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London, Jack. Caninos Brancos. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 294 p.

London, Jack. Caninos Brancos. Moreira, Sonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294

White Fang (título original de Caninos Brancos), escrito em 1906 por Jack London, é um romance carregado de ações e descrições que sugerem ao leitor imagens complexas expressas pelo uso de uma linguagem simples e concisa, o que torna este livro uma obra prazerosa e de leitura fluente. Caninos Brancos traz, ainda, uma das características das obras deste escritor: a discussão explícita de questões político-ideológicas presentes na organização social de seu tempo, mas que alcançam, certamente, nossa época. Seu estilo singular tem uma história.

Jack London1 1 Biografia adaptada da The Encyclopedia of Twentieth-Century Fiction. v. 2 Oxford: Blackwell, 2011. p. 671-675. (1876-1916) iniciou sua carreira como escritor numa época em que a tecnologia da imprensa já estava bem desenvolvida, tornando os materiais impressos publicáveis a um preço acessível. Provavelmente, mais conhecido pela trilogia dos livros dos lobos The Call of the Wild (1903), White Fang (1906) e The Sea Wolf (1904), London foi um dos primeiros americanos a fazer uma carreira lucrativa através da escrita.

Assim como fizeram seus contemporâneos, William Dean Howells, Mark Twain, Kate Chopin, Charles Chesnutt, Stephen Crane e Frank Norris, da emergente corrente naturalista e realista, London fez uso de discursos que descreviam as tecnologias industriais tayloristas, bem como das discussões dos fatos relatados diariamente nos jornais, como formas basilares para as suas construções literárias. Essas marcas de realidade aparecem ao longo de todo o romance que conta a história de um lobo, habitante do ártico, White Fang.

White Fang, o livro, traz a saga de um lobo miscigenado chamado White Fang, que desde o seu nascimento enfrenta circunstâncias hostis. Primeiro, nas terras geladas do Norte, tem que lutar todos os dias por sua vida, aprendendo, assim, as leis do mundo selvagem. Em seguida, em um acampamento tribal, sujeito aos homens (deuses para o lobo) e suas leis, tem que se adequar às regras de convívio que lhe eram alheias. E, por fim, nas terras do Sul da América do Norte, onde White Fang encontra diversas criações do homem moderno, manifestações indiscutíveis de seu poder. Dentre todos os incidentes vividos por esse herói, destaca-se sua incrível adaptabilidade ao novo. Do ponto de vista verbal, trata-se de um romance de linguagem fácil, de leitura rápida, mas repleto de construções linguísticas complexas.

Esta edição de Caninos Brancos, em tradução de Sonia Moreira2 2 SONIA MOREIRA é mestre em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professora do curso de Formação de Tradutores na mesma instituição. Traduziu Oscar Wilde (A importância de ser prudente e outras peças), Frances Hodgson Burnett (O jardim secreto), Saul Bellow (As aventuras de Augie March ), Carson McCullers (O coração é um caçador solitário), Paula Fox (A costa oeste), Cynthia Ozick (O xale), P. D. James (Morte em Pemberley), Jonathan Lethem (A fortaleza da solidão) e Jonathan Franzen (Tremor), entre outros. , conta com uma introdução do romancista Daniel Galera. Galera discute a relação do homem com seus animais de estimação, especialmente os cães. Ressalta que, mesmo fora da literatura, os cães muitas vezes são considerados como um membro da família. Esse aspecto antropomorfizador do lobo é constante nos livros de London, criticado por um “naturalismo falso e sentimental”, entre outros, pelo presidente Roosevelt. Galera também destaca como característica do autor “uma visão de mundo materialista e científica e um fascínio pela lei do mais forte e pela pureza ancestral da violência” (GALERA, 2014GALERA, Daniel. Introdução – Lobos dóceis, deuses caprichosos. In: LON-DON, Jack. White Fang. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 7-15., p. 11).

Sonia Moreira, por seu turno, parece restituir toda a dívida contraída ao investir-se na tarefa3 3 Paráfrase à citação de Constance B. West: “Whoever takes upon himself to translate contracts a debt; to discharge it, he must pay not with the same money, but the same sum.” da tradução. A tradutora faz uso de um vocabulário variado, preciso e bem articulado. Um dos pontos fortes de London é a riqueza de descrição de cenários, estados e ações. Esse aspecto é muito bem recuperado nesta tradução, como se pode observar no trecho seguinte, em que os animais famintos enfrentam a escassez com determinação: caçando e resistindo à caçada.

Half an hour passed, an hour; and nothing happened. The balls of quills might have been a stone for all it moved; the lynx might have been frozen to marble; and old One Eye might have been dead. Yet all three animals were keyed to a tenseness of living that was almost painful, and scarcely ever would it come to them to be more alive than they were then in their seeming petrifaction. (LONDON, 2005LONDON, Jack. White Fang. Webster’s Thesaurus Edition for PSAT®, SAT®, GRE®, LSAT®, GMAT®, and AP® English Test Preparation. San Diego: ICON, 2005. 313 p., p. 50).

Meia hora se passou, depois uma hora, e nada aconteceu. A bola de espinhos poderia ser uma pedra de tão imóvel; a fêmea de lince parecia uma estátua de mármore; e o velho Caolho dava a impressão de estar morto. No entanto, todos os três estavam tomados por uma tensão de viver que era quase dolorosa, e dificilmente viria a acontecer de os três estarem mais vivos do que estavam naquele momento, na sua aparente petrificação. (LONDON, 2014LONDON, Jack. Caninos Brancos. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294 p., p. 75-76).

Como se vê, Moreira emprega a língua de chegada com naturalidade. O desprendimento da letra do original, a inclusão de vocábulos e a alteração na pontuação trazem, paradoxalmente, um efeito de fidelidade ao original, que uma tradução literal dificilmente seria capaz. Isso pode ser observado tanto no trecho anterior, como no que se segue, em que há a troca do pronome objeto pela palavra “lobinho”, fazendo referência a Caninos Brancos nos seus primeiros anos de vida.

But it was not altogether an unhappy bondage. There was much to interest him. (LONDON, 2005LONDON, Jack. White Fang. Webster’s Thesaurus Edition for PSAT®, SAT®, GRE®, LSAT®, GMAT®, and AP® English Test Preparation. San Diego: ICON, 2005. 313 p., p. 96).

O cativeiro, porém, não era de todo ruim. Havia muita coisa na aldeia que despertava o interesse do lobinho. (LONDON, 2014LONDON, Jack. Caninos Brancos. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294 p., p. 132).

No lado oposto do contínuo dicotômico tradutório, a literalidade perceptível, que exprime o estilo de London, registra-se na manutenção da pontuação, a qual objetiva tornar o texto-alvo tão rápido quanto o texto-fonte através do uso de períodos curtos. Segue, abaixo, um dos tantos trechos de Caninos Brancos que prendem o leitor pela sucessão de ações e o surpreendem pela minúcia descritiva. Como resultado, o leitor é levado a ler páginas e mais páginas ininterruptamente.

A loba sedutora atrai suas presas para que seu bando possa se alimentar.

As he neared her, he became suddenly cautious. He slowed down to an alert and mincing walk and then stopped. He regarded her carefully and dubiously, yet desirefully. She seemed to smile at him, showing her teeth in an ingratiating rather than a menacing way. (LONDON, 2005LONDON, Jack. White Fang. Webster’s Thesaurus Edition for PSAT®, SAT®, GRE®, LSAT®, GMAT®, and AP® English Test Preparation. San Diego: ICON, 2005. 313 p., p. 23).

Quando chegou mais perto dela, Uma Orelha se acautelou de repente. Parou de correr, começou a andar de um jeito alerta e afetado e depois estacou. Fitou a loba com cuidado e desconfiança, mas também com desejo. Ela pareceu sorrir para ele, mostrando os dentes de um modo que, em vez de ameaçador, era insinuante. (LONDON, 2014LONDON, Jack. Caninos Brancos. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294 p., p. 42).

Nesse excerto, como em praticamente toda a tradução, há o mesmo número de períodos que no texto original.

Se Moreira mantém a literalidade no que concerne à pontuação, sua liberdade na substituição do que poderia estar cristalizado como “correspondentes lexicais” no par de línguas é frutífera em efeitos. Vejamos:

This certitude was shown by the whole pack. Fully a score he could count, staring hungrily at him or calmly sleeping in the snow. They reminded him of children gathered about a spread table and awaiting permission to begin to eat. And he was the food they were to eat! He wondered how and when the meal would begin. (LONDON, 2005LONDON, Jack. White Fang. Webster’s Thesaurus Edition for PSAT®, SAT®, GRE®, LSAT®, GMAT®, and AP® English Test Preparation. San Diego: ICON, 2005. 313 p., p. 27).

Essa convicção era demonstrada pela alcateia inteira. Henry contou nada menos que vinte lobos, que o encaravam com ar faminto ou dormiam calmamente na neve. Eles o faziam lembrar crianças reunidas em torno de uma mesa farta, à espera da permissão para começar a comer. E ele era a comida que eles iam devorar! Henry se perguntava como e quando a refeição iria começar. (LONDON, 2014LONDON, Jack. Caninos Brancos. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294 p., p. 47-48).

A troca deliberada de “comer” (“eat”) por “devorar” traduz-se numa tentativa feliz de causar impacto no leitor (ao mesmo tempo que resolve um problema de repetição), já que as feras famintas por carne só poderiam mesmo disputá-la avidamente.

Ou, neste caso:

He was laying up trouble for himself, for lack of food and short tempers went together; but with the boundless faith of youth he persisted in repeating the manoeuvre every little while, though it never succeeded in gaining anything for him but discomfiture. (LONDON, 2005LONDON, Jack. White Fang. Webster’s Thesaurus Edition for PSAT®, SAT®, GRE®, LSAT®, GMAT®, and AP® English Test Preparation. San Diego: ICON, 2005. 313 p., p. 37).

Ele estava procurando sarna para se coçar, pois falta de comida sempre deixa os ânimos exaltados; mas, tendo a confiança ilimitada dos jovens, ele volta e meia teimava em repetir a manobra, embora nunca conseguisse nada com ela a não ser aborrecimento. (LONDON, 2014LONDON, Jack. Caninos Brancos. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294 p., p. 59).

Aqui a tradutora lança mão de uma expressão popular e aproxima a obra ao leitor brasileiro, usando uma linguagem significativa e idiomática através do dito “procurar sarna pra se coçar”. É o que afirma Umberto Eco ao explicar que antes de considerar “que uma língua natural tenha imposto uma ordem ao nosso modo de exprimir o universo, é necessário tomar conhecimento do continuum que é a matéria pré-linguística, ou ainda, uma massa amorfa indiferenciada. Partes dessa massa são organizadas linguisticamente, e é aí, na forma de estruturar, organizar essa massa, que reside a singularidade de cada língua (ECO, 2011ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. 403 p., p. 39).

Poder-se-ia, nessa resenha, elencar várias características da tradução de Moreira: suas escolhas, a resolução de alguns problemas de tradução, seu caráter domesticador. Por ora, basta ressaltar sua habilidade com a língua portuguesa e sua competente interpretação do texto-fonte, com um texto que segue de perto o original, mas que, ao mesmo tempo, tem elegância e originalidade próprias.

  • 1
    Biografia adaptada da The Encyclopedia of Twentieth-Century Fiction. v. 2 Oxford: Blackwell, 2011. p. 671-675.
  • 2
    SONIA MOREIRA é mestre em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professora do curso de Formação de Tradutores na mesma instituição. Traduziu Oscar Wilde (A importância de ser prudente e outras peças), Frances Hodgson Burnett (O jardim secreto), Saul Bellow (As aventuras de Augie March ), Carson McCullers (O coração é um caçador solitário), Paula Fox (A costa oeste), Cynthia Ozick (O xale), P. D. James (Morte em Pemberley), Jonathan Lethem (A fortaleza da solidão) e Jonathan Franzen (Tremor), entre outros.
  • 3
    Paráfrase à citação de Constance B. West: “Whoever takes upon himself to translate contracts a debt; to discharge it, he must pay not with the same money, but the same sum.”

Referências

  • ECO, Umberto. Quase a mesma coisa Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. 403 p.
  • GALERA, Daniel. Introdução – Lobos dóceis, deuses caprichosos. In: LON-DON, Jack. White Fang Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 7-15.
  • LONDON, Jack. White Fang Webster’s Thesaurus Edition for PSAT®, SAT®, GRE®, LSAT®, GMAT®, and AP® English Test Preparation. San Diego: ICON, 2005. 313 p.
  • LONDON, Jack. Caninos Brancos Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 294 p.
  • PEASE, Donald; LONDON, Jack. In: SHAFFER, Brian (Ed.). The Encyclopedia of Twentieth-Century Fiction 1. ed. v. 2. Oxford: Blackwell, 2011. p. 671-675.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2016
  • Aceito
    12 Abr 2016
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