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Direitos humanos do capital: reflexo jurídico e comando da força de trabalho

Human Rights of Capital: Law Reflection and Command of the Labour Force

Resumo

O artigo objetiva realizar uma análise imanente aos direitos humanos à luz da contradição entre capital e trabalho. Propõe-se uma discussão da luta histórica do trabalho contra o capital e de artigos da Carta Internacional dos Direitos Humanos, da Declaração dos princípios e direitos fundamentais no trabalho, além da análise da efetivação de tais direitos pela Vale e pela Elektro. A pesquisa sugere que os direitos humanos no trabalho têm por pressuposto a reprodução da relação de exploração econômica do trabalho e não podem nem visam, de modo algum, sua superação. O artigo também analisa o potencial dos direitos humanos para o encaminhamento de táticas que visem o processo emancipatório da classe trabalhadora.

Palavras-chave:
Luta de classes; Exploração do trabalho; Direitos humanos

Abstract

The paper aims at to show an immanent analysis of human rights from the point of view of capital and labour contradiction. We offer both a discussion of historical struggle of labour against capital and of the International bill of human rights, the Declaration on fundamental principles and rights at work, besides an analyse of materialisation of such rights by Vale and Elektro. The research suggests that the human rights at work have as condition the reproduction of economic exploitation of labour and do not aim at, by no way, its abolition. The paper also analyses the potency of such rights to the tactics, which aim at the emancipatory process of working class.

Keywords:
Class struggle; Labour exploitation; Human rights

1. Introdução

Propomos no texto a discussão sobre a relação entre os direitos humanos e a contradição entre capital e trabalho na produção do valor. A questão mais ampla que move nossa discussão é determinar, ainda que provisoriamente, a medida do tensionamento provocado pelas reivindicações em torno dos direitos humanos no complexo da produção das mercadorias como pauta da luta do trabalho contra o capital. Não se chega a bom termo nessa questão sem uma compreensão apurada das complexas reciprocidades entre direito e economia e das lutas travadas no interior e por meio delas.

Consideráveis elementos dessas reivindicações fazem parte da luta histórica entre as classes implicadas no relacionamento entre o trabalho e o capital. Tanto as lutas pela proteção da infância das garras de ímpeto compulsivo do capital quanto pela limitação da jornada de trabalho, sem falar das condições de trabalho e de outros direitos trabalhistas. Por esse motivo, qualquer discussão sobre direitos humanos precisa partir de uma compreensão histórica da luta de classes nos diferentes estágios de desenvolvimento do capitalismo. Essa própria história se encarrega de revelar as razões decisivas pelas quais os direitos do homem passam a ser postos inadvertidamente como o limite teórico-prático da luta emancipatória do trabalho evidentemente perspectivada a partir dos interesses adversos à classe trabalhadora.

Isso implica o reconhecimento de que os movimentos reivindicatórios em torno dos direitos humanos no complexo imediato da produção deixam intactos os pilares de sustentação da própria produção capitalista, ao passo que não pode deixar de ser uma pauta importante no processo de luta da classe do trabalho. A propósito de avaliar o potencial dos direitos humanos na luta contra o capital, é condição sine qua non especificar os seus limites teórico-práticos.

Para especificar tais questões, recorremos à análise do “objeto ideológico” materializado pela Carta Internacional dos Direitos Humanos (Art. 23º, 24º e 25º) de 1948 e pela Declaração dos princípios e direitos fundamentais no trabalho (1. Liberdade de associação e reconhecimento efetivo do direto de negociação coletiva; 2. A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório) de 1998. Igualmente se procedeu numa análise da expressão da efetivação dos direitos humanos pela Elektro (eleita, em 2014, a melhor empresa para se trabalhar no Brasil e, em 2015, a melhor na América Latina) a partir de seu Código de ética e seu Relatório de sustentabilidade 2013. Foi também considerada a Vale (empresa de mineração) a partir de seu Guia de direitos humanos apenas como expressão da conversão dos direitos humanos em técnica de gestão. Para os diferentes tipos de materiais, tratou-se de realizar uma análise imanente. Destaca-se a “dependência genética das forças motrizes de ordem primária”:

Por análise imanente não se compreende o estudo que confere ao produto ideológico explícito, origem e desenvolvimento imanente ao próprio campo das ideologias. O que vale dizer que as ideologias, como todas as manifestações superestruturais, não possuem uma história autônoma, mas esta sua condição de dependência genética das forças motrizes de ordem primária não implica que elas não se constituam em entidades específicas, com características próprias em cada caso, que cabe descrever numa investigação concreta que respeite a trama interna de suas articulações, de modo que fique revelado objetivamente seu perfil de conteúdos e a forma pela qual eles se estruturam e afirmam ( CHASIN, 1978 CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1978. , p. 77).

Nossa análise segue a determinação segundo a qual “o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade” (Marx, 2012 _______. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 31). E, ainda, que “as relações econômicas” não “são reguladas por conceitos jurídicos”, mas que, “ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas” (Marx, 2012 _______. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 27) e se mantêm em constante e complexas reciprocidades (Marx, 1986 _______. O capital. v. III t. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1986. , p. 251-2). Com as devidas ressalvas acerca das complexas relações entre a forma jurídica, as condições materiais do capitalismo e as formas históricas (“homem abstrato”, pessoa jurídica), a análise mostra que os conteúdos concretos se expressam ou deixam de se expressar na forma jurídica e, por outro lado, mostra também os resultados concretos com a efetivação dos direitos humanos por empresa reconhecidamente progressista neste campo tangente ao trabalho, no caso, a Elektro. Nossa análise sugere uma ligação reciprocamente histórica entre os direitos humanos tangentes ao trabalho e o comando da força de trabalho no capitalismo. Fazer a crítica dessa reciprocidade é condição fundamental para situar os direitos humanos em meio à luta de classes, sem cair na ilusão, sustentada por alguns homens da política, de que “a luta” por tais direitos “é a essência da nova luta de classes” 1 1 < http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/04/marcelo-freixo-a-luta-por-direitos-humanos-e-a-essencia-da-nova-luta-de-classes/ > Acesso em 16 de abril de 2017. .

Com efeito, o texto que segue está dividido em cinco partes. Na primeira, procuramos explicitar os direitos humanos como forma jurídica desenvolvida no capitalismo e discutimos o caráter heterogêneo desse desenvolvimento. Na segunda e terceira partes, tratamos especificamente do material das declarações dos direitos humanos ligados ao trabalho e da efetivação desses direitos por mediação da prática de comando da força de trabalho no interior das unidades produtivas. Na parte imediatamente consequente, discutimos as reciprocidades entre os direitos humanos tangentes ao trabalho e as práticas de gestão da força de trabalho, buscando explicitar os movimentos históricos do singular ao universal e do universal ao singular. Na última parte, fazemos as considerações acerca do potencial dos direitos humanos em meio a luta dos trabalhadores para além do capital.

2. Capitalismo e desenvolvimento heterogêneo do reflexo jurídico

Cabe expor alguns poucos pontos muito específicos com relação ao desenvolvimento heterogêneo do direito no capitalismo. A polêmica maior, obviamente, é, por um lado, em relação a uma completa desvinculação entre direito e capitalismo, além de todos os devaneios daí derivados como, por exemplo, tomar o primeiro como o sublime portador da razão, um desenvolvimento autônomo. Por outro lado, é preciso também evitar o erro oposto, qual seja, o de derivar mecanicamente o direito do capitalismo estabelecendo uma identidade não correspondente, muito automática.

Nesse segundo caso, que nos interessa mais de perto, é Pachukanis (1988) _______. Teoria do direito e marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988. que forneceu as principais contribuições (cf. Paço Cunha, 2014a PAÇO CUNHA, E. Considerações sobre a determinação da forma jurídica a partir da mercadoria. Crítica do Direito , n. 04, v. 64, 2014a, 148-166. ; Sartori, 2015 SARTORI, V. B. A teoria geral do direito e o marxismo de Pachukanis como crítica marxista ao direito. In: Verinotio: revista on line de filosofia e ciências humanas n. 19. Belo Horizonte, 2015a. ). Obviamente que é repleto de complicações reduzir em absoluto o autor russo a essa posição de uma derivação automática, mas existem tendências nessa direção, sobretudo no decisivo texto de 1924. Particularmente a tendência de estabelecer uma monocausalidade entre o complexo da economia e do direito, o que reduz a apreensão de outros problemas e nexos históricos (a relação entre “homem abstrato” do cristianismo, a pessoa jurídica e o trabalho abstrato no capitalismo, por exemplo, Cf. Paço Cunha, 2015) _______. Marx e Pachukanis: do fetiche da mercadoria ao “fetiche do direito” e de volta. In: Verinotio: revista on line de filosofia e ciências humanas n. 19. Belo Horizonte, 2015. . Temos em mente, mais especificamente, a relação de não identidade e de reciprocidade entre os dois complexos supracitados. Ao passo que o direito é, em seu estado mais desenvolvido, reflexo jurídico das condições sociais presentes, seu desenvolvimento com respeito a tais relações reais culmina em formas abstratas por meio de um processo heterogêneo de desdobramento (como sugere Lukács, 2013 LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. Vol. 2, São Paulo: Boitempo, 2013. ), não sem mediação de formas histórias anteriores (como o “homem abstrato” etc.).

Sabendo das conexões, e evitando essas duas posições anteriores, o reflexo jurídico é melhor determinado pelo enlace de determinações . O modo de produção capitalista engendra relações jurídicas correspondentes, não sem influência daquelas formas históricas. No capitalismo, as relações jurídicas correspondentes desenvolvem as relações reais existentes sob um caráter homogêneo, em iguais proprietários de mercadorias. Esse movimento é, já em si mesmo, replicador da forma aparente da própria realidade uma vez que nessa forma aparente pré-jurídica , por assim dizer – instante de gênese particular em que o momento jurídico ainda não se constituiu decisivamente –, estão apagadas as relações sociais entre homens no resultado social concreto, isto é, as mercadorias.

Da forma como Marx (2013) _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. pôde expressar com relação ao fetiche das mercadorias, na forma da coisa não se revela, por exemplo, que a própria produção das mercadorias é já um modo de distribuição desigual dos meios de produção dessas coisas. Assim, a desigualdade real é refletida na forma aparente como igualdade, dada pela equiparação objetiva dos trabalhos como equivalentes, isto é, a abstração real de suas diferenças – um requisito para as trocas. Assim também as relações de compra e venda da força de trabalho não revelam imediatamente a produção do mais-valor, uma vez que a forma-salário não expressa o tempo em que o trabalhador trabalha para si e o tempo que trabalha para o capital. Nesse sentido, o comando da força de trabalho tendencialmente aparece como algo distinto de uma relação de dominação; são amplas as consequências do fetiche da mercadoria.

O momento jurídico se adiciona ao fetiche da mercadoria e não constitui fetiche próprio, em si mesmo (Paço Cunha, 2015 _______. Marx e Pachukanis: do fetiche da mercadoria ao “fetiche do direito” e de volta. In: Verinotio: revista on line de filosofia e ciências humanas n. 19. Belo Horizonte, 2015. ). Desdobrando tal fetiche da mercadoria e seus pressupostos (as relações sociais por traz da forma da coisa) em relações jurídicas, outras camadas aparentes ganham aderência. Já aqui incidem questões morais diversas etc. Nesse ponto da atuação do momento jurídico, o reflexo não é autêntico na medida mesma em que, sendo também camada aparente, não ultrapassa e não pode ultrapassar nem a camada imediata da aparência posta pelo fetiche, num sentido sincrônico, nem as condições econômicas da própria sociedade existente, no sentido diacrônico. Em outros termos, o próprio desenvolvimento das relações jurídicas correspondentes ao capitalismo – também por mediação de formas históricas outras que caem na órbita do capital quando este se torna o princípio regulador da produção (e desenvolve as formas históricas em direções não correspondentes às tendências anteriores) –, é já de partida consideravelmente heterogêneo com respeito às relações sociais reais.

O momento jurídico se desenvolve em outras direções, assume a forma normativa, ganha funcionários etc., ou, ainda, é absorvido pelas estruturas político-burocráticas existentes ou em desenvolvimento. Sua relação de heterogeneidade se amplifica; a tendência homogeneizante (que agrava aquela abstração real dos diferentes trabalhos) se consolida no modo cada vez mais abstrato do direito. Seu funcionamento real, sua interferência na realidade efetiva, só é possível por mediação do complexo político-burocrático mas também por seu caráter heterogêneo com respeito às relações que pretende regular. Não poderia ser funcional se expressasse, por exemplo, a desigualdade real de propriedade no lugar da igualdade formal dos homens enquanto proprietários. Quanto mais heterogêneo e abstrato, menos se apresenta ligado a um modo particular de dominação, sobretudo porque tende a portar aspirações aparentemente universais (porque abstratas), mobilizar sentimentos e apresentar terminologia insuspeita (igualdade, vida, liberdade etc.).

O caráter do direito tomado aqui como “reconhecimento oficial do fato” ( Marx, 1985 MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985. , p. 86) significa uma prioridade objetiva da economia. Dizia Marx (2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 820) que “revoluções não se fazem por meio de leis”. Mas aquela prioridade da economia com respeito ao direito não incorre numa passividade do complexo jurídico, o que seria um erro de apreensão da realidade. Basta lançar atenção sobre as lutas históricas em torno da redução da jornada de trabalho para se ter a exata consciência disso (Cf. Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , capítulo. 8, mas também capítulos. 23 e 24), constatando-se o reconhecimento jurídico de práticas específicas de comando da força de trabalho (por decorrência da dependência estrutural e da luta do trabalho contra o capital), regulando com alguma força relativa (dado que os limites postos podem ser solapados por outros movimentos econômicos, políticos, científicos) os modos práticos já encontrados pela dinâmica própria das relações econômicas. Tais modos tiveram início nas unidades produtivas singulares, alcançando depois o momento particular nos diferentes ramos industriais. As consequências desses modos práticos, sobre as quais também opera o direito, são bem conhecidas: o estabelecimento da produção do mais-valor relativo e dos demais efeitos universalizantes para as relações capitalistas de produção, transpondo os momentos singular e particular anteriores. O direito, portanto, desempenha papel no reconhecimento jurídico das práticas de comando do trabalho. Desempenha também o papel na universalização sob a forma típica do próprio direito, isto é, homogeneizadora, para usar o léxico de Lukács (2013) LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. Vol. 2, São Paulo: Boitempo, 2013. , e heterogênea com respeito à sua base, isto é, reflexo não autêntico. Em suma, serve de mediação na conversão do particular em universal (não no sentido dos interesses universais, mas no sentido de fixar os traços universalizantes para o modo de produção em particular). Aqui se torna ainda mais relevante o caráter abstrato, a terminologia insuspeita, a mobilização dos sentimentos etc. E isso ajuda a explicar a ilusão dos juristas de que o direito é um universal em si mesmo ou a expressão dos interesses gerais ao aparecer acoplado ao estado capitalista. Perdem de vista não só a especificidade do direito (Cf. Sartori, 2015b _______. Considerações sobre transformação social e Direito em Marx e Engels: sobre a necessidade de uma crítica decidida ao “terreno do Direito”. In: Lippstein, D; Giacobbo, G.E; Moreira, R.B. da Rosa. Políticas públicas: espaço local e marxismo. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2015b. . p. 92ss) frente ao estado, mas também, e mais importante, estacionam no momento fenomênico dos falsos universais.

Mas é exatamente por existir tal prioridade do econômico que o direito é ativado e desenvolvido para além das formas históricas. Portanto, o direito, uma vez desenvolvido como amplo complexo particular (normas, operadores etc.), atua na economia como forma das relações sociais e mediação prática, modificando-se de acordo com a dinâmica própria do modo de produção, com o estágio da luta de classes, com o grau de consciência dessas classes em luta, sem falar das circunstâncias imediatamente políticas, morais e metafísicas. Bem entendido, não se constitui uma relação de coisas excludentes, como entificações mutuamente externas, mas uma unidade de momentos sociais diferenciados que se transforma no movimento próprio da realidade dessa unidade de múltiplas determinações.

É nesse enlace de determinações que precisamos situar os direitos humanos, sobretudo aqueles tangentes à questão do trabalho que aqui nos interessa mais de perto. Precisamos considerar os direitos humanos já num estágio bastante desenvolvido, cujo resultado em 1948 particularmente não revela diretamente todo o percurso das relações sociais anteriores, menos ainda as imediatamente implicadas na produção das mercadorias. Nossas considerações até aqui mais abstratas precisam, agora, expressar mais diretamente o movimento concreto.

3. Direitos humanos: reflexo jurídico e relações reais

É preciso considerar que os muitos enlaces determinativos entre elementos superestruturais, incluindo o “reflexo jurídico”, proporcionam condições para uma maior e mais elevada heterogeneidade entre tal reflexo e as relações reais, tomadas as últimas na valorização imediata do capital. O período da segunda grande guerra e as consequências culturais primeiras no apagar das luzes de Berlin apressaram e interferiram certamente na elaboração da Carta de 1948. Emblematicamente, o Art. 5 (“Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, Nações Unidas, 2001 2 2 Disponível em < http://www.gddc.pt/direitos-humanos/Ficha_Informativa_2.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. ) antecipa os muitos anos que se seguiriam, de luta com as marcas do Reich.

Ainda assim, mesmo que por essa mediação entrem no “espírito” da letra elementos de tal influência, marcam-se igualmente as já conhecidas abstrações típicas desde 1791 e 1793 e que foram objeto da crítica dos primeiros escritos de Marx (2010) _______. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. , como a igualdade formal (Art. 7, “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei” 3 3 Alguns artigos foram aqui adaptados para o português do Brasil. ) que apaga todas as distinções reais (inclusive de propriedade , cf. Art. 2). Celebra, como não poderia deixar de ser – na qualidade de reflexo jurídico de relações capitalistas reais –, que “Toda a pessoa, individual ou coletivamente, tem direito à propriedade” (Art. 17). As críticas de Marx ganham também aqui considerável respaldo. Valeria uma análise mais exaustiva sobre tais pontos, o que não será possível no presente texto. Pretendemos nos concentrar naquilo que surge evidenciado em 1948 e que estava mais ligado à questão do direito de propriedade nas declarações de 1791 e 1793: o problema do trabalho.

Tomando aqui os Art. 23º, 24º e 25º da Carta Internacional dos Direitos Humanos como um tipo especial de expressão jurídica de relações reais, um modo particular de “reflexo jurídico” dado em estágio já bastante complexificado do modo de produção capitalista (em 1948), identificamos a forma abstrata na qual se reflete o indivíduo egoísta e, ao mesmo tempo, não atravessa as aparências desse modo de produção, refletindo heterogeneamente tais relações reais.

Com relação ao aspecto do egoísmo – e seguindo de perto as considerações de Marx (2010) _______. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. –, os artigos apresentam três traços centrais. O primeiro, mais frequente, que é centrado no indivíduo isolado sob a forma abstrata da pessoa (“Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica”, Art. 6). Como desdobramentos, lemos nos artigos atinentes à questão do trabalho: “Toda pessoa tem direito ao trabalho” ( Nações Unidas, 2001 NAÇÕES UNIDAS. A carta internacional dos direitos humanos . Fichas Informativas sobre Direitos Humanos, n. 02, Rev. I, nov., 2001. , p. 31, Art. 23, Inciso 1); “Quem trabalha tem direito a uma remuneração” (Art. 23, Inciso 3); “Toda a pessoa tem direito ao repouso...” (Art. 24). Aqui é facilmente perceptível que a forma abstrata não ultrapassa o indivíduo egoísta. Quando ultrapassa, é para afirmá-lo em outro nível, na figura do egoísmo familiar. Lemos, por exemplo, que “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar...” (Art. 25, Inciso 1). Ou ainda, quando contempla a possibilidade da associação para, por meio dela, também poder realizar os seus interesses privados: “Toda pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para a defesa dos seus interesses” (Art. 23, Inciso 4), isto é, os interesses da pessoa, essa forma abstrata do indivíduo egoísta.

Isso tudo insinua que os direitos humanos, tangentes ao trabalho, seguem sendo os direitos do homem egoísta. Mas é importante destacar que não se trata de uma causalidade mecânica. Promove-se, correspondentemente a um estágio mais desenvolvido do capitalismo (1948), um reflexo que expressa abstratamente o homem egoísta operante na realidade material e isso não se dá sem muitas outras mediações complexas ao logo do período que separa o pós-guerra do século XX e a revolução francesa que repercutiu nas declarações daquele período. Que mediação mais importante é essa? O amplo desenvolvimento do mercado de trabalho, das relações trabalhistas, o estágio da luta de classes etc., que exigem um sincretismo da expressão jurídica, passando a reconhecer parcialmente elementos da facticidade, porém, de modo heterogêneo uma vez que na forma da pessoa não se revela diretamente o indivíduo que treina e exercita racionalmente o egoísmo na vida social. A expressão jurídica, já sob a forma desenvolvida da normatização, é a garantia do exercício desse egoísmo e também uma de suas mediações fáticas.

Essa maneira heterogênea de reflexo pode ainda comportar traços bastante particulares. Vimos que a “forma jurídica” não está mecanicamente nem exclusivamente determinada por relações econômicas muito embora no complexo articulado de complexos parciais é o momento econômico aquele que modula, fornece a tendência central do movimento da unidade – e por isso não é a única força ativa na vida social. Vimos também que tal forma opera por meio das aparências, não sendo outra coisa que o momento jurídico das formas aparentes. No movimento histórico, que realiza tendencialmente a sobreposição de camadas aparentes sobre camadas aparentes, o reflexo jurídico opera com um material não autêntico. Disso resulta que o grau de heterogeneidade alcançado é bastante elevado e é esse caráter cada vez mais abstrato que obstrui a chegada à raiz dos problemas sociais por mediação exclusiva da própria forma jurídica. Passar por esta forma deve nos servir como pista, obviamente, mas apenas se apresenta dessa maneira em ruptura com uma “concepção jurídica de mundo” ( Engels; Kautsky, 2012 ENGELS, F; KAUTSKY, K. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 18), se nos ancoramos no traço marcante da realidade segundo o qual o direito não tem história própria (Marx; Engels, 2007 _______; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. , p. 77; 94).

Essa digressão é importante para atravessarmos as camadas aparentes, entre as quais se inclui o momento jurídico. Muitas coisas se apagam nesse momento particular do complexo social. Por exemplo, “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego” (Art. 23, Inciso 1). Nessa justificação de políticas sociais, mostra-se prima facie um impulso protetivo que arranca suspiros dos entusiastas ainda no século XXI. É importante notar, logo de partida, que tais políticas ficam a cargo do estado capitalista dado que a esfera econômica por si só nesse modo de produção particular não é capaz de fazer frente às consequências geradas por seus próprios pressupostos. Desse ângulo real, vê-se que o capitalismo não passa sem diferentes formas de estado.

Dado que, por exemplo, é natural do capitalismo manter uma parcela flutuante de força de trabalho não aplicada produtivamente, é preciso criar mecanismos protetivos dos trabalhadores para, em última instância, criar também e contraditoriamente condições de perpetuação dessa força de trabalho. Contraditoriamente, pois, do ponto de vista do trabalhador individual, tais mecanismos podem significar a diferença entre a penúria absoluta e a penúria suportável e, do ponto de vista da classe trabalhadora, a preservação dessa própria classe na dependência do capital sob condições modificadas e também modificáveis. Esse último aspecto é digno de nota, pois dado que o movimento da forma jurídica é regulado por uma lógica não imanente, quer dizer, o momento preponderante é exercido pelo complexo amplo das relações materiais, as condições econômicas, o estágio das lutas e suas consequências políticas dão a direção para tal forma que regride ou avança na incorporação das necessidades emanadas das condições de classe da classe dos trabalhadores sem que, com isso, necessariamente se explicitem as contradições reais da exploração econômica do trabalho. Outros movimentos também são possíveis: a realidade mesma pode apresentar caminhos regressivos em relação à impotência da forma jurídica de contorná-los. Ou ainda, as forças produtivas e as lutas sociais podem forçar a implosão da forma jurídica e seu ímpeto conversador da ordem das coisas.

Destaca-se também a “livre concorrência”. Como os trabalhadores são jogados uns contra os outros sob o crivo da produtividade do trabalho, além de garantir aquela parcela da força de trabalho flutuante, insere uma variabilidade considerável nas condições de trabalho. Isso também é verdade do lado dos capitais individuais. Na medida que são empurrados à concorrência, as “condições equitativas e satisfatórias de trabalho” são menos uma determinação possível da norma e mais o resultado do movimento próprio da economia e das circunstâncias que cercam um capital individual. Tenhamos em mente, por exemplo, as formas bastante regressivas que a produção assume nas condições de crise ou naquelas em que o capital está, por assim dizer, numa fase tardiamente acelerada de desenvolvimento (China, principalmente). Essa mesma concorrência entre os trabalhadores implica uma margem de escolha bastante limitada. É mais importante ainda destacar que no modo de produção capitalista, essa liberdade do trabalho se dá, sobretudo, dentro dos limites do capital. Da mesma forma que a liberdade comercial significa fazer opção entre mercadorias, isto é, do ponto de vista do trabalhador que vai ao mercado adquirir as coisas necessárias à sua reprodução e a de sua família, do ponto de vista da venda da força de trabalho como condição da entrada do trabalhador no mundo das mercadorias a escolha mais decisiva é entre os capitais disponíveis com os quais negociar, capitais que fazem circular as mesmas mercadorias postas à “escolha” dos trabalhadores na compra. Se sobrepusermos aquela camada adicional da concorrência de produtividade entre os trabalhadores, tais opções são consideravelmente restritas. Em outras palavras, a escolha é, quando existente, posta no limite da venalidade da força de trabalho como destino inevitável da gigantesca parcela da população. Só a hipocrisia liberal consegue proferir teses contrárias na medida em que considera a concorrência uma determinação universal, o elixir mágico da providência, e deposita as esperanças na forma minimalista da política – respaldada por expressões jurídicas como essas aqui sob análise – frente à tendência nunca plenamente aceita pela consciência liberal de que a própria concorrência engendra o seu contrário: o monopólio do lado do capital (e desemprego, baixos salários, condições potencialmente regressivas das condições de trabalho etc., do lado da força de trabalho).

Nem é preciso dizer que os atuais movimentos da economia, pela ampliação das camadas do exército de reserva, impulsionam consideráveis frações da classe trabalhadora ao empreendedorismo de sobrevivência, às condições precárias de reprodução da vida, à conversão de cada indivíduo isolado em uma pessoa jurídica – o que sem dúvidas amplifica a concorrência na classe do trabalho e diminui suas condições objetivas e subjetivas de auto-organização para a luta coletiva. Tudo isso se agrava tendencialmente com a lógica ineliminável do capitalismo, em diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário que, em razão de condições passageiras ou mais duradouras, esbarra em limites que só podem ser contornados pelo ataque às conquistas das classes trabalhadoras (aquele reconhecimento contingente das necessidades emanadas das condições de classe), impondo forte pressão sobre a forma jurídica. O caso da terceirização é emblemático nesse sentido, mas ultrapassa demasiadamente nosso interesse no presente momento.

Com efeito, e retomando o ponto, os trabalhadores não têm o “direito” de vender ou não vender suas forças de trabalho; são, em razão da compulsão econômica e da naturalização da vida social, obrigados a se venderem voluntariamente (Cf. Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 808) ao capital disposto a empregá-los na produção de mercadorias a serem futuramente vendidas à própria classe trabalhadora. No final das contas, um traço marcante, mas nem sempre explicitado – menos ainda nas considerações jurídicas –, do grande negócio entre as classes, é que se pode vender as mercadorias para a própria classe que as produziu e auferir lucro nesse processo. Por isso, o reflexo jurídico expresso na afirmação de que “toda a pessoa tem o direito ao trabalho” pressupõe a existência da venalidade da força de trabalho em meio aos mecanismos entre os quais figuram aqueles que aqui explicitamos. E é curioso que esse “direito ao trabalho” de 1948 possui dívidas com as revoltas operárias de 1848, exatos cem anos antes. Marx comentou que:

Na primeira versão da Constituição, formulada pelas jornadas de junho [de 1848], ainda constava o “droit au travail”, o direito ao trabalho, a primeira fórmula desajeitada, que sintetizava as reivindicações revolucionárias do proletariado. Ela foi transformada no droit à l’assistance, no direito à assistência social, e qual é o Estado moderno que não alimenta de uma ou de outra forma os seus paupers [pobres]? (Marx, 2011 _______. Guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 76).

Um século depois, essa fórmula desajeitada se tornou expressão jurídica como direitos humanos, forma amalgamada à assistência protetiva do estado capitalista antes e após 1948. Os direitos humanos aqui ligados ao trabalho não apenas pressupõem a existência de relações econômicas bem determinadas, como também atuam por mediação da prática social dos homens concretos na reprodução dessas mesmas relações uma vez que, em última instância, o “direito ao trabalho” é a entrada da esmagadora parcela da humanidade sob o domínio do capital. Por isso dissemos também que o momento jurídico atua nas aparências. Basta ver que a forma jurídica aqui expressa de maneira muito heterogênea os autênticos problemas sociais no modo capitalista de produção. O caráter abstrato dessa forma – portadora também de um certo sentimentalismo – comporta a expressão de camadas mais aparentes, ela própria sendo uma dessas camadas: o momento jurídico. E seu funcionamento adequado requer esse desenvolvimento heterogêneo, inclusive porque dá a aparência de vontade pura às decisões condicionadas por compulsões econômicas, por mecanismos frente aos quais a norma passa a ser muitas vezes uma frase vazia, sem potência. Caberia aos trabalhadores converter o “direito ao trabalho” de 1948 em superação do trabalho assalariado, quer dizer na resolução prática dos laços de dependência estrutural com o capital enquanto princípio regulador da produção. Se 1948 repetiu como farsa 1848, a derrota provisória dos trabalhadores não parece padecer de autenticidade durante todo o século XX.

Os demais artigos e incisos que tocam nessa questão dos direitos humanos e do trabalho são desdobramentos do indivíduo egoísta, como vimos antes, e do “direito ao trabalho”. Por exemplo, “Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual” (Art. 23, Inciso 2). Como é o ciclo industrial (prosperidade, estagnação, crise etc.) que exerce a principal força na compra e na venda da força de trabalho, o “sem discriminação alguma” é uma ideologia banal. Serão discriminados, no mínimo, em razão da produtividade do trabalho levando-se em conta as circunstâncias e posições dos capitais individuais. Trabalhadores num mesmo ramo industrial, mas em unidades produtivas distintas, podem ganhar abaixo ou acima da média daquele ramo. Novamente, são as forças econômicas que atuam mais decisivamente contra o exercício puro da vontade expressa na norma. Não obstante, destaca-se que nos direitos humanos se reflete o conteúdo econômico real, não como tal, obviamente. “Salário igual por trabalho igual” é uma expressão tão mercantil quanto o seu conteúdo, a compra e a venda da força de trabalho propriamente ditas.

Somemos uma outra expressão: “Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social” (Art. 23, Inciso 3). Aqui a proteção estatal se dá no plano da mera possibilidade (o que enfraquece o Inciso 1 do mesmo Art. 23), ao sabor das circunstâncias. Guardemos o mais importante, porém: a dignidade humana. Adicionemos, ainda, um último ponto: “Toda pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas” (Art. 24). Além de se poder reduzir a forma jurídica à relação mercantil com alguma facilidade (troca de salário por trabalho), e de essa própria forma capturar apenas a aparência de troca entre capital e trabalho, aparentemente entre livres proprietários de mercadorias, chama atenção a necessária redução da humanidade ao trabalho assalariado. De um lado, então, é possível capturar nos direitos humanos o reflexo das marcas gerais e superficiais da produção capitalista, quer dizer, ao mesmo tempo que expressa alguns traços (remuneração, repouso, duração do trabalho, férias etc.), o faz de maneira não autêntica dado que, como momento jurídico, opera com as camadas mais aparentes das relações reais. Em suma, não atravessa o fetiche da mercadoria; é, antes, expressão dele. Por outro lado, e ainda mais importante, opera uma redução da humanidade de cada indivíduo à condição de trabalhador assalariado. A dignidade está nos limites do próprio trabalho assalariado. Ser assalariado é a realização de sua humanidade. Eis a determinação mais sublime a que a consciência burguesa é capaz de elaborar de suas entranhas intestinas.

Análise semelhante é possível extrair de alguns pontos da Declaração dos princípios e direitos fundamentais no trabalho . “A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório” 4 4 Disponível em < http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---declaration/documents/publication/wcms_095898.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. , por exemplo, cai na mesma circunstância que determinou, acima, o obscurecimento da compulsão econômica. Na própria forma jurídica não se reflete essa compulsão da produção capitalista, que confirma a necessária venalidade da força de trabalho. É óbvio que a forma assalariada do trabalho é um grande progresso se comparado com as formas servil e escrava. Porém, mais do que simplesmente buscar eliminar tais formas antigas que ainda persistem engendradas de outra maneira no modo de produção capitalista, a forma jurídica aqui expressa com completa acriticidade a forma assalariada do trabalho, o que, no final das contas, é sua sublime justificação na abstração jurídica.

Outro é o caso da “Liberdade de associação e reconhecimento efetivo do direto de negociação coletiva”. Além do aspecto menor de refletir uma relação de regateio entre capital e trabalho, claramente mostra o processo de legalização da greve, isto é, quando a própria greve se converte em direito. Na própria explicitação do conteúdo dessa resolução lemos que tal “barganha feita de boa-fé objetiva encontrar acordos coletivos mutualmente aceitáveis”. Quer dizer, já impõe a finalidade da livre associação dos trabalhadores, qual seja, a negociação em “bom termo” que garanta a manutenção da relação já existente. Naves (2012 NAVES, M. B. Prefácio. In: Engels F; Kautsky, K. O Socialismo Jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 14), tomando as considerações de Edelman (2005) EDELMAN, B. La légalisation de la classe ouvrière. Marselille. Agone, n. 33, 2005. , comenta que:

a greve só se transforma em direito de greve se os trabalhadores aceitam os termos que a ela emprestam licitude: a greve não pode desorganizar a produção colocando em risco o processo do capital, questionando, portanto, a dominação burguesa dos meios de produção.

Isso se confirma na própria explicitação da questão em pauta:

Se o sistema de barganha coletiva não produz um resultado aceitável e é tomada a ação grevista, algumas categorias de trabalhadores podem ser excluídas de tal ação para garantir a salvaguarda básica da população e o funcionamento essencial do Estado ( Naves, 2012 NAVES, M. B. Prefácio. In: Engels F; Kautsky, K. O Socialismo Jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 2).

Uma vez sob um regime jurídico, podendo funcionar dentro de limites regulamentados, a greve se converte em mera negociação que pressupõe de partida a preservação dos elementos estruturais que engendraram o próprio movimento grevista. Todo o ímpeto conservador do direito se revela na medida em que visa preservar as contradições das quais é produto. Todas essas expressões e desdobramentos (direito de greve, direito ao trabalho etc.) são, pois, complementares, e mostram que ao estacionar na forma jurídica implica contradições insolúveis, impondo o destino do “cachorro e seu rabo” como lógica no interior da qual tudo deve se mover.

A propriedade do direito de refletir não autenticamente as relações efetivas – o que, obviamente, não quer dizer que signifique o necessário abandono da inquirição desse reflexo – se comprova pela assertiva primeira da Declaração da Filadélfia5 5 Disponível em < http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/legis_jur/sumario/Declara%C3%A7%C3%A3o%20de%20Filad%C3%A9lfia.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. , de 1944, que serve como uma das fontes 6 6 Disponível em < http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/international_labour_standards/pub/declaracao_oit_293.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. decisivas para a Declaração dos princípios e direitos fundamentais no trabalho. Nos fundamentos da Organização Internacional do Trabalho, tais quais aparecem na Declaração da Filadélfia , lemos, entre outras coisas, que “O trabalho não é uma mercadoria”. A distância dessa afirmação e o funcionamento real é abissal. Certamente que o trabalho não é mercadoria por natureza, mas a força de trabalho se transforma em mercadoria quando circula no mercado de trabalho, quando é vendida, comprada e aplicada produtivamente por preço determinado etc., isto é, funciona como mercadoria em razão das relações sociais marcadamente capitalistas no interior das quais a força de trabalho é produzida e reproduzida. E isso se realiza a despeito do grau de regulação externa que se possa ter. Afirmar que a força de trabalho não é mercadoria não impede ou obstrui sua produção e reprodução como mercadoria.

É certo que a força de trabalho não é uma mercadoria qualquer. É a única que pode, em sua aplicação diária, criar novos valores a serem apropriados pelo capital. E o que dizer de uma Organização , que nos marcos de sua inauguração em 1944, não compreende um traço básico da produção capitalista? Não se deve esperar que coloque em movimento qualquer prática autenticamente próxima de uma verdadeira Internacional do Trabalho, visando a necessária superação do próprio trabalho assalariado, da força de trabalho como mercadoria e, assim, do capital. Em suma, é a organização internacional do comando da força de trabalho, mas não refletida como tal.

4. Direitos humanos e gestão da força de trabalho

Igualmente se procedeu numa análise da expressão da efetivação dos direitos humanos pela Vale (empresa de mineração) a partir de seu Guia de direitos humanos e pela Elektro a partir de seu Código de ética e seu Relatório de sustentabilidade 2013.

Temos falado da contradição entre trabalho assalariado e capital e a problemática contida nas formas aparentes das relações materiais, em especial o momento jurídico do complexo social. É interessante lançarmos luz sobre algum material que nos apresente indícios, e apenas indícios, de efetivação dos diretos humanos na unidade produtiva do valor. Dito de outra forma, a operação da forma jurídica por mediação da prática concreta no interior da contradição entre capital e trabalho.

Como anunciado antes, tomamos aqui dois exemplos de empresas consideradas destaques com respeito à efetivação dos direitos humanos em suas políticas institucionais. Primeiramente, lancemos algumas considerações sobre a Vale, que opera no setor de mineração, e seu Guia de direitos humanos. Deixaremos de fora propositalmente as interferências postas pelas polêmicas em torno da atuação dessa empresa com relação às comunidades locais e outros constrangimentos conhecidos os quais merecem e já recebem trabalhos dedicados. Lancemos atenção apenas sobre a mobilização da forma jurídica com relação à força de trabalho, ao menos como aparece no material institucional.

Por todos os lados, o Guia é sustentado na adequação entre as políticas institucionais da empresa e os direitos humanos conforme as declarações analisadas antes. Lemos, por exemplo, que “Nós, como empresa, estamos conscientes do nosso papel em contribuir com o respeito e a promoção de direitos humanos” 7 7 Disponível em < http://www.vale.com/PT/aboutvale/sustainability/Documents/guia-direitos-humanos-03-12-2013.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. (Vale, s/d., p. 8). Munidos desse ímpeto, a efetivação se dá por mediação da prática social desenrolada no interior da unidade produtiva por homens e mulheres concretos. Uma dessas mediações é levada adiante pelos chamados gestores. Entre eles,

isso significa, por exemplo, habilidade de fazer com que a pressão por resultados não se traduza em estresse negativo para o empregado, não sendo aceitáveis ações baseadas em ameaças, perseguição, humilhações ou outras atitudes reprováveis. A cobrança por resultados não pode afastar o respeito pela equipe (Vale, s/d. VALE. Guia de direitos humanos. s/d. , p. 11).

Por mediação, então, dos gestores, os direitos humanos surgiriam como uma espécie de freio ao impulso natural por resultados desse território em questão. Traduzido para nossa linguagem mais correspondente, temos que é uma espécie de explicitação da incapacidade de a produção capitalista lidar com os produtos de seus próprios pressupostos, uma confissão de sua impotência interna. Trata-se de um freio racional ao impulso incontrolável do capital pela maior produção possível de mais-valor (voltaremos a esse ponto mais adiante na análise histórica); algo que fica omitido na “linguagem corporativa” dos resultados, equipe, habilidade etc. Frise-se: um freio imerso na contradição, irresolutivo. Mas essa mediação não se limita à prática dos gestores, à forma do “trabalho de explorar exercitado por fração do trabalho explorado” (Paço Cunha, 2014b _______. Braverman, subjetividade e função de direção na produção do valor. Cadernos EBAPE.BR, v. 12, nº. 4, Apresentação, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2014b. , p. 742). Para a Vale, o “empregado é sujeito e agente estratégico dos direitos humanos”:

Todo direito implica deveres. Cada um de nossos empregados deve ter seus direitos respeitados pela empresa, como, por exemplo, usufruir de condições de trabalho dignas e de um ambiente de trabalho saudável. Do mesmo modo, cada empregado tem o dever de adotar em suas práticas e comportamentos diários a observação dos diretos humanos, seja no trato com colegas, equipes ou terceiros. Em outras palavras, o empregado é sujeito e agente estratégico dos direitos humanos. Esses direitos só serão garantidos e preservados se forem conhecidos e postos em prática no comportamento de cada um de nós (Vale, s/d. VALE. Guia de direitos humanos. s/d. , p. 10).

Cabe à Vale ofertar condições de trabalho dignas e saudáveis. Como contraparte, nessa relação de regateio entre livres proprietários de mercadorias, cabe aos empregados observar os preceitos com relação aos direitos humanos na atividade diária. A empresa sinaliza a seus funcionários certas “atitudes a serem adotadas” (p. 10), num espectro bastante amplo da “conversa” que “deve ser respeitosa” (p. 12) à observância da “diversidade” por via da “inclusão competitiva” (p. 15), o que quer que isso seja. Em suma, deve cada “empregado”, incluindo seus gestores, “contribuir para um ambiente de trabalho saudável, em que as relações sejam marcadas pelo respeito, pelo diálogo, pelo sentido de justiça e pela busca do entendimento, deve ser objetivo tanto das lideranças quanto de suas equipes” (p. 11).

Além do fato de que o ângulo é sempre o indivíduo isolado o protagonista central em torno do qual orbita essa cantilena dos direitos humanos na empresa, destaca-se que não se insinua qualquer contradição entre a efetivação dos direitos humanos, tal como se coloca desde 1791 (passando por 1848 e 1948), e a produção do capital. Ao contrário, e de maneiras muito complexas, os direitos humanos são parte constitutiva da ampla forma jurídica em relação de relativa heterogeneidade com a economia capitalista. Antes, porém, de estender nossa análise, lancemos a atenção sobre um caso concreto menos controverso do que a Vale.

A Elektro, empresa de grupo espanhol do ramo de distribuição de energia, teve lucro líquido de “R$ 323,7 milhões em 2013” 8 8 Disponível em < http://vocesa.uol.com.br/noticias/mercado/as-150-melhores-empresas-para-voce-trabalhar-2016.phtml#.WPPY6IjyuV4 >, acesso em 16 de abril de 2017. Disponível em < http://ri.elektro.com.br/Media/Default/AcessoRapidoWidget/Relatorio%20Completo%202013.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. e foi eleita, em 2014, a melhor empresa para se trabalhar no Brasil 9 9 Disponível em < http://exame.abril.com.br/revista-voce-sa/melhores-empresas-para-trabalhar/2014 >, acesso em 16 de abril de 2017. , a melhor da América Latina, em 2015 10 10 Disponível em < http://www.greatplacetowork.com.br/melhores-empresas/gptw-america-latina/1043-2015 >, acesso em 16 de abril de 2017. , e a melhor do seu setor em 2016. Trata-se de um caso concreto interessante para considerarmos a existência de alguma contradição entre direitos humanos e a relação capital-trabalho. Se houver alguma contradição, é nesse caso mais avançado de aplicação dos direitos humanos que tais questões devem aparecer.

É possível ler em seu Código de ética todos os compromissos sustentados com as declarações nacionais e internacionais sobre os direitos humanos, incluindo as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho há pouco considerado. Explicita-se que “o Grupo manifesta o seu total repúdio ao trabalho infantil e ao trabalho forçado ou obrigatório e se compromete a respeitar a liberdade de associação e negociação coletiva, assim como os direitos das minorias étnicas e dos povos indígenas nos locais onde desenvolve a sua atividade” 11 11 Disponível em < http://www.elektro.com.br/Media/Default/DocGalleries/DownloadsFornecedores/man_el_cod_conduta_02a_web.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. ( Elektro, 2013a ELEKTRO. Código de ética. 2013a. , p. 14-15). Destaque para os ecos da forma jurídica que não expressa correspondentemente a compulsão econômica da produção, a exploração do trabalho como condição do modo de produção capitalista e o regateio coletivo como discutido antes. Considerando-se, como lemos em seu Relatório de sustentabilidade 2013, “signatária do movimento promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU)” 12 12 Disponível em < http://www.elektro.com.br/Media/Default/sustentabilidade/Elektro%20RA13%20Miolo_23Leve.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 22), procura “Garantir que a condução dos negócios seja fundamentada em princípios éticos com transparência e equidade, respeitando os direitos humanos, as normas internas e a legislação” ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 28). A Elektro sustenta esta posição como uma de suas “diretrizes da gestão” ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 28), de modo que “todos os contratos firmados pela Elektro com seus parceiros comerciais incluem cláusulas pertinentes a direitos humanos e a critérios socioambientais e trabalhistas” ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 96). Chama a atenção o fato de que a empresa apresenta os direitos humanos como um de seus “indicadores de desempenho” ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 4), seguindo o “ferramental gerencial” internacionalmente já disponível 13 13 Disponível em < https://www.globalreporting.org/resourcelibrary/Human_Rights_analysis_trends.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. , 14 14 Disponível em < https://www.globalreporting.org/resourcelibrary/G3-Human-Rights-Indicator-Protocols.pdf >, acesso em 16 de abril de 2017. . Inclusive, destaca-se também que “Em 2013, 100% dos empregados passaram por 37.719 horas de treinamento no Código de Ética da Companhia, que possui políticas e procedimentos referentes a aspectos de direitos humanos” ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 149), fazendo valer seu princípio, francamente explicitado, de que “O capital humano é aspecto primordial para a criação de valor das atividades da Elektro” ( Elektro, 2013b ELEKTRO. Relatório de sustentabilidade 2013. 2013b. , p. 26)!

O que é preciso ser destacado é que particularmente a Elektro goza de reputação, prestígio, resultados econômicos invejáveis e extensa lista de indícios de efetivação dos direitos humanos. Destaca-se a já completa conversão dos direitos humanos em “ferramenta administrativa”, servindo como indicador de desempenho e inclusive também potencialmente responsável por eleger tal empresa como a melhor para se trabalhar no ano de 2014, 2015 e 2016. Isso nos permite constatar que se nas unidades econômicas onde se realiza a aplicação do trabalho produtivo na produção do valor aquela forma jurídica se converte, por mediação da prática social, em ferramental de gestão que engendra resultados econômicos desejados, qual é o grau de contradição entre os direitos humanos e a relação capital-trabalho? Por acaso a Elektro se mostra como palco de intenso movimento grevista e ponta de lança da luta dos trabalhadores?

Prima facie, não existe qualquer contraditoriedade iminente. Mais adiante retomaremos essa questão importante. Nesse momento, entretanto, os indícios que temos à disposição são completamente opostos àquela afirmação do político brasileiro apresentada na introdução, de que os direitos humanos seriam a essência da nova luta de classes. Certamente que tais direitos sempre estiveram em meio à luta de classes e seguem ali operando. Não parecem ter se convertido em sua essência por qualquer motivo. A própria análise dos dois casos concretos deixa isso muito evidente na medida em que os direitos humanos são incorporados nas políticas institucionais e, assim, convertidos em técnica de gestão por mediação da prática concreta do trabalho de explorar exercitado por fração do trabalho explorado.

Os direitos humanos, no modo como estão disponíveis, tanto na forma jurídica quanto convertidos em técnicas, não põe qualquer negação dos traços decisivos da produção capitalista. Na verdade, como vimos, tais direitos os pressupõem existentes e visam preservá-los. No máximo, estabelecem alguns limites, como resultado da luta de classes e que variam segundo as circunstâncias econômicas e políticas, à prática de comando da força de trabalho pelo capital. Mas esse movimento como se mostra em seu resultado não revela o processo histórico de sua constituição. Por isso passa a ser importante analisar as reciprocidades históricas entre as práticas de gestão da força de trabalho e os direitos humanos.

5. Reciprocidade entre comando da força de trabalho e direitos humanos

O progressivo desenvolvimento dos direitos humanos ligados ao trabalho, sem dúvida, carrega profundas marcas deixadas, não necessariamente tão visíveis, pela luta entre capital e trabalho durante séculos. Como Marx muito bem expressou com relação à legislação ao longo do desenvolvimento do capitalismo: “A legislação fabril, essa primeira reação consciente e planejada da sociedade à configuração natural-espontânea de seu processo de produção, é, como vimos, um produto tão necessário da grande indústria quanto o algodão, as selfactors e o telégrafo elétrico” (Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 551). Essa “regulação foi o primeiro freio racional aplicado aos volúveis caprichos da moda, homicidas, carentes de sentido e por sua própria natureza incompatíveis com o sistema da grande indústria” (Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 550), explicou ele.

O próprio desenvolvimento industrial coloca a necessidade de progressivos aperfeiçoamentos no comando da força de trabalho. Essa relação, no entanto, comporta um desenvolvimento desigual que, no caso, parece ter sido objeto da regulação, forçando o capital a adotar uma jornada de trabalho mais adequada. Que a regulação teve papel relevante não resta dúvida. É importante, nessa direção, considerar aquele papel mediador desempenhado pelo direito na transição do particular ao universal. Mas é importante frisar também que “A consolidação de uma jornada de trabalho normal é o resultado de uma luta de 400 anos entre capitalista e trabalhador” (Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 343). Ou, dito de forma ainda mais precisa:

(...) essas determinações minuciosas, que regulam com uma uniformidade militar os horários, os limites, as pausas do trabalho de acordo com o sino do relógio, não foram de modo algum produto das lucubrações parlamentares. Elas se desenvolveram paulatinamente a partir das circunstâncias, como leis naturais do modo de produção moderno. Sua formulação, seu reconhecimento oficial e sua proclamação estatal foram o resultado de longas lutas de classes (Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 354).

Os direitos humanos ligados ao trabalho têm aí seu ponto de arranque. Desenvolve-se como uma necessidade natural do modo de produção capitalista. Assim como o “direito ao trabalho” foi uma forma desajeitada da luta do trabalho contra o capital convertida em direitos humanos, esses, como reconhecimento oficial e normativo, como momento jurídico ou camada aparente no desenvolvimento heterogêneo entre economia e direito, constituem muito mais mediações de aperfeiçoamento jurídico, porém cada vez mais ferramentais, do comando da força de trabalho para o capital, não contra ele. São os direitos humanos do capital.

As declarações e cartas antes analisadas não revelam por si mesmas qualquer movimento histórico, a não ser pelo fato de que, das entrelinhas, transborda a autoilusão de ser a encarnação da razão no mundo. Por outro lado, o material institucional dos dois casos concretos antes analisados mostra algum desenvolvimento histórico. Em síntese, houve a declaração dos direitos humanos com a qual ambas as empresas compactuam. O comando da força de trabalho, portanto, está em correspondência aos princípios das declarações. O movimento é expresso como sendo do universal (forma jurídica) ao singular (comando da força de trabalho pelo capital individual), tendo o primeiro como o verdadeiro ponto de partida.

Mas o movimento real é bem mais complexo e não se resume à mera declaração dos princípios na forma que vimos antes, não tem na própria universalidade seu ponto de arranque constitutivo. Nossa análise anterior já apresenta indícios dado o desenvolvimento heterogêneo em relação à economia, além de reconhecermos a mediação do direito no movimento oposto ao derivado a partir do material institucional dos casos concretos, isto é, a mediação auxiliar para a universalização do modo de produção capitalista expresso de modo heterogêneo na abstração jurídica.

Poderíamos adicionar outras poucas indicações importantes para explicitar o movimento histórico real e complexo. Como já indicado antes, as formas históricas já desenvolvidas, como o homem abstrato do cristianismo e a pessoa jurídica do direito romano, caem na órbita do capital. Passam a ser desenvolvidos em outras direções não necessariamente correspondentes com as tendências históricas anteriores. Quando o capital se torna o princípio regulador da produção desenvolve mais fortemente relações jurídicas correspondentes, mas não sem a mediação dessas formas históricas que são, com isso, repostas e deslocadas no processo. É um erro imaginar que tudo para o capitalismo é novo, desprezando o papel de elementos superestruturais anteriormente existentes.

No interior mesmo da produção desdobram-se a luta entre capital e trabalho. A regulação da jornada de trabalho, a luta pelo “direito ao trabalho”, por salário e de associação são centrais – não é por acaso que aparecem explicitadas mais tarde como direitos humanos ou o humano reduzido ao trabalho assalariado em 1948. A regulação da jornada de trabalho, por exemplo, nasce por necessidade da própria produção e, depois, assume a forma do reconhecimento jurídico-estatal. As demais lutas também ganham tal reconhecimento. Por decorrência, quando os direitos humanos ligados ao trabalho assumem a forma de 1948 pressupõem todo esse desenvolvimento. Sua âncora, portanto, foram as formas práticas de gestão da força de trabalho que eram mais correspondentes ao desenvolvimento progressivo da sociedade capitalista (não era mais praticável, por exemplo, longíssimas horas de jornada de trabalho, embora, por outro lado, o direito de associação possa regredir a depender das circunstâncias políticas, pois existe uma relação recíproca e contingente entre política e direito).

Tais direitos humanos ligados ao trabalho, sob a forma das declarações ou mesmo sob a forma das políticas institucionais das empresas, são forma jurídica das práticas capitalistas do comando da força de trabalho. Como resultado também da luta de classes, tal forma comporta algum grau protetivo, porém profundamente funcional ao capital, pois se trata da preservação das relações sociais ao fundo (propriedade, trabalho assalariado etc.). Isso se confirma pela inspeção que fizemos acerca da ausência de qualquer negação entre os direitos humanos tais como foram expressos e a lógica da produção do capital nos casos concretos analisados. Então, da mesma forma que o humano é reduzido, nos direitos humanos, ao trabalho assalariado egoisticamente posto, tal forma é a dos direitos humanos do capital. Assim como as práticas de comando podem sofrer variação histórica sobre uma mesma base (propriedade privada), a expressão jurídica dessas práticas tem por pressuposto a mesma base e sofre também variações. Não é por acaso que a propriedade privada corta os direitos humanos desde 1791. Mas o outro aspecto dos direitos humanos, como freio racional, precisa ser destacado, pois na qualidade de resultado histórico da luta de classes ajudam a pôr algum limite às práticas de comando da força de trabalho que operam em nome do impulso natural do capital pela maior exploração econômica possível do trabalho. Não é por menos que podemos considerar que:

Para ‘se proteger’ contra a serpente de suas aflições, os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão (Marx, 2013 _______. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. , p. 373-374).

As práticas de comando mais adequadas a determinado momento do desenvolvimento do capitalismo (na medida que sofre pressão tanto do impulso do capital, mas também da luta de classes, da moral 15 15 Assim como a moral atua na determinação do valor da força de trabalho, cf. Marx (2013, p. 245-246). de uma época etc.) refletem-se juridicamente. O resultado, abstrato e com ares universais é amplamente compartilhado, inclusive internacionalmente por pactos mais ou menos estáveis na forma normativo-orientadora, funcionando em seguida como pressuposto de práticas singulares. Da mesma maneira, tais práticas operam por mediação daquela forma jurídica uma vez trazida para as chamadas políticas institucionais das empresas, proporcionando alguns limites dentro dos quais operam tais práticas que, condicionadas por circunstâncias econômicas, políticas, morais etc., podem regredir independentemente da forma jurídica (um descompasso necessário e natural da própria forma jurídica em relação a sua base).

O resultado que se mostra, tomando os casos concretos e atuais, expressa apenas a forma jurídica como guia para a ação prática, quer dizer, a forma jurídica já universalizada, mas é a ação prática o seu pressuposto histórico real. No desenvolvimento, porém, o resultado (a forma jurídica) também opera como pressuposto na medida em que as práticas do capital incidentes sobre a força de trabalho pressupõe um desenvolvimento considerável de expressões jurídicas, tais como os direitos humanos ligados ao trabalho. Por isso é possível avaliar que, ao passo que essa forma jurídica aqui em questão tem as práticas da gestão capitalista como pressupostos objetivos, tais práticas operam, no singular, também por mediação daquela forma, aperfeiçoando o próprio comando da força de trabalho para o capital, ao converter tal forma jurídica em ferramentas de gestão que se realizam dentro dos limites aceitáveis à produção de mercadorias no estágio mais desenvolvido do século XX (o que não significa, é sempre importante frisar, que não possam regredir, como a proibição do direito de associação em determinados momentos políticos determinados e outras destrezas típicas do bonapartismo ou disfarçadas sob o manto democrático das autocracias burguesas institucionalizadas). Quer dizer, os direitos humanos correspondem ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, não estão à frente dele. São, mais uma vez, os direitos humanos do capital.

Numa síntese possível, temos que as práticas de comando da força de trabalho são pressupostos históricos dos direitos humanos ligados ao trabalho. Por mediação dessa forma jurídica cada vez mais desenvolvida, tais práticas deixam os momentos singular e particular, assumindo (na forma aparente de expressão dos interesses gerais e genuinamente humanos) uma universalidade sem dúvidas abstrata e heterogênea em relação a sua base. Consolidam-se, assim, certos padrões mais ou menos estáveis (jornada de trabalho, nível salarial etc., mas que podem regredir), submetidos às contingências históricas, para o funcionamento do capitalismo, ao limitar o impulso incontrolável do capital e simultaneamente preservar as contradições fundamentais que o demarca como particularidade histórica transitória. Por outro lado, são as práticas concretas que servem de mediação no movimento oposto, isto é, deixando o momento universal para se realizar no singular, dos capitais concretos, no interior da imediata contradição entre capital e trabalho em que se materializam como ferramentas de administração determinadas, do comando do capital sobre o trabalho. Nessa relação entre a forma jurídica e o comando da força de trabalho, é a segunda que desempenha o momento preponderante, o que também ajuda a explicar os recorrentes descompassos potencialmente existentes.

Também ajuda a explicar a aparente desconexão – dado o caráter abstrato e heterogêneo em relação à sua base – dos direitos humanos com qualquer forma de dominação e, igualmente, a dissolução aparente da exploração do trabalho na qual o comando da força de trabalho está inevitavelmente implicado. Se o comando da força de trabalho tendencialmente já se apresenta como algo distante da exploração do trabalho, como dissemos, em razão do fetiche da mercadoria, da forma-salário e das relações jurídicas que brotam a partir desse fetiche, essa distância se agrava por mediação do caráter heterogêneo dos direitos humanos. A reciprocidade aqui em questão confere certa “humanização” – que, de fato, não pode ser inteiramente desprezada – ao comando da força de trabalho, adicionando camadas aparentes (não necessariamente falsas) perpetuadoras das contradições fundamentais.

No entanto, todo esse movimento, do concreto ao abstrato e de volta – um movimento da realidade mesma –, não se realiza sem a mediação mais fundamental que marca com peso decisivo o campo das possibilidades no interior desse movimento, qual seja, a persistência da divisão e da luta entre as classes. Sem essa mediação, o movimento fica incompreensível e só restaria a aceitação do direito como a encarnação da razão no mundo, os direitos humanos como a realização, a única possível, da humanidade dos homens limitados à forma assalariada do trabalho.

Outros elementos certamente estão em jogo, como a concorrência entre os capitais individuais, a pressão (até mesmo moral) exercida pelos indivíduos no momento do consumo, sem mencionar o próprio corpo profissional que opera a legislação e dispositivos outros, mas transcendem muito as possibilidades da análise presente. Não obstante, fica ainda uma questão decisiva: existe algum conteúdo potencialmente contestatório nos direitos humanos ligados ao trabalho?

6. Luta de classes e igualdade concreta: breves reflexões

A classe trabalhadora tem à disposição tais direitos para exercer parcialmente sua luta. A própria forma jurídica é já resultado dessa luta histórica entre capital e trabalho. A maior prova disso nos deu a análise da forma jurídica que, de modos complexos, é condicionada por essa luta por direitos, ao trabalho, à associação etc.

Como é absurdo transformar a realidade para encontrar os meios de sua própria transformação, os homens tomam os meios já disponíveis para transformá-la ou tornados disponíveis no próprio processo. De toda forma, as mediações já precisam estar disponíveis ou em processo de construção. Na polêmica com os anarquistas no interior da primeira Internacional dos trabalhadores, Marx (1988 _______. Political indifferentism. Lawrence & Wishart, Collected Works, v. 23, 1988. , p. 394) chegou a escrever que “todas as armas com as quais lutar precisam ser tomadas da sociedade como ela é”. Poderíamos completar dizendo que no próprio movimento histórico outros meios são tornados disponíveis, meios que não estavam dados no início da atuação dos trabalhadores. Outros meios ainda podem ser conscientemente criados. Mas o fato decisivo é que não se deve abandonar as mediações existentes sob o risco do imobilismo esperançoso, que inviabiliza o movimento, poda alternativas.

A polêmica com os anarquistas girava em torno do problema da luta política, isto é, da criação ou não de um partido autônomo dos trabalhadores, procurando fundir a luta econômica e a luta política. Dados os nexos entre política e direito, em parte porque alguns direitos humanos são direitos políticos, precisamos perguntar sobre o potencial dos direitos humanos no encaminhamento da luta dos trabalhadores sem, no entanto, cair na armadilha da mera judicialização dessa luta, sem apostar na onipotência da mediação jurídica.

Lembremos de Marx (1985 MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985. , p. 114) ao comentar que é “indiscutível que a tendência à igualdade pertence ao nosso século”, referindo-se ao século XIX. A luta pela igualdade, contra o isolamento político, foi uma das bandeiras da burguesia contra os privilégios feudais nos períodos anteriores. Já no século XIX, Proudhon talvez tenha sido um dos intelectuais mais influentes em pautar as reivindicações dos trabalhadores com relação ao problema da desigualdade social, não obstante as dificuldades do autor francês em ultrapassar a consciência pequeno-burguesa que afirma a solução via perpetuação das mesmas contradições existentes. As variadas formas de desigualdade, porém, não são coisas do passado. Podemos questionar, por exemplo, a desenvoltura teórica de um Piketty (2014) PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. , se também teria ou não ultrapassado a consciência limite de seu conterrâneo do século XIX, mas dificilmente desmoronar seus dados mais centrais que provam aquilo que os trabalhadores do século retrasado tinham muito claro: a desigualdade material é diariamente engendrada pela lógica imanente da acumulação do capital. Seria possível dizer que ainda hoje “a tendência à igualdade pertence ao nosso século”? Sem dúvidas, mas incorporando também outros cortes pluriclassistas. Mas que igualdade?

Vimos que um dos pontos centrais dos direitos humanos é o “homem abstrato”; como um produto da aurora da sociedade do capital – mas não sem a mediação de formas históricas –, é a primeira vez na história da humanidade que contraditoriamente se fixa, ainda que apenas formalmente, aquilo que é comum aos homens, sua humanidade. Nessa abstração todos os homens são iguais, mas apenas nessa abstração. Cria-se uma antítese entre a mediação que prescreve um tratamento igual e a desigualdade real que opera livremente na vida material dos homens. A fórmula é, portanto, tratar formalmente como iguais os efetivamente desiguais. O formalismo se converte no objeto privilegiado e o critério fica sendo a medida da aplicação do formalismo. Assim, todos os chamados “elementos estranhados” (Marx, 2003 _______; ENGELS, F. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003. , p. 134) da vida (divisão do trabalho, capital etc.) são mais livres do que os próprios indivíduos que gozam de uma liberdade ilusória, meramente formal.

Vale à pena indicar uma passagem sem equivalentes na qual não apenas esse último aspecto é desenvolvido, mas também ajuda a explicar a aparência que a forma jurídica, em sua abstração, contribui para se consolidar.

O “estado de coisas público” moderno, o Estado acabado moderno, não se baseia, conforme entende a Crítica, na sociedade dos privilégios, mas sim na sociedade dos privilégios suspensos e dissolvidos, na sociedade burguesa desenvolvida, naquela que deixa em liberdade os elementos vitais que nos privilégios ainda se achavam politicamente vinculados. Nenhuma “determinação privilegiada ” se opõe aqui nem à outra coisa nem ao estado de coisas público. Assim como a livre indústria e o livre comércio superam a determinação privilegiada e, com ela, superam a luta das determinações privilegiadas entre si, substituindo-as pelo homem isento de privilégios – do privilégio que isola da coletividade geral, tendendo ao mesmo tempo a constituir uma coletividade exclusiva mais reduzida –, não vinculado aos outros homens nem sequer através da aparência de um nexo geral e criando a luta geral do homem contra o homem, do indivíduo contra o indivíduo, assim a sociedade burguesa em sua totalidade é essa guerra de todos os indivíduos, uns contra os outros, já apenas delimitados entre si por sua individualidade , e o movimento geral e desenfreado das potências elementares da vida, livres das travas dos privilégios. A antítese entre o Estado representativo democrático e a sociedade burguesa é a culminação da antítese clássica entre a comunidade pública e a escravidão. No mundo moderno, todos são, a um só tempo, membros da escravidão e da comunidade. Precisamente a escravidão da sociedade burguesa é, em aparência, a maior liberdade, por ser a independência aparentemente perfeita do indivíduo, que toma o movimento desenfreado dos elementos estranhados de sua vida, já não mais vinculados pelos nexos gerais nem pelo homem, por exemplo, o movimento da propriedade, da indústria, da religião etc., por sua própria liberdade, quando na verdade é, muito antes, sua servidão e sua falta de humanidade completas e acabadas. O privilégio é substituído aqui pelo direito (Marx, 2003 _______; ENGELS, F. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003. , p. 134-135)

Se “a escravidão da sociedade burguesa é, em aparência, a maior liberdade, por ser a independência aparentemente perfeita do indivíduo”, o que dizer da igualdade dessa mesma sociedade?

Engels (1971, p. 130) afirmou em relação à igualdade que “estabelecer o seu conteúdo científico é determinar, do mesmo modo, o seu valor para a agitação proletária”. É preciso impor a mudança de seu conteúdo. Como alterar a forma sem alterar o conteúdo real, as relações materiais? Não por menos, Marx (2012 _______. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 31-32) considerava que a superação do “estreito horizonte jurídico burguês” somente ocorreria com a mudança da vida concreta, com a eliminação da “subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual”, por exemplo, além de muitas outras barreiras. Trata-se do encaminhamento de um “direito desigual” que tenha no horizonte a relação necessidade-capacidade: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (Marx, 2012 _______. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 32). É preciso considerar novamente, como já indicado antes, que “o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade” (Marx, 2012 _______. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 31) e que “as relações econômicas” não “são reguladas por conceitos jurídicos”, mas que, “ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas” (Marx, 2012 _______. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 27).

É certo que não se modifica a forma sem a alteração do conteúdo real. Mas é certo também que não se pode abster inteiramente das formas já existentes, das mediações dadas na própria sociedade como ela é. Numa síntese: a modificação das relações sociais passa também pela mediação das formas dessas relações. Por isso é preciso considerar os direitos humanos como mediação contraditória em meio à luta de classes. Nesse sentido, a igualdade formal foi uma importante conquista da classe burguesa e serviu mesmo a algumas necessidades das classes trabalhadoras até certo limite que já parece ter sido alcançado, mas a conquista da igualdade concreta, da igualdade substantiva que Mészáros (2002) MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002. recorrentemente sustenta, só pode ser resultado das lutas dos trabalhadores de todo o mundo por livre acesso aos meios socializados da produção da riqueza, pela superação dos “elementos estranhados” sobre os quais a humanidade mesmo não tem qualquer controle e que funcionam anarquicamente. É importante, portanto, fazer a crítica radical dos direitos humanos, livrando a humanidade real, o livre desenvolvimento dos indivíduos, da forma do trabalho assalariado. Bem entendido, fazer a crítica radical é desvendar da raiz dos direitos humanos, revelar seu caráter de direitos humanos do capital, é pôr a igualdade concreta no horizonte prático, para além de reflexo do homem egoísta. Esse movimento pressupõe também revelar tais direitos como forma em reciprocidade às demais formas superestruturais da dominação material do capital. Pressupõe ao mesmo tempo revelar a conexão desses direitos com o comando da força de trabalho necessariamente implicado com a exploração do trabalho. Ultrapassar essas camadas aparentes somente pode ser realizada por meio de uma crítica radical que tenha na emancipação humana sua finalidade.

Os direitos humanos não podem realizar isso por si mesmos, mas isso também não se realiza sem alguma mediação de tais direitos. Os trabalhadores precisam mirar para além dos limites da forma ao compreendê-la como reflexo das condições presentes e não a realização de sua humanidade ou a essência de sua luta. A emancipação humana está para além dos direitos humanos do capital.

7. Considerações finais

É importante reconhecer os limites das questões aqui levantadas. São carentes de muitas mediações concretas que explicitem melhor os movimentos reais. Mas não devemos deixar de expor determinados aspectos em razão das deficiências circunstanciais do estudo, pois abrir caminho do conhecimento não se faz sem percalços. Reconhecê-los, porém, não os torna inexistentes.

Eventualmente essas considerações indicam outros estudos possíveis. Se tais direitos humanos se dão no interior da luta de classes, é urgente compreender em termos concretos seus limites na atuação dos trabalhadores nos movimentos contestatórios e reivindicatórios. Quais são os usos dos direitos humanos nesse movimento? Quais são os seus resultados? Determinar os usos dos direitos humanos na luta sindical e na luta política deve trazer inúmeras contribuições, sobretudo num contexto de baixa do ciclo industrial. Uma pesquisa dessa natureza pode ajudar a colocar o debate sobre o direito como mediação em outro nível, uma vez que a realidade mesma deve mostrar as condições de possibilidade dessa própria mediação. Nosso estudo é limitado nesse sentido, pois se concentra meramente no material institucional das unidades produtivas e na análise da forma jurídica mais ampla. E assim a maneira como a organização dos trabalhadores, em sentido amplo, utiliza tal mediação ficou ainda por ser explicitada.

Seria de igual valor avaliar tal mediação também nas experiências revolucionárias dos séculos XIX e XX. Tais experiências tem muito a dizer sobre isso. Temos em mente a Comuna de Paris, a revolução russa, a guerra civil espanhola. Pachukanis (1980) PACHUKANIS, E.B. Selected writings on Marxism and law. Academic Press, 1980. comentou que Lenin chegou a encaminhar processos judiciais no intuito de tensionar a luta contra os proprietários na Rússia pré-revolucionária. Cabe-nos aprofundar essas indicações, trazendo para o primeiro plano o resultado efetivo dessa mediação na luta dos trabalhadores. Parafraseando Engels, é necessário estabelecer o conteúdo científico dessa mediação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2017
  • Aceito
    02 Jun 2017
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