Acessibilidade / Reportar erro

Jackson do Pandeiro: anotações sobre o cotidiano na obra do Rei do Ritmo

RESUMO

O presente artigo, de natureza teórico, bibliográfica e fonográfico-documental, objetiva realizar uma reflexão acerca de como o cotidiano influencia as composições e as interpretações de Jackson do Pandeiro. Para isso, elegeram-se alguns traços da trajetória do músico paraibano. Para efeito do texto, recortam-se determinadas canções do artista com o intuito de demonstrar a importância do cotidiano para a obra do cantor. A título de considerações, o artigo documenta que a obra do músico, em relação dialética com a sociedade que o cria, possibilita que os receptores tenham acesso a uma potência crítica. Essa potencialidade dota os receptores de uma nova lente para interpretar o cotidiano, o qual, por sua vez, é o solo próprio de nascimento das inspirações musicais do artista. Esse conjunto de fatores levou o meio musical e parte da intelectualidade brasileira a considerar Jackson do Pandeiro o Rei do Ritmo da chamada Música Popular Brasileira (MPB).

PALAVRAS-CHAVE:
Jackson do Pandeiro; Cotidiano; Canção Popular; Música Popular Brasileira (MPB); Rei do Ritmo

ABSTRACT

The present article, which is theoretical, bibliographical as well as phonographic-documental in nature, aims to reflect on how daily life influenced Jackson do Pandeiro’s compositions and interpretations. Moments of Jackson do Pandeiro’s trajectory and excerpts of songs were selected to expose the importance of daily life for his work. The article shows that Jackson do Pandeiro’s works establish a dialectic relationship with the society that raised him, enabling listeners to access a critical potency. This potentiality grants them a new set of lenses to interpret daily life, which, in turn, is the cradle of artists’ inspiration. This set of factors led the musical sphere as well as some of the Brazilian intellectual elite to consider Jackson do Pandeiro the King of Rhythm in the Música Popular Brasileira, MPB [Brazilian Folk Music].

KEYWORDS:
Jackson do Pandeiro; Daily life; Folk Song; Brazilian Folk Music (MPB); King of Rhythm

Introdução

O presente artigo, de caráter teórico, bibliográfico e fonográfico-documental, objetiva refletir sobre como o cotidiano influencia as composições e as interpretações de Jackson do Pandeiro. Para efeito do presente texto, concentrado na canção urbana popular, que vincula letra e música, recortam-se algumas canções gravadas pelo cantor. Com base na cotidianidade vivida pela trajetória do artista, o artigo procura demonstrar a importância artística do músico e como suas criações, em relação dialética, retroagem sobre as experiências diárias das pessoas. Mesmo que de modo incipiente, aborda-se a forma como o artista interpreta suas canções, a qual, por meio de uma série de mediações impossíveis de serem tratadas no presente artigo, o leva a ser considerado o Rei do Ritmo da chamada Música Popular Brasileira (MPB).

Por intermédio de algumas letras das canções gravadas pelo artista, o artigo argumenta que Jackson do Pandeiro conseguiu expressar, de um modo particularmente especial na sua música, as circunstâncias em que nasceu e viveu. Esse modo torna sua obra instrumento de reflexão sobre a condição de existência da humanidade em um certo momento histórico e, de uma maneira peculiar, reflete a existência dos nordestinos e, consequentemente, do ser social inserido em um dado contexto de classe, de nação e de família que se vivenciou e se vivencia no Brasil.

Isso é importante, uma vez que nas décadas de 1950 e 1960 – período de maior exposição da obra do artista –, como apontam, cada um em seus termos, autores a exemplo de Romanelli (1970), Sodré (1979)SODRÉ, N. W. Síntese de história da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. e Tinhorão (1998)TINHORÃO, J. R. História social da música. São Paulo: Editora 34, 1998., uma determinada burguesia nascente optava por “transplantar” uma certa cultura estrangeira como se ela fosse originalmente brasileira. O intuito dessa endógena burguesia era marcar e demarcar um determinado traço cultural exógeno.

1 A música de Jackson e sua dialética com o tecido social

Ainda hoje é grande o contingente de famílias que migram internamente no território brasileiro. À realidade de buscar melhores condições materiais de sobrevivência se agregam outras necessidades. Nessa moldura, as fantasias espirituais mesclam-se com a materialidade da vida. Jackson do Pandeiro, ao dar forma cantada à crônica vivida no cotidiano, interpreta parte dessa contradição, pois trafega entre diversos matizes que se posicionam entre a materialidade do mundo e as fantasias espirituais.

A canção Meu enxoval, composta em parceria com Gordurinha e gravada no ano de 1958, reflete algumas das questões enfrentadas pelas pessoas que, em busca de melhores condições objetivas de sobrevivência, são impelidas a se mudarem de seus lugares de nascimento. A mudança, lamentavelmente, não assegura que mulheres, homens e crianças lançadas à migração consigam melhores condições de existência.

Essa música ilumina algumas dessas contradições. Inicialmente, a composição brinca com o desemprego. Vejamos:

Eu fui para São Paulo procurar trabalho E não me dei com o frio Tive que voltar outra vez para o Rio Pois aqui no Distrito Federá o calor é de lascar.

Em seguida, o texto leva o ouvinte a questionar sua sorte por não conseguir o desejado emprego:

E veja o meu azar: Comprei o Jornal do Brasil Emprego tinha mais de mil E eu não arranjei um só... (MEU ENXOVAL, 1958MEU ENXOVAL. Compositores: Gordurinha; José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1958. LP, lado A, faixa única.)

A narrativa, ao dialogar com anúncios jornalísticos de supostas ofertas de emprego, lamenta-se das precárias condições de vida, confirmando, por sua vez, que a migração não garante o encontro com um emprego digno, mesmo que nos marcos do atrasado capitalismo brasileiro. A contraditória moldura de desencontro entre o trabalhador e a oferta de emprego em um centro econômico de maior desenvolvimento capitalista acaba por revelar os modos de enfrentamento de como o migrante sobrevive nesse novo ambiente em que místicas promessas não são cumpridas.

Ao não se confirmar a tão esperançosa oferta de emprego, o sujeito não encontra outra saída senão apresentar outra finalidade para os periódicos cujas utilidades iniciais eram apresentar opções de emprego:

Estou dormindo ao relento, valei-me Nossa Senhora! O meu travesseiro é um Diário da Noite E o resto do corpo fica na Última Hora” (MEU ENXOVAL, 1958MEU ENXOVAL. Compositores: Gordurinha; José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1958. LP, lado A, faixa única.).

Meu enxoval não termina sem antes refletir os possíveis problemas de um retorno precoce à terra natal, que se apresenta aos conterrâneos sem as marcas de certa ascensão social. Essa chamada ascensão social é vinculada à permanência no Sudeste, que, por sua vez, reforça a defesa de uma suposta vitória de quem consegue se manter na dita cidade grande. Vejamos:

Telegrafei para a vovó Ela tem uma bodega em Recife, Pernambuco... Mas se eu voltar, aquela turma lá do Norte me arrasa Principalmente o povo lá de casa Que vai perguntar por que é que eu fui embora” (MEU ENXOVAL, 1958MEU ENXOVAL. Compositores: Gordurinha; José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1958. LP, lado A, faixa única.).

E com a mesma entonação jocosa de quem está jogando com o desemprego, para finalizar, o texto da canção justifica sua permanência no chamado Sul Maravilha:

Por isso eu vou ficando Dormindo aqui na porta do [Teatro] Municipal Com quatro mil-réis eu compro o enxoval: Diário da Noite e a Última Hora” (MEU ENXOVAL, 1958MEU ENXOVAL. Compositores: Gordurinha; José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1958. LP, lado A, faixa única.).

O drama humano das paixões vivido intensa e extensivamente é lembrado em composições como Rosa, gravada por Jackson em 1956ROSA. Ruy de Moraes e Silva. Intérprete: Jackson do Pandeiro. Rio de Janeiro, Copacabana, 1956. Disco sonoro, lado A, faixa 2.. A canção de autoria de Ruy de Moraes e Silva reflete a dialética dos encontros e desencontros de amores que, por sua desventura, são desfrutados sob o imperativo fragilizador da distância. O texto canta:

Rosa, Rosa, vem ô Rosa Estou chamando por você Eu vivo lhe procurando Você faz que não me vê Eu vivo lhe procurando E nem sinal de você. Rosa danada Minha morena faceira Minha flor de quixabeira Não posso mais esperar” (ROSA, 1956ROSA. Ruy de Moraes e Silva. Intérprete: Jackson do Pandeiro. Rio de Janeiro, Copacabana, 1956. Disco sonoro, lado A, faixa 2.).

O artista, ao indicar como se sente por não saber ler e escrever, documenta o analfabetismo adulto:

Comprei um papel florado, um envelope pra mandar dizer Numa carta bem escrita O que sinto por você A carta está demorando porque não sei escrever (ROSA, 1956ROSA. Ruy de Moraes e Silva. Intérprete: Jackson do Pandeiro. Rio de Janeiro, Copacabana, 1956. Disco sonoro, lado A, faixa 2.).

Sobre essa questão, vale o registro de que, durante a década de 1950, a taxa de analfabetismo entre pessoas com mais de 10 anos de idade no Nordeste girava em torno de 40%.

Ainda sobre a problemática do analfabetismo, o artista paraibano grava, em 1973, de José Orlando, o baião A primeira lição. Ao realizar a denúncia da lamentável condição de um enorme contingente de pessoas que não sabe ler e escrever, canta:

Avante Nordeste Norte Gente que canta Que é forte Mas alguns não sabem ler Quem souber pegue o que sabe Ensine para o seu irmão Comece desta lição (A PRIMEIRA LIÇÃO, 1973A PRIMEIRA LIÇÃO. José Orlando. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: BMG, 1973. LP, lado A, faixa 3.).

Conforme demonstra Campos (2017, p.180)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, a canção “inicia com o acordeom tocando um acorde de F7 com notas longas sustentadas e Jackson fazendo um tipo de conclamação, mostrando preocupação com o analfabetismo ainda muito presente em sua região de origem”1 1 Nessa canção, vale anotar como se estabelece a relação entre as frases cantadas e a música. Nota -se que, para dar conta das assimetria s exigidas pela letra, o intérprete precisa criar condições interpretativas para que o texto seja compreensível. Como se pode verificar, a canção não é composta por Jackson. Como em muitas outras gravações, aqui, o cantor funciona como um refletor para questões temporais que não são exclusivamente suas, senão de seu tempo histórico. O artista, por meio de sua música, dá visib ilidade a uma forma de viver que se específica em determinado período histórico. .

Assim, o texto da música canta: “Não há [gente] forte sem saber [ler e escrever]”. Com base nessa constatação e com o objetivo de resolver o problema do analfabetismo, a composição da obra propõe como alternativa as conhecidas cartilhas do ABC2 2 As Cartilhas do ABC eram constituídas de um grupo de letras que formavam palavras e frases. Elas foram muito utilizadas no Brasil para a alfabetização de crianças, jovens e adultos. Os atuais processos escolares não utilizam as cartilhas do ABC, embora em alguns casos de alfabetização de adultos, sobretudo no interior do país, elas ainda sejam usadas. :

Para os que vão aprender [a ler um recado em forma de] ABC musicado em cadência de baião Pegue o livro escute o som E acompanhe a lição (A PRIMEIRA LIÇÃO, 1973A PRIMEIRA LIÇÃO. José Orlando. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: BMG, 1973. LP, lado A, faixa 3.).

Essa lição procura seguir o modelo das antigas cartilhas muito utilizadas à época e, por intermédio da entonação sonora, o cantor ensina seu método:

ABCD / FGH / IJL / MNOPQ / RS / TUVXZ Separada as consoantes Vamos cantar as vogais Adiante vem muito mais Vou até vogar com B A E I O U Um B com A BA Um B com E BE Um B com I BI Um B com O BO Um B com U BU” (A PRIMEIRA LIÇÃO, 1973A PRIMEIRA LIÇÃO. José Orlando. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: BMG, 1973. LP, lado A, faixa 3.).

A narrativa se encerra, portanto, com o reconhecimento de que

Cantando assim pra você vou encerra meu recado Seja forte com o saber e aceite o nosso obrigado Aproveita minha gente Aprendam lê Que no meu tempo não tinha isso não” (A PRIMEIRA LIÇÃO, 1973A PRIMEIRA LIÇÃO. José Orlando. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: BMG, 1973. LP, lado A, faixa 3.).

Como registrado por Domingos Neto e Martins (2006, p.104-105)DOMINGOS NETO, M.; MARTINS, M. D. Significados do nacionalismo e do internacionalismo. Tensões Mundiais: Revista do Observatório das Nacionalidades, v. 2, n. 1, jan./jul., 2006., “A variedade e a intensidade dos fluxos migratórios verificados antes e depois da emergência das nações mostram que a afeição à terra dos pais e dos avós não sobrepuja a vontade de viver melhor”. Essa é a motivação pela qual “o lirismo do apego ao torrão natal aparece precisamente com o deslocamento geográfico, que propicia condições para a percepção das diferenças entre as culturas” (DOMINGOS NETO; MARTINS, 2006DOMINGOS NETO, M.; MARTINS, M. D. Significados do nacionalismo e do internacionalismo. Tensões Mundiais: Revista do Observatório das Nacionalidades, v. 2, n. 1, jan./jul., 2006., p.104-105). Jackson do Pandeiro registra em vários momentos de sua obra essa contradição. Destacamos duas composições de sua autoria: primeiramente Xote em Copacabana, composta em 1957XOTE EM COPACABANA. José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1957. Disco rotação 78., depois Forró em Campina, gravada no ano de 1971FORRÓ EM CAMPINA. Compositor e intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.]: Chantecler, 1971. Disco sonoro, lado B, faixa 1..

Eu vou voltar que não aguento O Rio de Janeiro não me sai do pensamento Ainda me lembro que eu fui à Copacabana E passei mais de uma semana sem poder me controlar Com ar de doido que parecia estar vendo Aquelas moças correndo de maiô à beira-mar As mulheres na areia Se deitam de todo o jeito Que o coração do sujeito Chega a mudar a pancada E muitas delas vestem Um tal de biquíni Se o cabra não se previne Dá uma confusão danada (FORRÓ EM CAMPINA, 1957).

Interessante destacar que nessa canção o compositor elege o Rio de Janeiro como fonte de suas saudades. Já na canção Forró em Campina, o cantor relembra os tempos em que vivia em Campina Grande e reforça que aprendeu a tocar pandeiro nos forrós desta cidade.

Esses são alguns dos elementos pelos quais o presente artigo entende que a obra de Jackson do Pandeiro, por estar arraigada no cotidiano de seus pares, consolida-se como narrativa de seu povo. Ou seja, a partir do hic et nunc histórico, as criações jacksonianas possibilitam que o indivíduo acesse uma potente vivência humana, possível ao reflexo mimético musical. Esse acesso, mesmo que por meio da catarse seja momentâneo, dota a pessoa que vive no dia a dia a desfrutar do patamar distinto de reflexão: a vivência estético musical. Isto é, com apoio de seus específicos elementos sonoros, esse processo possibilita que a cotidianidade possa ser refletida criticamente.

A música de Jackson do Pandeiro, submetida à dialética do que o artista vivencia em seu chão de nascimento, logra dar visibilidade a algumas das questões presentes nas experiências diárias de seus receptores. O que o músico traz de seu cotidiano, retorna ao chão social em formas artísticas, potencializando mudanças. Esse processo, sobretudo naqueles que migram do Nordeste para outras regiões do país, é absorvido em relação dialética com o tecido social. O resultado possibilita que tais pessoas, pela mediação da música, potencializem uma determinada crítica à sua condição social.

Na canção Filomena e Fedegoso, criada pelo próprio Jackson em parceria com Elias Soares, entre inúmeras outras, encontramos uma boa ilustração desse panorama.

Eu bem que sabia que esse cabra era ruim fio de Filomena não devia ser assim Filomena dá um jeito em Fedegoso tá fanhoso parecendo uma taboca passou quatro mês no Rio e vei simbora e agora tá falando carioca Gerimum ele diz que é abrobra macaxeira ele diz que é aipim arranjou mais um tal de bambolê Pra quê? Pra fazer vergonha a mim Na maleta ele butou um clichê pra dizer que veio de avião Mas eu soube que ele veio no Poconé Pois é, lá embaixo no porão Menino, uma roupa que ele diz que é gasimira tá pensando que aqui só tem maluco Ele diz que comprou no magazine Pois sim, como vai seu vuco-vuco? (FILOMENA E FEDEGOSO, 1961FILOMENA E FEDEGOSO. Compositores: Jackson do Pandeiro; Elias Soares. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Phillips, 1961. LP, lado A, faixa 1.).

No caso específico das produções jacksonianas, os seus efeitos sobrevivem na cotidianidade dos receptores. Vejamos, a título de exemplo, como os elementos vividos pelo cotidiano do artista influenciam sua obra. A música Cantiga do Sapo, para usar um caso marcante, propõe uma interpretação do passado de muitos homens e mulheres que se encontram distantes da vida de seus pares e embala sentimentos e lembranças diversas.

Quando Jackson do Pandeiro gravou ‘Cantiga do Sapo’, música em parceria com Buco do Pandeiro, na década de 1970, a inspiração partiu das lembranças infantis na terra natal: ‘É tão gostoso morar lá na roça / Numa palhoça perto da beira do rio’. O coaxo da saparia – uma verdadeira ‘toada improvisada em dez pés’ – resultou no popular refrão: ‘Tião? / Oi! / Fosse? / Fui! / Comprasse? / Comprei! / Pagasse? / Paguei! / Me diz quanto foi? / Foi quinhentos réis’ (MOURA; VICENTE, 2001MOURA, F.; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Editora 34, 2001., p.26).

A musicalidade do pandeirista articula, por intermédio do som do seu instrumento, os gritos e apelos que vêm da materialidade cotidiana com determinada entonação melódica que faz evocar sentimentos diversos em seus ouvintes. O nosso artista, por meio de suas canções e interpretações, entrega ao cotidiano um potente material que, na dialética social, cria uma área de manobra para que os receptores entendam com outras lentes a sua condição humana.

A trajetória artística de Jackson do Pandeiro mostra que suas canções e interpretações acabaram recebendo, principalmente após sua morte, destacada posição da crítica estética3 3 Em 23 de junho de 1982, véspera de São João, principal data dentro dos f estejos juninos, o cantor se apresenta na cidade pernambucana de Santa Cruz do Capibaribe. Como documentado pela biografia do artista, Jackson precisou parar o espetáculo, pois se sentiu mal. Apesar dos problemas de saúde, concluiu a apresentação. A cerca de 50 quilômetros de Santa Cruz fica Caruaru, onde, três dias depois, o pandeirista cumpriu mais um compromisso. Outra vez, o espetáculo precisou ser interrompido. O diagnóstico: infarto. Mesmo diante das recomendações médicas e dos apelos dos integrantes do Conjunto Borborema – que acompanhava o cantor – para não prosseguir com a agenda de apresentações, o artista viaja para Brasília. No dia três de julho, a Associação dos Servidores do Ministério da Educação (ASMEC), na capital do país, presencia o último ato do pandeiro do Rei do Ritmo. Ali, ele tocou seu pandeiro pela última vez! Um d ia depois, no aeroporto de Brasília , ao aguardar embarque para retornar ao Rio de Janeiro, o ritmista desmaia. Acometido pela diabetes, Jackson do Pandeiro é derrotado por uma embolia pulmonar em dez de julho de 1982 (MOURA; VICENTE, 2001). . Embora em pequena medida, a intelectualidade brasileira, algum tempo após a morte do artista, também reconheceu sua importância. Dentre os prêmios importantes que ganhou, destaca-se o Sharp de Música (em memória), homenagem especial recebida em 13 de maio de 1998, concedida por um conselho de que participavam José Maurício Micheline, Gilberto Gil, Rita Lee, Julio Medaglia, Paulo Moura, Dorival Caymmi e Zuza Homem de Mello. A obra do paraibano acabou por influenciar movimentos estéticos como, por exemplo, a Tropicália e o Manguebeat.

Outro elemento que deve ser citado como prova da influência jacksoniana na música brasileira contemporânea é o fato de sua arte ter, declaradamente, interferido na criação de muitos outros músicos. Chico Buarque, Gilberto Gil, João Bosco, Lenine, Carlos Malta, Chico César, Chico Science e Ana Carolina são alguns dos artistas que se declaram laudatórios à obra do pandeirista. À lista, no entanto, poder-se-ia acumular aos montes outros nomes.

Chico Buarque, por exemplo, canta: “Contra fel, moléstia, crime / Use Dorival Caymmi / Vá de Jackson do Pandeiro”. Essa gravação é de 1993 e está registrada no álbum Para todos, em canção que dá nome ao disco. A apreciação de Chico Buarque à obra do instrumentista nordestino, entretanto, é mais antiga. Já em 1974, no álbum Sinal fechado, aquele cantor gravara a canção Lágrima, de autoria de Jackson do Pandeiro em parceria com José Garcia e Sebastião Nunes.

Representantes da Tropicália, como Tom Zé e Gilberto Gil, estão de acordo sobre a influência que as fusões rítmicas e o tratamento interpretativo dado às sincopas incorporadas por Jackson tiveram no movimento artístico iniciado nos anos de 1960 (MOURA; VICENTE, 2005).

Já o Manguebeat, como argumenta Moisés Neto (2001)NETO MOISÉS. Chico Science: rapsódia afrociberdélica. Recife: Ilusionistas/ LivroRápido, 2001., por seu caráter original, complexo e contraditório de propor uma mistura entre o rock, o maracatu e a música eletrônica, dentre outras tendências e outros estilos musicais, mostrou-se também inspirado no “Rei do ritmo”. Chico Science, um dos líderes do movimento artístico pernambucano, declarou publicamente em diversas ocasiões a importância de Jackson do Pandeiro para sua obra. A canção Sem cabeça, gravada por Jackson em 1960, composta em parceria com Monsueto Menezes, serve de ilustração de como o paraibano influenciou o autointitulado “Homem Caranguejo”. A letra dessa canção propõe uma reflexão acerca de como os caranguejos são inteligentes. Como se sabe, o crustáceo foi considerado, pelos criadores do movimento, o símbolo do Manguebeat. Apreciemos fragmentos da letra da canção Sem cabeça:

Se caranguejo tivesse cabeça era inteligente demais Olha aí ele sem cabeça faz o que a gente não faz Ele é tão adiantado que olha pra frente Mas anda de lado Olha aí mora na lama difícil de ser pegado Caranguejo tem sua carangueja Caranguejo tem seu carangueijinho Ai ai a moda não lhe incomoda Ele não muda da água pro vinho Ele vive no seco, ele vive no molhado Caranguejo não tem cara Mas é um bicho barbado (SEM CABEÇA, 1960SEM CABEÇA. Jackson do Pandeiro; Monsueto Menezes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.]: Phillips, 1961. Disco sonoro, lado A, faixa 2.).

O cantor e compositor pernambucano Lenine (2005)LENINE. Tudo começa e termina com ele. Globo on-line. Disponível em http://goiasnet.globo.com/musica/cul_report.php?IDP=4567. Vários acessos.
http://goiasnet.globo.com/musica/cul_rep...
conta que na “época da universidade era um roqueiro convicto até o dia em que um colega colocou para tocar o disco Sua majestade o rei do ritmo, de Jackson, e ele se descobriu cantando todas as músicas na seqüência”.

No ano de 1999, Lenine registrou fonograficamente o reconhecimento. O cantor pernambucano organizou a coletânea Jackson do Pandeiro: revisto e sampleado, que traz interpretações de músicas do repertório de Jackson nas vozes de Fagner, Os Paralamas do Sucesso, Gal Costa, O Rappa, Chico Buarque, Zeca Pagodinho, Fernanda Abreu, Cascabulho, Geraldo Azevedo, Gabriel O Pensador, Zé Ramalho, Elba Ramalho, The Funk Fuckers, Renata Arruda, Sivuca, Dominguinhos e Marinês.

Alguns versos da canção Jacksoubrasileiro, composta por Lenine e gravada nessa coletânea, ilustram muito bem tal influência.

Jack Soul Brasileiro E que o som do pandeiro É certeiro e tem direção Já que subi nesse ringue E o país do swing É o país da contradição... Eu canto pro rei da levada Na lei da embolada Na língua da percussão A dança mugango dengo A ginga do mamolengo Charme dessa nação... Jack Soul Brasileiro Do tempero, do batuque Do truque, do picadeiro E do pandeiro, e do repique Do pique do funk rock Do toque da platinela Do samba na passarela Dessa alma brasileira Eu despencando da ladeira Na zueira da banguela (JACKSOUBRASILEIRO, 1999JACKSOUBRASILEIRO. Compositor e intérprete: Lenine. [s.l.]: BMG, 1999. 1 CD, faixa 1.).

A obra de Jackson do Pandeiro, como entendem os entusiastas de sua estética, a exemplo dos músicos João Bosco e Carlos Malta (ARQUIVO ‘N’, 2007ARQUIVO ‘N’. Jackson do Pandeiro. Central Globo de Jornalismo, 2007. Disponível em: https://vimeo.com/29522367. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://vimeo.com/29522367...
), aponta para a possibilidade de fusão de vários ritmos e estilos. Essa articulação, como reforçam Moura e Vicente (2001)MOURA, F.; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Editora 34, 2001., indica que a obra do pandeirista colabora para dar uma nova estampa ao que se entende por MPB.

Mesmo sendo um artista que elabora fusão musical em suas criações, misturando ritmos, estilos e temas, a relação que conecta a condição cotidiana dos nordestinos ao mundo merece ser destacada nas gravações do artista.

Um artista que se forja nas ruas, feiras, prostíbulos consegue, a partir dessa vivência, catalisar a dor e as alegrias de seus pares. Por meio de sua narrativa, denuncia, de forma velada ou direta, alguns dos vários modos de opressão de uma sociedade de classe. Essa contraditória moldura refletida pela obra de Jackson do Pandeiro lhe permite chegar aos dias de hoje com a marca da atualidade. E é também por essa autenticidade que parte da elite endógena, que o taxa de feio, exótico e caricato, o considera “Rei do Ritmo” da chamada MPB4 4 Pela importância que tem a canção Chiclete com banana para a obra do músico, optou-se por debater essa gravação em outro momento. .

2 A brincadeira da divisão: o reconhecimento como Rei do Ritmo da MPB

Ainda que a autoria do artigo não detenha o conhecimento de um especialista, pela importância que tem a divisão rítmica no modo interpretativo do cantor paraibano, a temática precisa ser apresentada e minimamente tematizada. O estilo interpretativo de Jackson é tão próprio que pesquisas de especialistas, a exemplo da investigação de Campos (2017)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
5 5 Campos (2017, p.137) adverte para “uma história que corre quase como ‘mito’, replicada em sites de Internet e também (...)” pela biografia de Jackson. Esse mito refere-se, segundo o autor, ao fato de “(...) que o próprio João Gilberto teria afirmado inspirar-se na divisão vocal de Jackson para elaborar seu estilo interpretativo com divisões e variações rítmico-melódicas, que são uma de suas marcas mais características”. O pesquisador reproduz um depoimento de Dominguinhos, no qual o acordeonista reafirma a suposta influência do paraibano sobre um dos criadores da bossa nova. , a qual recolhe um considerável conjunto de declarações de artistas, críticos, fãs e musicistas, fazem o autor chegar à seguinte inferência: a divisão rítmica é elemento fundamental para se distinguir o pandeirista no campo da música popular brasileira.

Para que nossos leitores não especialistas acompanhem o artigo com melhores condições de entendimento, apoiamo-nos em Campos (2017, p.254)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
para definir o que se entende por divisão rítmica: “(...) o modo de enunciação vocal dos versos – e mesmo de interjeições ou sons onomatopeicos – de uma canção em associação com sua melodia, em função de sua organização/disposição rítmica”.

Com base na análise musical de interpretações de Jackson do Pandeiro, Daniel Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
chega à conclusão de que o cantor usa deliberadamente a nasalidade, tornando-a marca pessoal de suas interpretações. Isso ocorre, explica o investigador, porque a ressonância do cantor “(...) é apoiada especialmente na laringe, auxiliada por uma ressonância nasal (...)” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.28).

O tamanho do artigo e seus objetivos principais não permite que se explique, suficientemente, a divisão rítmica operada pelo artista paraibano. De todo modo, indicamos, com base nas pesquisas de Laranjeira (2012, p.28)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, que o caráter fisiológico do músico colabora para que a qualidade vocal do intérprete seja metálica e nasal. Para o pesquisador, é dessa fisiologia que decorre a nasalidade, resultante das características da face do artista que, por sua vez, “possui cornetos nasais estreitos” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.28). Laranjeira (2012, p.28)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, quando observa as interpretações de Jackson, percebe que a “articulação da musculatura de face fica muito ativa, o que faz com que sua emissão esteja centrada na boca”.

O analista, ao observar duas interpretações de Jackson para Forró em Caruaru,6 6 Forró de Zé Tatu é uma gravação de Luiz Gonzaga do mesmo ano de Forró em Caruaru, composta por Zé Ramos e Jorge de Castro. Pelo texto, essa música é uma resposta à Forró em Caruaru. de Zé Dantas – a original de 1957 e um registro em vídeo de 1973 –, conclui, em relação à articulação, o seguinte: o cantor já demonstra, “a característica de destacar as sílabas umas das outras”, o que é feito com um “(...) amplo uso da musculatura de face, o que impulsiona a rítmica e dá nítida clareza de dicção” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.51). Apreciemos a letra de Forró em Caruaru:

No forró de Sá Joaninha em Caruaru Cumpade Mané Bento só faltava tu No forró de Sá Joaninha em Caruaru Cumpade Mané Bento só fartava tu Eu nunca vi, meu cumpade, forgança tão boa Tão cheia de brinquedo e de animação Bebendo na função, dançamo sem pará Num galope de matá nas alta madrugada Por causo duma danada que vei de Tacaratu Matemo dois sordado, quato cabo e um sagento Cumpade Mané Bento, só fartava tu No forró de Sá Joaninha em Caruaru Cumpade Mané Bento só fartava tu Meu limão Jisuíno grudô de uma nega Chamego de um sujeito valente, brigão Eu vi que a confusão num tardava começa Pois o cabra de punhá Cum cara de assassino Partiu pra Jisuíno, istava feito o sururu Matemo dois sordado, quato cabo e um sagento Cumpade Mané Bento, só fartava tu No forró de Sá Joaninha em Caruaru (hum!) Cumpade Mané Bento só fartava tu (tá bom) No forró de Sá Joaninha em Caruaru Cumpade Mané Bento só fartava tu Ao dotô delegado qu’é véio trombudo Eu disse que naquela grande confusão Houve apenas uns arranhão, mas os cabra morredô Nesse tempo de calô Tem a carne reimosa O véio zombô da prosa, eu fugi do Caruaru Matemo dois soldado, quato cabo e um sagento Cumpade Mané Bento, só faltava tu (FORRÓ EM CARUARU, 1955FORRÓ EM CARUARU. Zé Dantas. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: Copacabana, 1955. LP, lado B, faixa 1.).

Como se comenta nas rodas de músicos, Jackson brinca com o compasso. Para que possa desenvolver a brincadeira com o andamento das canções, é muito importante a colocação da dicção. Com o emprego da dicção, o cantor consegue brincar também com o sotaque, ou melhor, misturá-lo. O intérprete, como verifica Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, consegue oscilar entre o uso de dois sotaques: o nordestino e o sudestino. As observações sobre as gravações de Forró em Caruaru permitem a Laranjeira (2012, p.53)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
escrever o seguinte:

Tanto que já na primeira exposição do refrão ele canta “faltava” e o coro repete como “faRtava”. Nas demais vezes, ele prefere usar essa segunda variante, à exceção do compasso 74, em que ele usa novamente “faltava”.” Em palavras, como “soldado” o cantor repete o recurso, ou seja, “há a mesma oscilação de pronúncia: ora ele usa a linguagem padrão, ora usa “soRdado” ou ainda “sodado” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.53).

Já a expressão ‘folgança’, que aparece apenas uma vez no texto, o cantor pronuncia ‘foRgança’.

Nas palavras do especialista percebe-se como Jackson do Pandeiro canta brincando com as sílabas. Observemos:

No compasso 46, a sílaba “nhá” de “punhá” (punhal) é falada, e não cantada. Todas as vezes em que Jackson do Pandeiro canta outro trecho (“matemo dois sordado, quato cabo e um sagento”, nos finais de estrofes) ele se utiliza do mesmo recurso, minimizando a melodia – até por que, neste caso, são alturas iguais, repetidas. Quando de uma execução posterior desse mesmo trecho, no compasso 71, o intérprete enfatiza uma articulação non legato, chegando a fazer um claro staccato, diferentemente das outras vezes em que esses versos são cantados. Sobre essa articulação silábica, ainda é possível ressaltar o compasso 60, no qual ele canta a palavra “ao” destacando claramente as sílabas (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.54).

As interpretações do ritmista possibilitam a criação de um espaço de diálogo entre o cantor e o coro que o acompanha. Esse diálogo de lúdica tensão leva Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
a entender sua função como a condição de construir no receptor uma determinada imagem cênica. Para o pesquisador, a utilização de interjeições e de palavras inexistentes no texto da canção reforça a criação desse espaço de jogo, tensão e ludicidade, no qual o receptor imagina a performance cênica. Nos compassos 54 a 57 e no compasso 10032 da interpretação de Forró em Caruaru, como demonstra o investigador, pode-se perceber a presença desse recurso interpretativo de Jackson do Pandeiro.

O artista nordestino, com a utilização desses recursos interpretativos associados à articulação da voz com os gestos, sugere “informalidade, proximidade, interface, interação” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.54). Isso leva o receptor a imaginar que a interpretação ocorre naquele momento, ou seja, ao vivo. A recepção, com isso, pode sentir o desencadeamento de sentimentos como “desdém, riso, compreensão (de algo que está sendo dito), ou mesmo tristeza”, criando nos receptores “a imagem facial e, por vezes, corporal correspondente a esses estados emocionais” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.54)7 7 Por exemplo, escreve Laranjeira (2012, p.54), “as notas repetidas sugerem um estilo diseur [declamador], falado, que lembra os repentistas e emboladores do Nordeste quando improvisam longos textos”. . O autor, sobre a destreza de palco do cantor paraibano, acrescenta o seguinte:

Nas performances de Jackson do Pandeiro, tanto ao vivo quanto em fonogramas, é possível perceber o frequente uso de interjeições e “adendos” que não estavam previstos nas letras originais, de maneira sempre improvisada. Aliado a isso, em gravações, é uma característica importante dele o uso de uma voz quase falada, no intuito de aproximarse do universo imagético e “ruidoso” das performances ao vivo (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.100).

A explicação que a investigação desse autor apresenta acerca de como o cantor desloca a acentuação rítmica em relação à letra da canção “(...) sem, no entanto, perder a noção de pulso” é a seguinte: “Esse deslocamento do texto, para frente ou para trás, em relação à métrica, sugere ao ouvinte uma ‘insubordinação’ do cantor em relação ao pulso e ao acompanhamento instrumental” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.54). O deslocar para frente e para trás do texto em relação à métrica é o que leva músicos e críticos, quando debatem essa insubordinação, a considerarem que Jackson brinca com o ritmo. Para usarmos a expressão de Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, o cantor brinca com a divisão rítmica. A escolha de Jackson por gravar canções que usam em seu texto muitas sílabas, possibilita-lhe cantar em andamento rápido, o que, como entende Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, potencializa o ritmo da interpretação.

Diante da impossibilidade de aprofundar como o músico nordestino opera sua divisão rítmica, importa, ao menos em grandes linhas, emoldurar o cenário econômico-social que o artista conviveu em sua trajetória. Esse aspecto é importante, uma vez que os elementos culturais são alavancados pelo desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que desaguam seus resultados sobre a própria economia. Adverte-se, com efeito, que a relação entre a cultura e a economia jamais pode ser interpretada de forma mecânica, senão dialética.

Com essa advertência e seguindo as necessidades específicas do presente artigo, é relevante, ainda que de modo bem sintético, situar a formação do cantor em relação ao que ficou conhecido como “era do rádio”. Sobre a chegada do rádio em Campina Grande, recorremos à pesquisa de Campos (2017, p.57)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, uma vez que o autor registra, sobre a difusão radiofônica nessa cidade, o seguinte: “Na década de 1940, o rádio já chegava com mais força à Campina Grande, e Jack ouvia muitas das novidades musicais vindas da capital do país, o Rio de Janeiro, pelas retransmissões realizadas por emissoras das cadeias associadas”. No que se convencionou chamar de era do rádio, pode se dizer, ainda nas letras dessa investigação, que o

samba e a marcha carnavalesca vinham com muita força, mas também um pouco de choro, de tango, de jazz, entre outros gêneros, nas vozes dos cantores e cantoras que se apresentavam nos programas do início do período que ficou conhecido como a ‘Era do Rádio’, no Brasil (CAMPOS, 2017CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, p.57).

Desse modo, o artista paraibano entrou em contato com Manezinho Araújo, considerado o “Rei da Embolada”, e Jorge Veiga, conhecido como o “Caricaturista do Samba”. Como adverte Campos (2017, p.57)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, esses dois nomes não eram os “(...) artistas de maior renome da época”, mesmo assim, desfrutaram de considerável sucesso de público.

Não se pode deixar de fora da moldura formativa do cantor, as feiras, as praças públicas, os bares, os cabarés, mas também os terreiros de macumba e os prostíbulos, entre outros espaços que forjaram sua capacidade de criação e de interpretação. Ao se tornar artista, como escreve Campos (2017, p.33)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, “muitas dessas experiências foram recuperadas por ele e inseridas em seu repertório”. Isto é, quando Jackson do Pandeiro tem contato com a era do rádio, já trazia em sua bagagem musical elementos que lhe permitiram articular o que aprendeu do rádio com outros elementos presentes em sua formação musical.

Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
observa que, possivelmente sob a influência da era do rádio, Jackson do Pandeiro aprendeu a usar em suas interpretações a consoante alveolar, por exemplo, o “r”. A utilização desse recurso possibilita que o cantor, ao pronunciar o “r”, crie uma multiplicidade de vibração, que é fertilizada, por sua vez, pelo apoio da ressonância na laringe e pela ressonância da nasalidade. O pesquisador usa como exemplo para demonstrar suas inferências a canção Forró em Campina: “quando o cantor pronuncia, por exemplo, ‘foRRó’, quando pronuncia ‘BoRburema’, destaca a vibrante múltipla alveolar. Já nos finais de palavra, o ‘r’ tende a ser suprimido (como em ‘floR’ e ‘choraR’, pronunciados ‘flô’ e ‘chorá’)” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.74).

As interpretações do cantor paraibano, segundo esse autor, mesmo quando o grupo que o acompanha é composto por poucos instrumentistas, sugerem aos receptores que o cantor faz parte de uma orquestração. A impressão trafegada pela interpretação chega para a recepção como se o resultado fosse de uma orquestra. Isso ocorre pelo fato de o cantor executar suas interpretações relacionando-se, diretamente, com o acompanhamento. Ao operar essa relação, Jackson do Pandeiro funde o som que canta com o que o acompanha. Os efeitos desse processo nos receptores é como se eles estivessem diante de uma orquestração que acompanha um cantor (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
).

Para deixar essa explicação mais clara, Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
arrisca uma comparação com a música erudita. Jackson do Pandeiro, na analogia com a música clássica, “comporta-se como um camerista, que sabe a importância exata de cada componente de uma orquestração” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.102). Essa comparação leva o autor a adiantar que muitos dos arranjos introdutórios das músicas do cantor eram criados por ele próprio. Jackson, para esse investigador, com base em declaração de Severo – acordeonista que acompanhava o ritmista – solfejava o que desejava para os músicos que o acompanhavam.

Uma das maiores marcas do intérprete, ainda conforme a pesquisa de Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, é a preocupação com o andamento do fluxo rítmico, com a manutenção da pulsação. Essa preocupação impõe ao cantor priorizar a utilização das semicolcheias contínuas; ou seja, “com as sílabas sendo cantadas de maneira non legato, chegando, em alguns momentos, a executar staccatos, em consonância performática com os instrumentos de percussão constantes no acompanhamento de suas canções” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.103). Essa observação possibilita ao autor concluir o seguinte: “As melodias apresentam, nesse caso, grande número de notas repetidas. Em outros momentos, é muito comum o uso de arpejos na melodia, elemento que faz referência à música instrumental” (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
, p.103).

A síntese de Laranjeira (2012, p.98-99)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
sobre a forma interpretativa do cantor paraibano é a seguinte:

Jackson do Pandeiro acentua esse “recorte” das consoantes, através do amplo uso de articulação de face, com a clara intenção de enfatizar e fundir sua voz ao macrorritmo8 8 Laranjeira (2012, p.10) explica que “Macrorritmo – ritmo geral, de toda a estrutura sonora, que sincroniza as articulações no tempo da fala/canto com os jogos de duração dos diversos instrumentos que compõem o arcabouço sonoro da peça em questão”. que está sendo executado. Além disso, enquanto “ataque rítmico”,9 9 Laranjeira (2012, p.98) esclarece, com base na teoria musical produzida por Luiz Tatit, que “as consoantes ‘se transformam em ataques rítmicos’ e ‘recortam a sonoridade da voz, tornando-a inteligível’”. o uso das consoantes favorece os deslocamentos de acentuação que fazem parte da estética de Jackson do Pandeiro. A opção dele será, de maneira geral, por melodias com muitas notas repetidas e/ou com muitos arpejos. Em poucos fonogramas ele faz uso de notas longas, sendo restrito o uso de portamentos. Em Jackson do Pandeiro, o deslocamento dos acentos rítmicos ocorre na intenção de criar uma certa “instabilidade” quanto à pulsação, chamando o ouvinte a atentar para a relação entre a melodia cantada e os ostinatos e combinações rítmico-melódicas efetivados pelo acompanhamento como um todo.

As interpretações de Jackson do Pandeiro enfatizam a macrorrítmica. Essa ênfase, em diversos momentos, aproxima o cantor paraibano da voz falada, arremata Laranjeira (2012)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
.

Outra pesquisa a analisar a divisão em Jackson é a de Campos (2017)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
. Esse autor, que tem formação em música, após observar algumas interpretações do cantor, verifica determinados traços marcantes em suas performances vocais. Para o musicista, Jackson do Pandeiro usa o procedimento de antecipar ou retardar a enunciação dos versos das canções, provocando determinados deslocamentos na acentuação das melodias e das sílabas poéticas. O cantor acresce pequenas palavras ao canto, chamadas de “cacos”, “isto é, de interjeições, monossílabos, frases, ou ainda sons onomatopeicos, acrescentados em forma de ‘improvisação’ ao texto das canções, em geral, no início dos versos cantados, também provocando deslocamentos rítmico-melódicos” (CAMPOS, 2017CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, p.309). Com o uso de células rítmicas distintas e a utilização recorrente de síncopas, ainda segundo esse autor, o intérprete logra variações em suas interpretações, ou seja, não repete a mesma interpretação.

O músico Jarbas Mariz, que conviveu com Jackson durante turnê do projeto Pixinguinha, em entrevista concedida a Cláudio Campos (2017, p.314)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, confirma que o ritmista “Tocava hoje, a mesma música, amanhã... ele dividia também, mas, diferente, sempre tinha uma celulazinha diferenciada”. O investigador reforça que, por meio de performances tecnicamente habilidosas e competentes, é preciso levar em conta que a “(...) concepção poética/criativa de Jackson que busca a ‘diferença’, a ‘não-repetição’” está presente em outras formas da chamada cultura popular tradicional, como o “(...) coco e de vertentes do samba, como o ‘samba de breque’ e o ‘samba de partido alto’, especialmente enquanto formas de cultura popular tradicional” (CAMPOS, 2017CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, p.310).

O resultado da obra de Jackson do Pandeiro, seu canto, dança, toque no pandeiro, composições, performances, entre outros elementos, possibilitou ao artista influenciar decisivamente o que se conceitua como MPB. Esse processo, contudo, não ocorre de modo linear, mecânico e contínuo, senão pleno de contradições. No plano ontológico, o caminho construído pela obra do ritmista foi sinuoso e repleto de oscilações.

Notas conclusivas

A repercussão da morte de Jackson do Pandeiro, para a mídia da hora, não foi considerada uma notícia que merecesse grande repercussão. Pode até ser dito, como constam as pesquisas de Campos (2017)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
e Moura e Vicente (2001)MOURA, F.; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Editora 34, 2001., cada uma a seu modo, que o obituário do cantor não trouxe uma marcante comoção social. Sua importância, contudo, com o passar de alguns poucos anos, ganhou destacada posição no campo da chamada MPB. A crítica musical, as poucas pesquisas dedicadas à história da música e principalmente aos músicos, começaram a desvelar a relação que o cantor manteve com a estruturação da música brasileira da segunda metade do século XX em diante.

Para alegria dos fãs e seguidores, cerca de duas décadas após sua morte, inúmeras homenagens, sobretudo no Nordeste e destacadamente no estado da Paraíba, começam a surgir em torno da importância da figura do Rei do Ritmo. A trajetória artística, a obra e a vida do artista de Alagoa Grande passam a ser vistas com destacada relevância. A biografia publicada por Fernando Moura e Antônio Vicente, em 2001MOURA, F.; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Editora 34, 2001., é um marco na recuperação da imagem do artista, mas muitas outras iniciativas, principalmente no campo artístico, passam a ocupar o espaço midiático, a exemplo de inúmeras homenagens ao cantor: “inclusive, regravando muitas das canções do repertório de Jackson do Pandeiro ou mesmo criando músicas em homenagem a ele, como é exemplo Jack Soul Brasileiro, de Lenine, entre tantas outras” (CAMPOS, 2017CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
, p.225).

As notas conclusivas não pretendem e nem têm como fechar todas as lacunas abertas ao longo da exposição. Pela importância artística do pandeirista e pelo tamanho de sua obra, um artigo só não basta, tampouco dois, três, uma dezena... Não obstante a constatação da importância dessa personagem e de suas criações para o nascimento, desenvolvimento e consolidação da considerada MPB, a obra do músico é pouquíssimo estudada. Fecha-se o artigo, portanto, destacando elementos já discutidos, ainda que de forma sintética, para construir algumas interligações que potencializem o fechamento da leitura. Sublinhar-se-á aquilo que, segundo a autoria, possibilita o caminhar de retorno à trajetória de Jackson do Pandeiro.

A música, necessário repetir, assim como as outras artes, brota das necessidades sociais. Para que essa necessidade seja atendida, a humanidade, por meio da subjetividade artística, cria determinada mediação que possa contemplar os anseios sociais. A característica específica da mediação sonora musical, ou seja, a “linguagem” específica da música, é depurar as impurezas da cotidianidade, eliminar o máximo que se possa as heterogeneidades do cotidiano. A música, para realizar esse filtro, para se expressar musicalmente, precisa duplicar o reflexo mimético que vem da realidade cotidiana.

Com o ouvido educado pelas ruas, feiras, praças, bares, cabarés, terreiros de macumba, dentre outros espaços de sua vivência, o ritmista incorpora elementos diversos à sua arte. Há de se considerar que a era do rádio lapida ainda mais a audição do artista. Tais elementos, ao serem articulados com a gestualidade e a movimentação cênica, adquirida pela paixão ao cinema, possibilita que o artista paraibano logre grande performance interpretativa (LARANJEIRA, 2012LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
). A partir de sua vivência, portanto, Jackson do Pandeiro, pela mediação da música, catalisa dialeticamente alguns dos problemas da vida humana, possibilitando que seus receptores ganhem uma lente para criticar o mundo que os cerca.

  • CNPq, Proc. 306477/2018-1
  • 1
    Nessa canção, vale anotar como se estabelece a relação entre as frases cantadas e a música. Nota -se que, para dar conta das assimetria s exigidas pela letra, o intérprete precisa criar condições interpretativas para que o texto seja compreensível. Como se pode verificar, a canção não é composta por Jackson. Como em muitas outras gravações, aqui, o cantor funciona como um refletor para questões temporais que não são exclusivamente suas, senão de seu tempo histórico. O artista, por meio de sua música, dá visib ilidade a uma forma de viver que se específica em determinado período histórico.
  • 2
    As Cartilhas do ABC eram constituídas de um grupo de letras que formavam palavras e frases. Elas foram muito utilizadas no Brasil para a alfabetização de crianças, jovens e adultos. Os atuais processos escolares não utilizam as cartilhas do ABC, embora em alguns casos de alfabetização de adultos, sobretudo no interior do país, elas ainda sejam usadas.
  • 3
    Em 23 de junho de 1982, véspera de São João, principal data dentro dos f estejos juninos, o cantor se apresenta na cidade pernambucana de Santa Cruz do Capibaribe. Como documentado pela biografia do artista, Jackson precisou parar o espetáculo, pois se sentiu mal. Apesar dos problemas de saúde, concluiu a apresentação. A cerca de 50 quilômetros de Santa Cruz fica Caruaru, onde, três dias depois, o pandeirista cumpriu mais um compromisso. Outra vez, o espetáculo precisou ser interrompido. O diagnóstico: infarto. Mesmo diante das recomendações médicas e dos apelos dos integrantes do Conjunto Borborema – que acompanhava o cantor – para não prosseguir com a agenda de apresentações, o artista viaja para Brasília. No dia três de julho, a Associação dos Servidores do Ministério da Educação (ASMEC), na capital do país, presencia o último ato do pandeiro do Rei do Ritmo. Ali, ele tocou seu pandeiro pela última vez! Um d ia depois, no aeroporto de Brasília , ao aguardar embarque para retornar ao Rio de Janeiro, o ritmista desmaia. Acometido pela diabetes, Jackson do Pandeiro é derrotado por uma embolia pulmonar em dez de julho de 1982 (MOURA; VICENTE, 2001MOURA, F.; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Editora 34, 2001.).
  • 4
    Pela importância que tem a canção Chiclete com banana para a obra do músico, optou-se por debater essa gravação em outro momento.
  • 5
    Campos (2017, p.137)CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538. Acesso em: 23 jan. 2022.
    https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
    adverte para “uma história que corre quase como ‘mito’, replicada em sites de Internet e também (...)” pela biografia de Jackson. Esse mito refere-se, segundo o autor, ao fato de “(...) que o próprio João Gilberto teria afirmado inspirar-se na divisão vocal de Jackson para elaborar seu estilo interpretativo com divisões e variações rítmico-melódicas, que são uma de suas marcas mais características”. O pesquisador reproduz um depoimento de Dominguinhos, no qual o acordeonista reafirma a suposta influência do paraibano sobre um dos criadores da bossa nova.
  • 6
    Forró de Zé Tatu é uma gravação de Luiz Gonzaga do mesmo ano de Forró em Caruaru, composta por Zé Ramos e Jorge de Castro. Pelo texto, essa música é uma resposta à Forró em Caruaru.
  • 7
    Por exemplo, escreve Laranjeira (2012, p.54)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
    https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
    , “as notas repetidas sugerem um estilo diseur [declamador], falado, que lembra os repentistas e emboladores do Nordeste quando improvisam longos textos”.
  • 8
    Laranjeira (2012, p.10)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
    https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
    explica que “Macrorritmo – ritmo geral, de toda a estrutura sonora, que sincroniza as articulações no tempo da fala/canto com os jogos de duração dos diversos instrumentos que compõem o arcabouço sonoro da peça em questão”.
  • 9
    Laranjeira (2012, p.98)LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance. 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full. Acesso em: 20 mar. 2021.
    https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
    esclarece, com base na teoria musical produzida por Luiz Tatit, que “as consoantes ‘se transformam em ataques rítmicos’ e ‘recortam a sonoridade da voz, tornando-a inteligível’”.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

  • A PRIMEIRA LIÇÃO. José Orlando. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: BMG, 1973. LP, lado A, faixa 3.
  • ALÔ CAMPINA GRANDE. Severino Ramos. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Alvorada, 1977. Disco Sonoro, lado A, faixa 6.
  • ARQUIVO ‘N’. Jackson do Pandeiro Central Globo de Jornalismo, 2007. Disponível em: https://vimeo.com/29522367 Acesso em: 23 jan. 2022.
    » https://vimeo.com/29522367
  • CAMPOS, C. H. A. Jackson do Pandeiro e a música popular brasileira: liminaridade, música e mediação. 2017. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538 Acesso em: 23 jan. 2022.
    » https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150538
  • DOMINGOS NETO, M.; MARTINS, M. D. Significados do nacionalismo e do internacionalismo. Tensões Mundiais: Revista do Observatório das Nacionalidades, v. 2, n. 1, jan./jul., 2006.
  • FILOMENA E FEDEGOSO. Compositores: Jackson do Pandeiro; Elias Soares. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Phillips, 1961. LP, lado A, faixa 1.
  • FORRÓ EM CAMPINA. Compositor e intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.]: Chantecler, 1971. Disco sonoro, lado B, faixa 1.
  • FORRÓ EM CARUARU. Zé Dantas. Intérprete: Jackson do Pandeiro [s.l.]: Copacabana, 1955. LP, lado B, faixa 1.
  • JACKSOUBRASILEIRO. Compositor e intérprete: Lenine. [s.l.]: BMG, 1999. 1 CD, faixa 1.
  • LÁGRIMAS. Jackson do Pandeiro; Sebastião Nunes; José Garcia. Intérprete: Chico Buarque. [s.l.]: Phillips, 1974. 1 CD, faixa 6.
  • LARANJEIRA, D. J. A identidade vocal de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em performance 2012. Dissertação (Mestrado em Música). Centro de Ciências Humanas, Letras Artes, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full Acesso em: 20 mar. 2021.
    » https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/6615?mode=full
  • LENINE. Tudo começa e termina com ele Globo on-line. Disponível em http://goiasnet.globo.com/musica/cul_report.php?IDP=4567 Vários acessos.
    » http://goiasnet.globo.com/musica/cul_report.php?IDP=4567
  • MARX, K. O capital: crítica à economia política. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1996. (Coleção Os Economistas).
  • MEU ENXOVAL. Compositores: Gordurinha; José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1958. LP, lado A, faixa única.
  • MOURA, F.; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Editora 34, 2001.
  • NETO MOISÉS. Chico Science: rapsódia afrociberdélica. Recife: Ilusionistas/ LivroRápido, 2001.
  • PANDEIRO. J. A música brasileira deste século: por seus autores e intérpretes. SESC, São Paulo, 1996.
  • PARA TODOS. Compositor e intérprete: Chico Buarque. [s.l.], BGM, 1993. 1 CD, faixa 1.
  • ROMANELLI, O. O. História da Educação no Brasil Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
  • ROSA. Ruy de Moraes e Silva. Intérprete: Jackson do Pandeiro. Rio de Janeiro, Copacabana, 1956. Disco sonoro, lado A, faixa 2.
  • SEM CABEÇA. Jackson do Pandeiro; Monsueto Menezes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.]: Phillips, 1961. Disco sonoro, lado A, faixa 2.
  • SODRÉ, N. W. Síntese de história da cultura brasileira Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
  • TINHORÃO, J. R. História social da música São Paulo: Editora 34, 1998.
  • XOTE EM COPACABANA. José Gomes. Intérprete: Jackson do Pandeiro. [s.l.] Copacabana, 1957. Disco rotação 78.

Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O artigo analisa a obra de um importante músico da cultura popular brasileira cuja obra, de tempos em tempos, é retomada como alimento criativo de muitos movimentos da cultura musical brasileira. Como hipótese inicial apresenta a ideia de que a obra do artista se tornou uma espécie de semente para a chamada MPB.

Tal hipótese é discutida em dois momentos distintos. Na primeira parte, discutem-se os vínculos da obra com a realidade social da migração nordestina para o Sudeste, seguindo, para isso, o caráter da denúncia dos problemas que o migrante encontra nas metrópoles do sul. Na segunda, dedica-se à análise musical propriamente dita. Em ambos os casos, adota uma fundamentação teórica específica: Lukács na primeira e Laranjeira e Campos na segunda. As duas partes, contudo, não se articulam, e a hipótese se perde. Em vez de servir-se dos teóricos para examinar a hipótese, procurou-se utilizar a obra para demonstrar as teorias.

Considerando a importância do tema e o importante material de pesquisa apresentado, o presente parecer optou por oferecer à/ao autor/a algumas recomendações.

1. Adotar uma postura analítica que parta do talento criativo do artista sem submetê-lo ao viés da teoria. Nesse caso, sua obra não seria objeto de demonstração e sua visão de mundo não seria um mero registro como se afirma no resumo e no texto. Afinal, “registro” não cabe ao processo emancipatório de autoconsciência.

2. A contextualização é sempre importante, sobretudo em suas diferentes articulações da experiência, da história sociocultural e não apenas dos problemas econômicos. Ao orientar-se pela noção lukacsiana da “práxis” e no reflexo o autor afirma algumas generalidades que incorrem em falácias: ver a afirmação na passagem da p.1 para a p.2.

3. Ficou difícil de entender o importante processo de autoconsciência do artista com base apenas no critério do reflexo lukacsiano de classe. Afirma que o artista é intérprete da contradição (p.2), mas o limite no econômico perde o contexto político.

4. Viculado a esse limite, afirma-se que (p.4) “a ideologia da ascensão social” reforça a “ideologia do vencedor”. A premissa pode até ser pertinente, mas a ausência de referência ao quadro político (geopolítico, na verdade) compromete tal pertinência. Ignora-se que, sem trabalho nem perspectiva de vida e de realização de habilidade, de sonhos, de condições de vida digna, a migração/imigração é uma esperança. Basta olhar o contexto geopolítico do mundo contemporâneo que se desdobra em nossa atualidade. O que se afirmou na p.5 é emblemático:

5. “Como registrado por Domingos Neto e Martins, (2006, p.104-5): “A variedade e a intensidade dos fluxos migratórios verificados antes e depois da emergência das nações como a movimentação geoplolítica inaugurada no século XVI é difícil entender a que emergência de nações se refere mostram que a afeição à terra dos pais e dos avós não sobrepuja a vontade de viver melhor”. Internamente, ou seja, em relação às migrações internas, são os governos que alimentam a noção de sacralização do território, isto é, há um estímulo estatal ao apego afetivo da população ao território de origem, afirmação descontextualizada: a que se refere? A que governos? A que contextos de origem? Essa é a motivação, entendem aqueles autores quais?, pela qual, “o lirismo do apego ao torrão natal aparece precisamente com o deslocamento geográfico, que propicia condições para a percepção das diferenças entre as culturas” (DOMINGOS NETO; MARTINS, 2006, p.104-105).

6. Tal prisão ao imediatismo de uma visão sociológica muito estrita leva a uma outra afirmação limitada criadora de uma incongruência. Refiro-me ao que se afirma sobre o analfabetismo (p.4): “a canção ‘inicia com o acordeom tocando um acorde de F7 com notas longas sustentadas e Jackson fazendo um tipo de conclamação, mostrando preocupação com o analfabetismo ainda muito presente em sua região de origem’”. Uma leitura atenta a esta frase revela quão enganosa é sua premissa, pois a falta de domínio do alfabeto não impediu ao artista o domínio de outros signos para a construção e exercício de linguagem. O artista aprendeu a ler signos sonoros. Insistir no argumento da contradição é perder a riqueza do exercício semiótico de aprendizado que o artista realizou dos signos sonoros da música, geradores de uma tradição de “cancionistas” (Tatit). As notas das cordas do violão escreveram grande parte desse cancioneiro. Veja o que se escreve a seguir, argumentando o que acabo de anotar.

7. A submissão da obra artística à teoria pode impedir de ver aspectos importantes. Um trecho que merece revisão é o que se segue, cito: “ao registrar a memória social, ao mesmo tempo soergue os sujeitos imersos na cotidianidade. Ou seja, a partir do hic et nunc histórico, as criações jacksonianas possibilitam que o indivíduo acesse o mais alto nível do humanamente vivenciável é isso mesmo? Submeter a criação estética ao sociologismo pode levar a certos estigmas, como esse do “mais alto nível do humanamente vivenciável”. Esse acesso, mesmo que momentâneo, por meio da catarse, tira a pessoa que vive do dia a dia concreto e a eleva à condição de desfrutar do patamar de vivência do ser inteiramente humano. Não seria o contrário? Por que somos humanos, temos potencial capacidade de vivenciar o paroxismo do humano? Isto é, com apoio no meio homogêneo da canção popular, a obra purifica e lapida o cotidiano, o que significa? Elimina contradição? É isso? possibilitando que a cotidianidade possa ser refletida de modo radicalmente crítico”. Deixei as cores para ressaltar minhas questões.

8. Também sinto necessidade de uma reflexão sobre o que se afirma no fragmento: “A música de Jackson do Pandeiro, por dar visibilidade a algumas das questões presentes no cotidiano de seus receptores, sobretudo aqueles que migram do Nordeste para outras regiões do país, funciona como um alimento espiritual”. (p.6) Acho muito complicado argumentar nesses termos, ignorando o quadro político-institucional do país e o florescimento da indústria cultural que se alimentou do manancial criativo do artista popular na música. Há uma relação dialética: o artista que vem e traz seu universo cultural que retorna na forma de arte (música, literatura, cinema etc.), mudando o quadro das relações sociais. Além disso, potencializa outras movimentações, como o artigo reconhece a respeito de outras gerações. Já temos mais de um século de história nesse sentido, por isso vale a pena considerar essa dialética.

9. Repete a mesma linha de raciocínio na p.7, cito: “O nosso artista, ao criar o seu campo homogêneo, eleva esse cotidiano acima da prática imediata, possibilitando, através de suas canções e interpretações, o registro da autoconsciência humana”. A hipótese é convincente, mas o argumento não: faltam fundamentos no automatismo das relações. Autoconsciência não se liga a imediatismos mas a processos de uma profunda modificação de pensamento, daí seu caráter emancipador.

10. Eu tenho dúvidas do que se afirma (p.9-10): “Por meio de sua narrativa, denuncia, de forma velada ou direta, alguns dos vários modos de opressão de uma sociedade de classe. Essa contraditória moldura refletida pela obra de Jackson do Pandeiro lhe permite chegar aos dias de hoje com a marca da atualidade”. Penso exatamente o contrário: se o artista não tivesse explorado seu talento musical para além das convenções e limites sociais, sua obra não teria criado algo verdadeiramente novo e tampouco seria um manancial criativo para outras gerações. Denúncia não garante criatividade. “E é exatamente por essa autenticidade que parte da atrasada elite endógena, que o taxa de feio, exótico e caricato, o considera ‘Rei do Ritmo’ da chamada MPB”. Se isso é realmente o que sustenta toda a importância do artista, o artigo nega o seu talento, sua criatividade, sua inventividade, em nome de um falso vínculo com a elite? Quer dizer, se a elite não fosse atrasada, a obra dele não teria a menor importância? É isso mesmo? Se é, toda a parte 2 que se segue não faz o menor sentido.

11. Tomar a divisão rítmica como motivação para a consagração do artista é uma hipótese pertinente, contudo o argumento explicativo baseado na etimologia não basta. Recorrer à etimologia não explica o procedimento, uma vez que não afirma que se trata de um processo de duração resultante da execução das notas. Do modo como se escreveu sobre ligação, se afirma, na verdade, o legato.

12. Há inúmeros aspectos tratados no artigo que poderiam ser considerados fortes argumentos para a hipótese. O primeiro me parece ser o ritmo da fala, das entoações em conversas prosaicas – a poesia do cotidiano anunciada desde o início mas sem formulação adequada ao longo da análise. Contudo, há que se tomar um certo cuidado com incorporação de teoria sem o devido juízo crítico. Por ex., na p.10 se afirma: ...ressonância nasal comum aos falantes nordestinos e à língua brasileira em geral. Pergunto: se é comum ao português falado no Brasil, por que o destaque para a fala nordestina? Não evocaria um estigma preconceituoso? O artigo precisa dessa citação?

13. Contudo, o argumento que merece uma projeção maior foi arrolado a partir da p.13, quando trata das repercussões da criatividade do artista em gerações subsequentes. Afirma-se: “É notória a influência dos cantores da era do rádio sobre o paraibano”. Primeiro: demorou muito para entrar nesse tópico um dos mais condizentes com toda a trajetória do artista e com o sucesso de sua carreira e de seu legado, contudo, pouco explorado no artigo. Empregou-se tanto tempo tratando da convergência ao quadro social e não situou o quadro de desenvolvimento da indústria cultural fonográfica que sustentou o rádio, agora, do nada, surge “a era do rádio”. Segundo: a possibilidade de combinação de gêneros musicais que, conhecidos e disseminados pelas várias regiões do país, fez com que, além da possibilidade do contato, movimentos – do tropicalismo ao mangue beat – surgissem. Não sou eu quem afirma, mas o artigo.

Ao desconsiderar a própria pesquisa realizada para valorizar a demonstração de teorias, o artigo perde o que de mais valioso foi estudado. Prova disso é que nas considerações finais fica completamente solta a volta ao Lukács, cuja teoria não contribuiu para demonstrar a inventividade do artista para a consagração de sua obra.

Tendo em vista a potência do artigo, o presente parecer considera que ele prestaria uma grande contribuição ao estudo do artista e do papel de sua criatividade na consagração da MPB e da cultura brasileira como um todo, se deixasse de lado a demonstração da teoria. Além das recomendações apontadas, o artigo se enriqueceria se tomasse como orientação a “metodologia” desenvolvida por José Miguel Wisnik em “Machado maxixe: o caso Pestana” (Teresa. Revista de literatura brasileira 4/5, 2003, p.13-79). Aliás, esse número da revista foi inteirinho dedicado à literatura e música brasileira.

Concluindo: artigo APROVADO COM RESTRIÇÕES.

  • recomendação: accept-in-principle

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Tendo a concordar quando o texto enfatiza a importância de Jackson do Pandeiro para a cultura musical popular brasileira. Infelizmente, ainda são poucos os estudos que versam sobre o músico, compositor, instrumentista paraibano de grande estatura como é o caso de Jackson. Portanto, a empreitada da autora ou autor do texto se mostra muito feliz na escolha do assunto.

O fato ainda da reflexão se propor a investigar a complexa rítmica musical de Jackson, um assunto de cunho musical, mas que se alastra para a prosódia como um todo, de certa forma deflagra uma expectativa ainda maior nas leitoras e leitores, visto ser um assunto controverso até mesmo para os musicólogos e musicistas que se aventuram nessa área. Vejam-se especialmente os estudos sobre “métrica derramada” de Martha Tupinambá de Ulhôa, mas também a proposta de estudos semióticos de Luiz Tatit sobre as imbricações entre letras e músicas do cancioneiro brasileiro (autor aliás citado no texto), além dos estudos sobre a síncopa do samba (citado rapidamente no texto) – dos quais o estudo de Marcos Napolitado é já um clássico – e os estudos mais gerais sobre as temporalidades musicais (principalmente os de Hans-Joachim Koellreutter).

Contudo, ao nos envolvermos com o texto, temos que muito dessa expectativa inicial não parece ser satisfeita. Por um lado, o assunto “rítmica” fica espremido entre outras abordagens, talvez também importantes, mas secundárias a partir do título do texto: primeiro, a questão dos vínculos (a meu ver um pouco exagerados e um tanto mecânicos) entre os sentidos literais das letras e a vida cotidiana; e, segundo, as questões mais restritas sobre o aparelho fonador do cantor em pauta. Ainda que esses outros assuntos, que pelo título do artigo chegamos a reputar secundários, possam de alguma forma ajudar a reflexão principal, os elos que os ligam à questão da rítmica aparecem de forma muito rápida, incompleta e muito frágil no meu entender.

Por outro lado, a própria questão rítmica tenta ser abordada por um ponto de vista mais estritamente musical sem, contudo, que a autora ou o autor se aprofunde nos conhecimentos técnicos musicais já desenvolvidos no campo musical para tal empreendimento. O texto arrisca a agrupar uma série de autores musicistas que elaboram suas análises rítmicas a partir de paradigmas técnicos distintos, certamente aprofundados em seus textos de origem, mas que aparecem de forma superficial e um tanto confusa, tanto para as leitoras e leitores leigos quanto para os especializados.

Nesse quesito, o texto se equivoca em pelo menos dois aspectos: por um lado, não consegue organizar suas fontes musicais de forma inteligível e convincente, visto que elas partem de métodos analíticos distintos; por outro, não oferece uma interpretação nova do fenômeno rítmico de Jackson do Pandeiro, o que poderia ser feito através exatamente daquela chave de reflexão oferecida pelo título do artigo, qual seja: a autoconsciência humana.

A interpretação das inovações rítmicas de Jackson do Pandeiro abordadas a partir de uma ideia de autoconsciência humana poderia ser talvez, a meu ver, a grande novidade que o artigo proporia, se fosse efetivada a contento (coisa que me parece só ocorrer de forma esboçada e bastante superficial, pelo menos no artigo em questão).

Nesse sentido, o artigo se retém um longo tempo em autores biógrafos e analistas musicais que muito pouco parecem ter a ver diretamente com a questão da autoconsciência humana, ao invés de investir no autor principal anunciado logo no resumo do texto (e que parece ser o autor tomado como base para o assunto da autoconsciência): György Lukács. Embora Lukács seja mencionado com certa veemência no início do texto, suas ideias só vão aparecer de forma também bastante superficial nos últimos parágrafos, de forma a causar mais dúvidas do que esclarecimentos. Afinal, o texto fica devendo, a meu ver, aquilo que anuncia no título: a elucidação do elo entre a rítmica de Jackson do Pandeiro e o registro da consciência humana.

Ainda que eu compreenda que os modos de vida cotidianos (vários deles abordados pelo texto no momento em que analisa alguns trechos das letras das canções) possam ser refratados pelos enunciados musicais (e aqui utilizo uma noção importante e cara ao Círculo de Bakhtin), a meu ver faltou uma investigação mais minuciosa de como isso ocorre nas interpretações das canções por Jackson do Pandeiro, visto que, por um lado, é na interpretação de Jackson que parte da rítmica acontece e, por outro lado, várias canções anunciadas não são criações dele, mas respostas criativas a enunciados alheios (para utilizar outras noções do Círculo).

A transposição dos sentidos da vida cotidiana para as letras das canções me pareceu bastante direta. O texto parece ser indiferente ao fato de que o processo de refração musical, além de evidentemente não esgotar o evento real refratado, inclui aspectos mais especificamente musicais que efetivamente exigem alto grau de “adaptação”, por assim dizer. E, nesse sentido, a rítmica de Jackson do Pandeiro não se restringe apenas à prosódia (a vinculação da rítmica da fala com a rítmica da música, falando grosseiramente), mas também à métrica frasal e harmônica. Muito da quadratura tradicional das frases melódicas e do ritmo harmônico utilizados nas canções é transgredida em favor de um maior entendimento do sentido literal da letra da canção. Mas, todavia, muito do sentido narrativo das letras das canções são transgredidos em favor de um sentido musical mais estrito. É por dentro desse jogo complexo, de várias camadas, que Jackson se equilibra continuamente oferecendo soluções ritmo-temporais igualmente instáveis, mas surpreendentemente inteligíveis em relação ao fluxo total da canção. Em vários exemplos musicais citados no texto isso acontece, mas não é enfatizado, nem ao menos mencionado.

Só para citar um exemplo, veja-se a canção A primeira lição, de José Orlando, na qual acontece um verdadeiro malabarismo harmônico e frasal (musical) para dar conta das assimetrias que a letra da canção exigiu da música para poder ser compreensível. Curiosamente, o compositor da canção não é o próprio Jackson, o que indica (e isso precisaria de uma pesquisa mais ampla e aprofundada) que as questões temporais sustentadas e apresentadas por Jackson do Pandeiro não são apenas dele, mas talvez de um gênero de discurso musical que se elabora a partir, aí sim, de uma comunidade semântico-musical-existencial específica, de uma forma de viver específica, fazendo aparecer aí, talvez, a famigerada autoconsciência humana anunciada no título do texto.

Nesse sentido, talvez Jackson do Pandeiro tenha se tornado uma espécie de representante (talvez por acabar sendo mais conhecido fora de sua comunidade regional) desse tipo de procedimento rítmico-prosódico-frasal-harmônico que de algum modo sintetiza uma forma de expressão musical de toda uma comunidade cultural à qual ele mesmo pertence. Lembro ainda que os ritmos utilizados nas canções que Jackson interpreta são ritmos direcionados à dança (xote, baião, xaxado etc., chamados comumente de forró). Esse é um aspecto importante por inserir mais uma camada de complexidade à rítmica das canções.

Ainda no quesito técnico musical, algumas definições musicais oferecidas no texto estão equivocadas. Ostinado pode ser, sim, uma frase ou um motivo musical, mas sua característica principal é o fato de ser repetido insistentemente (obstinadamente) e tornar-se assim uma base estável para a organização de outros eventos musicais, tais como melodias, harmonias, solos instrumentais ou vocais etc. E portamento não é “o transporte rápido entre uma série de notas”, mas uma espécie de “deslize” melódico entre uma nota e outra que, nesse caso, pode ser rápido ou lento, dependendo da situação musical (um exemplo famoso, e lento, é o portamento no final da escala inicial, feita por um clarinete, da obra Rhapsody in blue de George Gershwin).

Para não me prolongar muito, faço um último alerta teórico, desta vez com relação à citação inicial de Marx. Na p.2, o texto menciona um trecho d’O Capital, mais especificamente do capítulo sobre a mercadoria que, no meu entender, aparece de forma equivocada. No artigo, o trecho parece corroborar a ideia de que tanto a necessidade do estômago (digamos, as necessidades primárias de sobrevivência) quanto as necessidades da fantasia (digamos, as necessidades culturais) se colocam num mesmo nível de simetria para a vida humana. Contudo, Marx, a meu ver, afirma que essa simetria se dá apenas a partir da ideia de mercadoria, ou seja, para o capitalismo (ou melhor, para os capitalistas) todas as necessidades (tanto as do estômago quanto as da fantasia) viram justificativas para a produção de mercadorias. A simetria é proposta, segundo Marx, pela visão capitalista da existência. Esse tipo de equívoco, quando se apresenta logo no início do texto, alerta sobre outras prováveis apropriações teóricas equivocadas.

Minha preferência pessoal recai sobre os sentidos cotidianos contidos nas letras das canções. Esse assunto parece ser o de maior domínio da autora ou autor do artigo e, do modo como foi realizado no início do texto, me pareceu muito interessante como contribuição ao campo musical abordado. Nesse caso, considero que até mesmo o vínculo das canções (neste caso o vínculo das letras das canções) com o “registro da autoconsciência humana” talvez seja mais fácil de ser alcançado. Por consequência, um peso maior sobre o autor anunciado no início, György Lukács, possa ser dado com um aprofundamento e detalhamento teórico mais bem feito.

Embora eu considere que o texto necessita de modificações profundas para ser publicado, ainda assim o direcionamento dessas alterações ficará à cargo das escolhas da própria autora ou autor. Por isso, faço aqui apenas algumas sugestões para que o texto se equipare à importância do assunto que aborda. Um passo importante seria escolher apenas um assunto para a abordagem: ou os sentidos cotidianos das letras das canções; ou a rítmica (macro e micro, ou seja, prosódia e frasal/harmônica); ou a análise fonológica. Com essa escolha, o foco e a densidade do texto podem ser mais bem elaborados. APROVADO COM RESTRIÇÕES

  • recomendação: accept-in-principle

Parecer editorial

Considerando os pareceres acima, solicita-se que o autor reescreva o artigo e submeta-o para nova avaliação até 30-06-2022. APROVADO COM RESTRIÇÕES

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O presente texto é uma reelaboração de uma pesquisa sobre Jackson do Pandeiro – um grande compositor brasileiro que gerou uma legião de músicos das mais distintas tradições musicais –, como está muito bem delineado no percurso da análise. Trata-se de um texto focado na obra, no músico, em sua tradição musical, no contexto de sua vida no momento histórico brasileiro. Um texto com abordagem muito distinta do que foi apresentado anteriormente.

Em primeiro lugar, o presente texto não incorre no risco de tomar a obra como ilustração de uma teoria formulada pelo marxista G. Lukács, com isso elimina todos os problemas do texto anterior que foram detalhados nos 13 tópicos do parecer anterior. Não há aqui nenhum vestígio da noção de autoconsciência segundo Lukács que provocou todos os equívocos e incongruências do artigo anterior. Livre da necessidade de demonstrar a teoria na obra, a análise ficou livre para mergulhar na poética da obra, o que fez com que a potencialidade da abordagem orientasse a análise.

O artigo organiza-se, assim, em torno de sua hipótese fundamental: a expressão musical e lírica dos modos de vida colhidos em sua cotidianidade, o que implica explorar nuances dos modos interativos da fala. Não da fala como veículo, mas da fala como corpo de tonalidades que nascem na vivência e que o poeta transforma em poesia, em canção. O artigo explora as diferentes qualidades dessa poesia que se manifesta na voz daquele que fala naquele contexto de vida.

O texto reelaborado fez valer sua potência e, mesmo que o.a autor.a afirme que a análise não é musical, os diferentes aspectos da musicalidade da fala e da voz na canção e no canto do cantor na análise mostram-se atenciosos e pertinentes. Ganha amplitude também a importância do músico na cena musical dos anos 1930-1940 no rádio, o que fez com que Pandeiro se tornasse uma fonte inesgotável para o cancionismo brasileiro.

Considerando as qualidades da análise, que soube explorar o potencial poético da obra do artista e examinar sua hipótese na construção e expressão estética exploradas pelo músico, esse parecer aprova o artigo que, deste modo, presta uma contribuição para o estudo não apenas da obra do artista, mas para o estudo da canção.

Gostaria ainda de cumprimentar o.a autor.a pela insistência e inteligência na reelaboração de sua pesquisa. Com isso, ele/ela deixa claro ter percebido a importância da formulação do problema de pesquisa como determinante de toda investigação e análise. Uma formulação inadequada obscurece o objeto de estudo e impede que a força de sua constituição se evidencie. Apontar e criar condições para corrigir esses desvios é também um trabalho da revista acadêmica no exercício dialógico de sua atividade.

  • recomendação: aceitar

Parecer IV

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O texto me pareceu, agora depois de revisado, mais coerente, mais focado e até mais completo, no sentido de oferecer mais profundidade nos assuntos abordados (embora abordando menos questões do que a primeira versão, o que achei uma ótima modificação).

Ainda fiz algumas poucas sugestões, que devem ser avaliadas pela autora ou autor. São sugestões apenas para deixar o texto, a meu ver, mais claro. Fiz algumas poucas correções de digitação, contudo o mais prudente é revisar todo o texto em termos de ortografia, concordância e digitação (o que eu não fiz).

Também fiz uma conferência em relação às referências bibliográficas. Vários textos que constam nas referências não foram mencionados no texto do artigo. Eu os grifei de amarelo para que sejam conferidos e, se for o caso, excluídos. Um dos textos citados não encontrei nas referências.

Sugiro também que todas as canções mencionadas estejam registradas nas referências igualmente (notei que a Cantiga do Sapo não está, como canção, nas referências como estão as outras canções, por isso faço a sugestão).

Outra sugestão sobre as referências: já que as canções aparecem nas referências a partir dos títulos e no texto a partir dos compositores, sugiro que haja uma padronização nas indicações para não haver confusão de informações. As canções também poderiam entrar nas referências pelos nomes dos compositores.

Reforço que o assunto do artigo é muito importante para o campo musical e cultural brasileiro e, agora, se mostra mais coeso e aprofundado.

No mais, considero o texto revisado bem escrito e, nesse caso, a meu ver, apto a ser publicado.

  • recomendação: aceitar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com