impressão dessas diversas formas de ensino deixe um traço mais duradouro no espirito das crianças. (1925, p. 20)

Dando continuidade a um trabalho que visava ao desenvolvimento intelectual dos alunos, ensinando-os a ver, a descrever aquilo que viam, a organizar e concluir com base nos dados dessas observações, o programa de Lições de Coisas para o 2º ano prescrevia que,

tendo em vista a parte pratica desse ensino, devemos insistir sobre os cuidados higienicos indispensaveis á conservação da saúde. Mas, a higiene precisa ser praticada mesmo antes de ser estudada. Si o aluno não se apresentar bem asseado, deve completar sua limpeza, antes de entrar na classe: assim adquirirá na escola habitos de asseio, que a familia não lhe soube dar. (1925, p. 42)

Se o ensino dos cuidados higiênicos necessários à conservação da saúde, em seus visíveis vínculos com a moral, se revestia de um caráter prático, devendo a higiene ser antes exercitada que estudada, cabe indagar sobre as práticas por meio das quais se procurou incutir essas condutas nas crianças que frequentavam as escolas primárias. Numa outra dimensão, considerando o estatuto auxiliar conferido aos livros nos processos de ensino pautados no método intuitivo, há que se interrogar sobre as formas de apropriação dos preceitos higiênicos postas em marcha na escola primária.

Ensinando modos de viver e prescrevendo práticas escolares

Inscrita numa estratégia de ensino que confere lugar privilegiado não à leitura e decodificação dos textos, mas à encenação de gestos, acompanhada de informações que visavam a possibilitar a compreensão, por parte das crianças, da razão de ser dos habitos que estavam adquirindo e a adaptação a novas situações, a Cartilha de hygiene, publicada por Almeida Junior em 1923, reúne lições ilustradas que versam sobre asseio corporal, higiene da casa, alimentação, exercícios físicos, doenças e suas formas de prevenção, riscos do consumo do álcool e do fumo. O discurso assume, em geral, um tom prescritivo, sobrepondo às informações uma longa série de interdições e apelando, recorrentemente, à polarização entre os bons e maus exemplos, recurso traduzido também nas ilustrações que acompanham os textos. O convite à adesão das crianças a uma participação ativa em práticas de autoexame e autovigilância preside a ordem de algumas das lições que tematizam o asseio:

Examine sua mão direita.

Examine depois a mão esquerda.

Veja si as duas estão bem limpas. (Almeida Junior, 1936, p. 5)

Olhe agora as suas unhas: com qual das duas se parecem? (Almeida Junior, 1936, p. 6)

Vá ao espelho: veja como está alegre a sua carinha limpa. Parece até mais bonita! (Almeida Junior, 1936, p. 7)

Um regime de práticas distinto do que é proposto por Almeida Junior é sugerido na obra do médico Renato Kehl, A fada Hygia: primeiro livro de hygiene, publicada pela Livraria Francisco Alves, em 1923, e adotada em vários Estados brasileiros11 11 É possível supor que a obra circulou também nas escolas paulistas, tendo em vista a atuação do médico em São Paulo, onde fundou a Sociedade Eugênica, em 1918. Sobre as iniciativas editoriais do autor voltadas para o ensino da higiene às crianças ver Kinoshita (2012). . Dirigindo-se às mães e aos professores o médico defendia que a criança deveria crescer "adquirindo, dia a dia, novos conhecimentos de hygiene, educando-se na sua pratica, afim de não se expôr, ennublada pela ignorancia, ás investidas constantes dos males, sem saber como delles se defender" (Kehl, 1936, p. 7). Visando responder ao propósito de ensinar às crianças as "regras de bem viver de acordo com as exigências da natureza e do nosso organismo" e plasmar no "entendimento infantil os sãos ensinamentos" (Kehl, 1936, p. 8), a obra se propõe a tornar os conhecimentos mais fáceis e agradáveis.

Composta de duas partes reúne um conjunto de narrativas conduzidas pela figura de uma fada, seguidas de preceitos apresentados como Os conselhos da fada Hygia. Segundo o médico seu livro oferecia "conselhos e noções em phrases curtas e intelligiveis, com breves considerações elucidativas" (Kehl, 1936KEHL, Renato. A fada Hygia: primeiro livro de Hygiene. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1936., p. 9), cabendo aos mestres e às mães a função de dar maiores explicações. Distintamente da estratégia de ensino sugerida por Almeida Junior, como também das orientações presentes nos programas de ensino, a aquisição dos hábitos parece calcada na leitura e explicação das noções e preceitos, como sugerem as recomendações aos professores:

A professora ou o professor lerá ou determinará que as crianças leiam um capitulo por dia, explicando o que ouviram ou leram e a razão hygienica de cada conselho, quando forem inquiridas.

Por exemplo: "não beba agua sem ser fervida ou filtrada".

Perguntará o mestre:

  • - Por que é preciso esse cuidado?

  • - Qual a consequência de beber agua contaminada?

  • - Porque ferver ou filtrar a agua antes de bebel-a?

Esse methodo de ensino tem a vantagem de interessar a criança e, além della, os paes ou tutores que, muitas vezes, serão solicitados a dar as explicações, difundindo-se assim, no lar, os simples conhecimentos contidos no livro. (Kehl, 1936KEHL, Renato. A fada Hygia: primeiro livro de Hygiene. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1936., p. 9)

O ensino das temáticas ligadas à higiene e à saúde parece se articular, nessa e em outras obras destinadas às crianças que frequentavam as escolas primárias, a práticas de leitura e explicação de textos. Nesse sentido, não parece casual que essas temáticas figurem nas narrativas dos livros de leitura suplementar, obras orientadas segundo o propósito de assegurar que as crianças que já dominavam a leitura pudessem se apropriar de conhecimentos de diferentes matérias. A aquisição das noções de higiene e dos hábitos considerados saudáveis e moralmente aceitos articulava-se, por essa via, às práticas de leitura. Exemplar dessa estratégia é também o Livro de Hercules: lições de hygiene, civicas e moraes, do professor primário Accacio Faria, publicado pela Typographia Bancaria, em 1928FARIA, Accacio. Livro de Hercules: lições de hygiene, civicas e moraes. São Paulo: Typographia Bancaria, 1928., aprovado e adotado pela Diretoria Geral da Instrução Pública para leitura no 3º ano das escolas primárias.

No diálogo que estabelece com os pares Faria começa por demarcar o caráter prático do ensino de higiene, afirmando que "a hygiene não se deve tão somente aprender, mas, sim, compreender e praticar. É uma sciencia positiva, de cujo exercicio resulta um remoto ou immediato proveito ao aperfeiçoamento organico do individuo e á conservação da espécie" (Faria, 1928). Ciência positiva, cujo aprendizado se baseava na compreensão, mas, fundamentalmente, no exercício e na prática, a higiene deveria ser ensinada às crianças de modo a fazê-las aderir a prescrições que recobriam as mais diversas esferas da vida cotidiana. Propondo-se a amenizar, por meio de historietas, os "asperos conselhos e ensinamentos de hygiene, adaptando-os á comprehensão infantil" (Faria, 1928), sem perder de vista a dimensão moral de que se revestiam, o autor constrói uma narrativa de vida saudável, modulada pelas oposições entre vícios e virtudes, na qual não falta o aceno ao terror, acionado, segundo ele, com vistas a convencer as crianças da necessidade de adesão às prédicas da higiene.

Outras práticas escolares, inscritas em um regime que apelava menos à encenação de gestos e à compreensão dos modos de viver prescritos, e mais à memorização, também podem ter sido engendradas no ensino da higiene, como sugere a obra ilustrada Hygiene: rimas para a infância, elaborada pela professora primária Sara Arruda. Publicado em 1927 pela Livraria Liberdade e aprovado pela Diretoria Geral do Ensino, o pequeno livro reúne poemas que tematizam aspectos ligados à higiene, os quais poderiam ser recitados como canções. A obra procurava recorrer, nesse sentido, à memória das crianças como recurso para a aquisição de hábitos, valendo-se de uma estratégia que visava a tornar as aulas menos monótonas para os alunos principiantes, conforme afirmava a professora, em seu diálogo com os pares:

Meus colegas:

O modesto livrinho que acabo de publicar contém uma pequena coleção de versos sôbre Higiene, apropriados á infancia escolar. Possúem todos o mesmo numero de silabas; as crianças poderão decorá-los, aproveitando a música da ultima pagina, para canções. (Arruda, 193?)

Versando sobre temas ligados, predominantemente, ao asseio, alimentação, cuidados com as crianças pequenas e exercícios físicos, a obra se destinava não apenas ao trabalho nas aulas de higiene, mostrando-se útil também para as aulas de música, declamação e leitura suplementar. Os exercícios de memorização, por meio das rimas cantadas pelos alunos, davam o tom das estratégias acionadas pela professora no ensino da higiene, cujo sucesso se alicerçava na experiência de 12 anos dedicados à docência:

Conheço, mais ou menos, o modo de despertar interesse nos pequenos alunos. Há 12 anos estou exercendo o magisterio. Experimentei nas aulas de higiene, que até aqui têm sido tão insipidas aos principiantes, êste meu insignificante trabalho, obtendo ótimos resultados. É um premio para a criança ganhar um versinho para decorar! - Eu tenho disto experiencia e certeza. E será êste um dos melhores meios de incutir no espirito infantil durante as aulas de Declamação, Leitura Suplementar, Música e Higiene, os indispensaveis e úteis conselhos de Saúde. (Arruda, 193?)

A pauta musical que acompanha a obra figura como um recurso que, somado às rimas e às imagens que ilustravam cada poema, possibilitaria fixar na memória das crianças os "úteis conselhos de saúde" (Arruda, 193?). O recurso parecia corresponder aos propósitos de "relacionar com o mesmo objeto as diversas lições do dia", deixando um "traço mais duradouro no espirito das crianças", previstos no programa de 1925. Entre os temas abordados o asseio figura em primeiro plano, como ilustra o poema O banho:

Num banheirinho esmaltado Ou numa grande bacia, Um banho bem demorado

Traz robustez, alegria...

Um corpo são, lavadinho Bem fresquinho e bem trajado Vai seguindo o bom caminho de um viver bem prolongado... É perniciosa a sujeira; Muito amiga da tristeza, - Perdendo a saúde inteira Quem não cuida da limpeza. (Arruda, 193?, p. 21)

O exame desses manuais escolares permite observar, a par do recorrente apelo à dimensão prática do ensino da higiene, sentidos diversos para o que os autores, fossem eles professores ou médicos, entendiam como prática. No discurso que estabelecem com as professoras e, em alguns casos, com os pais, mesclam-se indícios de práticas corporais, que visam a conformar os gestos cotidianos das crianças, notadamente aqueles voltados para o asseio, com práticas de leitura, explicação das informações presentes nos textos e recitação de pequenos poemas, em que a rima opera como recurso para favorecer a memorização. Os indícios das práticas encenadas na escola ou representadas nos manuais, seja por meio dos textos ou das imagens, oscilam entre a vigilância dos adultos em relação ao comportamento infantil e a autovigilância, concebida como recurso que conduziria ao autoregramento.

Os manuais escolares examinados sugerem uma mescla dos modos de fazer por meio dos quais as crianças deveriam se apropriar dos conhecimentos relacionados à higiene e à saúde. Se as temáticas do asseio, alimentação, exercícios físicos e prevenção de doenças parecem ter se imposto como eixo central do ensino de higiene, compondo tanto os programas das matérias, quanto os manuais escolares, o tratamento que se conferiu a essa questão e os modos como se procurou fazer com que elas se incorporassem à vida cotidiana das crianças, convertendo-se em hábitos, parece ter assumido caminhos diversos. Enquanto as recomendações contidas nos programas insistiam em um ensino calcado no contato das crianças com as realidades ensinadas, conferindo aos livros o papel de auxiliares dos processos de ensino, os autores dos manuais escolares, alguns deles professores, mesmo afirmando o caráter prático do ensino da higiene, pareciam depositar na leitura dos preceitos e ensinamentos, acompanhada de explicações, recitação ou canto, a possibilidade de aquisição dos conhecimentos e de conformação do comportamento infantil aos imperativos da higiene.

Encenando práticas

Em 1925 Almeida Junior promoveu, com o apoio do Instituto de Higiene de São Paulo e da Diretoria de Instrução Pública, um inquérito no qual perguntava aos diretores dos grupos escolares o que se fazia na escola primária paulista com vistas à aquisição de habitos de higiene. No conjunto das respostas dadas pelos diretores destacam-se tão somente a revista de asseio e as repreensões das crianças pelas transgressões cometidas, demarcando a distância entre o discurso higienista, que propalava a centralidade da escola na conformação dos hábitos, e as condições em que se operou a difusão da higiene no âmbito da instituição escolar (Rocha, 2003ROCHA, Heloísa Pimenta. Educação escolar e higienização da infância. Cadernos Cedes, Campinas, v. 23, n. 59, 2003, p. 39-56., 2010).

A situação parece ter assumido uma orientação distinta a partir da década de 1930, provavelmente em função das mudanças resultantes da aprovação do Código de Educação, em 193312 12 Resultado da atuação de Fernando de Azevedo como diretor do Ensino do Estado de São Paulo, o Código de Educação consignava um conjunto de práticas já experimentadas pelo educador em sua experiência no Rio de Janeiro, no âmbito da reforma conduzida como diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, entre 1927 e 1930. Sobre a presença das preocupações com a formação de hábitos saudáveis na reforma carioca ver Camara (2003), Vidal e Paulilo (2003). , das iniciativas decorrentes da atuação de Almeida Junior nos órgãos responsáveis pela educação sanitária escolar, assim como do trabalho desenvolvido pelas educadoras sanitárias nas escolas primárias e nos lares das crianças. Cabe lembrar, nesse sentido, que o Serviço de Higiene e Educação Sanitária Escolar, criado por Fernando de Azevedo em 1933, contava em seus quadros com médicos de diferentes especialidades, educadoras sanitárias e um desenhista, responsabilizando-se por um conjunto de atribuições ligadas à formação da consciência sanitária dos escolares, inspeção higiênica das escolas e dos alunos, exames médicos, fichamento médico-pedagógico e antropométrico, ensino de higiene nas escolas, administração de cuidados higiênicos e médico-pedagógicos e encaminhamento das crianças que necessitavam de assistência e tratamento médico às clínicas escolares. Os esforços dos professores, em colaboração - nem sempre pacífica -, com as educadoras sanitárias traduziam-se em cuidados voltados para o asseio do corpo, orientações quanto à alimentação, práticas de puericultura e vacinação anti-variólica.

Dando visibilidade a essas iniciativas foi publicada, na edição de dezembro de 1933 da Revista de Educação, órgão oficial da Diretoria Geral do Ensino, a tese apresentada pela educadora sanitária Maria Antonietta de Castro na Conferência Nacional de Proteção à Infância, em setembro desse mesmo ano sob o título O ensino da puericultura nas escolas e agremiações femininas. O cuidadoso esforço de demonstração do trabalho desenvolvido pelo Serviço de Higiene e Educação Sanitária Escolar junto a diferentes instituições, entre elas as escolas primárias, pode ser evidenciado quando se examina o material anexo ao artigo, que inclui uma coleção de fotografias dos cursos de puericultura ministrados pelas educadoras sanitárias às alunas dos grupos escolares paulistas, o programa desses cursos e um trabalho sobre as causas da mortalidade infantil, elaborado por alunas do 4o. ano da Escola Primária José de Anchieta.

Os indícios contidos nas fotografias permitem uma aproximação das práticas instituídas nas escolas primárias paulistas. Em seus vínculos com os vestígios presentes nos manuais escolares e nos programas de ensino, possibilitam pensar a forma como questões ligadas à orientação das meninas para as responsabilidades da maternidade e para os cuidados com a saúde dos pequenos ocuparam lugar na escola primária. Entre esses vestígios o poema extraído da obra de Sara Arruda, sob o título Bebê, é exemplar:

Dê-me bom e puro leite, De seio sadio e forte; O sábio conselho aceite Para livrar-me da morte. Quantos bebês pobrezinhos Estão sendo envenenados, Mimósos inocentinhos E tão mal alimentados! É assim que implora cuidado, A voz da infancia num brado: - Bendito seja, portanto, O leite materno e santo! (Arruda, 193?, p. 35)

O tema dos cuidados com os pequenos encontra continuidade nas fotografias reunidas pela educadora sanitária. Observando as fotografias, cabe interrogar: o que dizem? Que informações oferecem sobre os modos como as preocupações com a higiene e a saúde infantil foram ensinadas às meninas, na tentativa de guiá-las na geração e criação de filhos fortes, saudáveis e robustos? Como se encenam as práticas escolares? O que essas fotografias informam sobre os fazeres cotidianos da escola e os sentidos a eles atribuídos pelos sujeitos da escolarização? O que orientou a sua produção e a decisão da educadora sanitária de reuni-las nesse artigo, apresentado inicialmente como tese, em um congresso que assume como tema a proteção à infância, e publicado, posteriormente, no periódico do setor responsável pela educação no Estado de São Paulo?

Sem desconsiderar o caráter de propaganda oficial de um setor criado no contexto das iniciativas capitaneadas por Fernando de Azevedo, as fotografias reunidas pela educadora sanitária podem oferecer indícios das práticas instituídas nas escolas primárias paulistas, as quais tinham o propósito de formar as meninas que frequentavam o último ano nas exigências da maternidade, conformando-as como futuras mães, devotadas à preservação da saúde e prevenção das doenças dos pequenos sob sua responsabilidade13 13 Sobre essa questão ver Viviani (2007). . As fotografias, que cumprem no artigo a função de comprovação da tese da eficiência do órgão no combate à mortalidade infantil, põem em cena meninas circunspectas, calçadas, limpas e bem penteadas, acompanhadas de uma figura feminina adulta, imersas em práticas de cuidado com as crianças pequenas. Práticas exemplares, cuja encenação se articula ao intento de modelar, tanto as práticas escolares, pela indicação do modo correto de ensinar os cuidados com a saúde, quanto as práticas domésticas de cuidado com os pequenos. Envolvidas na confecção do enxoval, no banho do bebê, na pesagem, no preparo dos mingaus e em visitas domiciliares, as meninas são fotografadas em situações que colocam no centro da cena a figura do bebê, algumas vezes representado por uma boneca.

A sequência de fotografias da aula de puericultura ministrada pela educadora sanitária Altina Tavares, no Grupo Escolar Maria José, oferece indícios das estratégias adotadas por essas profissionais nos cursos oferecidos às alunas das escolas primárias. Na primeira imagem as meninas, em torno de uma mesa, ocupam-se da pesagem do bebê/boneca. No centro da imagem seguinte pode-se ver uma aluna que, atenciosamente observada pelas demais, mergulha a boneca na banheira. A essas fotografias segue-se uma em que a boneca, sobre a mesa, é cuidadosamente enxuta por uma aluna, enquanto as demais a observam atentamente. A legenda da quarta imagem aproxima o leitor do trabalho minucioso por meio do qual se procurava formar as meninas na arte de ser mãe: "IV - Finalizando a toilette, entra em cena a latinha de talco" (Revista de Educação, dez. 1933). Como num filme educativo, a última fotografia registra o momento em que a boneca é vestida com as roupas confeccionadas pelas próprias alunas.

Imagens 1 a 5
Aspectos seriados de uma aula de puericultura no Grupo Escolar Maria José - educadora Altina Tavares.

Três outras fotografias oferecem mais alguns indícios sobre as práticas escolares introduzidas nas escolas primárias por meio da atuação das educadoras sanitárias. Mudam os cenários, inclui-se a excursão ao centro de puericultura, repetem-se as temáticas: o banho, a pesagem e o enxoval confeccionado pelas próprias alunas. A organização da cena se mantém: as meninas atuam sob a supervisão de uma educadora sanitária. Em alguns registros a boneca cede lugar a um bebê, emprestado à escola para as aulas de puericultura.

Imagens 6 a 8
Cursos de Puericultura nos grupos escolares de São Paulo pelas educadoras sanitarias.

Como parte desse programa de preparação da mulher para os misteres da criação dos filhos, as práticas encenadas articulavam-se no sentido de pôr as meninas em contato com os cuidados cotidianos que deveriam ser dispensados às crianças pequenas, operando, tanto pelo treino em situações modelares, quanto pelas visitas domiciliares, em que eram chamadas a atuar como elementos de difusão das práticas aprendidas. Como alvo dessas práticas figurava o objetivo de combater aquela que era considerada pelos médicos como uma das principais causas da mortalidade infantil: a ignorância das mães.

No conjunto das atividades desenvolvidas pelo Serviço de Higiene e Educação Sanitária Escolar, assumia centralidade o curso de puericultura oferecido pelas educadoras sanitárias às alunas das escolas primárias paulistas14 14 Conforme registra a educadora sanitária, naquele ano o curso já havia sido oferecido a mais de quatro mil alunas de 12 a 15 anos, de 60 grupos escolares da capital. . O programa, composto de 17 tópicos, incluía questões que iam das causas da mortalidade infantil e dos cuidados pré-natais até uma extensa lista de orientações a serem observadas no sentido de garantir a preservação da saúde do bebê e o seu pleno desenvolvimento, as quais incidiam sobre itens como: amamentação, desmame, preparo dos alimentos, asseio corporal e das roupas, sono, dentição, passeios, entre outros.

No desenvolvimento desse programa, a dimensão prática parecia ganhar centralidade. Como pressuposto do trabalho figurava a crença de que "as alunas das escolas, desde as primárias, mediante um preparo prévio, poderão exercer notável influência sobre o meio em que vivem" (Castro, 1933CASTRO, Maria Antonietta. O ensino da puericultura nas escolas e agremiações femininas. Revista de Educação, São Paulo, dez. 1933, p. 117-127., p. 120). A importância do trabalho ganhava relevo quando se considerava que as alunas estavam em uma "idade propícia para o aprendizado, mercê de seu espírito em formação, ainda isento de erros e preconceitos" (Castro, 1933, p. 120). Nesse sentido, a escola se configurava em aparelhamento ideal para a difusão das noções de higiene infantil e puericultura.

Visando oferecer às meninas "o preparo necessário, de modo a torná-las colaboradoras ativas na solução dos problemas da saúde coletiva, pelo conhecimento da natureza, necessidades e processos biológicos do crescimento e nutrição da criança, através de observações diretas" (Castro, 1933CASTRO, Maria Antonietta. O ensino da puericultura nas escolas e agremiações femininas. Revista de Educação, São Paulo, dez. 1933, p. 117-127., p. 124), o ensino de puericultura tinha como objetivo não apenas formar as alunas como futuras mães, mas também formá-las como agentes cujo raio de ação se estenderia, imediatamente, aos seus lares e ao meio em que viviam, influenciando as próprias mães e as vizinhas15 15 Na narrativa dos elementos que compunham o trabalho voltado para a formação das futuras mães é curioso observar a rápida alusão à participação dos meninos: "Até os meninos fazem bercinhos, pequenos vestiários, etc., etc." (Castro, 1933, p. 126). .

A tematização da vida cotidiana, objeto de observação das visitas domiciliares, fica evidente também nos problemas propostos às alunas nas aulas de puericultura, como se pode notar na situação-problema, exemplar tanto pelo que propõe como pela resposta que suscita:

Otávio tem dous meses e meio. Sua mãezinha, quando moça esteve em tratamento num sanatório de tuberculosos. Êle ainda não foi pesado, dorme na mesma cama com os pais, num quarto de uma janela, sem venezianas e onde dormem também mais três irmãozinhos. Otávio nunca sái do quarto para passear. Êle está magrinho, chora muito, tanto de dia como de noute, e sua mãezinha dá-lhe sempre chá de erva doce, mas, não há meios de êle ficar bom. Que fazer? (Castro, 1933CASTRO, Maria Antonietta. O ensino da puericultura nas escolas e agremiações femininas. Revista de Educação, São Paulo, dez. 1933, p. 117-127., p. 125)

Dentre as respostas oferecidas, a educadora sanitária selecionou a que segue:

Eu levaria esse menino ao Centro de Saúde e mandaria a educadora pesá-lo. Punha-o a dormir em uma caminha separada da dos pais. Êsse quarto devia ser bem arejado, com duas janelas com venezianas, banhado pelo sol. Não deixava dormir outras pessoas em seu quarto, fora os pais. Levava-o a passear em um lugar cheio de árvores, bem limpinho, onde êle pudesse brincar. Dava-lhe boa alimentação, vestia-o bem e sempre o levaria ao Centro de Saúde para ser pesado. Essa mãe não é preparada, pois se ela dá chá de erva doce ao seu filhinho, e êle não quer, deve levá-lo ao médico especialista. (Castro, 1933CASTRO, Maria Antonietta. O ensino da puericultura nas escolas e agremiações femininas. Revista de Educação, São Paulo, dez. 1933, p. 117-127., p. 126)

Legitimando a autoridade da educadora sanitária e do médico especialista, a análise da aluna se funda na oposição entre aqueles que detinham o saber sobre a vida e as despreparadas mães, que negligenciavam os cuidados em relação ao controle do peso, arejamento da casa, alimentação e práticas terapêuticas, expondo seus filhos aos riscos da aglomeração e das mezinhas, com as quais procuravam curá-los das doenças. Pondo em cena alguns elementos do programa de puericultura, o problema e a resposta oferecida são exemplares das múltiplas dimensões da vida que se visava atingir por meio das práticas de puericultura.

O trabalho de difusão das noções de higiene e puericultura não se restringia ao âmbito das instituições escolares, como se pode depreender da leitura do artigo publicado pela educadora sanitária Maria Antonietta de Castro, na edição da Revista de Educação de dezembro de 1934CASTRO, Maria Antonietta. A educação sanitária na escola primária: realizações das educadoras sanitárias do Serviço de Hygiene Escolar e Educação Sanitária Escolar em 1933. Revista de Educação, São Paulo, dez. 1934, p. 229-249. . Inventariando o amplo rol de atividades de cunho preventivo, curativo e de natureza educativa desenvolvidas pelo Serviço de Higiene e Educação Sanitária Escolar, ao longo do ano de 1933, ela registra os trabalhos voltados para a aquisição de hábitos sadios de asseio e alimentação, bem como os cursos de puericultura ministrados nos grupos escolares. Como coroamento dessa última atividade, confere destaque à exposição realizada no Parque Dom Pedro, com o objetivo de demonstrar os procedimentos que eram seguidos nesses cursos.

Tematizando os principais pontos do programa a exposição contou com cartazes elaborados pelas alunas, provas e trabalhos escritos, fichas domiciliares, gráficos de crescimento de crianças observadas, tabelas de peso, cartilhas de puericultura, enxovais feitos pelas alunas, além de uma sala ambiente representando o quarto do bebê, cujo mobiliário fora produzido pelos alunos. A participação das mães operárias e o espetáculo oferecido a elas mereceram um registro da educadora sanitária, indicativo dos propósitos a que visava a exposição, para além da afirmação da importância da puericultura no currículo das escolas primárias:

Teve, a exposição, um caracter altamente educativo, mostrando o que pode ser feito, em matéria de Puericultura, na escola primaria. Foi, grandemente, visitada, principalmente, pelas mães operarias, moradoras nas visinhanças, que receberam, das educadoras ahi escaladas, demonstrações sobre os cuidados do Bebé. Como complemento á demonstração, foi representada, pelas alumnas, a comedia "A Casa das Bonecas" sobre o assumpto, comedia que foi repetida em festas de encerramento de grupos escolares. (Castro, 1934CASTRO, Maria Antonietta. A educação sanitária na escola primária: realizações das educadoras sanitárias do Serviço de Hygiene Escolar e Educação Sanitária Escolar em 1933. Revista de Educação, São Paulo, dez. 1934, p. 229-249. , p. 235)

Os registros publicados na Revista de Educação procuram dar conta da atuação das educadoras sanitárias vinculadas ao serviço criado por Fernando de Azevedo, a qual se desdobrava em atividades que visavam reconfigurar as práticas cotidianas de asseio, alimentação e cuidado com as crianças pequenas. Sem desconsiderar o lugar de produção e os intentos de legitimação de um projeto de reforma da educação, os trabalhos escolares desenvolvidos pelas alunas e as fotografias, encartados ao artigo da educadora sanitária, podem oferecer indícios das práticas de higiene, saúde e puericultura instituídas no âmbito das escolas primárias paulistas, permitindo, em sua articulação com as prescrições contidas nos textos legais e com os vestígios de práticas que perpassam os manuais escolares, uma aproximação dos modos como as questões de higiene e saúde se introduziram na escola e configuraram o cotidiano das práticas escolares.

Considerações finais

Lançando mão de manuais escolares voltados para o ensino de temáticas ligadas à higiene e à saúde para as crianças que frequentavam as escolas primárias do Estado de São Paulo, em articulação com os programas escolares e com fotografias, procurou-se examinar dos vestígios deixados pelos procedimentos que orientaram a vida cotidiana da escola (Escolano, 1997ESCOLANO, Agustín. Introducción. In: ESCOLANO, Agustín (dir.). Historia ilustrada del libro escolar en España: del Antiguo Régimen a la Segunda República. Madri: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1997, p. 13-17.), com vistas a avançar para além de uma leitura dos enunciados postos em circulação por meio dos manuais escolares. Na busca dos indícios presentes em diferentes registros, intentou-se exercitar a possibilidade de empreender uma aproximação do funcionamento interno da escola.

O exercício proposto permitiu flagrar a reiterada afirmação do valor das práticas como meio de aquisição dos hábitos de higiene, o que pode suscitar a indagação sobre o lugar dos manuais escolares num modelo de ensino que procurava se afirmar a partir de uma dimensão eminentemente prática. O espaço reservado nos manuais para o diálogo com os adultos responsáveis pela educação das crianças - professoras ou mães -, associado ao formato assumido pelas lições, mostra-se revelador dos distintos regimes de práticas que presidiram esse trabalho, evidenciando as hibridações entre modelos pedagógicos centrados na atividade das crianças e aqueles que se pautam na centralidade da figura do professor.

O leque de práticas escolares articuladas segundo o propósito de conduzir as crianças à adesão a novos modos de viver e se comportar, indiciado nos manuais escolares, nos programas de ensino e nas fotografias examinadas, inclui gestos de revista e vigilância dos comportamentos infantis, remetendo a situações em que as crianças assumem um papel passivo, comportando-se como objetos do olhar atento das professoras e de outros agentes. Numa outra dimensão é possível identificar indícios de práticas que apelam à atuação das crianças como meio de conformação dos seus gestos, a exemplo da revista de asseio da escola, em que estas são chamadas a agir como inspetores sanitários no exercício de exame do ambiente escolar. As práticas de puericultura fotografadas parecem operar segundo esse mesmo regime, convocando as meninas, enredadas com objetos ligados ao asseio, à alimentação, aos cuidados com as crianças pequenas, representadas por meio de uma boneca, a encenar um conjunto de gestos intimamente ligados à maternidade, numa espécie de treino para o papel que delas se esperava no âmbito da sociedade.

Se os programas de ensino repisam, em suas prescrições, o valor da observação e da experimentação, as orientações contidas nos manuais escolares parecem insistir, em grande medida, em um ensino calcado na leitura, acompanhada das explicações da professora. O texto impresso serve, ainda, de suporte aos exercícios de memorização, com base em rimas que deveriam ser cantadas. No limite, os indícios levantados instigam a indagar sobre o sentido atribuído às práticas escolares voltadas para a aquisição de hábitos de higiene e saúde e, numa outra dimensão, sobre os parentescos entre essas práticas e as práticas de leitura.

Na reflexão sobre esses indícios talvez seja sugestivo lembrar que, entre os diversos gêneros assumidos pelos manuais escolares voltados para o ensino da higiene, estiveram os livros de leitura suplementar, configurados a partir de narrativas exemplares destinadas às crianças que já sabiam ler. Na configuração dessas práticas, concebidas em suas solidariedades ou em seus distanciamentos com a leitura, explicação e recitação dos textos dos manuais escolares, um aspecto parece se impor: a exigência de repetição, seja dos preceitos, seja dos gestos, como forma de aquisição de hábitos saudáveis.

Referências

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  • ARRUDA, Sara Sampaio. Hygiene: rimas para a infância. 2. ed. São Paulo: Livraria Liberdade, 193?.
  • CAMARA, Sônia. As reformas de instrução pública e a educação profissional feminina no Distrito Federal durante os anos 20. In: MAGALDI, Ana Maria; ALVES, Cláudia; GONDRA, José Gonçalves (orgs.). Educação no Brasil: história, cultura e política. Bragança Paulista: USF, 2003, p. 399-417.
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  • VIVIANI, Luciana Maria. A biologia necessária: formação de professoras e escola normal. Belo Horizonte: Argvmentvm; São Paulo: Fapesp, 2007.
  • 1
    Sobre as recomendações de Almeida Junior em relação ao ensino de higiene ver Rocha (2003, 2003a). Para uma análise do modo como essas orientações se traduzem nas lições da cartilha ver, especialmente, Rocha (2011).
  • 2
    Agradeço a Maria Angela Borges Salvadori pelo apoio no levantamento do material publicado na Revista de Educação sobre os cursos de puericultura ministrados nos grupos escolares.
  • 3
    Trata-se do programa de pesquisa Biblioteca de higiene, financiado pelo CNPq, no âmbito do qual se tem buscado realizar o levantamento, catalogação e análise de manuais escolares destinados ao ensino de higiene aos alunos das escolas primárias paulistas, publicados entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20.
  • 4
    Uma aproximação dessa dimensão das práticas higiênicas nas escolas paulistas foi ensaiada em Rocha (2010).
  • 5
    O subtítulo faz alusão ao conceito de cultura escolar, segundo o concebe Dominique Julia (2001).
  • 6
    Regulamentando as reformas da instrução pública, os decretos n. 4.101, de 14 de dezembro de 1926, e n. 4.600, de 30 de maio de 1929, mantêm a mesma redação no que diz respeito ao asseio, embora sejam introduzidas alterações em outros aspectos.
  • 7
    Decretos n. 1.281, de 24 de abril de 1905; 1.915, de 18 de agosto de 1910; 2.225, de 16 de abril de 1912.
  • 8
    Decreto n. 2.944, de 8 de agosto de 1918.
  • 9
    Ato do secretário de Estado dos Negócios do Interior, de 19 de fevereiro de 1925.
  • 10
    O programa aprovado em 1925 contemplava a matéria Noções de Cosmografia e Geografia Geral; de Ciências Físicas e Naturais, em suas mais simples aplicações à higiene, à lavoura e às indústrias (decreto n. 4.101, de 14 de dezembro de 1926). Em 1919 os conhecimentos de higiene figuram em uma matéria nomeada Noções Úteis e Instrutivas de Ciências Físicas e Naturais e de Fisiologia e Higiene (decreto n. 4.600, de 30 de maio de 1929).
  • 11
    É possível supor que a obra circulou também nas escolas paulistas, tendo em vista a atuação do médico em São Paulo, onde fundou a Sociedade Eugênica, em 1918. Sobre as iniciativas editoriais do autor voltadas para o ensino da higiene às crianças ver Kinoshita (2012).
  • 12
    Resultado da atuação de Fernando de Azevedo como diretor do Ensino do Estado de São Paulo, o Código de Educação consignava um conjunto de práticas já experimentadas pelo educador em sua experiência no Rio de Janeiro, no âmbito da reforma conduzida como diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, entre 1927 e 1930. Sobre a presença das preocupações com a formação de hábitos saudáveis na reforma carioca ver Camara (2003), Vidal e Paulilo (2003).
  • 13
    Sobre essa questão ver Viviani (2007).
  • 14
    Conforme registra a educadora sanitária, naquele ano o curso já havia sido oferecido a mais de quatro mil alunas de 12 a 15 anos, de 60 grupos escolares da capital.
  • 15
    Na narrativa dos elementos que compunham o trabalho voltado para a formação das futuras mães é curioso observar a rápida alusão à participação dos meninos: "Até os meninos fazem bercinhos, pequenos vestiários, etc., etc." (Castro, 1933, p. 126).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2016
  • Aceito
    22 Jul 2016
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