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Ernane Salles e o Constitucionalismo do Atraso

Salles, Ernane. . Constitucionalismo do atrasoBelo Horizonte: D'Plácido, 2017.

1. Um título enganoso

O título, tanto desta resenha quanto do livro que ela toma por objeto, engana. Não se trata de repetir uma das mais difusas teses compartilhadas pela teoria constitucional e pela teoria social brasileira: a tese do atraso, de um país eternamente atrasado em face de suas potencialidades, de um atraso que se materializa, dentre outras coisas, em uma Constituição que, como norma, nunca se efetiva plenamente na realidade. Pelo contrário, trata-se exatamente de resgatar de um ponto de vista crítico essa tese. E, como crítica não se refere apenas a uma adjetivação negativa de algo, mas requer um trabalho árduo e duplo de analisar profundamente – separar o todo em suas partes para depois remontá-lo, compreendendo os elementos que o constituem e as conexões que entre eles se estabelecem – e de julgar, resgatar essa tese de um ponto de vista crítico significa ir à busca da tessitura complexa da qual ela emerge, bem como das consequências que se vêm enredar nessa mesma teia.

Para tanto, um excelente campo temático é o conjunto de acontecimentos que passariam para o acervo histórico e teórico nacional com o nome de “Jornadas de Junho”. Não que a tese do atraso seja recente, surgida do caldeirão de 2013. Mas, como uma tese de fundo que pretende para si a força de uma interpretação totalizante de uma história de longa duração, ela se atualiza reiteradamente a cada momento em que, como em junho de 2013, a pergunta por aquilo que somos, por aquilo que nos constitui como país e como sociedade, volta à tona.

2. O corpo da obra

O roteiro do livro começa com uma primeira aproximação em relação às Jornadas de Junho, à qual se dedica o primeiro capítulo. O objetivo dessa primeira aproximação é mostrar como, no transcurso das manifestações, seu perfil vai sendo alterado. Tendo como estopim os protestos contra o aumento nas tarifas de ônibus e a desastrosa resposta governamental a esses protestos, o que caracterizaria as manifestações de junho em seu início seria uma imensa pluralidade interna: “Tratava-se, portanto, de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de conservadorismo e brutalidade, aliás, presente na própria sociedade brasileira” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 44-45).

Com o passar dos dias e o suceder-se dos atos, porém, seria possível mapear uma tentativa, empreendida pela grande mídia, de direcionar o movimento e centralizar suas pautas:

Nessa análise específica, defendemos a tese, segundo a qual a cobertura da grande mídia – tradicionalmente conservadora e vinculada a determinados grupos de interesses e de poder, como já procuramos demonstrar – construiu narrativas, buscando direcionar a opinião pública na construção de determinadas representações sociais – muitas delas já inscritas no próprio imaginário da sociedade brasileira” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 58).

Essa tentativa viria a mostrar-se bem sucedida e, numa interação reciprocamente retroalimentada entre o discurso produzido pela grande mídia e o “discurso aparentemente espontâneo das novas mídias sociais” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 66), aos poucos um grande tema ia sendo consolidado como o tema das manifestações: a crítica à corrupção. E, intrinsecamente ligado a ele, a imagem de um gigante que desperta de seu sono em berço esplêndido.

O segundo capítulo virá debruçar-se exatamente sobre a figura do gigante, sobre a “configuração da narrativa do Gigante Adormecido como integrante de uma mitologia nacional” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 74). Um primeiro passo nessa direção consiste em definir, a partir de Paul Ricoeur, a identidade, e especialmente a identidade nacional, como uma identidade narrativa:

no que concerne às identidades coletivas, o povo constitui-se, ao mesmo tempo, como escritor e leitor da sua própria vivência compartilhada.

Identidade e narrativa estão, pois, ligadas pela capacidade que um grupo tem de trazer à sua linguagem a unidade, a totalidade que liga experiências individuais e coletivas tão dispersas, diversas e heterogêneas a fim de tecer uma intriga sobre si de maneira coerente (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 80).

Na identidade brasileira narrativamente construída, a figura do gigante emergiria ligada a outras duas imagens. De um lado, um “ufanismo edênico” diante de uma natureza exuberante; de outro, a fragilidade das instituições: “A imagem do Gigante parece então refletir uma espécie de dualidade no que concerne a relação entre cultura e natureza, representado pelo paradoxo entre abundância e atraso, prodigalidade da terra e deficiências das instituições” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 102). É nos meandros dessa dualidade que se constitui a figura específica do gigante que acorda: contra o fracasso institucional, o gigante “pela própria natureza” que teria estado até então adormecido precisaria erguer-se, e ter-se-ia erguido justamente em junho de 2013.

Continuando a investigação acerca da mitologia do gigante adormecido, Ernane Salles diz: “Encontram-se, pois, três matrizes que se cruzam na configuração da narrativa do Gigante adormecido no imaginário social brasileiro: a passividade política, a corrupção da vida pública e a ineficácia social das normas jurídicas” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 107). Em outras palavras, a figura do gigante em repouso profundo reuniria em si tanto o traço positivo da grandeza natural quanto o traço negativo composto pelas ideias de um povo apático, de um Estado corrupto e de um conjunto de instituições que, normativamente desenhadas, encontram na realidade social um obstáculo intransponível à sua efetivação.

Mas, se a identidade que emerge da conjugação de todos esses elementos é, como qualquer outra identidade nacional, uma identidade narrativa, um problema grave apresenta-se na medida em que essa identidade procura negar esse seu caráter – que, como narrativo, só pode ser precário e passível de revisão. Ao redor do gigante, a narrativa que se constrói reifica a própria identidade que ela vai construindo, essencializando a imagem de um Brasil atrasado, perdido na incessante repetição de seus velhos erros. De uma perspectiva temporal, imprescindível à compreensão de uma narrativa que só se torna possível no transcurso do tempo, é como se entre passado e presente se operasse uma espécie de curto circuito, posto que o ontem não cessa de assombrar o agora (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 124-125).

No capítulo terceiro, por seu turno, a ênfase recai no tema da corrupção. Inicialmente, é esquematizada a relação entre o tema da corrupção e o desenrolar-se dos protestos de junho, mostrando, dentre outras coisas, que esse tema se fazia presente em alguma medida desde o começo dos protestos, antes mesmo de se haver atrelado simbioticamente à imagem do gigante adormecido. Nesse sentido, em um primeiro momento que compreende os quatro primeiros atos e vai do dia 06 ao dia 13 de junho, o combate à corrupção não aparece como demanda isolada, sua “tematização é oblíqua, pois atrelada à crítica as relações promíscuas entre concessionárias de serviço público de transporte, indústrias de automóvel e Poder Público, desvelando a colonização da política e do direito pelo mercado” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 128).

Em um segundo momento, que se dilata do dia 15 ao dia 18 de junho, a corrupção ganha corpo como tema, mas o discurso contra ela “não era unívoco nem, ontologicamente, a verdadeira expressão das vozes das ruas”, disputando “seu lugar com outras pautas, muitas delas ideologicamente à esquerda e de defesa aberta a direitos fundamentais” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 139).

Num terceiro momento, entretanto, cujo marco inaugural seria o dia 19 de junho, “como resultado do esforço de setores conservadores e da abordagem da velha mídia” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 139) o combate à corrupção assume a dianteira, pretendendo reduzir sob sua rubrica toda a heterogeneidade que até ali marcara os protestos. Em face, porém, da bela pretensão de um país inteiro unido pacificamente contra uma única causa, Ernane Salles denuncia:

a massa verde-amarela, quando vista de perto, delata si mesma. Muitos manifestantes se apresentavam, paradoxalmente, contra a corrupção e ao mesmo tempo contra a política como caminho para a transformação; diversos deles ecoavam gritos com os dizeres “sem violência”, mas atos vis foram praticados contra militantes que defendiam seus partidos e convicções. (...)Sustentado, em grande medida, na máxima do “o povo unido não precisa de partido” (...), o movimento foi ganhando contornos fascistas de repulsa a qualquer organização política ao lado de referências a símbolos e cores patrióticas (...) (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 141).

Dois sintomas relevam bem o pano de fundo autoritário e seletivo que vai pouco a pouco enrijecendo as manifestações de junho e preparando o lado mais pernicioso de seu legado: por um lado, o mercado, um polo necessário da relação de corrupção que tem no Estado o outro polo, não é alvo, ou o é apenas raramente, de críticas (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 185); por outro lado, já desponta nos cartazes algum saudosismo em relação à ditadura militar (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 145).

O passo seguinte, ainda no mesmo capítulo terceiro, é a busca pelo resgate da história do tema da corrupção no interior da história das ideias sobre o Brasil, isto é, dentro daquela tradição à qual se costuma referir como “intérpretes do Brasil” ou, mais genericamente, como “pensamento social brasileiro”. É do âmago dessa tradição de peso – formada por nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta – que o tema da corrupção situada no Estado e na vida pública exala-se e, entrando nos poros do senso comum com ares de cientificidade, recebe nesse senso comum o selo final que o torna atributo imutável de uma identidade essencializada, de uma “identidade contada de uma vez por todas” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 149-175).

Fechando o capítulo terceiro, sua última parte é devotada a relacionar o tema da corrupção e sua presença obsessiva na história das ideias e na história política do Brasil – sendo o desfecho e o legado das Jornadas de Junho um fio a mais nessa longa linha – com o fenômeno de uma memória que padece patologicamente. Para Ernane Salles, sempre bem embasado em P. Ricoeur, tratar-se-ia de um problema de abuso de memória, de “excesso de rememoração”, um excesso em que espetacularização da mídia e ideologia do atraso nacional articulam-se impedindo a conscientização acerca do acontecimento traumático e mantendo a sociedade “paralisada nos efeitos perversos do trauma” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 182), condenada à compulsão da repetição. Em um tom que, a essa altura, revela-se assustadoramente profético, lê-se no último parágrafo do capítulo:

É assim que o esforço compulsivo de não deixar que escândalos políticos ou esquemas de desvio e nepotismo saiam de pauta atua como uma cobertura sistematicamente adversária da política e seus atores, o que traz sérios riscos à credibilidade e ao apoio ao regime constitucional e democrático (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 186-187).

O quarto capítulo, último antes da breve conclusão, tem por tarefa alinhavar as reflexões levadas a cabo nos capítulos anteriores com o tema do constitucionalismo. Essa aproximação não é difícil:

Como resposta estatal à “voz das ruas” que “reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos” (...), a presidente Dilma Roussef fez um pronunciamento público e propôs, no dia 24 de junho de 2013, “cinco pactos em favor do Brasil”, dentre os quais encontrava-se um pela ampla e profunda reforma política. A proposta seria a convocação de um plebiscito popular que autorizasse o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política. Trata-se de uma constituinte originária, pois é soberana, ou seja, não se limita, na ordem jurídica vigente, nem pelo Congresso, nem pelo Judiciário, nem tampouco, pelo Executivo; exclusiva, pois eleita estritamente para cumprir esta tarefa e depois se dissolve; e temática, pois se limita a fazer a reforma política apenas (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 201).

A assembleia constituinte soberana, exclusiva e temática seria o ponto de encontro entre o constitucionalismo e “a voz das ruas” de junho de 2013. A proposta não era nova: há algum tempo, vinha sendo debatida por partidos políticos, movimentos sociais e intelectuais. O que havia de novidade era o casamento aparentemente perfeito entre ela e a ocasião para sua efetivação.

Ernane Salles recupera com a lealdade típica de um intelectual de sua envergadura os argumentos favoráveis à proposta da assembleia constituinte (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 202-211). Todavia, em seguida apresenta quais seriam aos seus olhos “as incoerências e riscos” dessa proposta (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 202-211), momento em que fica clara sua afinidade com aquela tradição teórico-constitucional brasileira composta por nomes como Cristiano Paixão, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Maria Fernanda Salcedo Repolês e Menelick de Carvalho Netto.

O elemento mais interessante de sua argumentação, contudo, reside na maneira como ele vincula tal proposta de uma nova constituinte com os tópicos conceituais antes trabalhados da identidade narrativa, da memória patológica e da dimensão temporal inafastável de tudo isso:

Ora, no contexto da crise de uma consciência histórica, no Brasil, ainda cabe notar que a patologia da memória e da tradição jamais surge sem uma patologia da projeção em direção ao futuro; o horizonte de expectativa se esvazia de todo conteúdo, numa desconfiança em relação aos programas de médio e especialmente de longo prazo e às mediações institucionais para a concretização de aspirações (...). É nesse sentido que a narrativa ressentida da tradição política como corrupção e fracasso conduz a uma espécie de hipertrofia do horizonte de sonhos e de espera, entre nós. Sem que possamos nos orientar na experiência, nos refugiamos em utopias de romper, no presente imediato, tudo aquilo que impede nosso espaço público de se realizar democrática e plenamente. A ideologia do atraso conduz, paradoxalmente, à fuga da tradição, aqui e agora, em direção a soluções messiânicas e a devaneios de grandeza.

Nesse contexto de deslocamento do passado para o futuro, a defesa de uma Constituinte Exclusiva como saída necessária da crise política parece ser a expressão de uma perspectiva utópica que assola, de modo patológico, a consciência histórica nas jornadas de junho (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 206-207).

Ernane Salles tem um nome para essa “patologia da projeção em direção ao futuro”, “síndrome da urgência”: “O ‘contra tudo isso que está aí’ converte-se, pois, em urgência; a sede de mudar as estruturas políticas do Brasil recai numa síndrome da pressa que ameaça conquistas e avanços em termos normativos (...). A Constituinte Exclusiva representa com clareza esse contexto” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 241).

Resta pouco por dizer. O capítulo conclusivo, em poucas páginas, apenas retoma e explícita o que já ficara suficientemente amarrado nos capítulos precedentes:

A Constituinte exclusiva parece refletir bem os sentimentos de junho: a síndrome da urgência que tomou o país desde então; como se todo procedimento se tornasse uma insuportável espera e todo caminho definido pelo direito um retardamento incontornável apto a impedir o curso do tempo social das transformações. Junho parece ter despertado uma onda conservadora e moralista que tem pressa. Nessa vontade tenaz de se lançar diretamente ao futuro, rompendo com a letargia das instituições que causam o atraso nacional, nossas regras instituídas e nosso espaço de experiência são concebidos como lugares que nada têm a dizer (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 247-248).

Mas se a proposta da assembleia constituinte reflete algo que é diferente dela e mais profundo do que ela – uma síndrome da urgência –, esse mesmo algo pode refletir-se, e tende a refletir-se, igualmente em outros casos nos quais uma solução imediata sem nenhum apego às garantias do Estado Democrático de Direito ofereça-se como a mais conveniente alternativa para a suposta ruptura quase-mágica com uma história trazida à memória somente em termos patológicos: em todos esses casos, é possível verificar claramente que “[n]arrativa do atraso e síndrome da urgência, mais uma vez, são articulados e mobilizados contra o discurso constitucional” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 249).

3. Considerações finais

“Constitucionalismo do atraso” foi escrito como tese de doutoramento de Ernane Salles, sob orientação da sempre gentil professora Mônica Sette Lopes. Na medida em que o texto termina afirmando que “[à] luz dos resultados obtidos aqui, tais fenômenos abrem caminho à realização de pesquisas ainda por vir” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 249), gostaria de levantar algumas críticas que talvez possam contribuir ao desenvolvimento dessas pesquisas futuras.

Em primeiro lugar, o tema ele mesmo do constitucionalismo chega muito tarde na obra. A longa e bem feita reconstrução histórica e teórica das Jornadas de Junho e da relação, internamente a elas, entre a narrativa do gigante adormecido, a questão da identidade nacional e a emergência temática do combate à corrupção com sua pretensão homogeneizadora faz com que só no capítulo quarto o constitucionalismo seja abordado mais diretamente. Àquela altura, o espaço restante dentro da arquitetura do livro restringia o tratamento da tensão moderna entre constitucionalismo e democracia a uma abordagem mais localizada, o que foi conduzido em torno da proposta de uma nova assembleia constituinte. No entanto, os problemas propriamente teórico-constitucionais que Ernane Salles aponta parecem-me não ser exclusivos do Brasil. Ainda que, por suposto, adquiram aqui cores específicas, são problemas intrínsecos ao constitucionalismo moderno como um todo e, sobretudo, à teoria do poder constituinte tal qual se desenvolveu desde sua formulação originária por Emannuel Joseph Sieyès (2001) SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: que é o Terceiro Estado? Org. e int. Aurélio Wander Bastos; pref. José Ribas Vieira; trad. Norma Azeredo. Rio de Janeiro: 2001. . A ideia de um passado que já não tem nada a dizer e a consequente projeção ao futuro num movimento que pretende, ex nihilo, fundar o novo é a pedra angular sobre a qual se constrói essa teoria do poder constituinte. Assim, seria interessante aprofundar as discussões de “Constitucionalismo do atraso” em direção a um questionamento mais radical da relação entre tempo e Constituição na tradição constitucional e constituinte moderna de matriz francesa e da sua influência na história constitucional brasileira ( CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2008 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo; GOMES, David F. L. Novas Contribuições para a Teoria do Poder Constituinte e o Problema da Fundação Moderna da Legitimidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 53, 2008, p. 237-271. ).

Em segundo lugar, Ernane Salles coloca ênfase no “excesso de rememoração” ao abordar o lugar patológico que o tema da corrupção ocupa na memória coletiva brasileira. Parece-me que seria importante dar continuidade a essa discussão articulando melhor as variadas formas patológicas da memória traçadas por P. Ricoeur (2007 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento . Trad. Alain François et al. Campinas: Editora UNICAMP, 2007. , p. 82-104; 451-462). Afinal, enfatizar o “excesso de rememoração” pode conduzir a leituras que venham a entender que o problema maior reside tão só na insistência em contar uma história que, ela mesma, é uma história verdadeira. Ao contrário dessas possíveis leituras, é necessário mostrar que a presença obsessiva do tema da corrupção na memória coletiva brasileira deriva, em muito, de uma memória manipulada, em conexão muito estreita como uma história dos vencedores que, a duras penas, vem sendo criticada no Brasil nas últimas décadas. A um só tempo, essa memória manipulada articula-se a uma memória impedida: é assombroso na sociedade brasileira o silenciamento das lutas populares que sempre se fizeram presentes na história do país – o que se encontra novamente ligado à história dos vencedores e está claramente na base da mitologia do gigante que só em 2013 teria despertado, bem como da ideia mais geral de apatia política da população ( CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2012 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David F. L. Independência ou sorte?: ensaio de história constitucional do Brasil. Revista da Faculdade de Direito (UFPR), Curitiba, v. 55, 2012, p. 19-37. ). Logo, a crítica ao “excesso de rememoração” – a memória obrigada, embora Ernane Salles não se valha dessa expressão ricoeuriana – reivindica a tematização concomitante da memória manipulada e da memória impedida, sob o risco de servir a leituras totalmente em desacordo com o tipo de argumentação que, em geral, “Constitucionalismo do atraso” constrói.

Em terceiro lugar, Ernane Salles, ao lidar com a relação entre as categorias formais de apreensão do tempo histórico cunhadas por Reinhart Koselleck – “espaço de experiências” e “horizonte de expectativas” ( KOSELLECK, 2006 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira; rev. trad. César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006. ) – entende que a narrativa do atraso, acoplada a um “espaço de experiência brasileiro encurtado” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 239), conduz a uma espécie de “hipertrofia do horizonte de expectativa, no sentido de um certo deslocamento para o futuro” (COSTA JÚNIOR, 2017, p. 239). Parece-me que seria importante desenvolver o manuseio das categorias koselleckianas também no sentido de mostrar que, em momentos como junho de 2013, o encurtamento do passado faz com que o futuro seja trazido para muito perto do presente: não se trata apenas de hipertrofia do horizonte de expectativas e de deslocamento em direção ao futuro – característica, no fundo, da temporalidade moderna como um todo –, mas também, e fundamentalmente, de um deslocamento do próprio futuro. É esse futuro percebido como demasiado próximo que atravessa de dentro a “síndrome da urgência” tão bem captada por Ernane Salles, pois se o futuro é amanhã, quando não hoje mesmo, nenhum projeto de médio ou longo prazo pode ser pensado, e todos os obstáculos que, como uma Constituição, se opõem a mudanças bruscas e imediatas são vistos meramente como paredes a serem derrubadas – nunca como muros de proteção.

Para terminar, eu não poderia deixar de mencionar que, em 2018, a Constituição de 1988 completa seus 30 anos. E o faz num dos momentos mais delicados de sua história, acusada por variados lados – conservadores, progressistas e o que mais não caiba nesses termos. Em um momento como esse, a leitura de “Constitucionalismo do atraso” pode ajudar, e muito, a compreender o que está em jogo nos ataques sistemáticos a essa Constituição e quais os riscos que espreitam à espera de sua queda. Essa compreensão, se não assegura à Constituição de 1988 e ao projeto constituinte por ela configurado a defesa que, nestes tempos arcaicamente sombrios, seria necessária e recomendada a qualquer pessoa comprometida com uma sociedade mais justa, mais livre e menos desigual, ao menos pode livrá-la da ingenuidade de algumas críticas que, sem que o queiram, não raras vezes dão à mão ao que há de mais autoritário e anti-igualitário no cenário político e social brasileiro.

4. Referências bibliográficas

  • CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo; GOMES, David F. L. Novas Contribuições para a Teoria do Poder Constituinte e o Problema da Fundação Moderna da Legitimidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 53, 2008, p. 237-271.
  • CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David F. L. Independência ou sorte?: ensaio de história constitucional do Brasil. Revista da Faculdade de Direito (UFPR), Curitiba, v. 55, 2012, p. 19-37.
  • KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira; rev. trad. César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006.
  • RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento . Trad. Alain François et al. Campinas: Editora UNICAMP, 2007.
  • SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: que é o Terceiro Estado? Org. e int. Aurélio Wander Bastos; pref. José Ribas Vieira; trad. Norma Azeredo. Rio de Janeiro: 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2018
  • Aceito
    19 Jun 2018
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