Acessibilidade / Reportar erro

Tratamento de lesões calcificadas com uso do dispositivo Tornus®: relato de dois casos

Treatment of calcified lesions with the Tornus® device: report of two cases

Resumos

Apresenta-se neste relato o tratamento bem-sucedido de dois pacientes com lesões coronárias complexas, calcificadas, sendo uma delas uma oclusão total crônica, na qual foi utilizado um novo dispositivo para facilitar o procedimento percutâneo.

Angioplastia transluminal percutânea coronária; Estenose coronária; Calcinose; Doença das coronárias; Cateterismo


We describe two complex cases of calcified lesions, one of which a total chronic occlusion, that were successfully treated with a new device that facilitates the percutaneous procedure.

Angioplasty, transluminal, percutaneous coronary; Coronary stenosis; Calcinosis; Coronary disease; Catheterization


RELATO DE CASO

Tratamento de lesões calcificadas com uso do dispositivo Tornus®: relato de dois casos

Treatment of calcified lesions with the Tornus® device: report of two cases

Fábio M. da Mota; Leonardo G. Zanatta; Elias J. P. Conti; Marco T. Zanetini; Ana Maria Mendelsky; Alexandre Schaan de Quadros; Rogério Sarmento-Leite; Carlos A. M. Gottschall

Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul/Fundação Universitária de Cardiologia - Porto Alegre, RS

Correspondência Correspondência: Rogério Sarmento-Leite Av. Princesa Isabel, 370 -Santana Porto Alegre, RS. CEP 90620-000 E-mail: sleite.pesquisa@cardiologia.org.br

RESUMO

Apresenta-se neste relato o tratamento bem-sucedido de dois pacientes com lesões coronárias complexas, calcificadas, sendo uma delas uma oclusão total crônica, na qual foi utilizado um novo dispositivo para facilitar o procedimento percutâneo.

Descritores: Angioplastia transluminal percutânea coronária. Estenose coronária/terapia. Calcinose/complicações. Doença das coronárias. Cateterismo/instrumentação.

SUMMARY

We describe two complex cases of calcified lesions, one of which a total chronic occlusion, that were successfully treated with a new device that facilitates the percutaneous procedure.

DescriptorS: Angioplasty, transluminal, percutaneous coronary. Coronary stenosis/therapy. Calcinosis/complications. Coronary disease/therapy. Catheterization/instrumentation.

Nos últimos anos, tem-se alcançado notável progresso no manejo percutâneo da doença arterial coronariana, principalmente pelos avanços nas técnicas e nos dispositivos desenvolvidos para abordagem de lesões complexas. Artérias coronárias com lesões intensamente calcificadas e cronicamente ocluídas têm as menores taxas de sucesso quando submetidas a tratamento percutâneo1. Neste relato, descrevemos dois casos de intervenções coronarianas percutâneas, nos quais apenas foi possível ultrapassar e tratar efetivamente a lesão-alvo com o uso do dispositivo Tornus® (Asahi Intecc, Aichi, Japão).

RELATO DOS CASOS

Caso 1

Paciente do sexo masculino, de 67 anos de idade, branco, admitido com quadro de síndrome coronariana aguda sem supradesnivelamento do segmento ST, com início de dor torácica há cerca de uma semana associada a dispnéia. Apresentava hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia e história de pneumectomia à direita há 20 anos em decorrência de tuberculose. Eletrocardiograma demonstrava ritmo sinusal, sobrecarga ventricular esquerda e alterações mistas da repolarização ventricular.

Na admissão, foram administrados antiagregantes plaquetários (ácido acetilsalicílico 300 mg/dia e clopidogrel 75 mg), heparina em dose plena e nitroglicerina endovenosa, tendo sido optado por estratégia invasiva precoce. A cineangiocoronariografia demonstrou tronco da artéria coronária esquerda com irregularidades, artéria descendente anterior (ADA) ocluída proximalmente, artéria circunflexa (ACX) com lesão excêntrica grave em seu terço proximal, comprometendo o óstio do primeiro ramo marginal, e artéria coronária direita (ACD) com ateromatose difusa e com lesão crítica no óstio do ramo interventricular posterior, permitindo enchimento total da ADA por circulação colateral. Todas as artérias apresentavam intensa calcificação. O ventrículo esquerdo tinha volume discretamente aumentado e mostrava hipocinesia ântero-septo-apical, com disfunção sistólica moderada a grave.

Inicialmente foi proposto tratamento cirúrgico. No entanto, considerando-se a acentuada afecção pulmonar (volume expiratório forçado no primeiro segundo de 680 ml - 27% do previsto - e capacidade vital forçada de 980 ml), associada a alto risco cirúrgico, optou-se por tratamento percutâneo, inicialmente com recanalização da ADA.

A angioplastia da ADA foi realizada por via femoral com introdutor valvulado 7F, cateter-guia JL4 7F, corda-guia PT2® (Boston Scientific, MA, Estados Unidos), sendo ultrapassada a lesão e posicionado o guia em sua porção distal. Foi tentada ultrapassagem do ponto de oclusão com cateter-balão SeQuent® (B Braun, Melsungen, Alemanha) 2,0 x 15 mm e Maverick2® (Boston Scientific, MA, Estados Unidos) 2,0 x 10 mm, sem sucesso, apesar de adequado suporte. Nesse ponto, o procedimento foi interrompido, tendo sido proposta nova abordagem em segundo momento com o uso do cateter Tornus®.

Após uma semana, procedeu-se à nova tentativa de angioplastia com introdutor valvulado 7F em artéria femoral comum direita, cateter XB 4 7F, e cordaguia PT2®. A artéria femoral comum esquerda também foi puncionada, usando-se introdutor 5F e cateter JR4 5F para injeção simultânea de contraste, no intuito de visualizar o leito distal da ADA e confirmar o adequado posicionamento da corda-guia em seu lúmen (Figuras 1A, 1B e 1C). Foi, então, introduzido cateter Tornus® (Figura 1D), o qual foi avançado com movimentos anti-horários, progredindo através da lesão, sem maiores dificuldades. Em seguida, o dispositivo foi retirado com movimentos no sentido horário. A injeção de controle mostrou fluxo anterógrado completo na ADA, enchendo seu leito distal. Em seguida, um cateter-balão Mercury® (Abbott, llinois, Estados Unidos) 2,0 x 15 mm ultrapassou a lesão sem resistência, sendo dilatada com 16 atm com sucesso. Na injeção seguinte, foi visualizada lesão segmentar extensa, estendendo-se até o terço médio da ADA. Foram implantados stent Genius Magic® (EuroCor, Bonn, Alemanha) 3,0 x 27 mm com 16 atm, stent Liberté® (Boston Scientific, MA, Estados Unidos) 3,0 x 32 mm com 16 atm e stent Liberté® 3,0 x 12 mm no sentido medial para proximal da ADA, respectivamente.


 




Todos os pontos de junção dos stents foram pósdilatados com altas pressões. Houve recuperação completa da luz do vaso, sem complicações, com fluxo anterógrado normal (Figura 1E). O paciente permaneceu clinicamente estável durante todo o procedimento.

Caso 2

Paciente do sexo masculino, branco, 68 anos de idade, portador de hipertensão arterial sistêmica e dislipidemia, em uso de ácido acetilsalicílico, captopril, sinvastatina, mononitrato e atenolol. Vinha com quadro de angina estável, havendo piora dos episódios de dor no último mês, acompanhado de desenvolvimento de isquemia subepicárdica em parede inferior. A cinecoronariografia evidenciou lesão calcificada excêntrica grave em ACD, ausência de lesões significativas na rede coronariana esquerda e ventrículo esquerdo sem disfunção segmentar.

Foi realizada tentativa inicial de tratamento percutâneo da lesão da ACD, o qual não obteve sucesso pela incapacidade de ultrapassar a lesão calcificada com cateter-balão de baixo perfil, Maverick® 1,5 x 10 mm, apesar de adequado suporte com cateter JR 6F e deep intubation. Optou-se por tentativa posterior de angioplastia com o uso do dispositivo Tornus®. Para tal, foi utilizado introdutor valvulado 7F em artéria femoral comum direita, cateter-guia AL2 7F, corda-guia 0,014" IQ (Boston Scientific, MA, Estados Unidos) longa (300 cm) e uso de cateter Tornus®. Depois de posicionado o cateter-guia no óstio coronariano direito (Figura 2A), a lesão foi ultrapassada com corda-guia, seguindo-se introdução do cateter Tornus®, que foi manipulado da mesma forma do caso anterior, avançando sobre a guia, sem oferecer resistência (Figura 2B). Na seqüência, realizou-se angioplastia com uso de cateter-balão semicomplacente SeQuent® (B.Braun, Melsungen, Alemanha) 2,5 x 10 mm, que não apresentou dificuldade para cruzar a lesão, permitindo seu adequado posicionamento e completa insuflação com 14 atm. Depois, foram implantados stents Liberté® 3,0 x 13 mm e 3,0 x 24 mm com 16 atm, alcançando-se sucesso angiográfico, sem estenose residual ou complicações (Figura 2C).


DISCUSSÃO

Lesões com alta carga de cálcio são consideradas de maior complexidade, pela eventual dificuldade de romper a placa com o balão ou de insuflar o stent de forma adequada1. Outro desafio são as artérias cronicamente ocluídas, que estão presentes em até 20% das angiografias diagnósticas de pacientes com cardiopatia isquêmica sintomática1,2. Como descrito no caso 1, essas lesões têm as menores taxas de sucesso com intervenções coronarianas percutâneas que qualquer outro subtipo de lesão. Somente 55% a 80% das oclusões totais crônicas são recanalizadas com sucesso em casos não-selecionados3. A causa mais comum de falha no procedimento é a incapacidade de cruzar a corda-guia além da oclusão. Além disso, mesmo após a passagem bem-sucedida do fio-guia, em aproximadamente 10% dos casos o balão é incapaz de ultrapassar ou dilatar a lesão1.

Novas técnicas e dispositivos têm sido utilizados para superar o obstáculo oferecido pelas lesões consideradas de difícil cruzamento e aumentar as taxas de sucesso, tais como: microcateteres, cateteres e fiosguia mais rígidos e com outras conformações4, abordagem com duplo fio-guia em paralelo (buddy wire)5, uso de balão de ancoragem6, técnicas ateroablativas, como o laser ou o Rotablator®(Boston Scientific,Natick, MA, Estados Unidos), e novos dispositivos, como o Tornus®7.

O cateter Tornus® foi utilizado pela primeira vez por Tsuchikane et al.7, em 14 pacientes, em lesões, em sua maioria, bastante calcificadas, que não conseguiram ser tratadas com balões de baixo perfil (1,5 mm) ou com a passagem do microcateter. Esse dispositivo foi desenvolvido para atuar em artérias coronárias muito acometidas, com lesões excessivamente calcificadas. É constituído por três partes: o eixo principal, formado por oito fios de aço entrelaçados em sentido horário; uma capa de polímero, que impede o extravasamento de sangue a partir do lúmen do eixo principal; e o conector (Figura 3). Seu diâmetro externo mede 0,70 mm (2,1F, sendo também disponível no diâmetro 2,6F) e o interno, 0,46 mm, permitindo a passagem de um fio-guia 0,014" em seu interior. A extremidade distal tem perfil de 0,62 mm (1,9F), conformação cônica nos últimos 150 mm e é formada de uma liga de aço inoxidável e platina, o que confere resistência e radiopacidade.


Com a extremidade distal encravada na lesãoalvo, por meio da rotação manual em sentido antihorário ao longo da guia 0,014", acompanhada de leve pressão contra a lesão, o cateter pode cruzar com facilidade as estenoses graves. Se a extremidade distal estiver presa, deve-se evitar girar excessivamente o cateter sob risco de fratura dessa extremidade, aliviando-se a força rotacional, deixando o dispositivo livre, e realizando alguns giros em sentido contrário para prosseguir com giros anti-horários até que a lesão tenha sido ultrapassada. Para removê-lo, deve-se realizar rotação em sentido horário, até que sua extremidade esteja livre dentro do lúmen coronariano proximal à lesão.

O Tornus® atua dando maior suporte ao fio-guia para cruzamento de oclusões, quando não há êxito na abordagem convencional, ou exercendo efeito "Dotter", nas situações em que se consegue passar o fio-guia, mas não balões de baixo perfil. Em ambos os casos apresentados não houve dificuldade em cruzar as lesões-alvo com esse dispositivo e removê-lo posteriormente.

Kirtane e Stone8, entretanto, relataram dificuldade em tratar lesão calcificada em ACD: o cateter Tornus® não progrediu através da ACD, empurrando o cateterguia para fora do óstio. Essa dificuldade foi superada com o uso da técnica de balão âncora em ramo proximal, pemitindo o adequado suporte para passagem do cateter Tornus® pela lesão e o tratamento efetivo dessa lesão.

Outras técnicas ablativas, como aterectomia rotacional com alta velocidade, são comprovadamente eficazes para lesões calcificadas9. Entretanto, necessitam que a guia própria do dispositivo (RotaWire®, Boston Scientific, FL, Estados Unidos) seja introduzida previamente, o que muitas vezes não é alcançado sem que um microcateter ultrapasse a lesão. Sendo assim, muitas lesões calcificadas não permitem a passagem do microcateter para que haja troca das guias, impedindo o uso de tal dispositivo. Além disso, estão associadas a risco aumentado de embolização distal e conseqüente no reflow, e também a alto custo do procedimento.

O cateter Tornus® mostrou, nesses casos, ser alternativa eficaz para abordagem de lesões calcificadas e oclusões em que exista dificuldade em cruzar ou dilatar a lesão com cateter-balão de baixo perfil, permitindo a subseqüente dilatação com sucesso. É de aplicação fácil e prática e deve ser considerado dispositivo alternativo para lesões de maior complexidade com excessiva calcificação, nos casos em que as técnicas convencionais falharam.

Recebido em: 20/8/2008

Aceito em: 5/11/2008

  • 1. Stone GW, Kandzari DE, Mehran R, Colombo A, Schwartz RS, Bailey S, et al. Percutaneous recanalization of chronically occluded coronary arteries: a consensus document: part I. Circulation. 2005;112(15):2364-72.
  • 2. Kahn JK. Angiographic suitability for catheter revascularization of total coronary occlusions in patients from a community hospital setting. Am Heart J. 1993;126(3 Pt 1):561-4.
  • 3. Stone GW, Reifart NJ, Moussa I, Hoye A, Cox DA, Colombo A, et al. Percutaneous recanalization of chronically occluded coronary arteries: a consensus document: part II. Circulation. 2005;112(16):2530-7.
  • 4. Saito S, Tanaka S, Hiroe Y, Miyashita Y, Takahashi S, Satake S, et al. Angioplasty for chronic total occlusion by using tapered-tip guidewires. Catheter Cardiovasc Interv. 2003;59(3):305-11.
  • 5. Burzotta F, Trani C, Mazzari MA, Mongiardo R, Rebuzzi AG, Buffon A, et al. Use of a second buddy wire during percutaneous coronary interventions: a simple solution for some challenging situations. J Invasive Cardiol. 2005;17(3):171-4.
  • 6. Fujita S, Tamai H, Kyo E, Kosuga K, Hata T, Okada M, et al. New technique for superior guiding catheter support during advancement of a balloon in coronary angioplasty: the anchor technique. Catheter Cardiovasc Interv. 2003;59(4):482-8.
  • 7. Tsuchikane E, Katoh O, Shimogami M, Ito T, Ehara M, Sato H, et al. First clinical experience of a novel penetration catheter for patients with severe coronary artery stenosis. Catheter Cardiovasc Interv. 2005;65(3):368-73.
  • 8. Kirtane AJ, Stone GW. The Anchor-Tornus technique: a novel approach to ''uncrossable'' chronic total occlusions. Catheter Cardiovasc Interv. 2007;70(4):554-7.
  • 9. Moussa I, Di Mario C, Moses J, Reimers B, Di Francesco L, Martini G, et al. Coronary stenting after rotational atherectomy in calcified and complex lesions. Angiographic and clinical follow-up results. Circulation. 1997;96(1):128-36.
  • Correspondência:

    Rogério Sarmento-Leite
    Av. Princesa Isabel, 370 -Santana
    Porto Alegre, RS. CEP 90620-000
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Recebido
      20 Ago 2008
    • Aceito
      05 Nov 2008
    Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista - SBHCI R. Beira Rio, 45, 7o andar - Cj 71, 04548-050 São Paulo – SP, Tel. (55 11) 3849-5034, Fax (55 11) 4081-8727 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: sbhci@sbhci.org.br