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Permanências estruturais e ausência de rupturas na política criminal e de segurança nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Structural permanence and absence of disruptions in criminal and public security policies in the Partido dos Trabalhadores governments (2003-2016)

Resumo

O artigo, tomando o repertório teórico da economia política da pena, parte de leitura histórico-estrutural da função do controle penal nas diferentes etapas de acumulação no capitalismo brasileiro com vistas a expor a ausência de rupturas experimentadas nas políticas criminais e de segurança pública durante os governos social-liberais do Partido dos Trabalhadores (2003-2016).

Palavras-chave:
Política criminal; Segurança pública; Social-liberalismo; Partido dos Trabalhadores

Abstract

The article, taking the theoretical repertoire of the political economy of punishment, starts from a historical-structural reading of the function of penal control in the different stages of capital accumulation in Brazilian capitalism viewing to expose the absence of disruptions experienced in criminal and public security policies during social-liberal governments of the Partido dos Trabalhadores (Workers' Party) (2003-2016).

Keywords:
Criminal policy; Public security; Social-liberalism; Partido dos Trabalhadores (Workers’ Party)

Introdução1 1 Não poderíamos deixar de registrar nosso profundo agradecimento (e admiração) ao Gustavo Seferian, quem nos auxiliou na compilação deste artigo que tanto significado apresenta pessoalmente, enquanto síntese da trajetória teórica e política até aqui. Obrigada pelo incentivo de todos os dias.

Partindo de uma leitura histórico-estrutural da função do controle penal nas diferentes etapas de acumulação de capitais e de reflexões já consolidadas acerca da economia política da pena, o artigo busca enfrentar as insuficiências generalizantes das explicações teóricas formuladas desde o ponto de vista dos países centrais da ordem capitalista na busca de compreender as políticas criminais e de segurança pública experimentadas na particularidade periférica e dependente do Brasil.

Assim, visamos formular análise do controle penal calcada nas especificidades tecidas nas perenizações coloniais a forjarem uma “nação fraturada”, que transpõe o escravismo através da conjunção do arcaico/moderno em um capitalismo patriarcal e racista sui generis: o capitalismo dependente brasileiro.

Estas permanências serão focalizadas no período entre os anos de 2003 e 2016, no qual a gestão do Executivo Federal foi protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), período em que se verificou, desde a nossa percepção teórica, a implementação de um projeto político-econômico de matiz social-liberal.

O estudo se debruçará no destino da política criminal e de segurança nestes anos, percebendo suas características, contradições e a tendência ao aprofundamento de uma militarização da segurança pública acompanhada de uma inflação de um direito penal de emergência e políticas de recrudescimento penal.

Assim, o escrito buscará destrinchar o quanto o sentido colonial brasileiro não foi transcendido em toda a sua história, inclusive durante as gestões federais petistas, ocorrendo aí um aprofundamento de um processo de reversão neocolonial caracterizador da Nova República, e que traz evidentes efeitos na lida com as políticas criminais e de segurança.

Apresentará, assim, as ideias principais desenvolvidas na tese de doutorado “Distribuir e punir? Capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)” (BENITEZ, 2018BENITEZ, Carla Martins. Distribuir e punir? Capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). 353 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018.), estruturando-se expositivamente em três principais momentos: i. Estudo e caracterização da formação socio-histórica brasileira, sua conformação capitalista dependente e as especificidades e permanências do período marcado pela gestão social-liberal petista; ii. Apresentação dos marcos analíticos de uma economia política da pena atenta às particularidades dos países dependentes, em especial o caso brasileiro; iii. Apreensão dos principais aspectos da onda punitiva brasileira durante os anos de gestão do executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores, com ênfase nas ações protagonizadas por este e buscando delinear as razões da ausência de uma política criminal e de segurança anti-neoliberal neste período histórico estudado.

1. Brasil, permanências de uma nação fraturada

Não nos parece ocioso, ainda que em ousado vôo panorâmico, iniciar nossa exposição com um diagnóstico de nação acerca de nosso país, base social e histórica que serve de redução concreta de nossa problemática.

O nosso território foi tornado “Brasil” não como um projeto de nação, mas sim como um projeto mercantil que deveria cumprir uma promessa de imensa lucratividade. Se, no decorrer do processo histórico, forjamo-nos enquanto povo, isso ocorre, de acordo com palavras de Darcy Ribeiro (1978RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros: 1. Teoria do Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1978., p.19), “como uma espécie de subproduto indesejado e surpreendente de um empreendimento colonial, cujo propósito era produzir açúcar, ouro ou café e, sobretudo, gerar lucros exportáveis”.

Assumindo que não há possibilidade de pensar nossa história ou de buscar compreender nossas instituições de controle social sem olhar para a escravidão no país, tomamos como base reflexiva as elaborações de maior maturidade de Clóvis Moura (1994MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.). Este desenvolve uma tipificação que comporta dois momentos históricos: o do escravismo pleno (até 1850) e o do escravismo tardio. As transformações entre estas duas etapas decorrem de elementos estruturais, de esgotamento de modelo econômico, mas também, imbricadamente, dos conflitos entre as classes, exigindo uma negação da ideia difundida pela historiografia de passividade e aceitação dos escravos.

Quanto aos elementos econômicos e extraeconômicos que garantiam esta sociabilidade escravista, Clovis Moura descreve tanto valores sociais e instrumentos de controle social por parte dos senhores, tais como os instrumentos de tortura, a prostituição forçada, a cristianização imposta, como também as múltiplas formas de reação e resistência negra, concluindo que são esses dois conjuntos de comportamentos, valores e subjetivações que projetam “a racionalidade do sistema” (MOURA, 1994MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 23).

Com a Independência do país denota-se uma nova etapa caracterizada como de neocolonização, passando a se constituir mais nitidamente uma burguesia nacional, promovendo mudanças com a modernização capitalista que se concretizam com o fim do tráfico, a posterior abolição da escravidão e a passagem do Império para a República. Mudanças estas que ocorrem de maneira gradual e sem rupturas, acomodando, sob diferentes marcos, velhos e novos grupos minoritários de poder.

Para Clóvis Moura, no período de 1850 em diante, marcado pela Lei Eusébio de Queiroz - proibindo o tráfico internacional - e pela consolidação de uma burguesia nacional sui generis, autoritária para dentro e subalterna aos interesses ingleses, inaugura-se a etapa do escravismo tardio, caracterizado como um “cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista” (MOURA, 1994MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 53).

Esta incipiente modernização, acelerada com as injeções financeiras inglesas e o intenso processo de urbanização, aprofundam a combinação do arcaico e do moderno, por exemplo, com o uso das tecnologias recentemente introduzidas para esticarem a corda do que resta das relações econômico, política e sociais baseadas no escravismo. Do escravismo tardio se origina uma modernização dependente.

Com a industrialização, houve a crença na possibilidade de mudança no status do país no cenário internacional, mas o papel do Brasil na divisão internacional do trabalho permaneceu o mesmo e a forma como se dará a nossa modernização somente aprofundará a condição de dependência. O desenvolvimento industrial mundial impacta o gerenciamento da economia do café, já apoiada em uma movimentação comercial e financeira que demanda a criação de um mercado consumidor e da industrialização a partir da produção de bens leves, em um primeiro momento. Processo este acompanhado da consolidação de direitos trabalhistas e previdenciários, um misto de pressão da classe trabalhadora organizada e de necessidade de regulação da exploração.

Especialmente a partir da década de 1950, ocorre um processo de acumulação do capitalismo brasileiro que não conta com uma acumulação prévia (pois se baseia na importação das tecnologias descartadas dos países de capitalismo avançado) e, sendo assim, a acumulação capitalista brasileira se fundamenta na exploração do trabalho vivo quase que exclusivamente (a denominada mais-valia absoluta), sendo, portanto, a entrada massiva de capitais estrangeiros via financiamento público um importante diferencial, o que faz com que a dependência externa apenas se agudize, mais e mais. A nossa indústria pesada, importante passo, não foi garantida autonomamente em relação ao capital internacional. O nosso sentido de colonização (PRADO JÚNIOR, 2000PRADO JÚNIOR, Caio. O sentido da colonização. In: PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2000.) se mantinha mesmo com essas mudanças tão significativas (CAMPOS, 2017CAMPO, Fábio Antonio de. Imperialismo e herança mercantil na industrialização brasileira. In: FILHO, Paulo Alves de Lima; NOVAES, Henrique Tahan; MACEDO, Rogério Fernandes (Org.). Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017., p.257).

O período imediatamente anterior ao golpe empresarial-militar significou a possibilidade de inflexão de um sentido de uma revolução brasileira. Segundo Fábio Campos (2017CAMPO, Fábio Antonio de. Imperialismo e herança mercantil na industrialização brasileira. In: FILHO, Paulo Alves de Lima; NOVAES, Henrique Tahan; MACEDO, Rogério Fernandes (Org.). Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017., p. 267), tínhamos dois possíveis destinos, um era o aprofundamento do atrelamento dependente, com o complexo multinacional garantindo “rentabilidade por meio da extração de mais-valor à custa da superexploração da força de trabalho e dos benefícios do padrão de consumo elitizado”, o outro era a guinada nacionalista e democrática que um grupo de intelectuais e ativistas reivindicavam, exigindo, “por meio de um complexo nacional popular, reformas estruturais capazes de domesticar o capitalismo para o bem-estar da maior parte da coletividade brasileira”. A década de 1960 apresenta uma cada vez mais nítida divisão social do trabalho e maior delimitação de classes e de seus opostos interesses, com o fortalecimento da classe trabalhadora e a forte repressão a ela dirigida durante as próximas décadas perdidas. Instaura-se uma nova relação de forças para que seja permitida maior acumulação.

O Golpe de 1964 foi o enterrar da possibilidade de uma alternativa.

Podemos dizer, portanto, que os caminhos trilhados em nosso específico processo de industrialização pavimentaram nossa sina dependente, sendo “sob a aceleração do crescimento econômico, portanto, sob a ‘integração do mercado interno’ e o industrialismo, que ela iria mostrar o que significa dependência sob o capitalismo monopolista e o imperialismo total” (FERNANDES, 2008FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008., p. 33). Assim, para Florestan, o nosso desenvolvimento adquire a feição de capitalismo dependente nas últimas décadas do século XIX, quando a dominação externa atinge a etapa imperialista, com maior concentração industrial e criação de monopólios, concomitante a um domínio cada vez mais forte do capital financeiro. Esta classificação é usada por este autor - e por nós aqui compartilhada - como definição de nosso desenvolvimento a partir deste momento e não como característica per si, associando-se, como em um laço de continuidade, com a periodização de escravismo pleno - escravismo tardio de Clóvis Moura.

A hipótese complementar para a percepção da dependência em nosso país que aqui lançamos é a de que o momento de inflexão das escolhas políticas e econômicas que determinaria a ruptura ou não para um caminho autônomo de desenvolvimento também dependeria de um acerto de contas no que tange às relações raciais. O mito da harmonia racial se consolidou exatamente neste período, sendo mais um elemento da possibilidade de afirmação da perpetuação do nosso sentido colonial.

Abdias Nascimento (2016NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processos de um racismo mascarado. Editora Perspectiva S/A, 2016., p. 200) descreve quais seriam os objetivos da construção do mito da democracia racial:

O preconceito de cor, a discriminação racial e a ideologia racista permaneceram disfarçados sob a máscara da chamada ‘democracia racial’, ideologia com três principais objetivos: 1. Impedir qualquer reivindicação baseada na origem racial daqueles que são discriminados por descenderem do negro africano; 2. Assegurar que todo o resto do mundo jamais tome consciência do verdadeiro genocídio que se perpetra contra o povo negro do país; 3. Aliviar a consciência de culpa da própria sociedade brasileira que agora, mais do que nunca, está exposta à crítica das nações africanas independentes e soberanas, das quais o Brasil oficial pretende auferir vantagens econômicas.

Esta descrição de Abdias nos é muito cara por demonstrar a perfeita utilidade do mito da democracia racial para tornar impotente a vocalização do racismo vivido, sendo este silenciamento o próprio mecanismo de sua intensificação e perpetuação. Do mesmo modo, o mito serviu para criar uma possibilidade de falsear uma identidade nacional a ser vendida, inclusive servindo de modelo para outros países. O mito precisava ser sustentado justamente porque o racismo nosso continha (contém) a mesma força destrutiva dos outros países-símbolo, porém sem a explicitação, pois, como afirma Florestan Fernandes (2007a_____. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007a., p. 67), aqui “se confundem padrões de tolerância estritamente imperativos na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente dita”.

Assim, podemos afirmar que o desenrolar da trajetória industrializante demonstrou, mais do que nunca, que o desenvolvimento capitalista em países como o Brasil ocorre de maneira diferenciada dos países capitalistas centrais e a sua classe dominante não assumirá para si a realização das possíveis tarefas de uma democracia burguesa, como a reforma agrária, urbana, dentre outras. Florestan Fernandes explica que o caráter conservador é inerente à classe burguesa em si, não se tratando de uma peculiaridade brasileira, porém, diferentemente do período de ascensão fundado no lema da “igualdade, liberdade e fraternidade”, nos países colonizados apresenta suas vestes apropriadas a seu momento de consolidação, não assumindo qualquer caráter revolucionário.

Desta maneira, compreender as especificidades da nossa formação burguesa é fundamental para interpretarmos o dilema de nosso desenvolvimento e a impossibilidade da própria ideia de nação. Florestan Fernandes justifica que, em “nações com desenvolvimento capitalista induzido e controlado de fora”, a dominação burguesa se estabelece em dois âmbitos, o interno e o externo. O segundo, mais facilmente compreensível, trata-se da interferência “organizada”, “direta” e “contínua” da burguesia dos países centrais e o primeiro seria a complexa metamorfose da elite brasileira, que habilmente mantém as estruturas patriarcais e autocráticas e as potencializa sob os moldes da nova etapa de acumulação do capital, representada por “classes dominantes que se beneficiam da extrema concentração da riqueza, do prestígio social e do poder, bem como do estilo político que ela comporta, no qual exterioridades ‘patrióticas’ e ‘democráticas’ ocultam o mais completo particularismo e uma autocracia sem limites” (FERNANDES, 2008FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008., p. 35). Portanto, estruturas coloniais econômicas, culturais e políticas coabitam com os novos padrões capitalistas.

Houve um casamento entre uma nova oligarquia interna, dominada por esta ascendente burguesia industrial e o capital estrangeiro; casamento concedido e consentido pela oligarquia latifundiária tradicional. A nossa burguesia, portanto, forja-se desde um profundo autoritarismo, calcado em absurdos privilégios e tendo o Estado como garantidor de seus próprios interesses. E, mais do que isso, para que tal façanha exclusivista se realize, precisa de um Estado que funcione como braço de repressão e violência. Isso tudo significa dizer que o gradual processo de proibição do tráfico negreiro, Independência, abolição da escravidão, republicanismo, estímulo à imigração e processo de industrialização por substituição de importações de fato significou, nos termos de Florestan Fernandes, “uma revolução burguesa de tipo especial”, uma verdadeira “revolução dentro da ordem”, profundamente conservadora e dependente (FERNANDES, 2008FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008., p. 38).

Tais transformações se conformavam com as tradicionais formas coloniais, como “uma espécie de afluente, que desaguava em um rio velho, sinuoso e lerdo” (FERNANDES, 2008FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008., p. 48). E dentro desta especificidade em nossa construção peculiar de modernidade, conjugando, de maneira combinada, relações sociais coloniais com modelos competitivos capitalistas, a questão racial adquire característica estratégica, pois a sua mutação - da condição de escravo para de liberto e suposto cidadão em uma sociedade dita harmônica racialmente - é garantidora da consolidação desta nova etapa de acumulação capitalista no país, profundamente marcada pela concentração de capitais e pela desigualdade social/racial em níveis abismais.

Isso significa que a violência é prática política permanente e não episódica, tendo em vista que a manutenção de uma ordem social nesses termos - racista e concentradora de riquezas - só é possível por meio da permanência de instrumentos de repressão continuada. As demandas sociais são tratadas como “casos de polícia”, o espaço para a negociação é reduzido e a criminalização dos movimentos sociais se mostra uma constante. E é por isso que o Estado autocrático brasileiro tem o racismo como um de seus fundamentos.

Diante deste quadro estrutural da constituição de nossa nação fraturada, caberia nos perguntar se o processo de redemocratização e da constituinte e, posteriormente, no decorrer dos 14 anos de gestão do executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores, poderiam também significar momentos-chave de alteração dessas tendências de dependência/subdesenvolvimento. Defendemos a tese de que não, nem no que tange às escolhas econômicas e políticas, ocorrendo, na realidade, um paulatino efeito reverso de reprimarização da economia, nem mesmo nos aspectos referentes à segregação social e racial.

Dando um breve passo atrás à Nova República, o país com a indústria mais complexa da América Latina sofre uma regressão profunda das suas forças produtivas. A nossa desindustrialização acompanhada de reprimarização, intensificada nos últimos vinte anos, precisa ser entendida desde as opções político-econômicas do país, mas também as situando nas condições estruturais das transformações mundiais do padrão de acumulação do capital, nas quais “aquele sistema industrial que sustentava determinada rota desenvolvimentista seria substituído por uma regressão produtiva” (CAMPOS, 2017CAMPO, Fábio Antonio de. Imperialismo e herança mercantil na industrialização brasileira. In: FILHO, Paulo Alves de Lima; NOVAES, Henrique Tahan; MACEDO, Rogério Fernandes (Org.). Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017., p. 248). O rentismo e a especialização marcam o papel de países de capitalismo dependente com desenvolvida estrutura econômica, como o Brasil, nesta nova etapa de divisão internacional do trabalho.

O desenvolvimento tecnológico do período gera uma corrida global por mais eficazes tecnologias e por um processo de trabalho capaz de aumentar a produtividade do trabalho, fazendo com que as potências imperialistas e as empresas transnacionais alterem, a partir da grande crise dos anos 1970, suas relações com os países que até então vivenciavam o ascenso industrial, pois este desenvolvimento não mais interessa ao grande capital.

A adoção de saídas neoliberais - com a revolução tecnológica (microeletrônica), acompanhada de uma reestruturação produtiva das grandes corporações e a unificação dos mercados nacionais à lógica do capital financeiro (com o fim do Acordo de Bretton Woods) - passou por uma aguda flexibilização das relações de trabalho e o desmonte de políticas sociais já estruturadas anteriormente com debilidade. O choque dos juros estadunidense é o principal fator da crise da dívida das economias latino-americanas. As respostas são desiguais e pesadas para os países periféricos, uma vez que os governos assumem os estoques em dólares e as filiais quitavam seus passivos em moeda estrangeira.

Imiscuindo elementos políticos na compreensão desta transição regressiva, no Brasil a derrota das “Diretas já” em 1984, bem como a da candidatura de Lula, em 1989, contribuíram na consagração no país da absorção desta nova etapa do projeto capitalista, na era do capitalismo financeiro. Essas derrotas políticas somadas às transformações decorrentes da neoliberalização do país alteraram em muito a correlação de forças. A estabilidade da moeda, garantida com o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso em meados dos anos 1990, não era necessariamente para conter a inflação enquanto um anseio popular, mas também para garantir as condições do novo negócio que o Brasil poderia se tornar, pela “especulação com juros da dívida pública e de estoques com o câmbio em permanente desvalorização nos anos 1980” (CAMPOS, 2017CAMPO, Fábio Antonio de. Imperialismo e herança mercantil na industrialização brasileira. In: FILHO, Paulo Alves de Lima; NOVAES, Henrique Tahan; MACEDO, Rogério Fernandes (Org.). Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017., p. 268).

O pacote foi engolido devido a promessas de que privatizar faria com que o investimento se ampliasse. A sua não concretização pode ser traduzida em números, com o crescimento do PIB a menos de 2% como média e a renda per capita sendo diminuída (SAMPAIO JÚNIOR, 2017SAMPAIO JÚNIOR, Plinio de Arruda. Crônica de uma crise anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma. São Paulo: SG-Amarante Editorial, 2017.).

Desde o início da década de 1980, quando o país ingressa nessa atualização dos mecanismos de acumulação e expansão da ordem do capital, nós tivemos um desmonte da crescente indústria nacional, associado ao desemprego, subemprego e precarização do emprego, desnacionalizações e privatizações e nenhuma sequer esperança de crescimento ou progresso, como a cartilha neoliberal vendia, muito pelo contrário. Os elementos acima narrados constituem a base do entendimento da razão da perpetuação de nossa condição dependente nesta etapa específica do capitalismo ter gerado um processo de aprofundamento do que alguns autores denominarão como “reversão neocolonial” (SAMPAIO JÚNIOR, 2017SAMPAIO JÚNIOR, Plinio de Arruda. Crônica de uma crise anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma. São Paulo: SG-Amarante Editorial, 2017.), que se inicia com os governos estritamente neoliberais de Collor e Fernando Henrique Cardoso e se perpetua com Lula e Dilma.

No início do século XXI, mais precisamente de 2003 a 2016, nas gestões presidenciais do Partido dos Trabalhadores, o processo continua, com novas roupagens, mas com características semelhantes. Foram anos de administração por uma frente política, coordenada partidariamente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que alguns denominam como pós-neoliberal, social-liberal, outros como neodesenvolvimentista ou simplesmente a continuidade da política neoliberal, com suas especificidades. Aqui buscaremos traçar alguns elementos e se posicionar quanto ao seu perfil.

Podemos afirmar que o rumo dependente e reprimarizador se perpetuou neste período, mas com alteração de ritmo. No bojo deste processo ocorre - o que muitos autores vão corroborar da tese de Carlos Nelson Coutinho e Francisco de Oliveira (2010OLIVEIRA, Francisco de. “Hegemonia às avessas”. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy. RIZEK, Cibele. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.) - uma “hegemonia às avessas”, com a administração estatal também sendo pautada pela administração daqueles que originariamente não compunham as franjas da burguesia, o que fundamentalmente se dá pela gestão de fundos de complementação de aposentadoria, burocratizando e despolitizando de setores tradicionalmente combativos da sociedade brasileira. A desmobilização popular se dá em muitos sentidos, desde transformar lutas sociais em questões administrativas; em garantir políticas de renda mínima voltadas ao consumo e não a uma nova conscientização popular baseada em igualdade e justiça; em cooptar importantes lideranças de movimentos sociais, seja as incluindo na máquina burocrática ou concedendo-lhes certas pautas reivindicadas; e, talvez o mais grave, a criação de uma nova condição social de privilégio a parte da burocracia sindical, que inclusive passa a participar da gestão do capital financeiro, por meio dos fundos de pensão.

Nesta sopa de possíveis conceitos para caracterizar a forma de gestão petista do Estado, adere-se à concepção de que o neoliberalismo foi regido no Brasil, especialmente nas gestões capitaneadas pelo Partido dos Trabalhadores, por uma ideologia social-liberal, que ganha forma a partir das seguintes diretrizes:

No Brasil, a ideologia social-liberal gira em torno de três proposições políticas e analíticas: 1) o crescimento econômico, por si próprio, não traria a redução das desigualdades, havendo a necessidade de políticas públicas específicas e direcionadas para este problema; 2) os gastos sociais não seriam baixos, ao contrário: eles deveriam tornar-se mais eficientes com a melhora da alocação de recursos com sua focalização nos estratos sociais miseráveis; 3) propostas de desenvolvimento baseadas no investimento em capital humano, reformas tributárias, previdenciárias e trabalhistas e ampliação do microcrédito (CASTELO, 2013b_____. O social liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013b., p.356).

Desse modo, promove-se uma gestão do Estado que parte da ideia de crescimento econômico alinhado com a garantia de medidas sociais, a partir da inclusão no mercado e incentivo à educação da parcela da população dela historicamente alijada. Vale destacar que esta proposta foi exitosa na primeira gestão do Governo Lula devido à conjuntura externa favorável, especialmente o crescimento chinês e as suas demandas daí derivadas.

Conforme Rodrigo Castelo desenvolve, a noção do social liberalismo surge dos centros imperialistas diante da impossibilidade de empurrar algumas contradições geradas pelo neoliberalismo, devendo este incorporar também uma agenda social.

Este ajuste complementar pode ser chamado de social-liberalismo, que muda certos aspectos do neoliberalismo para preservar a sua essência, a saber, a retomada dos lucros dos grandes monopólios capitalistas via o novo imperialismo, a financeirização da economia, a reestruturação produtiva e precarização do mundo do trabalho, o aumento das taxas de exploração de força de trabalho, a reconfiguração das intervenções do Estado ampliado na economia e na “questão social”, o apassivamento e cooptação da classe trabalhadora e, em determinados casos, a decapitação das suas lideranças mais combativas (CASTELO, 2013b_____. O social liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013b., p. 122).

Desde a campanha eleitoral de 2002 - confirmada com a “Carta ao povo brasileiro” - já estava anunciado que Lula iria respeitar os ditames neoliberais, com sua faceta social-liberal, porém sem colocar em risco os setores hegemônicos do capital, inclusive fazendo-lhes promessas de bons ventos. O anúncio seria de ausência de ruptura e de uma transição pactuada.

Para Leda Paulani, o governo petista perpetua aí um discurso de “estado de emergência permanente”, que serviria como justificativa para sua continuidade da ortodoxia econômica neoliberal:

(...) quando Lula assume e abraça com determinação inimaginável o receituário ortodoxo de política econômica, o discurso oficial justificou tudo isso com a tese de que estávamos à beira do abismo, a economia derretia como manteiga e desfazia-se como gelatina, ou seja, estávamos num típico estado de emergência que implicaria a admissão, mesmo por um governo “de esquerda”, mesmo por um governo do PT, de medidas o mais duras possível (e, até um mês antes, injustificáveis), a saber: - elevação do superávit primário, para além do exigido pelo FMI (de 3,75% para 4,25% do PIB); - enorme aumento da então já elevadíssima taxa básica de juros (de 22% para 26,5% ao ano); - brutal corte de liquidez (pelo aumento do compulsório dos bancos), que, da noite para o dia, tirou de circulação 10% dos meios de pagamento) (PAULANI, 2010PAULANI, Leda Maria. Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas no Brasil. In: BRAGA, Ruy Braga; OLIVEIRA, Francisco de; RIZEK, Cibele (org). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 123).

E daí em diante muitas outras medidas seguiram este caminho, sendo algumas delas: i. pagamento do serviço da dívida ultrapassando 8% do PIB, ao mesmo tempo em que se repetia que não havia recursos para outros investimentos públicos; ii. transformação do sistema previdenciário brasileiro, abrindo espaço para as previdências privadas; iii. aprovação da lei de falências, atendendo, especialmente, aos interesses dos credores; iv. defesa da independência do banco central; v. ausência de uma reforma tributária que altere a desproporcionalidade da incidência de tributos entre ricos e pobres, inalterando a Lei de Responsabilidade Fiscal; vi. privatizações de rodovias, portos, hidrelétricas, bem como as sofisticadas privatizações indiretas da saúde, educação, cultura e outras áreas sociais via administração terceirizada por organizações sociais e fundações; v. defesa e sustentação do agronegócio, com a aprovação da Lei de Biossegurança, autorizando a comercialização dos transgênicos; entre outros pontos.

Para além da independência do Banco Central e sua presidência por Henrique Meirelles, anteriormente vinculado ao BankBoston e que havia sido eleito deputado federal pelo PSDB, Plinio de Arruda Sampaio Júnior. (2017SAMPAIO JÚNIOR, Plinio de Arruda. Crônica de uma crise anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma. São Paulo: SG-Amarante Editorial, 2017., p. 69) complementa que “os cargos estratégicos do Ministério da Fazenda responsáveis pela formulação da política macroeconômica, a Secretaria do Tesouro e a Secretaria da Receita, foram entregues a técnicos da confiança do FMI, totalmente desconhecidos do PT e do ministro Palocci”.

E então podemos nos perguntar qual é a função e o impacto das políticas públicas de combate ao pauperismo, ampliadas significativamente a partir deste primeiro mandato. Sem negar a relevância destas políticas, faz-se importante perceber que impactam os efeitos dos problemas sociais gerados por essa escolha histórica (e não rompida) de desenvolvimento do país, não tocando em suas causas.

O que se concretiza é uma política pautada no “melhorismo”, pois atende a redução dos efeitos provocados pela própria perpetuação de um modelo e desde uma combinação individual e pelo consumo, distanciando-se das reivindicações coletivas de direitos e, principalmente, das mudanças nos processos de produção e trabalho. E não é apenas o instrumento partidário que se burocratiza, mas também o sindical, perdendo sua radicalidade e se rendendo ao papel negocial limitado.

Esta conjuntura econômica favorável e a implementação deste pacote econômico apoiado na ideologia social-liberal explicam como a crise política de 2005, com a investigação e processamento dos casos de corrupção do Mensalão, não chegaram a atingir profundamente a popularidade de Lula. Faz-se interessante observar que, neste momento, a estabilidade do governo foi também respaldada pelos grupos financeiros que articularam a queda de Dilma alguns anos depois, destacando-se a Fiesp.

Entretanto, a crise de 2008 que conseguiu ser relativamente administrável nos primeiros anos, por essa condição exportadora e dependente do Brasil, foi sentida com mais força nos anos subsequentes, com taxas menores de crescimento e aumento do desemprego até então estabilizado (ainda que precarizado).

Quanto a esta etapa, neste momento o governo brasileiro - atento aos efeitos que, inevitavelmente e com força, alcançarão em breve o Brasil - aponta para uma política anti-cíclica que alguns chamariam de pós-neoliberal ou um fortalecimento do discurso do novo desenvolvimentismo, no que tange à política externa e a gestão do BNDES, sendo “um dos poucos postos-chave dirigidos por defensores do novo-desenvolvimentismo” (CASTELO, 2013aCASTELO, Rodrigo. O canto da sereia: social-liberalismo, novo desenvolvimentismo e supremacia burguesa no capitalismo dependente brasileiro. Revista em Pauta. Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1. sem. - n. 31, v.11, p. 119-138, 2013a., p. 129). O BNDES passou a ter um papel estratégico no financiamento direto ou indireto para a concentração e centralização dos capitais nacionais, patrocinando os grandes oligopólios nacionais, especialmente os vinculados ao ramo das commodities.

Por fim, para melhor caracterização do período, importa investigar qual era o papel dos rentistas nestas gestões do Partido dos Trabalhadores e se perderam ou tiveram diminuída sua hegemonia no grupo de monopólio do poder no país. Rodrigo Castelo vai trazendo elementos, da política tributária regressiva, do compromisso com o pagamento dos juros da dívida, com a política monetária do Banco Central para alcançar as metas da inflação e agradar o grande capital, pela política aprofundada de reprimarização, com as privatizações, disfarçadas ou não. Tais elementos nos fazem concluir que o social-liberalismo permaneceu hegemônico em toda a condução da política econômica, “ou seja, o social-liberalismo ainda domina setores-chave do Estado, angariando ganhos multibilionários de renda e riqueza para as frações rentistas da burguesia e demais aliados do bloco de poder dominante” (CASTELO, 2013aCASTELO, Rodrigo. O canto da sereia: social-liberalismo, novo desenvolvimentismo e supremacia burguesa no capitalismo dependente brasileiro. Revista em Pauta. Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1. sem. - n. 31, v.11, p. 119-138, 2013a., p. 128-129).

Mesmo com o aumento do salário mínimo, ainda se perpetua no país diferenças muito significativas entre os ganhos de produtividade do trabalho e a melhoria dos salários. Esse aumento do salário mínimo não andou desacompanhado da flexibilização das relações de trabalho, do aumento da informalidade e de uma quantia substancial de desempregados. Por isso, ainda que seja notável este aumento do salário mínimo e a massificação de políticas contra o pauperismo, o impacto das políticas melhoristas dos governos do PT não se deu na diminuição da concentração de renda, mas sim em uma atenuação das rendas da força de trabalho mais e menos qualificadas.

No período seguinte, de diminuição do ritmo da economia chinesa e queda abrupta no mercado das commodities, a situação econômica brasileira encontra-se agravada e os índices de desemprego aumentam. Dilma Rousseff iniciou seu primeiro mandato em uma conjuntura já bem mais desfavorável. O Brasil neste turbilhão, como em toda sua história, encontra-se em uma condição um tanto vulnerável, pois tem sua calmaria ou seu desespero nas mãos das flutuações comerciais internacionais, por tender cada vez mais a depender da exportação de produtos primários.

Dessa maneira, nestes 13 anos, podemos concluir que se implementou no país um processo conservador de desenvolvimento que conjugava políticas assistenciais de distribuição de renda com a maior centralização de capitais da história brasileira. Os ganhos sociais são mínimos perto da “Bolsa Empesarial” (PAULANI, 2010PAULANI, Leda Maria. Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas no Brasil. In: BRAGA, Ruy Braga; OLIVEIRA, Francisco de; RIZEK, Cibele (org). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 128) concedida ao longo desses anos, sendo inegável que isso resulta em um fortalecimento não apenas econômico, mas também, e principalmente, político da burguesia brasileira. A decorrência dessa aparente conciliação de interesses tão contrapostos foi a sua insustentabilidade.

2. Particularidades da economia política da pena desde a realidade brasileira

Diante desta caracterização da formação sociohistórica brasileira e das peculiares tendências durante os anos de social-liberalismo capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores, nas páginas que seguem trataremos com mais detalhes das particularidades do controle penal em terras brasileiras, com enfoque no período histórico de 2003 a início de 2016.

Como atenta Vera Malaguti Batista (2003BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003., p.53), “em nossa região, o sistema penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características ‘disciplinadoras’ dos países centrais”, desde sempre. Desse modo, partimos do entendimento de que não há rupturas paradigmáticas de modelos de controle penal desde a margem, o hibridismo entre autoritarismo, disciplina e pura neutralização compõe o sistema penal latino-americano desde sua gênese.

Para esta breve síntese de apresentação do nosso olhar a tal particularidade, sentimos a necessidade de caracterizar, primeiramente, o nosso ponto de partida, qual seja uma leitura que compartilha dos pressupostos teóricos da economia política da pena, ainda que buscando percebê-la desde o capitalismo dependente latino-americano e, mais precisamente, brasileiro.

Tratam-se de “estudos que descrevem o papel exercido pelos sistemas punitivos na afirmação histórica das relações de produção capitalista” (DE GIORGI, 2006GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 34) e o primeiro deles, muito antes da consolidação da criminologia crítica no campo intelectual (que se deu apenas na década de 1970), foi o de George Rusche e Otto Kirchheimer, com sua primeira versão em 1933, que se propõe a analisar o surgimento da pena de prisão como pena por excelência e a consolidação do capitalismo, a fim de perceber a relação codeterminada entre ambas. Este estudo, acompanhado de Evgeni Pachukanis (1988PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.) e depois Michel Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.) tiveram importante função na inauguração do debate sobre a violência estrutural e a função não declarada da pena de prisão, imbuída de objetivos políticos, peça importante no controle social do capital.

Muitas questões necessariamente se complexificaram do final do século XIX, início do século XX para cá e existe uma discussão se o constructo teórico da economia política da pena estaria ultrapassado. Para nós, a grande questão para que se possa pensar a pertinência e atualidade deste tipo de enfoque de pesquisa criminológica é delinear o que se entende por economia, por controle social e por controle penal. Estamos a tratar de uma relação mecanicista entre cárcere e fábrica? Entre encarceramento e desemprego? Entre economia e pena? Trata-se da relação entre modelos de produção (e as intrínsecas metamorfoses no mundo do trabalho e, evidentemente, nas subjetividades das e dos trabalhadores) e controle penal?

Os estudos que rotulamos realizar uma “economia política da pena” procuraram detectar no início da história da pena de prisão sua relação, na Europa, com a domesticação e docilização da nova classe trabalhadora. Em um segundo momento, com o desenvolvimento mais orgânico das correntes críticas do pensamento criminológico e com as oscilações nas taxas de encarceramento nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, a depender do momento econômico, houve estudos que buscavam “medir” a relação entre desemprego e encarceramento. Com a passagem para o período de maior domínio tecnológico, financeirização da economia e flexibilização e precarização das relações de trabalho, alguns afirmarão que a relação entre essas principais instituições de controle social com a “fábrica” está de algum modo perdida ou se teria tornado obsoleta.

Para De Giorgi (2006GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 56), a análise não deve ser pautada na relação entre desemprego e encarceramento, mas sim entre economia e dispositivos de controle, levando-se em conta as transformações dos processos de produção e de exploração do trabalho.

Tal leitura se aproxima, com especificidades, do que pretendemos definir aqui como leitura histórico-estrutural do sistema penal no capitalismo, uma continuidade atualizada e aperfeiçoada dos intentos de George Rusche e Otto Kirchheimer.

Parece-nos que, mais do que nunca, é preciso que se estabeleça um olhar teórico de longa duração sobre os padrões estruturais do controle penal, pois em um período histórico no qual o hiperencarceramento se apresenta como um fenômeno mundial, independentemente de um aumento real dos índices de criminalidade e, além disso, gerido por governos desde os de extrema direita aos ditos progressistas, há, de fato, algo de tendencial e estrutural neste processo.

Desde uma leitura consolidada de que os padrões de acumulação capitalista e as relações do tripé capital-trabalho-Estado no século XX tiveram um grande giro a partir de 1970, criminólogos como Alessandro De Giorgi afirmariam que viveríamos nesta etapa de acumulação capitalista da pós-grande indústria (por ele denominada como pós-fordismo) uma sociedade do controle ou sociedade da vigilância, sendo superado o regime disciplinar a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista.

Na sociedade disciplinar teria sido superada a ideia de suplícios e mortes e se instaurado a ordem da recuperação, disciplinamento e docilização dos corpos, “passíveis de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar, transformar em sujeitos úteis, isto é, em força de trabalho” (DE GIORGI, 2006GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 27). Entretanto, da transição da década de setenta em diante teria havido o desfalecimento deste projeto disciplinar da modernidade. O processo de essencialização necessário para a construção de inimigos opera-se por instituições que não possuem mais a disciplina como objetivo primeiro, mas sim a neutralização, seja pelas múltiplas formas de vigilância, seja pela guetização ou pelo encarceramento.

O novo internamento se configura mais do que qualquer outra coisa como uma tentativa de definir um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou imaterial em torno das populações que são 'excedentes', seja a nível global, seja a nível metropolitano, em relação ao sistema de produção vigente (DE GIORGI, 2006GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 28). Dessa maneira, para ele, viveríamos a transição da sociedade disciplinar à sociedade de controle, sendo que a “biopolítica do poder global” garantiria mecanismos sofisticados de regulação da mão de obra útil e descartável em um espaço tornado imperial.

Nesse sentido, cabe-nos colocar algumas ponderações importantes acerca do caráter dúbio, contraditório e desigual dessas mudanças tendenciais, bem como reforçar a continuidade, ainda que mais sofisticada, da alienação do trabalho no capital.

Assim, compreender o esfacelamento dos laços sociais, os processos de essencialização do outro, a fragmentação das lutas, o hiperconsumismo, o surgimento de novos sujeitos históricos, a intensidade e os mecanismos de controle de grupos sociais se traduz como a ressignificação qualitativa do sociometabolismo do capital. As especificidades da subsunção do trabalho ao capital nesse período exigem um compromisso integral da e do trabalhador(a), um “vestir a camisa” da empresa, o que causa impactos incalculáveis na sofisticação dos níveis de sua exploração e na produção de sua subjetividade. Do mesmo modo, há a concomitância, de um lado, da alta tecnologização da produção, permeada pela aparente lógica colaborativa e cooperativa da e do trabalhador(a), de outro, uma acumulação flexível, que demanda terceirizações e flexibilizações das relações laborais, bem como a intensificação dos processos de desenvolvimento desigual entre setores de produção e entre regiões geográficas. Portanto, há concomitâncias de processos, na velha dicotomia do arcaico e do moderno, que sustenta ainda mais as possibilidades de expansão do capital nesta era.

É nesse contexto de transformações que De Giorgi (2006GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 89) busca responder “quais tecnologias de controles e formas de racionalidade do domínio se constituem a partir do esgotamento do fordismo, do encerramento do ciclo industrial do capitalismo e da transformação da força de trabalho pós-fordista em multidão”.

A reflexão passa pela noção de que os mecanismos de controle não são individualizados, mas operam por grupos denominados “de risco”, não são a partir do conflito, mas sim em uma afirmação de periculosidade e em um exercício de antecipação do provável crime a ser cometido por determinado indivíduo, componente de um determinado grupo social. Ou seja, um processo de essencialização, no qual eles se tornam em si o risco, independentemente de sua conduta. Como afirma De Giorgi (2006GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 91), “esta condição de não-saber qualifica os dispositivos de controle e os orienta para uma função de supervisão, de limitação do acesso, de neutralização e de contenção do excesso” . O que passa a acontecer é que a força de trabalho excedente começa a ser controlada menos por mecanismos assistenciais e mais por “instituições penais de gestão da pobreza”, sob novas técnicas e objetivos, bem como por monitoramentos eletrônicos que estabelecem novas dinâmicas nas grandes cidades. Daí que, para De Giorgi (2006, p. 104) “o controle se materializa numa arquitetura que não regula o encontro, mas o impede, não governa a interação, mas cria obstáculos a ela, não disciplina as presenças, mas as torna invisíveis”.

A realidade brasileira sempre foi particular e essa mudança paradigmática não se aplica de maneira absoluta. O que não quer dizer que não sintamos os impactos da lógica gerencial na política criminal brasileira, mas, primeiro, não vivenciamos uma sociedade disciplinar tal como nas realidades europeia e estadunidense e, segundo, tal lógica é necessariamente híbrida com técnicas da máxima modernidade de cárcere e fábrica e, sobretudo, pelo histórico e constitutivo autoritarismo escravagista e patriarcal que funda nossa nação fraturada. Por aqui, o sistema penal sempre foi alicerce fundamental de uma política autoritária, conservadora, de repressão crua à classe trabalhadora e sustentação de privilégios da classe dominante, de naturalização de instrumentos de tortura e outras crueldades.

Os “anos dourados” do capitalismo foram viáveis também pela ampliação do consumo massivo nos países de economia dependente. Como tratamos no primeiro tópico, enquanto os Estados de Bem-Estar Social se desenvolviam em outras realidades do globo, por aqui se forjavam gestões desenvolvimentistas de Estado, com uma industrialização que importava a tecnologia descartada dos países que já abriam suas portas para a revolução tecnológica e cujo crescimento aqui dependia de empréstimos cada vez maiores dos bancos internacionais; até que a crise fiscal e social consolidada na década de 1970 impõe saídas e respostas ainda mais duras para os países latinoamericanos.

Sendo assim, na América Latina o funcionamento dos órgãos repressivos e punitivistas sempre operaram em outro patamar qualitativo. Além de cumprirem um papel político de contenção violenta dos grupos populares desde sempre, também podemos perceber que a divisão estanque, paradigmática entre mecanismos de controle penal disciplinar e de gestão dos riscos (neutralização) não se apresenta aqui. O que não significa que em tempos neoliberais não sintamos, e muito, o impacto da incorporação da política criminal eficientista, seja nas alterações legais quanto a organizações criminosas, típicas de um direito penal do inimigo; seja pela execução penal com incorporações assumidamente neutralizadoras; seja com alterações no processo penal de cunho negocial e restritivas de garantias fundamentais; seja pela própria violência policial; pelo cada vez maior encarceramento; pelas taxas de homicídio de jovens negros das periferias; pela explosão e desproporcional porcentagem de mulheres em situação de prisão, etc.

Desde o Brasil, como pudemos constatar em nosso primeiro tópico de desenvolvimento do texto, a dimensão da escravidão foi incomparável e os desafios para controle desta população avolumada e potencialmente revoltada passaram por todo o processo ideológico de desumanização, pela tentativa de aculturação e por mecanismos de repressão penal legalmente vinculados às Ordenações portuguesas de cunho inquisitorial, mas majoritariamente garantidos no espaço privado, sendo o senhor de engenho seu principal fiscalizador.

Segundo Ana Luiza Flauzina (2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006., p. 45), constitui-se, no período de 1500 a 1822, a “espinha dorsal da lógica de atuação do aparelho repressivo no país”, enquanto um sistema naturalizador da subjugação, “de base fundamentalmente corporal”. Assim, nestes três séculos coloniais, “o sistema punitivo se municiou com todos os instrumentos de contenção que agregam uma legislação repressiva, recrutamento de milícias e capitães-do-mato, além de um sofisticado aparato de tortura” (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006., p. 49). Um sistema penal consolidado para controlar os meios de reprodução da vida da ampla massa de pessoas escravizadas no Brasil. No período colonial consolidam-se formas públicas e privadas de punições, que se misturam.

Com a independência e a crise do escravismo, o sistema penal irá transcender a esfera das penas privadas controladas pelo senhor de engenho e ganhar corpo mais institucionalizado, ainda que sob parâmetros similares. Portanto, este período é de maior regulação legal penal interna, com uma série de previsões criminalizantes de tipificações sem vítimas, majoritariamente atreladas a aglutinação de pessoas negras em espaços públicos ou no controle de levantes e insurreições.

Consolida-se, então, o monopólio institucionalizado da violência, voltado ao controle não declarado de populações - e não indivíduos - a fim de controlar sua potência insurgente - desenvolvida pelo fortalecimento de suas identidades coletivas - e reforçar seu lugar marginal na relação de produção que se gestava aí. O esgarçamento da escravidão vem acompanhado da constituição de um sistema penal agora mais ancorado no espaço público e no controle ainda mais intenso da vida da população negra.

Deste modo, deve ficar nítida que a atuação do sistema penal neste período foi imprescindível para que se administrasse a transformação do escravo em liberto sem se perder o total controle social. A única maneira de bloquear o poder insurrecional da população seria transformando ex-escravos em marginais, criminalizando-os.

Buscando construir um raciocínio não homogêneo e eurocêntrico sobre as características e funções reais do controle penal na realidade do capitalismo dependente, compartilhamos da percepção de Luciano Goés (2016) de que em nossa realidade não houve a absorção de um modelo disciplinar corporal - modelo benthamiano do panóptico -, mas sim uma adaptação, uma tradução do modelo lombrosiano, sendo “o marco da construção do primeiro ‘apartheid criminológico’ marginal” (GOÉS, 2016, p. 198). E o autor justifica:

Isto porque aqui não houve o disciplinamento de mão de obra para as fábricas. A disciplina na periferia sempre decorreu da necessidade da manutenção da ordem racial estabelecida, alcançada por meio da extrema violência física e mortes, instrumentos indispensáveis na dominação que afligia o corpo negro, objeto de propriedade da raça branca e de atuação da domesticação direta, ou indireta pelo medo que deveria inculcar aos demais.

Ainda que as linhas desta contribuição textual não nos permitam alongar no desenvolvimento, a continuidade desta função estrutural do sistema penal brasileiro se complexifica ao notarmos, desde o marco de 1940 e o Código Penal da República, a consolidação da racionalidade penal iluminista atrelada a uma prática genocida subterrânea que, combinadas, configuram aspecto fulcral do mito da democracia racial no país. Este é importante elemento da caracterização genocida do Estado brasileiro, agudizado com o aprimoramento autoritário nos anos de ditadura empresarial-militar e sofisticado na Nova República, conforme detalharemos a seguir.

3. Política criminal e política se segurança nos anos de gestão federal pelo Partido dos Trabalhadores

Apresenta-se como aparente paradoxo uma suposta gestão do Estado mais social e redistributiva pelo Partido dos Trabalhadores e que, ao mesmo tempo, mais encarcerou e recrudesceu penalmente em nossa história, verificando ser uma disruptiva da máxima Estado Penal máximo-Estado Social mínimo. Desde esta indagação e entrando mais diretamente no objeto delimitado deste escrito, como poderíamos fazer uma análise dos 13 anos do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República se falar em política criminal e política de segurança significa tratar de esferas do executivo, do legislativo, do judiciário, da mídia e de outros mecanismos de controle social informal, bem como tratar destes poderes em competência federal, estadual, municipal e local?

Para citarmos alguns exemplos: o papel fundamental do legislativo e sua saga e sua sanha por intensificar processos de criminalização primária, com proposição e aprovação de leis mais criminalizadoras e mais endurecedoras do regime penal; a relação intrínseca deste primeiro elemento com os discursos políticos policialescos, alimentados pela cultura do medo e do ódio difundida pela grande mídia; a cultura punitiva impregnada por promotores de justiça, procuradores da república e juízes, que se “confundem de profissão” e pensam ser seu papel o combate à criminalidade e a resposta aos clamores populares de lei e ordem; o papel fundamental das políticas públicas estaduais na gestão da política criminal, desde o modelamento das polícias até o funcionamento do sistema prisional.

Nossa hipótese é que todos estes elementos são de fato fundamentais para a composição desta onda punitiva brasileira e não há como apreender tal fenômeno com homogeneidade, como se um pacote de maldades fosse imposto por uma força superior em cada país. Entretanto, ao nos propormos a analisar a gestão do Estado brasileiro pela frente política capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores, a partir da indagação apresentada anteriormente, também queremos perceber concretamente qual foi a ousadia ou a capacidade de mudanças estruturais da política criminal e de segurança em âmbito federal, em todos os níveis cuja influência, intervenção e alteração de política e de cultura punitiva lhe eram possíveis

Quais foram as intervenções do governo federal nestes 13 anos para alteração do papel do Brasil na geopolítica de drogas? Quais foram as iniciativas para alteração da composição e funções das polícias? Até onde foi o esforço pela desmilitarização das polícias e da política? Como se comportou o governo federal no que tange à criminalização das lutas e dos movimentos sociais, especialmente em momentos delicados socialmente, como as Jornadas de Junho de 2013, a Copa das Confederações e a Copa do Mundo? Qual foi a política federal para o crime organizado? E para a calamidade penitenciária? No que tange à cultura punitiva, qual foi a política pública de conscientização de outro tipo? E o combate aos oligopólios midiáticos, sustentadores da política a ser combatida? As promessas eleitorais quanto à segurança pública foram sendo concretizadas? As promessas foram se rebaixando ao longo das gestões? O que seria (e existia?) um programa descarcerizante desde a concepção destas quatro gestões petistas? O modelo implementado de redução de desigualdades sociais radicalizava cidadania, mudava cultura política e promovia menos violência individual, institucional e estrutural?

Para além de buscar captar elementos de tais perguntas, nossa maior interrogante está na caracterização do projeto de sociedade buscado nestas quatro gestões (ou melhor, três e parte de uma quarta interrompida por um golpe jurídico-midiático-parlamentar em abril de 2016), o quanto ele estava atrelado a mudanças mais ou menos impactantes no campo econômico e da organização da produção e do trabalho e, consequentemente, na mudança radical de uma cultura política e social brasileira. O nosso objetivo é perceber o que este projeto de governo tem a ver com o funcionamento de mecanismos de controle penal aprofundados neste período. Temos que analisar as peças, mas também, e principalmente, as regras do jogo, a composição do tabuleiro. Esta é a difícil, mas necessária, tarefa que aqui nos propomos e que sabemos que nos limites de um artigo apenas apresentaremos possibilidades de análise e compreensão do problema.

Desde meados dos anos noventa, aprofunda-se no Brasil um novo papel da União como mediadora da política de segurança pública. Momento histórico no qual o holofote do “inimigo social” se desloca do lutador político para o traficante. A Guerra às Drogas torna-se o cerne do processo repressivo. Foi neste cenário que o programa e a política de segurança pública da Nova República se estabelecem, especialmente e de maneira mais sistematizada a partir dos anos de governo de Fernando Henrique Cardoso, oscilando entre: i. a manutenção das estruturas policiais, o fortalecimento dos serviços de segurança privada e uma concepção de Lei e Ordem norteadora das práticas e discursos, ii. um maior enraizamento de uma política de direitos humanos institucionalizada.

Ao ser eleito, em 2003, Lula herda o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), bem como o Programa Nacional de Direitos Humanos (I e II - 1996 e 2002). Em seu primeiro mandato lança um novo Plano Nacional, em alguma medida dando continuidade às diretrizes anteriores, com forte discurso de controle de armas, combate ao crime organizado e qualificação/fortalecimento das polícias, especialmente a Polícia Federal. Como afirma Mello (2015MELLO, Eduardo Granzotto. A formação do subsistema penal federal no período dos governos Lula e Dilma (2003-2014). 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p.72), o Plano “consistia num conjunto articulado, sistêmico e intersetorial de propostas de reforma das polícias, do sistema penitenciário e de implantação de políticas preventivas”.

Luiz Eduardo Soares, antropólogo com vasto acúmulo teórico e experiência na área, esteve como Secretário Nacional de Segurança Pública entre janeiro e outubro de 2003, porém foi desligado neste momento e a interpretação consolidada é de que seria “por pressões de grupos ligados aos órgãos de segurança pública, notadamente da Polícia Federal, interessada em manter seu papel central na articulação das políticas na área” (AZEVEDO; CIFALI, 2017AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALI, Ana Cláudia. Segurança pública, política criminal e punição no Brasil nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014): mudanças e continuidades. In: SOZZO, Máximo (Org.). Pós-neoliberalismo e penalidade na América do Sul. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2017., p. 43).

Tarso Genro, já no primeiro ano do segundo mandato, em 2007, apresentou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI). A proposta era de uma articulação de política pública para que os membros federados (estados e municípios) pudessem “desenvolver ações de prevenção à violência adaptadas à sua realidade local e com o aporte de recursos da União” (MADEIRA, RODRIGUES, 2015RODRIGUES, Alexandre Bem; MADEIRA, Lígia Mori. Novas bases para as políticas públicas de segurança no Brasil a partir das práticas do governo federal no período 2003-2011. Rev. Administração Pública. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 17, p. 3-21, jan./fev. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v49n1/0034-7612-rap-49-01-0003.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2021.
http://www.scielo.br/pdf/rap/v49n1/0034-...
, p. 12).

Rodrigo Azevedo e Ana Cláudia Cefali (2017AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALI, Ana Cláudia. Segurança pública, política criminal e punição no Brasil nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014): mudanças e continuidades. In: SOZZO, Máximo (Org.). Pós-neoliberalismo e penalidade na América do Sul. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2017., p. 44) classificam dois grandes eixos do Programa: um composto de medidas de caráter estrutural, como aquelas relacionadas às condições do sistema penitenciário e das instituições policiais e outro permeado por medidas territorializadas, de caráter eminentemente preventivo, com o objetivo de proporcionar “a garantia do acesso à justiça e a recuperação dos espaços públicos, por meio de medidas de revitalização e urbanização” (AZEVEDO, CEFALI, 2017AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALI, Ana Cláudia. Segurança pública, política criminal e punição no Brasil nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014): mudanças e continuidades. In: SOZZO, Máximo (Org.). Pós-neoliberalismo e penalidade na América do Sul. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2017., p. 44).

O PRONASCI, nesta medida, seguiria as diretrizes da segurança cidadã por conceber o fenômeno da violência individual de maneira multifatorial e integrante de uma realidade estruturante de violência. Desde esta concepção, as “soluções” só poderiam partir de uma priorização de medidas de caráter preventivo, garantidas com políticas públicas especializadas. O Programa se traduzia como a combinação entre investimento nas polícias, em sua estrutura, mas especialmente em sua formação; melhoria das condições do sistema prisional, passando centralmente pela sua ampliação; combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas; e garantia de efetivação de uma série de projetos de acesso a direitos e melhorias das condições de vida nos territórios cujas vidas se encontram em maior condição de vulnerabilidade. Este combo resultava em um maior protagonismo do governo federal na condução das políticas, sendo uma espécie de mediador, envolvendo as localidades na construção de suas específicas respostas, desde o poder público municipal até membros das comunidades e organizações sociais, mas sendo o gerenciador dos processos.

Deste breve panorama nos questionamos: Seria a reunião de tais perspectivas díspares compatível com a intencionalidade de ruptura de paradigmas? Até que ponto poderia haver superação do paradigma punitivo?

A professora Vera Regina Andrade (2013ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Mudança do Paradigma Repressivo em Segurança Pública: Reflexões criminológicas críticas em torno da proposta da 1º Conferência Nacional Brasileira de Segurança Pública. Seqüência (Florianópolis), n. 67, p. 335-356, dez. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-70552013000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 jan. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 340) nos demonstra que a perpetuação da noção de garantia da segurança pela manutenção da “ordem” e contra a dita “criminalidade” individual, “de rua”, pode não ser compatível com a noção de segurança dos direitos, pois a primeira perspectiva necessariamente se pauta na ideia de “bem” versus “mal”, o que muito provavelmente colocará a segunda em xeque ou, ao menos, subordinará as políticas de acesso a direitos à de controle sociopenal de novo tipo, como se a extensão destes direitos para a parcela da população mais vulnerável ocorresse não pela busca por vida digna, mas devido a uma probabilidade criminógena a ser evitada.

Este parece ser o ponto-chave para a reflexão sobre a importância da iniciativa do PRONASCI em nossa história de absoluta truculência no campo da segurança. Entretanto, por outro lado, observa-se os perigos e incompatibilidades destas inovações caminharem pari passu com o fortalecimento da Guerra às drogas, acompanhada de outros processos de inflação penal, assim como a desistência de se tocar no calcanhar de aquiles das polícias, qual seja sua democratização interna e externa. Esta seria a linha bamba, caso a proposta do PRONASCI fosse até as últimas consequências do que se propôs, mas seu tempo de existência foi breve demais para tal balanço, a corda afrouxou antes da sua tentativa de travessia.

Ligia Madeira e Alexandre Rodrigues (2015RODRIGUES, Alexandre Bem; MADEIRA, Lígia Mori. Novas bases para as políticas públicas de segurança no Brasil a partir das práticas do governo federal no período 2003-2011. Rev. Administração Pública. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 17, p. 3-21, jan./fev. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v49n1/0034-7612-rap-49-01-0003.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2021.
http://www.scielo.br/pdf/rap/v49n1/0034-...
, p. 10) descrevem abaixo qual era o plano original do governo federal:

(...) negociação com o Banco Mundial e o BID, tencionando um aporte a juros subsidiados de US 3,5 bilhões, por sete anos. O Fundo Nacional de Segurança seria aceito pelos credores como a contrapartida do governo federal. Também competiria ao governo federal enviar ao Congresso Nacional a emenda constitucional da desconstitucionalização das polícias e, como matéria infraconstitucional, a normatização do Sistema Único de Segurança Pública. Uma vez endossados os termos do acordo com os 27 governadores, o presidente os convocaria para a celebração solene do Pacto pela Paz, reiterando politicamente o compromisso comum com a implantação do Plano Nacional de Segurança Pública.

O referido plano não se efetivou.

De qualquer modo, ficamos com a precisa definição de Vera Malagutti Batista de que segurança pública só pode conter alguma perspectiva liberalizante e garantidora de direitos se for fruto “de um conjunto de projetos públicos e coletivos que foram capazes de gerar serviços, ações e atividades no sentido de romper com a geografia das desigualdades no território usado. Sem isso não há segurança, mas controle truculento dos pobres e resistentes na cidade” (BATISTA, 2014).

Ademais, existe uma ilogicidade que permeia todas essas supostas alternativas, qual seja a impossibilidade de se eliminar as decorrências do tráfico enquanto a proibição for vigente, pois demandará discursos moral, médico, jurídico e bélico que legitime sua proibição, significando policiamento treinado para sua contenção/combate e vidas jovens negras valendo pouco, muito pouco, quase nada.

Dito isso, qual foi o real impacto do PRONASCI na política de segurança pública neste período? Ele foi de fato uma prioridade? Um estudo que traz algumas pistas importantes sobre estas questões é o de Fabricio Bonecini de Almeida (2014ALMEIDA, Fabrício Bonecini de. Orçamento e segurança pública: Um estudo de caso do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI). 2014. 161 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Instituto de Ciência Política, Brasília, 2014.), em sua dissertação de mestrado, quando pode analisar as Leis orçamentárias, de 2008 a 2013, especialmente focado no orçamento do programa, bem como nos valores efetivamente empenhados. Segundo o autor, o PRONASCI representava apenas 10% do valor total do orçamento da segurança pública, porém, mais do que isso, era importante que se analisasse os orçamentos destinados a cada subfunção do mesmo. Notou-se que parcela significativa deste orçamento, desde 2011, foi destinada à política de segurança nas fronteiras, expressando uma alteração de prioridades. Em contrapartida, o que a análise dos dados revelou ao pesquisador foi que as políticas sociais e de prevenção da violência doméstica e urbana obtiveram uma parcela orçamentária significativamente inferior.

Em síntese, podemos afirmar que, desde a nossa perspectiva, tratou-se de um Programa que, corajosamente, trouxe pistas das dificuldades políticas e institucionais que existiria caso a tentativa de ruptura paradigmática ocorresse. Mas esta só seria possível se o programa de segurança cidadã significasse a totalidade do programa de segurança pública, bem como se, absolutamente, fosse acompanhado de uma mudança profunda nas polícias - com a reestruturação, a formação prioritária em direitos humanos, a possibilidade do ciclo completo e a desmilitarização - e mudanças legislativas fundantes para o desencarceramento, especialmente no tocante à criminalização da venda e do uso de drogas.

Dilma Rousseff no início de seu governo desvalorizou o PRONASCI e enfatizou investimentos financeiros no controle das fronteiras e em políticas de segurança para a realização dos Megaeventos desportivos no país (Copa do Mundo e Olimpíadas), estabelecendo maiores interações entre Forças Armadas, Polícia Federal e polícias estaduais. O PRONASCI sofre cortes orçamentários severos e é acompanhado do discurso da presidenta Dilma de que seria reformulado. Na contramão, a verba destinada ao Fundo Nacional Antidrogas teria aumentado cerca de 500% entre 2011 e 2013. Neste terceiro mandato abandonou-se o eixo de reforma das estruturas policiais e mais ainda o de participação popular na gestão da segurança. O foco estava naquilo que se compra desde o campo da aparência, ou seja, o que pode ser permeado por discursos sensacionalistas das “teorias de todos os dias” e gerar votos, bem como o que pode ser vendido para fora, em busca de uma performance internacional do país.

Essas mudanças de enfoque também foram acompanhadas de um fortalecimento e maior protagonismo das Forças Armadas. Para Eduardo Granzotto Mello (2015MELLO, Eduardo Granzotto. A formação do subsistema penal federal no período dos governos Lula e Dilma (2003-2014). 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p.81) não se trataria de um fenômeno exclusivamente calcado em interesses eleitoreiros ou coisa semelhante, mas sim na corroboração para que se edifique no país um novo paradigma bélico de segurança, constituído desde a “relativização dos limites entre defesa nacional e segurança pública, inimigo interno e inimigo externo, normalidade e crise, em plena sintonia com o conceito de emergência que marca historicamente o sistema penal”.

Para ele, no período dos governos Lula e Dilma - analisados em seu trabalho de 2003 a 2014 - verificou-se a formação de um “subsistema penal federal”, como um fortalecimento deste novo padrão de segurança - bélico - e, mais que tudo, como elemento componente de um novo lugar geopolítico almejado pelo país, de dominação e exploração regional. Para além de perceber as novas funções atribuídas às Forças Armadas, Eduardo Granzotto Mello (2015MELLO, Eduardo Granzotto. A formação do subsistema penal federal no período dos governos Lula e Dilma (2003-2014). 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p. 80) também destaca a criação da Força Nacional de Segurança Pública, bem como a implementação do Sistema Penitenciário Federal.

Neste espaço do artigo, pudemos apresentar brevemente alguns elementos de política criminal e de segurança mais diretamente bancados pelo governo federal, sendo marcados pela dubiedade. Outro passo importante é perceber o contexto criminalizador mais geral no período, capturando suas relações. Desde os principais elementos de inchaço de processos de criminalização primária - com novas leis e novas incriminações, bem como mudanças na execução penal e no processo penal, tendentes a uma mais profunda caracterização neoinquisitória.

O encarceramento em massa brasileiro, por exemplo, só pode ser compreendido pela conjunção de processos expansionistas. De um lado, uma expansão quantitativa do controle, com novos tipos penais e penas mais longas. De outro, uma expansão qualitativa, com sofisticação de métodos, dispositivos e tecnologias de seleção penal. No recheio, naquilo que de fora não se vê, uma expansão dos braços penais, com institutos aparentemente mais brandos, porém que possibilitam tratamento penal ou sua mais efetiva intervenção em conflitos dantes solucionados de outras maneiras. Nas bordas, situações de criminalização do cotidiano por meio de mecanismos de controle informal, que escapam o sistema penal propriamente dito - os elementos que envolvem a militarização dos territórios e das vidas de seus pertencentes, por exemplo. O que envolve todos estes elementos, como embalagem, é a Guerra às Drogas, enquanto veículo impulsionador de uma cadeia de excepcionalidades e ampliações de interferências. Como guerra, construída desde discursos alarmistas e rotulantes, imprimindo-se também em leis.

Em um exercício dialético de compreensão da realidade, precisamos perceber a ausência de uma política criminal e de segurança anti-neoliberal nos anos de gestão do executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores observando tendências da atuação mais diretamente responsável desta instância, bem como observando os outros atores e os outros elementos determinantes da onda punitiva deste período histórico e, mais ainda, conectando a leitura sobre o perfil do controle social do capital e a ausência de rupturas profundas sob a gestão social-liberal petista e as determinações do controle penal propriamente neste período. Foi essa a acrobacia que se intencionou ensaiar neste artigo, como um primeiro movimento para sua captação, a ser aperfeiçoado.

Considerações finais

Temos a impressão, por todo o refletido, que a linearidade da presença autoritária e genocida do Estado brasileiro e suas instituições de controle penal se mostra em cada letra, espaço e vírgula deste artigo. Não vivenciamos rupturas profundas. Porém, mais do que isso, os elementos coletados nos evidenciam o alcance de outro patamar qualitativo punitivo nas duas últimas décadas. A política de segurança pública se remilitariza neste último período, as excepcionalidades processuais dantes subterrâneas agora se legalizam, o velho dilema processual penal do inquisitivo versus acusatório ganha tons mais preocupantes com a introdução de institutos de tradição jurídica diversa. O encarceramento explode.

Esta tendência não nasceu em 2003, com a eleição de Lula à presidência do país, mas o estudo científico realizado aponta que ela ganhou marcas muito fortes neste período estudado, se aprofundou e abriu porteiras para a barbárie permanente e escancarada após o golpe de 2016 e ainda mais com a eleição de Jair Bolsonaro.

Ainda que combinada, em um primeiro momento, com uma política voltada a construir outro parâmetro de segurança, não se dispôs ou não teve forças para tocar nos elementos determinantes, sendo, paulatinamente, conforme a crise econômica avançava e a subalternização internacional brasileira se aguçava, abandonada. Para nós, uma política dualista que desmoronou.

Perceber tais contradições e o quanto, ao contrário da construção de bases de uma política criminal e de segurança anti-neoliberal é importante para que tenhamos as melhores ferramentas críticas e de transcendência para o abismo que se abriu diante de nós a partir de 2016. Perceber os erros e limites do social-liberalismo petista no que tange aos mecanismos de controle sociopenal é fundamental para fazermos o melhor combate ao que vivenciamos depois dele.

O que buscamos evidenciar ao longo deste artigo é que o autoritarismo é estruturante do sistema penal brasileiro e se operacionaliza, desde os seus primórdios, de maneira não-oficial. O sistema penal brasileiro é constitutivamente uma instituição de extermínio justamente porque esta qualificação só se dá pela não-dito, pela razão racista que veicula ações de segregação e morte. Ocorre que, na atual etapa, elas passam a se imiscuir com o discurso oficial - não através de seu conteúdo racista propriamente dito, mas sim pelo combate incessante ao criminoso, especialmente o organizado - tornando-se, nas palavras de Salo de Carvalho, “absolutamente preocupante quando as funções reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de um novo discurso oficial (funções declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível enunciativo potencializa o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar” (CARVALHO, 2006CARVALHO, Salo de. Política de Guerra às Drogas na América Latina entre o direito penal do inimigo e o estado de exceção permanente. Revista Crítica Jurídica, n. 25, p. 253-267, jan/dez. 2006., p. 255).

Todo o desenvolvimento prévio nos aponta a complexidade que é pensar o papel político, econômico e social das instâncias formais e informais que compõe os mecanismos de controle penal. Ao mesmo tempo, negamos a impossibilidade de reversão dos processos barbarizantes da realidade social. Nós nos negamos a acreditar que este seja o único caminho possível.

Por isso, admitimos a possibilidade de construção de uma política criminal “utópica”, que só se realiza enquanto parte do processo próprio de superação desta ordem social (im)posta, portanto, inserida em um projeto mais amplo de alteração radical da realidade. Isso significa dizer que só é possível resistir à etapa de emergência punitivista neoliberal com um projeto de ruptura do sentido dependente brasileiro.

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    Não poderíamos deixar de registrar nosso profundo agradecimento (e admiração) ao Gustavo Seferian, quem nos auxiliou na compilação deste artigo que tanto significado apresenta pessoalmente, enquanto síntese da trajetória teórica e política até aqui. Obrigada pelo incentivo de todos os dias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2021
  • Aceito
    21 Jan 2021
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