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O Povo Xukuru frente ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Xukuru People in the Inter-American Human Rights System

Resumo

O objetivo geral é fazer um resgate do trâmite do litígio do Povo Xukuru de Ororubá contra o Estado brasileiro em sede da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos. O objetivo específico é apontar o núcleo da tese jurídica construída no âmbito da litigância junto à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos e refletir a seu respeito naquilo que está presente ou ausente na argumentação jurídica quanto à ancestralidade indígena.

Palavras-chave:
direito internacional; ancestralidade; direito de propriedade

Abstract

The general objective is to remember the proceedings of the litigation of the Xukuru People of Ororubá against the Brazilian State at the headquarters of the Inter-American Commission on Human Rights. The specific objective is to point out the nucleus of the legal thesis constructed at the level of litigation before the Inter-American Commission on Human Rights and reflect on it in what is present in the argument and in what is absent about ancestry.

Keywords:
international law; ancestry; property rights

Introdução

A busca incessante do Povo Indígena Xukuru de Ororubá pelo reconhecimento de seu direito sobre a demarcação de suas terras ancestrais representa um dentre tantos movimentos1 1 Movimentos sobre direitos das crianças e adolescentes, movimento pela saúde das pessoas com HIV, movimento ambientalista, movimentos feministas, movimento indígenas, movimento negro, movimento quilombola, movimento LGBTQI+, grupos historicamente e socialmente vulnerabilizados, que reivindicam direitos e participação ativa na sociedade brasileira pós Constituição Federal de 1988. que deram vida à expectativa que Ulysses Guimarães lançou sobre a Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, no ato de sua promulgação em 5 de outubro daquele ano: “A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar” (GUIMARÃES, 1988GUIMARÃES, Ulysses. Discurso de Promulgação da Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/. Acesso em 30 out. 2019.
https://www.camara.leg.br/radio/programa...
)2 2 Discurso disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/. .

A presença indígena em torno da Constituinte certamente contribuiu para isso. Não se tratou de um movimento espontâneo e altruísta dos constituintes em relação aos indígenas, algo movido por um sentimento de retratação histórica. Manuela Carneiro da Cunha descreve a atuação necessária e fundamental de entidades e personagens nesse esforço. Comissão Pró-Índio de São Paulo, Conselho Indigenista Missionário, União das Nações Indígenas, Instituto Socioambiental, Ailton Krenak, José Affonso da Silva, Dalmo Dallari e outras.

A Comissão Pro-Índio de São Paulo, na sua fundação em 1978, reuniu vários voluntários, entre eles um grupo de antropólogos da USP e da Unicamp, como Lux Vidal, Araci Lopes da Silva, Dominique Gallois, eu mesma, entre outros; Carlos Alberto (Beto) Ricardo, antropólogo que havia largado a docência na Unicamp para se dedicar a uma ong, então chamada Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), e que mais tarde viria a ser o Instituto Socioambiental (ISA). Havia também um médico da Escola Paulista de Medicina, Rubens Santilli, e um rapaz que - desconfiado que era e querendo saber a que vínhamos - demorou muito a se declarar índio, Ailton Krenak, que teria um papel importantíssimo na Constituinte; além de advogados defendendo causas indígenas, como Carla Antunha Barbosa e Marco Antônio Barbosa, que se valiam muito dos conselhos e da assessoria de Dalmo Dallari, professor titular da Faculdade de Direito da USP. Durante uma época, a advogada Eunice Paiva também participou. Rosa Penna era a secretária. Publicávamos um boletim, artigos em jornal, e tínhamos longuíssimas reuniões discutindo casos. (CUNHA, 2018CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios na Constituição. Novos estud. CEBRAP, São Paulo, v. 37, n. 3, p. 429-443, Dec. 2018 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002018000300429&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 31 out. de 2019. http://dx.doi.org/10.25091/s01013300201800030002.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

De acordo com Lopes, A primeira presença expressiva indígena na Constituinte aconteceu em abril de 1987, cheia de simbolismo, durante a apresentação da chamada “Proposta Unitária”, que tratava a respeito dos direitos indígenas (BASTOS LOPES, 2014).

Em torno do Plenário, 40 lideranças, Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó (PA/MT), Xavante (MT) e outros grupos xinguanos (MT) dirigiram‐ se para acompanhar a sessão (LACERDA, 2008). Entre os presentes na antessala do presidente Constituinte, Ulisses Guimarães, aguardaram no local, os caciques Celestino (Xavante), Aritana (Kamaiurá), além de Ailton Krenak (presidente da UNI), Marcos e Jorge Terena (ambos funcionários do Ministério da Cultura) (CIMI‐PORANTIM, 1987). Anterior, porém ao desfecho da audiência, o grupo liderado pelos Kayapó ocupou a antessala do gabinete; onde os Gorotire e Txukarramãe iniciaram cantos de saudação e hospitalidade, acompanhados de alguns passos de dança. De acordo com o jornal Porantim (1987), no momento em que “Ulysses Guimarães abriu a porta e viu a manifestação, nada conseguiu falar. Parou boquiaberto e ficou olhando. Um cocar foi depositado em sua cabeça e o documento da “Proposta Unitária” posto em suas mãos” (CIMI, 1987, p. 03).

Na ocasião, os índios fizeram discursos em que rememoraram o massacre da sua população e os assassinatos recentes contra os povos indígenas.

Todo esse esforço político em torno da Constituinte permitiu a existência de uma normativa jurídica favorável ao reconhecimento das culturas indígenas como legítimas de serem ostentadas e vividas sem mais o esforço do Estado pela integração forçada3 3 O Relatório Figueiredo mostra a atuação de agentes de Estado, em especial, do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em práticas atrozes contra indígenas que não aceitavam o processo de integração cultural. Toda atrocidade de torturas, crucificação, decaptação, estupro foi registrada nesse documento, que sinaliza uma nova onda genocida contra indígenas no Brasil em meados do século XX. O relatório está disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao-dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registro-militar/relatorio-figueiredo , bem como o reconhecimento das terras ancestrais como usufruto de cada povo indígena. Mudanças jurídicas aconteceram, como as resultantes dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, os quais garantem protagonismo aos indígenas na luta por garantirem direitos ancestrais4 4 Destacamos aqui o § 4º do art. 231 - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis, e o art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. . De fato, outras mudanças também aconteceram. Em Pesqueira, Pernambuco, o Cacique Xicão liderava a retomada de terras indígenas xukurus de invasores não-índios.

O artigo citado de Manuela Carneiro da Cunha tem um viés muito bem apontado para um registro de memória. De uma forma muito mais simples, este artigo também segue essa linha. O objetivo geral é fazer um resgate do trâmite do litígio do Povo Xukuru de Ororubá contra o Estado brasileiro em sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O objetivo específico é apontar o núcleo da tese jurídica construída no âmbito da litigância junto à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos e refletir sobre ela, naquilo presente ou ausente na argumentação, passados 4 (quatro) anos desde a apresentação do Relatório de Mérito5 5 Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf .

A metodologia consiste em uma parte descritiva sobre o caso e suas circunstâncias locais, o trâmite processual e os atos das partes envolvidas no litígio. Uma segunda parte, analítica, baseia-se na seguinte pergunta: uma outra tese jurídica com base na ancestralidade seria viável?

Para tanto, o artigo foi dividido em quatro partes: 1. Da Apresentação do Caso ao Relatório de Admissibilidade; 2. Da Admissibilidade ao Relatório de Mérito; 3. Da Estratégia Jurídica Adotada; e 4. Conclusões.

1. Da Apresentação do Caso ao Relatório de Admissibilidade

2002, mês de outubro, dia dez6 6 Tempos de comunicação via correios. A Comissão Interamericana Direitos Humanos recebe a comunicação de violação e o pedido de medidas cautelares em 16 de outubro de 2002. . O Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos - regional Nordeste (MNDH-NE), apresentaram uma comunicação à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) em favor do Povo Xukuru e em favor do Cacique Marquinhos e de Dona Zenilda, mãe do cacique e viúva do Cacique Xicão.

Foi apontada, em princípio, a violação dos artigos 1, 2, 8, 21 e 25 da Convenção Americana de Direitos7 7 Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos, Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno, Artigo 8. Garantias judiciais, Artigo 21. Direito à propriedade privada, Artigo 25. Proteção judicial e feito o pedido de medidas cautelares para preservação da vida e da integridade física do Cacique Marquinhos e de Dona Zenilda, ambos sob ameaça de morte no contexto do recrudescimento em relação ao movimento de retomada das terras indígenas ancestrais pelos fazendeiros não-índios da região.

Além da comunicação à CIDH, no mesmo dia, os peticionários enviaram comunicação à Representante Especial do Secretário-Geral da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Senhora Hina Jilani, e ao Relator Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, Senhor Rodolfo Stavenhagen, em relação às violações de direitos humanos e sobre o processo de criminalização pelo qual passavam os indígenas do Povo Xukuru, no município de Pesqueira, Pernambuco.

Os peticionários trabalharam com uma dupla estratégia de atuação no sistema internacional. Para o sistema global, uma instância marcadamente de soft power8 8 Por soft power entenda-se aqui a condução de um rito processual sumário, sem a existência de uma fase instrutória mais complexa, a qual seria capaz de gerar, ao seu final, uma diretriz de conduta tida como plenamente cogente. Este modo de realização do direito não guarda em si mesma e nem outra fonte a obrigatoriedade de cumprimento a ponto de seu cumprimento poder ser exigido. A soft law se cumpre com base no convencimento resultante dos argumentos utilizados. , a comunicação funcionou, como ainda funciona, como lançador de luzes sobre fatos e atores antes invisibilizados9 9 Invisibilidade social diz respeito a um estado de humilhação e mal-estar a que são submetidas pessoas ou grupos socais específicos (SOUZA, 2006, p.11). . De outro lado, a comunicação também foi apresentada ao sistema interamericano, uma instância de hard power, cujo ápice se materializa com a decisão vinculativa e irrecorrível da Corte Inter-americana de Direitos Humanos. As duas instâncias, assim usadas, podem ser provocadas simultaneamente porque apenas a inter-americana gera litispendência internacional10 10 Se o sistema global for provocado a partir dos comitês de tratados em modo decisório de hard power, pode se gerar litispendência internacional. .

Este ponto de partida nas instâncias internacionais do sistema global e interamericano, com efeito, tem antecedentes seculares, que devem ser trazidos como parte da contextualização de todo o problema jurídico de reconhecimento do direito de propriedade. Afinal, o Povo Xukuru tem recebido promessas de demarcação de suas terras ancestrais há mais de 140 anos. Esse é o tempo que o povo Xucuru guarda a concretização da promessa feita pelo governo brasileiro no reconhecimento ao legítimo acesso à terra, território físico e metafísico intimamente ligado às suas tradições e crenças. Por ocasião da Guerra do Paraguai (1864-1870), os Xukurus receberam a promessa do Império brasileiro de, caso participassem efetivamente do esforço de guerra, aumentando assim o contingente militar brasileiro, teriam demarcadas suas terras.11 11 Em 1850, 14 anos antes da Guerra do Paraguai, a população brasileira era de aproximadamente dez milhões de pessoas, das quais uma quarta parte era constituída de escravos (GORENDER, 1978:319). Como o efetivo do Exército brasileiro fosse insuficiente para ganhar a guerra, foram utilizados os contingentes da polícia e da Guarda Nacional das províncias do império e criaram-se os corpos de Voluntários da Pátria, movidos por um sentimento nacionalista. Nesse contexto, o império brasileiro introduziu a estratégia de induzir a participação escrava e indígena na Guerra. A estratégia corrobora a visão tradicional dos poderosos de que eles fazem a guerra, mas lutar é para os pobres. (TORAL, 1995) 12 12 Embora as fontes sejam escassas e ate certo ponto precárias, a participação indígena na guerra contra o Paraguai está documentada, e “não restringiu-se as batalhas, sendo os indígenas utilizados também como mão de obra para os trabalhos braçais que se faziam necessários – aliás, como sempre foram recrutados.” (MARQUES, 2006)

Em 1997, essa informação já era de conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

45. O caso típico é o dos Xukurus de Ororuba, no município de Pesqueira, Estado de Pernambuco, a 220km do Recife. De acordo com a tradição local, seus membros aceitaram lutar como militares do Exército brasileiro na Guerra do Paraguai, em troca de terem suas terras reconhecidas, o que não aconteceu. Isso não aconteceu até 1992 quando o Presidente Itamar Franco homologando o estudo da FUNAI, que identificou 26.800 hectares como terras ancestrais dos Xucurús, uma área equivalente a um quinto em relação à área que eles ocupavam antes da conquista. Mas, de fato, os índios ocupam apenas 12% dos 26800ha. O restante pertence a 281 fazendeiros e madeireiros, cuja maioria contra índios como trabalhadores. Há aproximadamente seis mil Xucurús. Atualmente, a terra está sendo demarcada pela FUNAI em meio a um clima geral de insegurança e com orçamento mínimo13 13 45. A typical case is that of the Xucurus at Oruguba, in the Pesqueira municipality of the State of Pernambuco, 220 km from Recife. According to the local tradition, its members agreed to fight as members of the Brazilian Army in the Paraguayan War, in exchange for having their lands recognized--which it turned out did not take place. It wasn't until 1992 that President Itamar Franco signed the resolution acknowledging the FUNAI study which found the Xucurús entitled to 26,980 hectares as ancestral land--an area equivalent to one fifth of what they had before the conquest. But in fact, the Indians occupy only 12% of those 26,980 ha. The rest is owned by 281 ranchers and lumbermen, most of whom in turn hire Indian laborers. There are approximately six thousand Xucurús. At present, the land is being demarcated by FUNAI in a climate of general insecurity and with minimal funding (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1997, parágrafo 45). .

Apesar da promessa de meados do século XIX feita pelo governo de Dom Pedro II, foi efetivamente o governo republicano que procedeu ao procedimento demarcatório das terras, já no final da década de 1980. Nesses quase 40 (quarenta) anos de um anti-célere procedimento de demarcação, várias perdas irreparáveis foram contabilizadas por parte do Povo Xukuru.

A demora excessiva do Estado brasileiro em concluir a demarcação das terras Xukurus ensejou a retomada forçada pelos indígenas, sob a liderança do Cacique Xicão. Em resposta às ações violentas dos fazendeiros e madeireiros não-índios, o povo Xukuru não realizou a saída espontânea das terras identificadas como indígenas ancestrais ao mesmo tempo em que se instalou uma atmosfera de insegurança e vinganças por meio da prática de assassinatos através de emboscadas contra os indígenas e contra aqueles que os defendiam. Destacamos aqui quatro assassinatos e várias ameaças de morte, entre 1992 e 2001.

Em 1992 houve o assassinato do indígena José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do Pajé Zequinha, morto em uma emboscada. O Procurador da FUNAI, o advogado Geraldo Rolim, um conhecido defensor dos direitos dos indígenas, principalmente quanto à demarcação das terras, foi assassinado em 1995. O Cacique Xicão foi assassinado mediante a contratação de um pistoleiro em uma emboscada ocorrida em 1998. O líder da aldeia Pé-de-Serra do Oiti, Chico Quelé, foi morto em mais uma emboscada em 2001.

Quatro importantes lideranças, incluindo-se o emblemático Cacique Xicão, o grande iniciador do processo de retomada das terras, atuavam na liderança pela efetivação dos direitos e interesses indígenas, pelo reconhecimento das terras ancestrais e contra o estado de exploração econômica e social dos indígenas perpetrado pelos fazendeiros e madeireiros na área Xukuru. As autoridades de segurança e justiça não atuaram com o devido compromisso na elucidação dos crimes. No ano de 2005, a Anistia Internacional identificou que essas autoridades, muitas vezes, fizeram desviar a atenção dos verdadeiros motivos para sua prática:

O pai de Marcos Luidson de Araújo, Francisco de Assis Araújo, conhecido como Chicão Xukuru, o cacique carismático que conduziu a reocupação pacífica de suas terras nos anos 90, foi morto a tiros por um pistoleiro enquanto visitava sua irmã em Pesqueira, em 1998. Além de atuar em nome dos Xukurus, ele também era coordenador de um grupo regional de direitos indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. Apesar de sempre ter havido provas substanciais a indicar que o assassinato do cacique fosse resultado direto de sua luta pelo reconhecimento dos direitos à terra Xukuru, a apuração que a Polícia Federal realizou sobre sua morte inicialmente seguiu apenas linhas de investigação que desacreditavam essa versão dos fatos. Estas incluíam alegações de que ele havia sido morto em razão de disputas internas de poder entre os Xukuru ou que fora vítima de crime passional. Foi somente após forte pressão nacional e internacional sobre as autoridades que seu assassinato foi investigado no contexto de suas atividades de campanha pela terra14 14 Anistia Internacional. Estrangeiros em Nosso Próprio País: povos indígenas do Brasil. 2005, p.22. .

Em meio a essa onda de assassinatos de indígenas, em 1998 uma nova frente de tensão foi inaugurada. Empresários locais, com o respaldo da Prefeitura de Pesqueira e da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco S/A (AD/DIPER), prepararam, apresentaram e tentaram pôr em prática um projeto de turismo religioso cristão em terras identificadas como pertencentes aos Xukuru. A promessa de receita pecuniária para os indígenas representava, de fato, uma nova tensão para alguns indígenas na região de Cimbres15 15 A cartografia sócio-cultural dos Xucuru por eles e elas mesmas pode ser acessada em: http://novacartografiasocial.com.br/download/01-xukuru-do-ororuba-pe/. Nesse mapa, é possível identificar a região de Cimbres e aldeia Pé-de-Serra do Oiti de Chico Quelé. . Aqueles indígenas que não aceitaram a proposta e a viam como uma interferência cultural em terras ancestrais foram alvo de novas ameaças.

Nesse contexto, a criminalização dos indígenas não cooptados e resistentes à alteração no processo de demarcação das terras em favor do Povo Xukuru passou a ser uma prática, ao mesmo tempo que o sistema de segurança e justiça não dava respostas em relação aos assassinatos das lideranças indígenas. Com isso, os indígenas, já na condição auto percebida de defensores de direitos humanos, foram ameaçados na sua organização social, além de ameaçados na vida e integridade física.

O processo de criminalização resultou em várias ações junto às varas federais da Seção Judiciária de Pernambuco, concentradas na 16ª Vara, em Caruaru. Ademais, deve-se considerar o desentendimento nas relações entre o Povo Xukuru, a Polícia Federal (Superintendências Regionais de Pernambuco e da Paraíba) e Ministério Público Federal (primeira instância) em Pernambuco.

Esse era o clima de tensão que a jurisdição e a Administração pública executiva federal não conseguiam pacificar. De um lado, Povo Xukuru versus fazendeiros não índios; de outro lado, Povo Xukuru versus a Polícia Federal, Ministério Público Federal e o Poder Executivo Federal. O povo indígena tinha dois flancos (a disputa pela terra contra os fazendeiros não índios e a disputa institucional com a Polícia Federal) abertos nessa luta pelo reconhecimento de suas terras ancestrais e sofria pressão de toda natureza. Isso foi informado à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos conforme os passos processuais eram dados.

Da apresentação desses fatos até à publicação do Relatório de Admissibilidade por parte da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos, em 29 de outubro de 2009. Com efeito, o pedido de medidas cautelares foi o que concentrou mais esforços por parte das entidades peticionárias.

As peticionárias requereram medidas cautelares para o Cacique Marquinhos e para Dona Zenilda em 10 de outubro de 2002. No dia 16 de outubro de 2002, de posse do material impresso enviado via correios, a CIDH deliberou favoravelmente às cautelares e solicitou do Estado brasileiro a sua efetivação. A CIDH fez rodadas de acompanhamento da implementação das medidas em fevereiro de 2003 e em março de 2004. Em agosto de 2004, a CIDH decidiu prorrogar as medidas cautelares. A partir de então, o Estado deixou de se pronunciar sobre as cautelares, mesmo com o pedido expresso da CIDH, até à admissibilidade, em outubro de 2009 (CIDH, 2009, parágrafos 7-9).

Os peticionários chamaram a atenção da CIDH sobre o clima de animosidade existente entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, em detrimento do Povo Xukuru, principalmente em relação aos dois beneficiários das cautelares, o Cacique Marquinhos e Dona Zenilda. Isso deveu-se inicialmente à fase de assassinatos das lideranças Xucuru, cujo último assassinato registrado foi o de Chico Quelé, em 2001. A partir daí, seguem as ameaças ao recém escolhido Cacique Marquinhos e sua mãe, Dona Zenilda, tomada como suspeita do assassinato do Cacique Xicão em uma suposta motivação passional, nunca minimamente provada. Depois do atentado de 2003, a tensão tomou a forma da criminalização dos indígenas. Isso impossibilitou efetivamente o cumprimento das medidas cautelares por parte do governo federal.

Havia, de fato, uma falta de confiança dos beneficiários em relação aos profissionais que deveriam fazer a sua proteção: policiais federais das superintendências regionais de Pernambuco e da Paraíba, com supervisão do Ministério Público Federal, ou seja, os órgãos persecutórios nos processos criminais em trâmite contra os xukurus. Evidentemente, estava posto o conflito de interesses.

Por conta disso, as medidas cautelares não foram implementadas até o ano de 2007, quando ao sistema de proteção à pessoa foi incorporado o Programa de Proteção às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.

No caso do Estado de Pernambuco, o sistema de proteção à pessoa já sido iniciado em 1996 com a criação do Programa de Proteção à Testemunha (PROVITA16 16 Provita. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/programas-de-protecao/provita-1/provita ), uma iniciativa da sociedade civil, através do GAJOP (peticionário do caso) juntamente com o governo estadual, com o objetivo de atuar contra o alto índice de impunidade em relação aos crimes cometidos pelos chamados esquadrões da morte. Essa experiência favoreceu o projeto piloto de proteção às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PPDDH)17 17 Como Defensora de Direitos Humanos, a advogada Elma Novais fez grande esforço ao exigir julgamento dos policiais militares, processados pelo assassinato de seu filho Josenildo. Isso fez emergir a existência de práticas investigativas da Polícia Militar sem mandados, sem qualquer controle, um resquício da Ditadura Militar. A “segunda seção” ou “serviço de inteligência” continuava com essas práticas esdrúxulas ao Estado de Direito. Por conta disso esforço, Elma Novais e sua família receberam ameaças de morte. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr190012003pt.pdf , também iniciativa da sociedade civil, sendo incorporada a proposta ao planejamento da Secretaria Especial de Direitos Humanos em Brasília. Com isso, o sistema de proteção à pessoa conta com os seguintes programas: PROVITA, PPDDH e o Programa e de Proteção à Criança e Adolescente Ameaçados de Morte (PPCAAM18 18 PPCAAM. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/programas-de-protecao/ppcaam-1/ppcaam ). Ainda assim, em interlocução direta com o governador do Estado de Pernambuco, o Cacique Marquinhos e Dona Zenilda receberam medidas de proteção pessoal através do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos com apoio da Polícia Militar de Pernambuco. Dessa forma, policiais militares indígenas faziam a proteção pessoal escoltada do Cacique quando ele saía do raio mais restrito da aldeia em que morava. Não havia escolta para Dona Zenilda, apesar de ela figurar como pessoa defensora a ser protegida. Não havia pagamento de diárias aos policiais e nem fornecimento de viaturas descaracterizadas ou caracterizadas, nem qualquer outra instrumentalidade protetiva.

Do ano de 2002 a 2007, o Cacique Marquinhos e Dona Zenilda permaneceram com circulação restrita à sua aldeia por conta das ameaças constantes e da omissão do governo federal em implementar as medidas cautelares determinadas pela CIDH. Em 14 de fevereiro de 2003, sete dias após o atentado, em 10 de março de 2003, em 23 de abril de 2003, em 21 de julho de 2003, os peticionários pediram à CIDH a adoção de medidas provisórias à Corte diante do quadro de omissão deliberada. A Corte não fora provocada sobre isso.

2. Da Admissibilidade ao Relatório de Mérito

Publicada a Admissibilidade, a CIDH convocou as partes a apresentarem observações sobre o mérito, ao mesmo tempo em que se colocou à disposição para intermediar uma solução amistosa para o caso (parágrafo 4, Relatório de Mérito). Por certo, diante de toda a situação vivenciada pelos indígenas a partir da atuação dos órgãos de Estado e por todo o histórico inerente ao caso, muito dificilmente haveria espaço para o sucesso na solução amistosa, até porque o Estado brasileiro normalmente não cumpria os acordos firmados com os indígenas. A implementação das medidas cautelares é um exemplo disso. De fato, as partes não se pronunciaram a favor de tal iniciativa.

Nesse ponto, abre-se um parêntese. O mecanismo de solução amistosa presente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos é, em tese, uma oportunidade de autopercepção de um sujeito jurídico e político ativo e dirigente de seu destino (ou como regularmente adotado pelos órgãos do Sistema: dirigente de seu projeto de vida) e de fortalecimento de autonomias que merece ser mais incentivada. Temas como Justiça de Transição na Argentina e a violência contra a mulher no Brasil passaram por experiências muito bem sucedidas através da solução amistosa.

No caso da Argentina, o Relatório de Solução Amistosa nº160/10 na Comunicação nº242/03, A Associação das Avós da Praça de Maio e o Estado argentino chegaram a um comum acordo sobre os crimes de desaparecimento forçado durante a ditadura militar argentina. Pelo acordo, o Congresso argentino criou aprovou a criação de três leis sobre o procedimento de coleta de DNA para fins de julgamento dos sequiestros de crianças durante a ditadura militar, sobre um novo funcionamento do banco de dados genéticos e sobre a participação em processos judiciais de supostas vítimas sequestradas e das associações criadas para defesa de direitos das famílias, cujas crianças foram abduzidas (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2013, p.61).

Com isso, evidentemente, pensamos em uma provocação sobre o melhor uso do instrumento da solução amistosa em sede do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Como o instrumento de solução amistosa poderia ser melhor utilizado? Essa é a pergunta que nos move e que nos dirige a pensar o instrumento de uma forma operacional mais direcionada à efetividade e à promoção da autonomia das partes envolvidas no conflito.

Fechado o parêntese, voltamos à fase de mérito do caso do Povo Xukuru.

Provocada uma possível solução amistosa, que não aconteceu, as partes passaram a trocar observações sobre o mérito.

Os peticionários alegaram, incialmente, a violação aos direitos de propriedade (artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos), de acesso à Justiça (combinação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos) e a obrigação de adotar instrumentos legais internos para efetivar os direitos consagrados internacionalmente (combinação dos artigos 1 e 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos). A Comissão relatou todos os atos do processo de demarcação, registrou os assassinatos das lideranças Xukuru em notas de rodapé (nota 4 a 7, página 3 do Relatório de Mérito) e registrou a complementação de argumentação com a inclusão de violação do direito à vida e à integridade física (artigos 4 e 5 da Convenção Americana de Direitos Humanos). Em relação ao Estado brasileiro, a Comissão registrou o argumento de conclusão do registro cartorial das terras Xukuru na titularidade da União Federal, registrou o argumento de complexidade do processo de demarcação, da interferência do Poder Judiciário no trâmite regular em vista das ações judiciais propostas pelos não índios, bem como, o fato de o Estado ter se colocado impossibilitado de agir no contraditório e ampla defesa em relação aos episódios apresentados pelos peticionários sobre a criminalização sofrida pelos Xukuru devido ao fato de o Estado considerar observações generalizadas (Relatório de Mérito, pp.2-6).

Em relação à Comissão, efetivamente reconheceu todos os atos extra-jurídicos realizados para a elucidação da ancestralidade das terras requisitadas pelo Povo Xukuru, com ênfase no relatório antropológico e em relatórios anteriores da própria Comissão de monitoramento de terras indígenas nas Américas, com destaque para o monitoramento dos Xukuru, com auxílio da Relatoria Especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos indígenas. A Comissão reconheceu também a necessidade de regulamentação de parte da legislação brasileira sobre terras indígenas, fez a aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), analisou todos os atos administrativos e ações judiciais incidentes sobre a demarcação, analisou os episódios de tensão e se valeu da jurisprudência da Corte Inter-americana de Direitos Humanos sobre propriedade e direitos indígenas para fazer suas recomendações (Relatório de Mérito, pp.7-27).

Quanto às recomendações, tivemos a adoção de medidas administrativas e legislativas para conclusão da desintrusão, de medidas para conclusão das ações judicias pendentes, de medidas de reparação individual e coletiva pela demora na demarcação e a desintrusão e a adoção de medidas de não repetição (Relatório de Mérito, pp.27-28).

3. Da Estratégia Jurídica Adotada

A estratégia jurídica adotada no caso Povo Xukuru versus República Federativa do Brasil foi a mais óbvia possível: fazer a subsunção do caso, tomando-se por horizonte o precedente e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre direito de propriedade e povos indígenas.

O direito à propriedade, propriedade lato sensu, ou seja, o direito de usar e fruir de seus bens. O povo xukuru não busca apenas um registro formal em cartório de imóveis, ao contrário, busca a posse tranquila das terras, busca a satisfação de um débito histórico do Estado brasileiro para com eles, busca, enfim, a perpetuação de suas tradições culturais intrinsecamente vinculadas à terra;19 19 Memorial com razões de mérito, abertura da fundamentação jurídica, exposição do direito subjetivo perseguido pela parte requerente, nesse caso, pelo Povo Xukuru. Petição assinada pelo CIMI e pelo GAJOP em 2011.

Assim, toda a construção de ratio decidendi da Corte desde o caso do Povo Mayagna Sumo Awas Tingni20 20 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_79_esp.pdf foi tomada como paradigma. Dessa forma, perceba-se a linha paradigmática seguida: identificar o sujeito de direito violado (Povo Xukuru, como coletividade), identificar o sujeito violador de direito (República Federativa do Brasil, desdobrando-se nos vários atos de violação a partir de suas autoridades competentes), identificar o direito violado (em suma: o direito de propriedade, um direito iminentemente individualizado, além da proteção e garantias judiciais), recorrer-se a um sistema jurídico centralizado na figura do Estado (seja o sistema jurídico doméstico ou internacional) e, finalmente, adequar o fato social em conflito com esse direito perante o Estado jurisdição.

Independentemente da teoria sobre o direito a seguir, essa estrutura é clássica consoante um direito hegemônico europeizado. Daí o debate sobre propriedade, posse tranquila, registro cartorial, homologação de demarcação e contestações administrativas sobre o processo demarcatório. O que foi chamado de estratégia óbvia mais acima se mostra praticamente a única, considerando esse paradigma.

Nessa caminhada considerada a mais óbvia, certamente, consideraram-se desde o início as condições para a vitória de uma tese que comportasse os interesses do povo indígena Xukuru. Já havia uma demarcação em trâmite há mais de vinte anos ao preço de muitas mortes e outras tantas ameaças. Seguir por uma trilha conhecida no âmbito do direito hegemônico aplicado pela instância competente, nesse caso, pela Comissão, foi e ainda é hoje a mais razoável. De forma alguma, considerou-se uma disputa de teses jurídicas que comportasse uma pelo pluralismo identitário21 21 No livro Choque das Civilizações, Samuel Huntington (1993), de forma resumida, traz uma nova compreensão de mundo após o colapso da União Soviética, consequentemente, com o fim da era das ideologias e da disputa sobre o modelo econômico. Ainda assim, as disputas aconteceriam e o Estado-nação ainda é a figura de destaque, mas as divisões entre os seres humanos e as largas divergências e diferenças entre identidades dariam o tom dos conflitos no novo tempo. . Essa, de fato e de direito, importaria uma mudança enriquecedora, indo ao encontro da diversidade social e do conhecimento jurídico.

Assim sendo, comecemos pela caminhada óbvia e, em seguida, pelo pluralismo identitário.

A caminhada óbvia, como dito, passa pelo exercício da subsunção que todo advogado e advogada que atuou no caso foi ensinado(a) nas faculdades de Direito a partir, basicamente, daquela estrutura jurídica há pouco posta: sujeito ativo, sujeito passivo, fato social, direito aplicado, Estado-juiz. Quanto a isso, temos um rito perante a Comissão, que não é, em sentido estrito, um processo judicial porque não é finalizado com uma decisão judicial, mas cuida de formalizar o conhecimento sobre um fato específico e se esse fato, a princípio, pode ser enquadrado como um ilícito internacional por violação de direitos humanos.

A percepção desse ilícito internacional apontado passa necessariamente pela autonomia do indígena frente ao direito interno brasileiro e ao mecanismo disponível para efetivação dos seus direitos. A dificuldade do Estado brasileiro garantir proteção ao povo Xukuru assim sintetizada por Cecília Santos com base no dualismo na cultura jurídico-política indigenista

Por um lado, verifica-se uma concepção monocultural e individualista de direitos civis dos indígenas, consagrada em algumas leis e práticas de agentes do Estado; por outro lado, certas normas e setores do Estado traduzem uma abordagem multicultural e coletivista de direitos humanos dos indígenas ou um novo “indigenismo multicultural”,que surge no contexto da expansão do movimento indígena dos processos de redemocratização, nos anos 1980, e da crescente absorção, pelo Estado, ainda que seletiva e setorialmente, das normas internacionais de direitos humanos desde o início dos anos 1990. (SANTOS, 2009SANTOS, Cecília MacDowell. Xucuru do Ororubá e Direitos Humanos dos Indígenas: Lutas pela Terra-Segurança e Estado no Brasil. In: BENVENUTO, Jayme; CAMPOS, Andréa Almeida. Direitos Humanos: Debates Contemporâneos. Recife: Ed. do Autor, 2009., p. 26)

A busca seria, portanto, por superar a perspectiva da assimilação indígena, tão presente na prática brasileira:

Até a redemocratização política nos anos 1980 e 1990, a legislação e a política indigenista do Estado brasileiro consagravam uma concepção monocultural e individualista dos direitos indígenas, promovendo o que Warren (2001) denomina de “exorcismo indígena” (indian exorcism) – diferentes práticas de extermínio físico e cultural dos indígenas, como massacres militares, escravidão, missões de catequese e políticas assimilacionistas. (SANTOS, 2009SANTOS, Cecília MacDowell. Xucuru do Ororubá e Direitos Humanos dos Indígenas: Lutas pela Terra-Segurança e Estado no Brasil. In: BENVENUTO, Jayme; CAMPOS, Andréa Almeida. Direitos Humanos: Debates Contemporâneos. Recife: Ed. do Autor, 2009., p. 27)

Quanto ao processo de demarcação de terras indígenas, pontua Santos, citando Oliveira e Almeida:

O procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas é complexo e moroso, incluindo cinco fases: (1) identificação e delimitação, feitas, sob a iniciativa e direção da FUNAI, por um Grupo Técnico de antropólogos e outros profissionais, designados por este ógão; (2) declaração, mediante portaria do Ministério da Justiça, dos limites da terra indígena e determinação de sua demarcação; (3) demarcação física, feita pela FUNAI; (4) homologação, mediante decreto da presidência da República; (5) registro, providenciado pela FUNAI, em cartório imobiliário da comarca em que se encontra a terra, bem como na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. (SANTOS, 2009SANTOS, Cecília MacDowell. Xucuru do Ororubá e Direitos Humanos dos Indígenas: Lutas pela Terra-Segurança e Estado no Brasil. In: BENVENUTO, Jayme; CAMPOS, Andréa Almeida. Direitos Humanos: Debates Contemporâneos. Recife: Ed. do Autor, 2009., p. 28)

Na alçada do Direito, o exercício de aplicação precisou se valer de um precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao afirmar que o direito de propriedade, um direito civil clássico individual, tem também a sua perspectiva coletivizada, o que abarcaria a pretensão dos povos indígenas e obrigaria o Estado a promover todas as ações necessárias a garantir a fruição desse direito. Por desdobramento da propriedade, aparece a expressão posse tranquila para dar conta da expectativa de uma rotina diária sem ameaças, sem violação da integridade física e psicológica das pessoas indígenas, sem violação do direito à vida e sem violação ao exercício de suas tradições culturais com repercussões econômicas e sociais.

A presença da expressão posse tranquila tem uma grande importância na tese junto à Comissão porque o Estado brasileiro vinha replicando e defendendo que a demarcação estaria em fase de conclusão com o registro em cartório da titularidade da propriedade pela União Federal com usufruto para o Povo indígena Xukuru. Acontece, de fato, que uma cártula sobre a propriedade e uma placa indicativa de propriedade da União Federal no marco inicial do território não tiverem, bem como não têm o condão de impedir o rechaço aos indígenas pelos não índios intrusados.

Além disso, a justificação para entrada no Sistema Interamericano de Direitos Humanos era a extrapolação do prazo razoável. O acesso à Justiça, uma combinação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que se dirigem à proteção e efetivação de direitos, ou seja, não é uma obrigação estatal exclusiva do Estado-juiz. Os atos e processos administrativos, inclusive dos agentes da Administração pública, também estão sujeitos ao controle de convencionalidade. No caso do Povo Xukuru, o processo administrativo de demarcação tomou proporções infindáveis, seja por extrapolar os atos administrativos com prazo legal definido no Decreto 1775/1996, seja pelos atos sem prazo legal previamente definido.

Esse conjunto de atos administrativos gira em torno de treze atos, com um prazo mínimo de 345 dias, a contar dos prazos previstos no Decreto. De fato, o procedimento leva muito mais tempo porque a homologação pelo Presidente da República e o reassentamento de não índios, por exemplo, não têm prazo fixado para sua ocorrência, prevalecendo aí a discricionariedade. Os demais atos, ainda que fixados seus prazos, podem sofrer dilação de acordo com as circunstâncias da demarcação (CUNHA, AMORIM, 2018, p.145). Em suma, esses foram os elementos trazidos à baila para o debate em torno do direito junto à Comissão.

De outro lado, a tese pelo pluralismo identitário. Essa linha poderia ter dado um salto de qualidade em termos de experimentar o direito, saindo de uma hegemonia unilateral para uma combinação de conhecimentos jurídicos ao trazer para o debate de direito o conhecimento indígena como relevante e determinante na construção da solução para o conflito de interesses em tela.

Nesse sentido, o primeiro passo, em uma linha racional a ser proposta seria partir do transconstitucionalismo. Para tanto, rever o ponto de partida seria essencial. Não se partiria da dúvida se o povo indígena tem ou não direito de propriedade, mas de um problema jurídico constitucional22 22 Problema jurídico constitucional, nesse caso, segue a definição trazida por Marcelo Neves quando, ao pensar o transconstitucionalismo, ele que os casos levados à solução judicial não mais se resumem a uma única ordem jurídica, em especial, quando envolvem direitos humanos. (NEVES, 2012, p.256). e como a experiência normativa indígena e não indígena pode colaborar para a fruição do modo de vida particular do Povo Xukuru sobre o território tradicional.

A partir do transconstitucionalismo, um problema jurídico constitucional faz extrapolar solução para mais uma ordem jurídica. Em matéria constitucional, isto é, questões que envolvam a aplicação de direitos fundamentais e direitos humanos, impor-se ultima ratio a uma única ordem jurídica pode implicar uma solução que viole outra ordem jurídica que, em determinado momento, pode ser competente também para decidir sobre esse caso (problema jurídico constitucional). Uma solução transconstitucional passa pela disposição ao diálogo pelos tribunais (ou órgãos decisórios) dessas ordens jurídicas a ponto de se formar uma racionalidade transversa (NEVES, 2012NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo: breves considerações com especial referência à experiência latino-americana. In: 35º aniversário da Constituição de 1976. Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, 1.v., pp.256-258).

Essa, sobre posição de direitos materiais em sede de questões de direitos humanos, é o resultado de importância crescente que os direitos humanos tiveram, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Essa importância rendeu uma base jurídico-normativa tanto em legislações domésticas quanto internacionais de forma a se perceber uma simultaneidade de aplicação. Não se trata de antinomias a primeiro olhar, ao contrário, trata-se dos efeitos de uma sociedade moderna.

Esse modelo de sociedade moderna caracteriza-se pela presença de vários códigos que orientam a comunicação nos mais diversos campos sociais. Ter/não ter, poder/não poder, lícito/ilícito, verdadeiro/falso, cada binário desse, por exemplo, importa para um campo, promovendo uma forma de comunicação, daí chegando a uma racionalidade que, eventualmente, pode entrar em conflito com outra ou outras racionalidades forjadas a partir de cada comunicação dessas. A sociedade moderna, emanadora de várias racionalidades é, portanto, uma sociedade complexa, à qual cabe perceber-se como único polo observador social ou em integração a outros centros sociais complexos (NEVES, 2012NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo: breves considerações com especial referência à experiência latino-americana. In: 35º aniversário da Constituição de 1976. Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, 1.v., pp.22-25).

Com esse foco, o caso Povo Xukuru versus República Federativa do Brasil teria uma outra abordagem, necessariamente. Primeiro, a matéria de direito analisada não passaria apenas pelo direito brasileiro e tratados de direitos humanos do Sistema Interamericano, fortalecido pelo uso da Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas23 23 A Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas compõe a legislação do Sistema Global de Direitos Humanos. Como tal, não tem uma inserção hierárquico-normativa no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, logo não compreende seu universo de direito, mas não de todo descartado seu uso. Ainda que não seja matéria de direito, instrumentos externos à base normativa do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, regularmente, são utilizados como instrumentos hermenêutico-colaborativos. Têm uma importância em se perceber os limites de aplicação das normas inter-americanas. . O próprio direito tradicional e costumeiro indígenas deveria ter sido conhecido e aplicado pela Comissão. Segundo, conhecer os experts nesse direito indígena e saber, a partir deles, sobre sua linguagem, organização e capacidade decisória.

O modo de vida indígena deixaria de configurar algo elementar e desvalorizado para ser fonte de informações relevantes para a decisão. Outras informações ganhariam nova apreciação. Por exemplo, a criminalização sofrida pelos indígenas no decorrer da luta pela demarcação. A criminalização é um ato anti-indígena (FIALHO, 2011FIALHO, Vânia. “Plantaram” Xicão: Os Xukuru do Ororubá e a Criminalização do direito ao território. UFAM: Manaus, 2011, 199p., p.12). Tornar criminosa uma luta legítima pelo acesso à terra e à sobrevivência cultural, mais do que invisibilizar um grupo social, é colocá-lo a pecha de vilão ou de fora da lei sobre aquela categoria social.

Como se aferir a titularidade de direito de um sujeito que passa por uma situação concreta com risco de deixar de existir em suas particularidades? Dessa forma, a personalidade jurídica deve ser alçada a uma condição superior para reconhecer que coletividades em torno de identidades também são juridicamente relevantes, diferentemente de associações (pessoas com interesses comuns), empresas (atividades negociais relativas à empresa) e fundações (bens especialmente destinados a um fim).

A presença marcante dos indígenas, homens e mulheres, no momento histórico durante a Guerra do Paraguai, presença de fato, mas praticamente apagada da memória do país em termos de construção de heróis brasileiros, é uma das questões colocadas em relação ao Povo Xukuru. Afinal, qual cultura sobrevive em relação a outras sem heróis a apresentar? A historiografia comum não registra a presença dos Xukurus na Guerra do Paraguai, mas documentos isolados e a tradição oral presente em alguns Xukuru mais antigos marcam essa memória. Por outro lado, para além da construção de herois, a participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai ou, na perspectiva do Paraguai, na Guerra contra o Paraguai, foi mais uma marca da colonialidade do império brasileiro sobre os indígenas, assim como sobre os negros escravizados. Grupos sociais que nada tinham a ver com aquela guerra foram instados dela participar a fim de garantirem a afirmação do estado nacional brasileiro, este sim necessitado de herois.

Tudo isso gira em torno do território indígena. Em meados do século XVIII, a Diretoria de Índios em Pernambuco, através de ofício ao Presidente da Província, elaborou uma lista com 82 indígenas recrutados na aldeia de Cimbres (território Xukuru atualmente reclamado) como voluntários da pátria (SILVA, 2015SILVA, Edson. “A história contada pelos que voltaram”: história e memórias indígenas no Nordeste sobre a Guerra do Paraguai. Diálogos (Maringá. Online), v. 19, n.3, p. 1043-1063, set.-dez./2015., pp.1047-1048). Já pela tradição oral ainda circulante entre os Xukuru, Edson Silva colheu a fala de Pedro Rodrigues Bispo (72 anos à época) e de João Jorge de Melo (65 anos à época). Segundo esses dois, aparecem a heroína Maria Coragem e os 30 de Ororubá. Maria Coragem compôs o front de batalha e ganhou esse apelido por sua determinação e bravura. Já dos 30 de Ororubá, 12 morreram em batalha e 18 voltaram. Participaram da Companhia chefiada pelo Tenente Coronel Apolônio Peres Cavalcanti Jácome da Gama e tiveram atuação marcante na batalha de Tuiuti na retomada de território, simbolizada pela recuperação do pavilhão da Princesa Isabel (SILVA, 2015SILVA, Edson. “A história contada pelos que voltaram”: história e memórias indígenas no Nordeste sobre a Guerra do Paraguai. Diálogos (Maringá. Online), v. 19, n.3, p. 1043-1063, set.-dez./2015., pp.1051-1052).

Além dessa participação em momento decisivo da história do Brasil, o território Xukuru é, em si mesmo, um espaço de memória e tradições. Com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o primeiro relatório sobre os Xukuru data de 1944, quando o sertanista Cícero Cavalcanti registra a perseguição policial às práticas de curanderia, consideradas como “catimbós” pelos não índios. Ainda assim, a toré continuava a ser realizada, embora restrita à festa de Nossa Senhora da Montanha, conhecida pelos Xukuru como Mãe Tamain (SILVA, 2007, p.4). Um dos torés fala em seguir para a aldeia encantada. Isso significa que, nesse mesmo território, encontra-se a Aldeia da Pedra Sagrada, onde os indígenas que fizeram a passagem (isto é, morreram) são plantados (isto é, os corpos são enterrados) para que nasçam novos guerreiros Xukuru (SILVA, 2005). Trata-se do território como elo entre o mundo físico e o metafísico, a ideia de cosmovisão.

Na cerimônia de memorização conjunta pelos dez anos da passagem do Cacique Xicão, a Carta da 8ª assembleia Xukuru, realizada em 2008, expõe dores e expectativas:

(...) há ainda muitas coisas que atrapalham o nosso projeto de futuro e a paz do nosso povo: os assassinatos e a criminalização de nossas lideranças patrocinadas por aqueles que têm o interesse em nosso território e também por aqueles que têm o dever de nos defender, incentivadas pelos grandes meios de comunicação de PE. Os nossos parentes Truká, Pankará e do Maranhão também vêm sofrendo perseguição. Caso gravíssimo é o da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujos povos além de serem chamados de terroristas, ainda correm o risco de terem anulada a homologação de suas terras. Entendemos que essa situação ameaça todos os nossos povos. A política indigenista do nosso país também ameaça o nosso projeto de futuro, pois nossa Constituição mesmo depois de vinte anos não é de fato cumprida. Por isso entendemos, que é de fundamental que seja criados e aprovados, imediatamente o CNPI – Conselho Nacional de Política Indigenista e o Estatuto dos Povos Indígenas24 24 Carta da 8ª Assembleia do Povo Xukuru. Disponível em: https://cimi.org.br/2008/05/27444/. .

Nesse manifesto, o Povo Xukuru expõe sua exclusão de todo o processo de demarcação e como são vistos pela sociedade, cujo poder de decisão sobre essa demarcação não divide com os Xukuru. Quando esse estado de coisas se instala, o diálogo transconstitucional fica bloqueado, a racionalidade transversal não se configura. Fica imposto apenas um único centro social. A sociedade complexa reduz complexidade para que um único modelo social seja o paradigmático, submetendo os demais e até eliminando sua existência. Não à toa o manifesto indígena se justifica.

A transformação proposta por Marcelo Neves a partir do transconstitucionalismo (o diálogo entre ordens jurídicas distintas) encontra afinidade com a percepção de mundo a partir do pensamento decolonial. A necessidade de se avaliar o caso a partir da decolonilidade se dá pelo exposto acima: a criminalização, a dificuldade de se reconhecer a personalidade jurídica de um identidade social, o apagamento da memória e o não cumprimento de obrigações estatais.

Com efeito, a construção de um constitucionalismo com direitos e garantias fundamentais e a construção dos sistemas internacionais de direitos humanos (europeu, interamericano e africano) colocaram a pessoa humana em posição de destaque para fins de promoção e proteção, enquanto o Estado foi lançado ao posto de instrumento dessa promoção e proteção. Essa tutela jurídica antropocêntrica tomou corpo, principalmente, diante das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, em especial a crueldade das batalhas travadas e do próprio holocausto. Trata-se de uma ganho civilizatório, necessário, sem dúvida, porém não esgotável em si mesmo.

Com essa tutela e sua pretensão de universalidade, abstratamente independente de recortes de diferenciação, tais como raça, sexo, credo ou condição social, a segunda metade do século XX experimentou condições de vida de excelente qualidade em serviços públicos na efetivação de direitos fundamentais, prestados a partir de base democráticas, sendo a Europa ocidental exemplo desse “oásis”, mas ainda se deparou com eventos inquietantes, como, por exemplo, os desaparecimentos forçados e a violência policial na América Latina, os genocídios de Ruanda, Antiga Iugoslávia e Serra Leoa e a repressão política abusiva durante a Primavera Árabe.

Não à toa, na América Latina e na África, aparecem os exemplos de inquietação sobre a tutela de Direitos Humanos. É possível, adequado ou justo se perguntar por que os Direitos Humanos são bem sucedidos na Europa ocidental e repletos de vulnerabilidades na América Latina e na África? A pergunta é instigante, de certo modo, legítima, mas, certamente, em instrumento inadequado. Porém, sendo possível responder de forma a cortar uma superfície sem se lançar ao mais profundo dessa resposta, haveria de chegar na decolonialidade.

Essa tutela jurídica antropocentrista, calcada na relação sujeito-sujeito, ou melhor, pessoa humana - pessoa humana, é fortemente marcada por distorções como as provenientes de questões de raça. Assim, vai além do viés do direito e se alça à questão de uma perspectiva de vida apenas antropocêntrica atingiu seu limite, na mesma medida que atingiu um novo horizonte histórico na perspectiva ecosóciocêntrica. As relações sociais passariam de uma intersubjetividade racial e coisificante para uma intersubjetividade na reciprocidade e solidariedade (MARAÑÓN-PIMENTAL, 2014MARAÑÓN-PIMENTAL, Bóris. Crisis global y descolonialidad del poder: la emergencia de una racionalidade liberadora y solidaria. In: MARAÑÓN-PIMENTAL, Bóris, BuenVivir y descolonialidad. Crítica al desarrollo y la racionalidad instrumentales. Ciudad de Mexico: Universidad Autonoma de Mexico, 2014, 272p., p.21).

Essa tese pela coexistência civilizatória, certamente, retiraria o modo de vida indígena de uma condição de subalternidade. Seus conhecimentos e saberes impulsionariam a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos a um patamar mais avançado de promoção e proteção dos Direitos Humanos. Percebam, no entanto, o tempo desses dois últimos verbos (retiraria e impulsionariam): futuro do pretérito, um futuro incerto ou condicionado.

Ao tempo de análise do caso xukuru pela Comissão Inter-americana de Direitos Humanos, nem os comissionados e nem o grupos de juristas envolvidos no caso tinham acúmulo suficiente para construir uma racionalidade transversa nesse patamar. No outro lado, no entanto, já havia sujeitos indígenas (experts) prontos para fazerem apresentar seus conhecimentos e saberes, em especial, a condição de ancestralidade das terras indígenas, que, por si só, implicaria uma tese completamente dissociada da tese sobre propriedade.

Será que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Sistema Interamericano de Direitos humanos, incluídos seus juristas, estão prontos para isso? Quer dizer, estão prontos para serem mais transconstitucionais e decoloniais?

4. Conclusões

Este trabalho buscou apresentar os aspectos mais relevantes do caso Povo Xukuru do Ororubá contra a República Federativa do Brasil, com o objetivo de registrar o seu significado no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão do sistema interamericano junto ao qual os autores tivemos a oportunidade de atuar em defesa dos indígenas. Após a decisão definitiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos, favorável à pretensão do Povo Indígena Xukuru, fazia-se importante que um texto acadêmico fosse elaborado pelos autores, no sentido de evidenciar os caminhos jurídicos adotados e as inquietudes políticas e filosóficas que lhe eram subjacentes. A metodologia consistiu em uma parte descritiva sobre o caso e suas circunstâncias locais, o trâmite processual e os atos das partes envolvidas no litígio. Uma segunda parte, analítica, se baseou na seguinte pergunta: uma outra tese jurídica com base na ancestralidade seria viável no momento político enfrentado pelo país?

A resposta, acreditamos, está respondida com base nos argumentos e nas limitações jurídicas, políticas e procedimentais apresentadas ao longo do artigo. Trata-se de uma resposta aberta e que deixa espaço para o preenchimento, em parte, pelo leitor.

  • 1
    Movimentos sobre direitos das crianças e adolescentes, movimento pela saúde das pessoas com HIV, movimento ambientalista, movimentos feministas, movimento indígenas, movimento negro, movimento quilombola, movimento LGBTQI+, grupos historicamente e socialmente vulnerabilizados, que reivindicam direitos e participação ativa na sociedade brasileira pós Constituição Federal de 1988.
  • 2
  • 3
    O Relatório Figueiredo mostra a atuação de agentes de Estado, em especial, do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em práticas atrozes contra indígenas que não aceitavam o processo de integração cultural. Toda atrocidade de torturas, crucificação, decaptação, estupro foi registrada nesse documento, que sinaliza uma nova onda genocida contra indígenas no Brasil em meados do século XX. O relatório está disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao-dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registro-militar/relatorio-figueiredo
  • 4
    Destacamos aqui o § 4º do art. 231 - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis, e o art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
  • 5
  • 6
    Tempos de comunicação via correios. A Comissão Interamericana Direitos Humanos recebe a comunicação de violação e o pedido de medidas cautelares em 16 de outubro de 2002.
  • 7
    Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos, Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno, Artigo 8. Garantias judiciais, Artigo 21. Direito à propriedade privada, Artigo 25. Proteção judicial
  • 8
    Por soft power entenda-se aqui a condução de um rito processual sumário, sem a existência de uma fase instrutória mais complexa, a qual seria capaz de gerar, ao seu final, uma diretriz de conduta tida como plenamente cogente. Este modo de realização do direito não guarda em si mesma e nem outra fonte a obrigatoriedade de cumprimento a ponto de seu cumprimento poder ser exigido. A soft law se cumpre com base no convencimento resultante dos argumentos utilizados.
  • 9
    Invisibilidade social diz respeito a um estado de humilhação e mal-estar a que são submetidas pessoas ou grupos socais específicos (SOUZA, 2006SOUZA, Jessé. A Invisibilidade da Desigualdade Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, 396p., p.11).
  • 10
    Se o sistema global for provocado a partir dos comitês de tratados em modo decisório de hard power, pode se gerar litispendência internacional.
  • 11
    Em 1850, 14 anos antes da Guerra do Paraguai, a população brasileira era de aproximadamente dez milhões de pessoas, das quais uma quarta parte era constituída de escravos (GORENDER, 1978GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo, Ática, 1978, 632p.:319). Como o efetivo do Exército brasileiro fosse insuficiente para ganhar a guerra, foram utilizados os contingentes da polícia e da Guarda Nacional das províncias do império e criaram-se os corpos de Voluntários da Pátria, movidos por um sentimento nacionalista. Nesse contexto, o império brasileiro introduziu a estratégia de induzir a participação escrava e indígena na Guerra. A estratégia corrobora a visão tradicional dos poderosos de que eles fazem a guerra, mas lutar é para os pobres. (TORAL, 1995TORAL, A. A. de. A participação dos negros escravos na guerra do Paraguai . Estudos Avançados, [S. l.], v. 9, n. 24, p. 287-296, 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8880. Acesso em: 25 out. 2019.
    https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
    )
  • 12
    Embora as fontes sejam escassas e ate certo ponto precárias, a participação indígena na guerra contra o Paraguai está documentada, e “não restringiu-se as batalhas, sendo os indígenas utilizados também como mão de obra para os trabalhos braçais que se faziam necessários – aliás, como sempre foram recrutados.” (MARQUES, 2006MARQUES, Adriana Vargas. Um exército invisível: a participação de indígenas na guerra contra o Paraguai. Revista Urutágua - No 10 – Ago./Set./Out./Nov. 2006 – Maringá.)
  • 13
    45. A typical case is that of the Xucurus at Oruguba, in the Pesqueira municipality of the State of Pernambuco, 220 km from Recife. According to the local tradition, its members agreed to fight as members of the Brazilian Army in the Paraguayan War, in exchange for having their lands recognized--which it turned out did not take place. It wasn't until 1992 that President Itamar Franco signed the resolution acknowledging the FUNAI study which found the Xucurús entitled to 26,980 hectares as ancestral land--an area equivalent to one fifth of what they had before the conquest. But in fact, the Indians occupy only 12% of those 26,980 ha. The rest is owned by 281 ranchers and lumbermen, most of whom in turn hire Indian laborers. There are approximately six thousand Xucurús. At present, the land is being demarcated by FUNAI in a climate of general insecurity and with minimal funding (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1997, parágrafo 45).
  • 14
    Anistia Internacional. Estrangeiros em Nosso Próprio País: povos indígenas do Brasil. 2005, p.22.
  • 15
    A cartografia sócio-cultural dos Xucuru por eles e elas mesmas pode ser acessada em: http://novacartografiasocial.com.br/download/01-xukuru-do-ororuba-pe/. Nesse mapa, é possível identificar a região de Cimbres e aldeia Pé-de-Serra do Oiti de Chico Quelé.
  • 16
  • 17
    Como Defensora de Direitos Humanos, a advogada Elma Novais fez grande esforço ao exigir julgamento dos policiais militares, processados pelo assassinato de seu filho Josenildo. Isso fez emergir a existência de práticas investigativas da Polícia Militar sem mandados, sem qualquer controle, um resquício da Ditadura Militar. A “segunda seção” ou “serviço de inteligência” continuava com essas práticas esdrúxulas ao Estado de Direito. Por conta disso esforço, Elma Novais e sua família receberam ameaças de morte. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr190012003pt.pdf
  • 18
  • 19
    Memorial com razões de mérito, abertura da fundamentação jurídica, exposição do direito subjetivo perseguido pela parte requerente, nesse caso, pelo Povo Xukuru. Petição assinada pelo CIMI e pelo GAJOP em 2011.
  • 20
    Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_79_esp.pdf
  • 21
    No livro Choque das Civilizações, Samuel Huntington (1993), de forma resumida, traz uma nova compreensão de mundo após o colapso da União Soviética, consequentemente, com o fim da era das ideologias e da disputa sobre o modelo econômico. Ainda assim, as disputas aconteceriam e o Estado-nação ainda é a figura de destaque, mas as divisões entre os seres humanos e as largas divergências e diferenças entre identidades dariam o tom dos conflitos no novo tempo.
  • 22
    Problema jurídico constitucional, nesse caso, segue a definição trazida por Marcelo Neves quando, ao pensar o transconstitucionalismo, ele que os casos levados à solução judicial não mais se resumem a uma única ordem jurídica, em especial, quando envolvem direitos humanos. (NEVES, 2012NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo: breves considerações com especial referência à experiência latino-americana. In: 35º aniversário da Constituição de 1976. Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, 1.v., p.256).
  • 23
    A Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas compõe a legislação do Sistema Global de Direitos Humanos. Como tal, não tem uma inserção hierárquico-normativa no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, logo não compreende seu universo de direito, mas não de todo descartado seu uso. Ainda que não seja matéria de direito, instrumentos externos à base normativa do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, regularmente, são utilizados como instrumentos hermenêutico-colaborativos. Têm uma importância em se perceber os limites de aplicação das normas inter-americanas.
  • 24
    Carta da 8ª Assembleia do Povo Xukuru. Disponível em: https://cimi.org.br/2008/05/27444/.

5. Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2022
  • Aceito
    02 Fev 2022
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