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É ISTO UM ROMANCE?

IS THIS A NOVEL?

Resumo

Propomos, neste trabalho, uma análise de Eles eram muitos cavalos (2001/2006), do escritor contemporâneo brasileiro Luiz Ruffato. Procuramos problematizar a discussão sobre a possível configuração desta obra sob a forma, denominada pelo próprio autor, de uma “instalação literária”. Ao apresentar este modo de fazer literário, Ruffato propõe uma reflexão relacionada a diversas mazelas sociais brasileiras sob uma perspectiva crítica descentrada, afastada de qualquer viés ufanista. Herdeiro de poéticas modernas, como a mallarmeana e as vanguardistas europeias, o autor configura uma poética, estruturada em um mosaico de gêneros textuais, capaz de apreender e refratar a atmosfera de dinamicidade do mundo contemporâneo. Para desenvolvermos esta análise, atenta sobretudo às proposições estéticas da obra, recuperamos o conceito de instalação, utilizado nas Artes Visuais, bem como determinados textos teóricos voltados à análise da relação entre a literatura e outras linguagens, desenvolvidos por autoras como Marjorie Perloff, Márcia Arbex e Maria Adélia Menegazzo.

Palavras-chave
Luiz Ruffato; Instalação Literária; Literatura Contemporânea; Eles Eram Muitos Cavalos; Interartes

Abstract

We propose, in this work, an analysis of Eles Eram Muitos Cavalos (2001/2006), by the contemporary Brazilian writer Luiz Ruffato. We try to problematize the possible configuration of the work as a “literary installation”, a term used by the author himself. By presenting this way of doing literary work, Ruffato proposes a reflection on Brazilian social ills from a decentered critical perspective, far from any nationalistic bias. Heir to modern poetics, such as Mallarmean and European avant-gardes, the author configures a poetics, structured in a mosaic of textual genres, capable of apprehending and refracting the dynamic atmosphere of the contemporary world. To develop this analysis, focused mainly on the work’s aesthetic propositions, we recovered the concept of installation, used in Visual Arts, as well as theoretical studies aimed at analyzing the relationship between literature and other arts, developed by authors such as Marjorie Perloff, Márcia Arbex, and Maria Adélia Menegazzo.

Keywords
Luiz Ruffato; Literary Installation; Contemporary Literature; Eles Eram Muitos Cavalos; Interarts

“j'aime le romanesque mais je sais que le roman est mort”

Roland Barthes, 'Réponses', Tel quel

“Dai-nos, camaradas, uma arte nova

— nova —

que arranque a República da escória.”

Vladimir Maiakóvski, em Ordem N.2 Ao Exército das Artes

Lançada em 2001, a obra Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, costuma desencadear um efeito de inquietação em seus leitores, seja pela atualidade de sua crítica, relacionada às mazelas vivenciadas pela sociedade brasileira, seja pela sua estética, muito distante de qualquer forma narrativa convencional. Nota-se, por exemplo, que embora seja vendido há mais de vinte anos como romance, não há entre seus especialistas um consenso quanto à categoria deste texto literário. Partindo desta inquietação, propomos neste estudo a problematização da seguinte questão: como conceber esta materialidade artística?

Para darmos início a esta discussão, é interessante levarmos em conta algumas reflexões propostas pelo escritor a respeito de sua própria poiesis. Um dos aspectos a serem considerados aqui, retirados de entrevistas concedidas por Ruffato, é o desafio explicitado por ele ao cogitar uma possível forma literária para dar cor à inapreensível cidade de São Paulo.

De acordo com o escritor, a recordação de sua experiência em meio à instalação artística Ritos de Passagem, de Roberto Evangelista, surgiu-lhe como uma resposta às suas inquietações. Movido pelo desejo de levar ao museu uma alusão às inúmeras vidas anônimas que permeiam as metrópoles brasileiras, Evangelista reuniu, na 23ª Bienal de São Paulo (1996)EVANGELISTA, Roberto. Ritos de passagem. Projeto para Universalis. Instalação. Caixas de sapato, sapatos usados, pedras de lioz, areia, vidro, 1.000 x 1.000 cm. In: Fundação Bienal de São Paulo, 23ª Bienal de São Paulo — A desmaterialização da arte no final do milênio. São Paulo: Fundação Bienal, 1996., mil caixas de sapatos, dois mil sapatos e grandes blocos de pedras em referência às calçadas de Manaus. A proposta do artista plástico era conduzir o público a uma reflexão sobre a invisibilidade das histórias, carregadas em cada um daqueles calçados, vivenciadas por milhares de pessoas que circulam pelos grandes centros urbanos brasileiros.

Bem como Evangelista, Ruffato desejava configurar uma metrópole sob o viés de seus habitantes pobres e prosaicos: “Para mim, aquilo significava que aqueles calçados tinham uma história. Percebi que no meu livro eu teria que percorrer esse caminho, em uma tentativa de reconstruir a história de pessoas que são invisíveis” (RUFFATO, 2017RUFFATO, Luiz. Literatura em diálogo. Revista E. n. 250, 30 mar. 2017. Disponível em: https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10813_LITERATURA+EM+DIALOGO. Acesso em: 20 mai. 2022.
https://portal.sescsp.org.br/online/arti...
, p. 1). Ao compor Eles eram muitos cavalos, o escritor propôs um diálogo com a instalação de Evangelista desde a capa de seu livro. Assinada por Antonio Kehl, a capa deste texto literário é composta pela imagem de um sapato desgastado em meio a um ambiente aparentemente abandonado. No decorrer da obra de Ruffato, no entanto, os sapatos da instalação de Evangelista são transfigurados em personagens que circulam anonimamente em diversas paisagens de São Paulo.

O compromisso de Ruffato para com a base da pirâmide social brasileira é um aspecto continuamente evidenciado em sua poética, em seus discursos públicos e entrevistas concedidas pelo autor. É importante observar, contudo, que a estética da obra nunca permaneceu em segundo plano no projeto literário do escritor. Para melhor compreendermos esta assertiva, leiamos o seguinte trecho de uma entrevista concedida pelo autor ao jornalista Rinaldo de Fernandes:

Só que achava, ainda acho, São Paulo uma cidade inapreensível. Ela cresce desordenadamente e a paisagem muda da noite para o dia, literalmente. Não podia então usar as formas convencionais do romance burguês para tentar captar essa dinâmica. Então, busquei maneiras alternativas de compreendê-la, trazendo para as páginas do livro as várias linguagens em que a cidade pode ser traduzida: a publicidade, o jornalismo, o teatro, o cinema, a música, as artes plásticas, a descrição, a narração, a poesia... Eu não nomeio Eles eram muitos cavalos como “romance”, mas sim como “instalação literária”.

(RUFFATO, 2008RUFFATO, Luiz. Entrevista Exclusiva com Luiz Ruffato concedida a Rinaldo de Fernandes. Blog da Beleza/Uol. 27 mai. 2008. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html. Acesso em: 20 mai. 2022.
https://web.archive.org/web/201603040307...
, p.1)

Vale observarmos a recusa do escritor em denominar seu livro como “romance”, bem como sua proposta em classificá-lo como “instalação literária”. É importante notarmos, ainda, que a “instalação literária” é compreendida por Ruffato como uma construção textual que acolhe, por meio da colagem, diversos episódios paratáticos estruturados em “várias linguagens em que a cidade pode ser traduzida: a publicidade, o jornalismo, o teatro, o cinema, a música, as artes plásticas, a descrição, a narração, a poesia” (RUFFATO, 2008RUFFATO, Luiz. Entrevista Exclusiva com Luiz Ruffato concedida a Rinaldo de Fernandes. Blog da Beleza/Uol. 27 mai. 2008. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html. Acesso em: 20 mai. 2022.
https://web.archive.org/web/201603040307...
, p.1). Ao propor este novo modo de conceber a obra, o escritor sugere uma chave interpretativa a este texto literário. Para melhor compreendermos a potencialidade desta proposição, ainda inédita em meio aos estudos literários brasileiros, faz-se necessário recuperarmos o conceito de “instalação” comumente utilizado nos estudos de Artes Visuais.

O conceito de “instalação” nas Artes Visuais Contemporâneas

Para darmos início à discussão sobre o conceito de instalação, sob o viés das Artes Visuais, leiamos a seguinte explanação, proposta por Ana Albani de Carvalho, em Instalação como problemática artística contemporânea:

O próprio termo “instalação” tem um caráter não específico, o que, sob certos aspectos, conduz à polissemia. Esta, por sua vez, não se manifesta somente no emprego do termo, caracteriza igualmente a produção que pretende designar e o contexto cultural no qual se gera. Quando empregamos o termo instalação não fazemos menção a uma técnica em particular, não enfatizamos um tipo de material cujas qualidades plásticas possam ser objeto de uma prática artística e de uma relação estática, nem a rigor um fazer artístico nos termos convencionais, tais como “pintar”, “esculpir” ou “desenhar”. Instalação funciona de modo genérico, como um procedimento indefinido em relação a possíveis delimitações de ordem técnica. Podemos dizer que “quem instala” dispõe alguma coisa, de algum modo, em algum lugar ou local específico

(CARVALHO, 2005CARVALHO, Ana Albani de. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de especialização e especificidade do sítio. Tese de doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005., p.131).

Notemos que, de acordo com a pesquisadora, o espaço se apresenta como um elemento fundamental para a configuração de uma instalação: “quem instala, dispõe alguma coisa, de algum modo em algum lugar ou local específico” (grifo nosso). A instalação pode ser pensada, dessa forma, como uma materialidade artística de caráter inespecífico, configurada por meio da relação entre o espaço, o objeto e o público. A fim de compreendermos essa ideia de modo mais claro e preciso, leiamos, a seguir, algumas perspectivas teóricas, apresentadas nos estudos de Carvalho, sobre o conceito de instalação.

Sob o viés de Mark Rosenthal, a instalação, diferentemente de um artefato autorreferencial, como a pintura e a escultura, configura-se a partir da “multiplicidade de objetos, imagens e referências” (ROSENTHAL apud CARVALHO, 2005CARVALHO, Ana Albani de. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de especialização e especificidade do sítio. Tese de doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005., p. 109), organizados em um espaço que atua na potencialização do diálogo entre a obra e o público. De acordo com o estudioso, a alusão à vida cotidiana torna-se algo central nestas performances que operam em termos artísticos, estéticos e poéticos na proposição de um diálogo com o público.

Em uma perspectiva análoga e complementar ao pensamento de Rosenthal, Rosalind Krauss explica que a proposição artística contemporânea, livre da especificidade convencional de uma determinada linguagem, método e/ou suporte, define-se a partir de “operações lógicas com um conjunto de termos culturais, para o que é possível empregar qualquer meio, seja fotografia, livros, linhas nas paredes, espelhos ou a própria escultura” (KRAUSS apud CARVALHO, 2005CARVALHO, Ana Albani de. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de especialização e especificidade do sítio. Tese de doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005., p. 123).

Michael Archer, por sua vez, propõe a ideia de que o inacabamento é um aspecto da instalação que lhe concede “abertura a novas possibilidades artísticas, poéticas e estéticas” (ARCHER apud CARVALHO, 2005CARVALHO, Ana Albani de. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de especialização e especificidade do sítio. Tese de doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005., p. 126) em sua eventual desmontagem e deslocamento, isto é, em sua possível reinstalação em outro sítio. Além disso, o convite a um diálogo enfático com o público é tão importante quanto o aspecto estrutural desta categoria artística. Segundo Archer, a instalação privilegia a experiência perceptiva, emocional e estética do espectador em meio ao espaço no qual a obra se encontra organizada.

Possíveis diálogos entre a Literatura e as Artes Visuais: a ênfase do aspecto visual na poesia moderna

Feita esta breve contextualização sobre o conceito de “instalação”, voltemos ao campo dos estudos literários e suas possíveis formas de diálogo com as Artes Visuais. Para tanto, vale lembrar que, de acordo com Hugo Friedrich, em Estrutura da Lírica Moderna, a análise dessa relação interartística é uma forma de estudo desenvolvida, desde o século XVIII, por escritores como Diderot (FRIEDRICH, 1978FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991., p. 26).

Mais recentemente, Márcia Arbex, em A poética do visível, recupera a compreensão relacionada à origem imagética da escrita ao explicar que a grafia, longe de se resumir à transcrição de um discurso oral, torna a palavra visível. Conforme explana a autora, o surgimento da escrita, bem como o da imagem, deve-se à descoberta da superfície, elemento espacial que viabiliza a ilustração, a projeção e a visualização desses grafismos, atuando como um denominador em comum entre as duas linguagens na medida em que a tela desempenha na pintura a mesma função que a página na escritura (ARBEX, 2006ARBEX, Márcia. Poéticas do visível: uma breve introdução. In: ARBEX, Márcia (Org.) Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: UFMG, 2006. P. 17–62., p. 18).

Ao pensar nesta questão, aplicada à modernidade, a estudiosa lembra que, em “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, Mallarmé não só apresenta ao mundo um poema que retoma o aspecto visual da escrita, como impulsiona o surgimento de inúmeros outros textos literários compostos por ilustrações, cartazes e jogos tipográficos. Em seus estudos sobre a obra mallarmeana, Augusto de Campos afirma que este foi o primeiro poema-estrutura de que se tem conhecimento na historiografia literária. Nele, há um novo conceito de composição, arquitetado sob “uma ORGANOFORMA — onde as noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poética-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA” (CAMPOS, 2010CAMPOS, Augusto de. Mallarmé: O Poeta em Greve. In: Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2010. p.149–173., p. 23). Sugerindo a superação do próprio livro como suporte do texto literário, o poeta francês desafia as limitações da linguagem discursiva para anunciar novas possibilidades poéticas, nas quais convergem a experiência da música, da pintura, do jornal e do cinema. Segue-se, aqui, uma passagem de seu poema-estrutura:

É importante percebermos que a experiência sonora proposta pelo texto relaciona-se diretamente ao seu aspecto visual. Conforme explana Mallarmé, no prefácio de sua obra, o espaço em branco na página assume o efeito de silêncio em meio à versificação do poema. Dessa maneira, a distância entre os grupos de palavras deve ser compreendida como uma sinalização para o efeito de aceleração e/ou desaceleração do ritmo dos versos:

Ajuste-se que deste emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos, fugas, ou o seu desenho mesmo, resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura. A diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou o descer da entonação

(MALLARMÉ, 2010MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados jamais abolirá o acaso. In: MALLARMÉ, Stéphane. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 149–173., p.151).

Friedrich, ao pensar na poética de Mallarmé, defende a tese de que o escritor francês, longe de se preocupar com a representação ideal do mundo, opta por atuar como uma inteligência que poetiza, como um operador da língua (FRIEDRICH, 1978FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991., p. 139). Herdeira deste modo de fazer literário, a literatura moderna tende a desviar-se daquilo que é objetivo e a enfatizar o seu próprio processo de configuração, conduzindo o leitor à compreensão de que o conteúdo destas obras também reside em suas forças estéticas. Por isso, a difícil compreensibilidade é percebida por Friedrich como a primeira característica destes textos que procuram ativar no leitor um processo de interpretação poetizante, participativo e aberto.

Outra questão ressaltada por Friedrich é a exaltação do comum nestes textos que tendem a configurar-se a partir de um amontoado de imagens. De acordo com o teórico, a literatura moderna, ao valer-se da mistura de elementos heterogêneos, procura apresentar o mundo em fragmentos em vez de representá-lo em sua unidade. Marjorie Perloff, em O momento futurista, apresenta a poética de Cendras, desenvolvida durante o avant-guerre europeu, como um exemplo de produção artística estruturada na junção de diversos objetos e materiais.

Conforme explana Perloff, o avant-guerre é o tempo das parole in libertà, isto é, de proposições literárias que não são nem completamente “verso” nem “prosa”, cuja unidade não é nem o parágrafo nem a estrofe, mas a própria página impressa. Para dar cor a esta reflexão, a autora propõe uma análise sobre o texto verbo-visual La Prose du Transsibérien et de la petite Jehanne de France, publicado em 1913, por Blaise Cendras e Sônia Delaunay.

De acordo com a pesquisadora, a campanha publicitária dos artistas anunciava “le premier livre simultané” (PERLOFF, 1993PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993., p. 37) e o subtítulo “poemas, cores simultâneas, numa edição que atinge a altura da Torre Eiffel: 150 exemplares numerados e assinados” (PERLOFF, 1993PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993., p. 31). Notemos que Perloff chama atenção para o efeito de subversão proposto desde o título da obra: embora seja estruturada em versos, Cendras nomeia-a como “a prosa do transiberiano” (PERLOFF, 1993PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993., p. 49).

Em uma carta enviada a Victor Smirnoff (CENDRAS apud PERLOFF, 1993PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993., p. 49), Cendras explica que a escolha da palavra “prosa” para nomear texto, deve-se ao seu cunho mais popular e menos pretensioso que a aura pairante em torno do conceito de “poema”. Para Perloff, ao apresentar-se como uma proposta artística que desafia os limites entre os gêneros literários e põe em xeque a concepção do livro enquanto suporte, o poema expressa uma estética de cunho revolucionário inerente ao período avant-guerre.

Perloff explica que a palavra Transsibèrien, anunciada no título da obra, refere-se à estrada de ferro que ligava a Rússia Ocidental à costa do Pacífico, isto é, trata-se de uma paisagem evocada em um poema-pintura cujas “palavras em liberdade”, arranjadas em tamanhos, tipologias e cores diferentes materializam, no plano artístico, uma alusão à experiência de viagem comumente vivenciada no trem transiberiano do século XX. A pintura de Delaunay, por sua vez, configura-se como uma organização de formas concêntricas, ovais, triangulares e retangulares, cujas cores contrastam-se de forma a enfatizar o efeito de movimento das imagens que compõem a obra de Cendras.

Diferentemente dos poemas e das narrativas de viagem do século XIX, podemos notar aqui uma viagem fragmentada e emendada, cuja montagem, estruturada na justaposição de planos verbo-visuais, assemelha-se à linguagem cinematográfica. Conforme descreve Perloff, esse arranjo de colagem configura a página de La Prose como um quadro de anúncios luminosos e cardápios policrômicos. Sob a perspectiva da estudiosa, ao propor uma distorção na noção convencional de tempo e transfigurar as paisagens evocadas na obra, o poema desafia o leitor a participar desta viagem transiberiana (PERLOFF, 1993PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993., p. 49).

Outra questão importante a ser ressaltada, de acordo com a pesquisadora, é o posicionamento de Cendras no que tange à relação entre arte e sociedade. Segundo Perloff, o artista defende a ideia de que a arte, como integrante da vida, deve incorporar elementos da cultura popular, como o cabeçalho de jornal, a canção e a propaganda, para chegar a um acordo com estas linguagens e se tornar um empreendimento coletivo. De acordo com a escritora,

É esse esforço da obra de arte para assimilar o que não é arte e reagir a isso que caracteriza o momento futurista. Ele representa uma breve fase em que a vanguarda se define pela sua reação com o público de massa. Como tal, o seu extraordinário interesse para nós reside em ser o momento climático de ruptura, o momento em que a integridade do medium, do gênero, de categorias tais como “prosa” e “verso” e, o mais importante, “arte” e “vida” foram questionadas. É o momento em que a colagem, a mise em question da pintura como uma representação da “realidade”, faz seu primeiro aparecimento, quando o manifesto político é percebido esteticamente, da mesma forma que o objeto estético — pintura, poema, drama — é politizado. As mídias — verbal, visual, musical — são cada vez mais utilizadas em conjunção: o futurismo é a época da arte da performance, da chamada poesia do som e do livro de artista

(PERLOFF, 1993PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993., p. 83).

Nota-se, dessa forma, que a obra de Cendras e Delaunay, precedida por Mallarmé e sucedida pelas vanguardas europeias, participa de um movimento moderno interessado em promover uma espécie de ressurreição da arte a partir de uma contínua prática de autorreflexão, de integração da arte à vida e de ruptura de gêneros, formas e meios convencionalmente estabelecidos.

Ao refletirmos sobre as poéticas de Mallarmé, Cendras e Delaunay, notamos que a integração das artes plásticas aos textos literários não pode ser categorizada como uma prática inédita da contemporaneidade. Compreendemos, dessa maneira, que o conceito de “instalação literária”, proposto por Ruffato, nomeia uma tendência artística que permanece há muito tempo em um espaço provisório em meio aos estudos literários.

A antropofagia contemporânea na instalação literária de Luiz Ruffato

"A função da arte não é passar por portas abertas mas antes abrir as fechadas"

Augusto de Campos, em “Mallarmé: O Poeta em Greve”

Herdeira de poéticas modernas, como a mallarmeana e as vanguardistas europeias, Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, alicerça-se em um amontoado de textos verbo-visuais paratáticos, organizados em um livro que se apresenta como um espaço de projeção a essas imagens. Ao levarmos em conta a discussão sobre o conceito de “instalação artística”, desenvolvida em tópicos anteriores, observamos que o aspecto aparentemente inacabado da obra ruffatiana, estruturada em uma “multiplicidade de objetos, imagens e referências” (ROSENTHAL apud CARVALHO, 2005CARVALHO, Ana Albani de. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de especialização e especificidade do sítio. Tese de doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005., p. 109), potencializa a compreensão, defendida pelo próprio escritor, de um texto configurado sob a forma de “instalação literária”.

De acordo com Michael Archer, outrora citado, o inacabamento da instalação pode ser compreendido como um aspecto estético que possibilita a montagem, a desmontagem e a reinstalação desta categoria artística em novos sítios. Em Eles eram muitos cavalos, o inacabamento atua como um elemento que possibilita a realização de uma leitura linear do texto, mas também um modo de ler efetuado a partir da seleção e do embaralhamento da sequência de seus fragmentos (prova disso é sua edição colombiana que, com a anuência do autor, altera a organização sequencial do livro).

Apresentando-se como uma literatura arquitetada em uma poética a um só tempo fragmentada, rápida, imagética e multifacetada, as narrativas de Eles eram muitos cavalos propõem inúmeras reflexões a respeito do cenário urbano e contemporâneo brasileiro. Por meio de “recortes” que trazem diversas histórias de uma grande e caótica metrópole, o escritor põe em cena um mosaico desequilibrado e sujo, composto por crimes, solidão, desestrutura familiar, doença, subempregos, analfabetismo, vícios e outras mazelas que permeiam esta sociedade. Para melhor compreendermos sua configuração estética, leiamos uma passagem deste texto literário:

sim mas é meu filho e suborna a polícia,    o delegado,    o dono da boate,    as garotas de programa,    os leões-de-chácara, sim mas é meu filho sim, claro, a filha mora no Embu, macrofóbica, artista plastic esoteric, os quadros sempre os mesmos quem não tem olhos pra ver (RUFFATO, 2006RUFFATO, Luiz. Entrevista Exclusiva com Luiz Ruffato concedida a Rinaldo de Fernandes. Blog da Beleza/Uol. 27 mai. 2008. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html. Acesso em: 20 mai. 2022.
https://web.archive.org/web/201603040307...
, p. 12, grifos do autor).

Cabe notarmos que a obra não conta com personagens protagonistas, sequência cronológica ou qualquer outro elemento narrativo que entrelace seus episódios em um único enredo. O livro é constituído por cenas breves de diversas vidas anônimas imersas em um contexto urbano de caos e solidão. Ao retratar esses sujeitos, Ruffato propõe uma reflexão em torno da desigualdade social alicerçada na cidade de São Paulo. No decorrer de seus episódios, o texto possibilita a compreensão de que o domínio da metrópole é efetuado pelo sistema que a condena a uma realidade em que o vazio e a servidão marcam as vidas ordinárias de seus operários, submetendo-os ao complexo, crescente e insaciável engenho capitalista. Leiamos, aqui, um trecho de “Trabalho”, um dos textos d’Eles eram muitos cavalos:

Todo dia às cinco horas da tarde toma rumo de casa, no Boi Molhado, a pé, porque nem trocado pra passagem do ônibus tem. Já acompanhou uma montoeira de curso, Senac, Senai, Central do Trabalhador, nenhum asfaltou estrada prum bom emprego. Tudo, mero pretexto para a consentida escravidão, oito horas de suador diário, duzentos paus no fim do mês, ô!, preferível a atoíce, ao menos pagar não paga pra trampar. E vagueia para a casa do sogro, onde se empilham, três anos já, num quartículo, cama de casal, penteadeira, guarda-roupa, bercinho, sufoco danado, mas não é de-favor que moram não, têm orgulho, ara!, a mulher dirige a perua escolar que o pai pôs pra rodar [...]

(RUFFATO, 2006RUFFATO, Luiz. (2001) Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 95).

Ruffato dá cor a personagens socialmente invisíveis por meio da fragmentação do foco narrativo, do tempo e do espaço configurados na obra. Nota-se, por exemplo, que determinados episódios são narrados em terceira pessoa, como se as histórias postas em cena fossem registradas por um fotógrafo, jornalista ou documentarista que assiste de sua janela as paisagens e os acontecimentos sucedidos ao seu redor, apresentando algumas situações sem interferir em nenhuma delas, tal como podemos observar nesta passagem do texto, em que o narrador descreve a movimentação de uma das ruas de São Paulo:

Da escada-rolante emerge, o Edifício Itália funda-se nos seus ombros, a fumaça de carros e caminhões tachos de acarajés coxinhas quibes pastéis, vozes atropelam-se, amalgamam-se, aniquilam-se, em bancas revistas, jornais livros usados, pulseiras brincos colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponchos blusas mantas xales, pontos de ônibus lotados, trombadinhas, engraxates, carrinhos de pipoca, doces caseiros, vagabundos espalhados caídos arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados aleijados

(RUFFATO, 2006RUFFATO, Luiz. Entrevista Exclusiva com Luiz Ruffato concedida a Rinaldo de Fernandes. Blog da Beleza/Uol. 27 mai. 2008. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html. Acesso em: 20 mai. 2022.
https://web.archive.org/web/201603040307...
, p. 39).

Há, porém, enredos narrados em primeira pessoa, tal como podemos observar a partir deste trecho do episódio 20, no qual o leitor é conduzido ao pensamento de uma personagem que reflete sobre seu vizinho, recentemente assassinado: “Mas nós não nos conhecíamos. Nos vimos algumas vezes no elevador de serviço, a caminho da garagem do prédio, uma ou outra vez na piscina, ele lendo a Veja, eu nadando com a Joana e o Afonsinho” (RUFFATO, 2006RUFFATO, Luiz. (2001) Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 46).

Tal como a cidade metropolitana de São Paulo, o macroespaço das narrativas é composto por um mosaico de cenários e atmosferas. As cenas apresentadas na obra são desenroladas isoladamente umas das outras, cada qual em seu respectivo ambiente: estradas, casas e apartamentos, ônibus de viagem, barracos, escolas públicas, táxi, ruas urbanas, etc.

Nota-se, ainda, que a espacialização da obra também se faz pela “colagem” de outros gêneros discursivos que não trazem enredos, mas elementos que circulam pelos hábitos, pelo cotidiano e pelo imaginário urbano brasileiro: horóscopos, classificados de jornais, chat, noticiário, salmos, previsão de tempo, carta, salmos, roteiro de teatro, diploma religioso etc.

7.66 A vibração do número de hoje estimula a realização dos aspectos materiais da vida   (mais dinheiro e prestígio)   pode contar com a ajuda de um amigo influente pode receber uma promoção ou herança: o momento é para ser prático e objetivo (RUFFATO, 2006, p. 18, grifos do autor)

De acordo com Menegazzo, em A poética do recorte, a colagem, no plano das artes, promove um efeito de descontinuidade e, simultaneamente, de criação de um novo espaço discursivo. Nesta perspectiva, “cada elemento ‘colado’ tem uma dupla função de atualização: a do fragmento colado em relação ao contexto de onde foi retirado e a do mesmo fragmento incorporado a um novo conjunto, preservando essa alteridade” (MENEGAZZO, 2004MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte. Campo Grande: Editora UFMS, 2004., p. 55). Além de conduzir o olhar do leitor a uma desautomatização diante da obra, a introdução de diversos gêneros textuais em meio ao espaço literário propõe uma integração da arte à vida. É possível notar, dessa maneira, que embora a participação do público na construção de sentido de uma obra não se limite às produções artísticas pós-Segunda Guerra Mundial, esta relação possui suas especificidades, em termos estéticos e históricos, na contemporaneidade.

Em meio à poética ruffatiana, a colagem rompe diversos princípios convencionais dos modos de representação literária e propicia um efeito de sentido descontínuo, fragmentário, metafórico e multifacetado. Nota-se, além disso, que o aspecto inacabado de seus 69 episódios paratáticos, compostos por diversos objetos, imagens e referências, exige a participação efetiva do público leitor para a apreensão de seus possíveis efeitos de sentido.

Ao desenvolver uma poética por meio da fragmentação do foco narrativo, do tempo e do espaço, alicerçada em um vasto repertório cultural da sociedade ocidental, Ruffato possibilita a compreensão de que uma das mais importantes questões trabalhadas em Eles eram muitos cavalos “é a visão transfigurada e remodelada pelo artista, capaz de dotar a realidade histórica de atributos que não os simplesmente exteriores” (DIMAS, 1986DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1986., p. 7).

Florencia Garramuño, em Frutos estranhos, cita o livro de Ruffato como um tipo de obra contemporânea que se apresenta como uma “forma breve” e informe, frágil ou vulnerável em algum sentido. No decorrer de suas reflexões, a autora utiliza o termo “textos-instalações” ao problematizar a proposta estética do escritor:

A fertilização cruzada entre instalação e literatura se materializa na estruturação de um texto composto de fragmentos diversos que se incorporam ao espaço do livro enquanto materialidades heterogêneas. Como se o texto fosse ele também uma instalação, e sua trama desconjuntada incorporasse objetos diversos no espaço da escrita, ela mesma convertida num cenário em que é possível conviverem os latidos de um cão abandonado, as vicissitudes de uma mãe solteira, as penúrias de um favelado, e a pressa alienada de um profissional ou cardápio de um restaurante efetivamente recolhidos na cidade e copiados no texto. Textos-instalações, portanto, como muitos dos que começam a aparecer de modo cada vez mais insistente, como os textos de Mario Bellatin

(GARRAMUÑO, 2018GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Ensaios sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014., p. 13).

De acordo com Garramuño, o que define esta categoria de arte é o fato de essas obras não se articularem em um lugar específico — vale notar que, mais recentemente, alguns poetas contemporâneos, como André Vallias e Veronica Stigger, passaram a instalar seus respectivos poemas em museus e em websites — e nem se sustentarem em uma identidade homogênea. Herdeiras de vanguardas modernistas, tais produções literárias contemporâneas costumam questionar a especificidade de um meio ao utilizar vários suportes diferentes, nos quais se entrecruzam a música, a literatura, o cinema e a fotografia. Leiamos, aqui, a maneira pela qual Garramuño compreende essas expressões artísticas:

Frutos estranhos e inesperados, difíceis de serem categorizados e definidos, que, nas suas apostas por meios e formas diversas, misturas e combinações inesperadas, saltos e fragmentos soltos, marcas e desenquadramentos de origem, de gêneros — em todos os sentidos do termo — e disciplinas, parecem compartilhar um mesmo desconforto em face de qualquer definição específica ou categoria de pertencimento em que instalar-se

(GARRAMUÑO, 2018GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Ensaios sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014., p. 6–7).

Segundo Garramuño, a proposta do entrecruzamento de meios e suportes tem sido um recurso cada vez mais prolífico em meio à produção artística contemporânea. De acordo com a estudiosa, a expansividade dos meios e suportes em meio a essas produções artísticas advém do desejo ou da necessidade de um desmantelamento de toda a ideia relacionada à pureza entre as mais diversas espécies discursivas. Trata-se, pois, de uma arte que propõe a desconstrução de hierarquias entre autor e espectador, entre a ação e a contemplação, apresentando “outros modos de organizar nossos relatos, e, porque não?, também nossas comunidades” (GARRAMUÑO, 2018GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Ensaios sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014., p. 24). Sem deixar de assumir a autoria de seus respectivos trabalhos, esses escritores contemporâneos convidam seus leitores a percorrerem, em suas obras, caminhos interpretativos cada vez mais abertos.

Conforme explana Garramuño, ao incorporar no texto os mais diversos gêneros discursivos, essas obras multimídias expressam a proposta, anunciada desde as vanguardas europeias, de imbricar a prática artística em meio à experiência de vida contemporânea (GARRAMUÑO, 2018GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Ensaios sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014., p. 26). Sob a perspectiva de Hal Foster, Menegazzo, em “A vida: outro modo de usar”, propõe uma reflexão sobre os mecanismos utilizados pelas artes contemporâneas para rasurarem a superfície do simulacro e configurarem o efeito de um realismo traumático. Dentre outras obras plásticas e literárias, a autora discorre sobre o jogo de tensões atravessado em Eles eram muitos cavalos. Conforme explana a estudiosa, ao se apropriar de gêneros discursivos primários (como horóscopos, informações climáticas e orações) e os transformar em componentes de um gênero discursivo secundário (o texto literário), Ruffato apresenta “um outro modo de usar a vida, a realidade” (MENEGAZZO, p. 179, 2010MENEGAZZO, Maria Adélia. A vida: outro modo de usar. O retorno do real e as artes contemporâneas. In: MENEGAZZO, Maria Adélia. Concinnitas: arte, cultura e pensamento. Rio de Janeiro: UERJ, 2010.). Neste viés, o aspecto prismático desta poética impede a contemplação passiva do leitor para convidá-lo a formar o seu próprio itinerário de leitura.

Conforme explana Menegazzo, ao recortar diversos gêneros que fazem parte do cotidiano e colar em seu texto literário, Ruffato derruba “os limites entre classes sociais, fazeres, crenças e ideologias, compondo um todo heterogêneo que impõe o posicionamento crítico do narrador ao leitor” (MENEGAZZO, 2010MENEGAZZO, Maria Adélia. A vida: outro modo de usar. O retorno do real e as artes contemporâneas. In: MENEGAZZO, Maria Adélia. Concinnitas: arte, cultura e pensamento. Rio de Janeiro: UERJ, 2010., p. 178). Nesta perspectiva, a diversidade polifônica e a repetição discursiva (exemplificada em trechos citados anteriormente), amplamente empregadas na obra, são compreendidas como estratégias estéticas utilizadas pelo escritor para manifestar sua crítica à indiferença da sociedade contemporânea diante de seus próprios problemas:

O que se percebe é que na arte contemporânea há um investimento na repetição como recurso para domesticação visual, a banalização do real apropriado. No entanto, nesse investimento, que nada mais é do que um outro modo de usar a vida, emerge a visão crítica. Não se trata de jogar a subjetividade contra a objetividade, testada e aprovada pela crítica e/ou pela história, mas de atentar para o fato de que talvez a vivência direta da arte e a consciência da singularidade de cada experiência cotidiana tornada estética seja a resposta que se pode obter de uma obra de arte contra a indiferença domesticada

(MENEGAZZO, 2010MENEGAZZO, Maria Adélia. A vida: outro modo de usar. O retorno do real e as artes contemporâneas. In: MENEGAZZO, Maria Adélia. Concinnitas: arte, cultura e pensamento. Rio de Janeiro: UERJ, 2010., p. 83).

Ao propor uma arte que se apresenta como uma forma de resistência a uma estética dominante, isto é, à forma romanesca, o autor expressa um posicionamento comprometido com a liberdade de ler e se expressar no mundo. É por meio de uma poética revolucionária — um caos discursivo composto por fragmentos que dão forma a um universo metropolitano subalterno — que Ruffato traz à tona, em Eles Eram Muitos Cavalos, algumas questões emudecidas pela historiografia oficial brasileira.

Vale notar, por exemplo, que uma das passagens mais longas e significativas d’Eles eram muitos cavalos apresenta a figura de um indígena, na condição de morador de rua, habitando a cidade de São Paulo. No trecho citado a seguir é possível observar uma das humilhações vivenciadas por esta personagem:

De tal maneira que o que toda gente sabe é que um final de tarde o bugre apareceu no boteco, encostou a pança careca no balcão de fórmica vermelha ensebado, pediu uma cachaça na língua enromeilada dele, alguém viu graça, bancou o prejuízo, e o selvagem, noite adentro, tornando-se alegre, foi para o meio do asfalto dançar, e os sem-juízo cercaram ele numa roda batendo palmas, o bicho se entusiasmou, arrancou a roupa sob aplausos do povaréu, e ficou balangando os negócios, crianças e mulheres passando, e juntou vagabundo e trabalhador, a arruaça contagiou aquele canto do bairro, uma esbórnia. Até que alguém, sempre um desmancha prazeres, convocou a polícia

(RUFFATO, 2006RUFFATO, Luiz. (2001) Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 31).

Notamos, assim, que o escritor toma “a palavra ainda quente de uma luta não resolvida” (BAKHTIN, 1998BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Carlos Vogt e Eny Orlandi. 4. ed. São Paulo: UNESP, 1998., p. 133) para apresentar uma reflexão, livre de qualquer viés ufanista, sobre o cenário contemporâneo brasileiro. Dialogando com diversas poéticas que compõem o repertório da tradição literária ocidental, Luiz Ruffato propõe uma compreensão de mundo desautomatizada por meio de uma estética fragmentária.

Considerações Finais

Partindo do objetivo de apreender e explanar o conceito de “instalação literária”, aplicado à poética do escritor contemporâneo brasileiro Luiz Ruffato, propomos um estudo essencialmente ancorado ao diálogo entre a literatura e as artes visuais. Para tanto, além de investigarmos a compreensão do escritor a respeito desta forma literária, apresentamos a definição de “instalação artística” sob a perspectiva de diversos estudiosos da área de Artes Visuais. Procuramos evidenciar, a partir deste levantamento teórico, a aproximação da proposta literária de Ruffato, em Eles eram muitos cavalos (2001/2006), ao conceito artístico de “instalação”. Herdeira de poéticas modernas, como a mallarmeana e as vanguardistas europeias, a obra desafia os limites convencionalmente estabelecidos, desde o século XIX, entre os gêneros literários tradicionais ao configurar-se a partir da junção, aparentemente caótica, de inúmeras categorias discursivas. Organizado em 69 episódios paratáticos — configurados em um aspecto inacabado, híbrido e fragmentário –, o livro de Ruffato convida o leitor a percorrer o seu próprio itinerário de leitura e a refletir, de modo descentrado, a respeito de diversos problemas socioculturais que permeiam a contemporaneidade brasileira. Diante do desafio de desenvolver uma análise que viesse a contribuir com a compreensão deste complexo texto literário, determinados estudos interartísticos, propostos por autoras como Maria Adélia Menegazzo, Marjorie Perloff, Florência Garramuño e Ana Albani de Carvalho, foram determinantes para a realização deste trabalho.

Referências

  • ARBEX, Márcia. Poéticas do visível: uma breve introdução. In: ARBEX, Márcia (Org.) Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem Belo Horizonte: UFMG, 2006. P. 17–62.
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  • CAMPOS, Augusto de. Mallarmé: O Poeta em Greve. In: Mallarmé São Paulo: Perspectiva, 2010. p.149–173.
  • CARVALHO, Ana Albani de. Instalação como problemática artística contemporânea: os modos de especialização e especificidade do sítio. Tese de doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
  • DIMAS, Antonio. Espaço e romance São Paulo: Ática, 1986.
  • EVANGELISTA, Roberto. Ritos de passagem. Projeto para Universalis. Instalação. Caixas de sapato, sapatos usados, pedras de lioz, areia, vidro, 1.000 x 1.000 cm. In: Fundação Bienal de São Paulo, 23ª Bienal de São Paulo — A desmaterialização da arte no final do milênio São Paulo: Fundação Bienal, 1996.
  • FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna São Paulo: Duas Cidades, 1991.
  • GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Ensaios sobre a inespecificidade na estética contemporânea Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
  • MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados jamais abolirá o acaso. In: MALLARMÉ, Stéphane. Mallarmé São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 149–173.
  • MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte Campo Grande: Editora UFMS, 2004.
  • MENEGAZZO, Maria Adélia. A vida: outro modo de usar. O retorno do real e as artes contemporâneas. In: MENEGAZZO, Maria Adélia. Concinnitas: arte, cultura e pensamento Rio de Janeiro: UERJ, 2010.
  • PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: USP, 1993.
  • RUFFATO, Luiz. (2001) Eles Eram Muitos Cavalos São Paulo: Boitempo Editorial, 2006
  • RUFFATO, Luiz. Entrevista Exclusiva com Luiz Ruffato concedida a Rinaldo de Fernandes. Blog da Beleza/Uol 27 mai. 2008. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html Acesso em: 20 mai. 2022.
    » https://web.archive.org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html
  • RUFFATO, Luiz. Literatura em diálogo. Revista E n. 250, 30 mar. 2017. Disponível em: https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10813_LITERATURA+EM+DIALOGO Acesso em: 20 mai. 2022.
    » https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10813_LITERATURA+EM+DIALOGO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    03 Maio 2022
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