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SOBRAL, Adail. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019. 168 páginas.

SOBRAL, Adail. . A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019. 168 páginas.

Para uma filosofia do ato (doravante, PFA), como se sabe, foi o primeiro texto de Bakhtin, escrito no início dos anos 1920, porém publicado somente em 1986. Nunca foi um texto fluido; foi polemizado desde o início, uma vez que, como esclarece Faraco (2010)FARACO, C. A. Um posfácio meio impertinente. In: BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p.147-158. no posfácio de sua tradução, o autor do texto parecia ser outro, que não o crítico e estudioso de literatura e da cultura, Mikhail Bakhtin. Obra de importância capital também para os estudos dialógicos, PFA é igualmente de muita dificuldade para a compreensão por envolver questões filosóficas complexas.

Em seu livro, Sobral desenvolve uma leitura crítica e amorosa desta obra bakhtiniana, comentando-a, a fim de que se torne um roteiro didático acessível aos múltiplos pesquisadores do filósofo russo da linguagem. À dificuldade do texto original, Sobral presenteia-nos com uma variedade de traduções de PFA, inclusive as publicadas em português. Eis uma questão fundamental para quem, como ele, além de tradutor, é também um grande estudioso das investigações bakhtinianas.

Adail Sobral é professor na Universidade Federal de Rio Grande (UFRS), tendo passado por estudos na UFBA, Unicamp, USP, PUCSP e na Université de Paris 8, além de ter vasta experiência na arte de traduzir. Tem colaborações em inúmeros livros, assim como já escreveu e traduziu outros tantos.

A obra aqui resenhada tem apresentação da Professora Marília Amorim, supervisora do Pós-doutorado de Adail na Université de Paris 8, que afirma não ser fácil ser bakhtiniano em uma época de pós-verdade. Certamente não é. Bakhtin foi um filósofo humanista, ou seja, uma certa razão, sempre esteve presente em sua obra, como também a comunhão. Esta resenha segue os passos da organização do livro, por capítulos, como realizada por seu autor.

Iniciando por Primeiras palavras, Sobral realiza um breve histórico sobre sua trajetória profissional e de vida, dando ênfase aos momentos que culminaram com a escritura do texto do livro. Já na Introdução, o autor declara que, em obra anterior, citava Bakhtin sobre a consciência do mundo mediada por dois planos, a saber, o sensível - de percepção e de ação - e o inteligível - de elaboração e transformação das impressões em conceitos. Planos integrados, o primeiro contempla a multiplicidade, enquanto, o outro, a unidade, a continuidade. Tal integração considera a criação de um “agir responsável do sujeito”, cujo resultado - a filosofia do ato - seria condição necessária para a “resolução da crise da cultura, ou seja, a ruptura entre o mundo da cultura e o mundo da vida.” (SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.26), uma vez que o jovem Bakhtin já afirmara ser a crise contemporânea de sua época uma crise do ato, cuja arquitetônica de mundo recordava a do mundo de Dante. A superação dessa ruptura entre cultura/vida é focalizada em todo o texto.

A principal baliza da obra de Sobral, como exposto por ele mesmo, é o trabalho de Brait (2016)1 1 BRAIT, B. Dialogismo e polifonia em Mikhail Bakhtin e o Círculo (Dez obras fundamentais). Disponível: http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Bakhtin.pdf. a respeito dos dez textos essenciais de M. Bakhtin, entretanto, é igualmente proposto um diálogo com os principais comentadores da obra russa. Como base para seu estudo e para suas citações, ele indica a tradução francesa de PFA, de G. Bardet (2003)2 2 BAKHTINE, M. M. Pour une philosophie de l’acte. Trad. de Ghislaine Capogna Bardet. Lausanne: L’Age D’Homme, 2003. , por seu rigor terminológico e pela incorporação das notas de Bakhtin ao texto original. Além dessa edição francesa, Sobral atenta para as especificidades de outras traduções consultadas: as edições italianas de L. Ponzio (2009)PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. O pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenador da tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.3 3 BACHTIN, M. M. Per una filosofia dell’atto responsabile. Trad. de Luciano Ponzio. Lecce: Pensa, 2009. , diretamente do russo, e a de M. de Michiel (1998)4 4 BACHTIN, M. M. Per una filosofia dell’azzione responsabile. Trad. de Margherita de Michiel. Lecce: Piero Manni, 1998. ; a tradução da edição italiana de Ponzio para o português, de V. Miotello e C. A. Faraco (2010)FARACO, C. A. Um posfácio meio impertinente. In: BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p.147-158.; a edição inglesa de Liapunov e Holquist (2010)5 5 BAKHTIN, M. M. Towards a Philosophy of the Act. Trad. de Vadin Liapunov e Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 2010. e a tradução para o espanhol de T. Bubnova (1997)6 6 BAJTÍN, M. M. Hacia una filosofia de lacto ético. De los borradores y otros escritos. Trad. de Tatiana Bubnova. Rubí: Anthropos/San Juan: Universidad de Puerto Rico. . É importante salientar que o Índice temático da versão de Ponzio orientou esse estudo de Sobral, que o seguiu e referenciou, pelo encaminhamento dado aos tópicos principais do texto bakhtiniano.

A obra divide-se em cinco capítulos: 1) Ato, singularidade, responsabilidade, tecnicismo, teoreticismo, vida-como-ato; 2) Filosofia da vida, filosofia primeira, estética, ética; 3) Pensamento participante, não-álibi e unicidade; 4) Singularidade, unicidade, não indiferença, representação e impostura; 5) Ato, mundo, arquitetônica e unidade do mundo na visão artística; e as Considerações finais. Cada capítulo é organizado em tópicos, conforme a tradução italiana.

No primeiro capítulo, com foco na Singularidade irrepetível e no ato responsável, o autor aborda a prima philosophia de Bakhtin. Como um Jano de duas faces, tal filosofia aspirava abarcar, por intermédio de um plano bilateral, a unidade da cultura (vida, arte e ciência), centrada na singularidade dos atos humanos, que são específicos e irrepetíveis. Para tanto, o filósofo russo afirma que os elementos dinâmicos do ato estão em um nível da responsabilidade especial, enquanto o ser-evento está em um nível da responsabilidade ética. Para a constituição da arquitetônica do ser-evento, é necessário, portanto, segundo Sobral, a integração das duas categorias, o teórico e o estético, incapazes de compor, separadas, a unidade do ser.

Na sequência, Dever formal e responsabilidade e em Tecnicismo, teoreticismo e vida-como-ato, há um diálogo do autor russo com E. Kant sobre a transformação do juízo em ato responsável no plano da vida concreta, da responsabilidade do sujeito. Aqui, questiona-se a categoria do “dever-ser” formulada pelo filósofo alemão, pois se observa que seus pensamentos estão articulados apenas com a base teórica, alienando-se da unidade do sujeito e sua performance na vida, o contrário das postulações bakhtinianas, as quais apontam, como categoria fundamental de sua construção filosófica, a unidade concreta da vida. Logo, o teórico, assinalava Bakhtin, não se realizava separado do estatuto da vida, mas em consonância, fundamental para a constituição da arquitetônica do ato. Ao discutir o pensamento bakhtiniano acerca da relação entre os componentes técnicos e teóricos e a vida concreta dos sujeitos, Sobral assinala que “o centro da filosofia primeira de Bakhtin é a vida como ato” (p.43), reconhecendo o ser como evento em processo inacabado. Assim, a vida como ato seria a sucessão de ações de nossa atividade, e não a composição teórica acabada do existir, que separa os componentes da cultura - arte, ciência e vida. Teoria e prática, nesse devir, tornam-se processos inalienáveis na constituição da arquitetônica do ser-evento bakhtiniano.

Em Filosofia da vida, estética e empatia, primeira parte do segundo capítulo, Sobral mostra o que considera ser o substancial da proposta bakhtiniana de filosofia do ato: “um acontecimento ou evento único e irrepetível, inscrito num dado instante e num dado lugar” (p.46). Nela, Bakhtin segue a filosofia da ação de Bergson, integrando os elementos repetíveis e irrepetíveis, vida concreta, estética e ciência. Sobral especifica que tanto o estético quanto o teórico são incapazes de integrar o repetível e o irrepetível do ato e sua realização à responsabilidade de quem age.

O tópico seguinte trata da filosofia primeira, enfocando a constituição dos fundamentos do ser-evento e fundando “a unidade histórica singular da condição humana” (p.50). As tendências filosóficas da época foram incapazes de abordar o “ato-feito realmente responsável” (BAKHTIN apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.50). Sucede que a filosofia deveria integrar vida, arte e teoria em uma unidade de responsabilidade, corrigindo a cisão entre vida vivida e cultura, como já tratado anteriormente.

Em relação à Ética material e ética formal, Bakhtin afirmava a total responsabilidade do ser em sua vida na sociedade. Para ele, a razão prática seria o lugar das teorias éticas e essas construções éticas eram, verdadeiramente, o que importava para o pensamento não-indiferente, responsável e sem álibi. Sobral releva a questão moral em PFA, assegurando o dever como “uma necessidade singular absoluta, categórica” e como “uma categoria do ato individual” (BAKHTIN apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.55-56). Da mesma forma, há, segundo o autor descreve, uma crítica radical de Bakhtin à divisão kantiana das razões, na medida em que a definição de ato do autor russo define-o “como aquilo que envolve um componente repetível (seu conteúdo-sentido) e um componente irrepetível (seu processo), bem como um agente único e não um ser humano em geral” (SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.57). Eis aqui um ponto dos mais relevantes nesse roteiro de Sobral, elucidado adiante.

No item Filosofia primeira como filosofia do ato, é discutida uma alternativa para uma filosofia básica do ser com suporte nas críticas anteriores às correntes filosóficas em voga naquele momento. A filosofia primeira do ato como ato real singular, ou filosofia do ser-evento uno e singular prega a necessidade de uma reorientação ao pensamento participante e ao ato responsável. E, de suma relevância, que o sujeito situado é o agente do ato responsável: “O objeto último da filosofia primeira de Bakhtin” é o sujeito individual e seu existir e agir (SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.63).

Prosseguindo, em relação à linguagem, Sobral assinala que o foco, apontado por Bakhtin em PFA, é a própria condição humana, a qual não prescinde da linguagem, da palavra plena, enunciada em seus três aspectos: a palavra-conceito (seu conteúdo-sentido); a palavra-imagem (aspecto apreensível-expressivo); e a entonação da palavra (caráter emotivo-volitivo), em sua unidade. A palavra plena, tomada em sua integralidade, é dirigida ao outro, alterando-o e alterando o próprio enunciador, que não é o dono do sentido, mas que profere uma palavra impregnada de possibilidades de sentidos. Essa palavra estabelece as relações dialógicas de reconhecimento de um pelo outro, bem como seu agir responsável e não-indiferente. Nesse ponto, reside outra contribuição essencial de Sobral, visto que atenta para um dos eixos principais da filosofia da linguagem de Bakhtin, as relações dialógicas.

O terceiro capítulo desenvolve os temas da filosofia do ato como pensamento participante, de sua unicidade e do não-álibi, ou seja, o ato consciente e responsável, irrepetível, realizado no mundo pela prática. O sujeito, aqui, é concreto e relacional em contato valorativo com o outro. Nesse sentido, o sujeito bakhtiniano contempla o mundo por meio de um distanciamento estratégico (exotopia) e empático, ou seja, de seu ponto de vista situado. A filosofia do ato responsável e participante é, segundo Sobral, uma outra ciência, denominada “razão prático-teórica”, cuja base envolve um sujeito singular também responsável em seu estar e agir no mundo. Com sua clareza peculiar, o autor aproxima a filosofia primeira de Bakhtin de certas categorias fenomenológicas de Merleau-Ponty em relação ao sujeito concreto, o qual, tendo a linguagem como possibilidade, é jogado no mundo e obrigado a assumir seu agir responsável, bem como a afirmar seu dever, sem qualquer álibi. Sobral ainda defende a simultaneidade da filosofia do ato, ou filosofia da vida (Lebensphilosophie), com a filosofia da práxis materialista e dialética, constituídas como prática social cotidiana e coletiva e apoiando-se na experiência do relacionamento entre os seres humanos.

Continuando com o tópico, O não-álibi no ser singular, Adail nos apresenta uma reflexão sobre a concepção de sujeito do filósofo russo, fundada na verdade lógica (istina) e na veradicidade moral (pravda): a primeira é do domínio do repetível, ou da significação, enquanto a outra tem a ver com o sentido, com a responsabilidade do agir, “um agir em que o sujeito reconhece sua responsabilidade irrevogável (seu não-álibi no ser) e a afirma de maneira singular” (SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.84). É a sua identidade e de seu agir singular nas relações com os outros. Em obra anterior, Sobral (2005SOBRAL, A. Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p.103-121., p.118) ressaltava que “O agir do sujeito é um conhecer em vários planos que une processo (o agir no mundo), produto (a teorização) e valoração (o estético) nos termos de sua responsabilidade inalienável de sujeito humano, de sua falta de escapatória” e de sua condição de ser lançado no mundo e de assumir o seu agir nele. É esse o imperativo de Bakhtin, fundado no não-álibi do existir, na assinatura do sujeito no ato e em seu reconhecimento e afirmação do imperativo.

Ao retornar à distinção entre istina e pravda, Sobral valoriza a tensão existente na filosofia do ato responsável do pensador russo e argumenta: “Bakhtin reconhece então que a dúvida trazida pela consideração de cada sujeito como um centro singular de valor, de compreensão emotivo-volitiva, é a base da verdade-veridicidade [pravda] ‘una e singular’ do mundo” (SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.92). Ao concluir, o autor esclarece que a existência desses vários centros de valor distintos não se opõe à verdade [istina], porém constitui a unidade do todo.

No quarto capítulo, Singularidade, unicidade, não indiferença, representação, impostura, Sobral enfatiza cada um desses elementos, porém prioriza a não oposição entre o geral e o particular, ao prosseguir com a discussão sobre a abordagem ideal para uma filosofia de cunho moral: a teoricista ou a fenomenológica e materialista dialética. Um conjunto de valores válidos, explica Bakhtin em PFA, não o é somente para mim ou para um e outro sujeito, porém é verdadeiro para toda a humanidade histórica, em qualquer época. O fator de engajamento do sujeito é devido a esse reconhecimento de valores. Assim por “impostura”, define-se a tentativa do sujeito para conseguir um álibi. “É ao tentar interpretar a nossa vida toda como representação implícita, e cada ato nosso como ato ritual, que nos tornamos impostores” (BAKHTIN, apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.103) O sujeito é responsável por seus atos, uma vez que neles deixa sua assinatura singular.

Sobral finaliza o capítulo, abordando o tópico Filosofia da vida como filosofia moral, no qual discute o objeto da filosofia moral, qual seja, a participação singular do sujeito com seu agir emotivo-volitivo e responsável no existir. Destaca ainda os principais componentes emotivo-volitivos da filosofia da vida: eu-para-mim, outro-para-mim e eu-para-o-outro, em que se concentram “todos os valores da vida real e da cultura”. A tarefa dessa filosofia, nas palavras de Bakhtin, seria “descrever fenomenologicamente essa arquitetônica do mundo real do ato” (p.107).

Essa descrição do mundo do ato e a visão estética da arquitetônica concreta são os temas abordados no início do quinto capítulo. Essenciais as citações do jovem Bakhtin, eleitas por Sobral no início desse. Sobre a descrição do mundo do ato, lemos que “é um mundo uno e singular concretamente vivido: um mundo visto, ouvido, tocado e pensado, inteiramente penetrado pelos tons emotivo-volitivos da validade afirmada dos valores” (BAKHTIN, apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.111). Por outro lado, também é o reconhecimento da participação insubstituível no mundo e da inexistência de um álibi nele, garantindo como real a singularidade una deste mundo. Não há álibi para a participação singular do sujeito, ativamente responsável por seus atos e que possui uma posição de valores, um lugar concreto, singular, de onde recebe o mundo como um todo arquitetônico.

A seguir, ao descrever o tema - A unidade do mundo na visão artística - o autor registra essa unidade como uma arquitetônica concreta e estética de valor, cujo centro é o tornar-se humano e, ainda, conforme o filósofo russo, “o amor [que] pode ser esteticamente produtivo; a plenitude da multiplicidade [diversidade] somente possível em correlação com aquilo que é amado.” (BAKHTIN, apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.121). O amor estético contempla e tolera uma multiplicidade de fatores, uma vez que prioriza a posição exotópica e empática do autor. Para a visão estética, uma personagem não é boa ou má, porém, apresentada pelo autor da obra sob diversos pontos de vista. “O sujeito estético (o autor e o contemplador) ‘ocupa um lugar único’ (p.100), sua pessoa física não se confunde com o autor-criador nem com a personagem: ‘não sou eu o objeto da empatia e da visão’ (p.101)”.

Voltando à questão da teoria e da prática com enfoque nos centros valorativos (dos sujeitos humanos), Sobral destaca a cronotopia e a condição humana (de mortalidade) e, portanto, relaciona os conceitos anteriores aos de espaço, tempo e mortalidade. A arquitetônica concreta entra em correlação com o sujeito mortal concreto. Assim, as relações espaciais e temporais têm a ver com ele e por ele adquirem seu sentido valorativo: “‘alto’, ‘longe’, ‘em cima’, ‘embaixo’, ‘abismo’, ‘infinito’ - todas essas expressões refletem a vida e a intensidade [tensão] do ser humano mortal” (BAKHTIN, apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.126), como já expresso acima.

O tópico final, Exotopia, alteridade e filosofia moral, é uma síntese da “arquitetônica concreta do mundo da visão estética”. Conforme Bakhtin, essencial para sua prima filosofia, era o fato de o mundo físico não ser acessado diretamente, de modo transparente, senão por meio de uma mediação axiológica de um sujeito singular e participativo. Seu ponto de vista valorado incide na arquitetônica da obra, tornando o autor-pessoa em autor-criador, cuja presença está no todo da obra, mas não como participante, senão como contemplador-organizador (p.139).

Uma última e importante menção a respeito da relação eu-outro, fundamento da filosofia primeira, é sobre as relações dialógicas tensionadas como princípio do agir humano enunciativo, defendido por Sobral, ao citar: “A vida conhece dois centros de valor, diferentes por princípio, mas inter-relacionados: o eu e o outro”, base de “todos os componentes concretos do ser” (BAKHTIN, apud SOBRAL, 2019SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019., p.142).

Reafirmando a relação de identidade/diferença entre o eu/outro, nas Considerações Finais, Sobral assegura nosso existir responsável no mundo a partir de um projeto enunciativo de subjetividade (identidade), o qual constrói uma arquitetônica de vida em que se pode ser o si mesmo e/ou estar em mudança, em constante vir a ser.

Como se pode ver, em toda a obra aqui resenhada, o pensamento do jovem Bakhtin já era múltiplo e com uma coerência que perpassaria todo o seu pensamento posterior, expressa nas ligações que embasaram sua proposta teórica e seu método de pesquisa às suas filiações filosóficas. Não há no pensador russo, como ressaltou Faraco (2001, p.118)FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. (orgs.). Diálogos com Bakhtin. 3. ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 2001. p.113-126. “um modelo formalizado nos termos com que a academia se acostumou”, mas “um sistema ou uma antropologia filosófica” de investigação do ser humano, social e público, em permanente relação intersubjetiva - de alteridade e de compreensão responsiva e valorativa de seu discurso.

Para concluir, posso afirmar que o texto de Adail Sobral é uma investigação de excelência, que contribui para o diálogo acadêmico nas questões filosóficas suscitadas pelo grupo bakhtiniano. Todos os tópicos abordados pelo autor são relevantes, mesmo assim, procurei realçar os que considerei prioritários para um debate acerca da filosofia primeira de Bakhtin. Assim, ao recomendar o livro de Sobral, ressalto seu valor essencial não só para o aprofundamento do conhecimento de PFA, como também para o estudo de toda a obra do filósofo russo e de seus companheiros.

Mikhail Bakhtin pertencia a uma estirpe de pensadores, cuja visão de mundo foi denominada por Ponzio (2008, p.201)PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. O pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenador da tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008. de “humanismo da alteridade”, o qual assegura serem as ações sociais orientadas por representações de subjetividade, fundamentadas na percepção de si mesmo e do outro. Nessa perspectiva, o ser humano só é possível por meio do pertencimento a uma comunidade social. As ações que praticamos, baseadas nas avaliações sociais, são atos comprometidos com o grupo social. O caráter compreensivo, responsivo e ético da existência humana apela as pessoas a assumirem responsabilidades. É neste sentido que o ser humano não tem escapatória: não existe álibi para a vida.

  • 1
    BRAIT, B. Dialogismo e polifonia em Mikhail Bakhtin e o Círculo (Dez obras fundamentais). Disponível: http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Bakhtin.pdf.
  • 2
    BAKHTINE, M. M. Pour une philosophie de l’acte. Trad. de Ghislaine Capogna Bardet. Lausanne: L’Age D’Homme, 2003.
  • 3
    BACHTIN, M. M. Per una filosofia dell’atto responsabile. Trad. de Luciano Ponzio. Lecce: Pensa, 2009.
  • 4
    BACHTIN, M. M. Per una filosofia dell’azzione responsabile. Trad. de Margherita de Michiel. Lecce: Piero Manni, 1998.
  • 5
    BAKHTIN, M. M. Towards a Philosophy of the Act. Trad. de Vadin Liapunov e Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 2010.
  • 6
    BAJTÍN, M. M. Hacia una filosofia de lacto ético. De los borradores y otros escritos. Trad. de Tatiana Bubnova. Rubí: Anthropos/San Juan: Universidad de Puerto Rico.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.3-192.
  • BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
  • FARACO, C. A. Um posfácio meio impertinente. In: BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p.147-158.
  • FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. (orgs.). Diálogos com Bakhtin 3. ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 2001. p.113-126.
  • PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. O pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenador da tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
  • SOBRAL, A. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentado. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019.
  • SOBRAL, A. Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p.103-121.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2020
  • Aceito
    18 Ago 2020
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