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Gênese do taylorismo como ideologia: acumulação, crise e luta de classes

The genesis of Taylorism as ideology: accumulation, crisis and class struggle

Resumo

O artigo objetiva estudar a gênese do taylorismo como ideologia a partir dos elementos fundamentais do modo de produção capitalista. Diferenciando os esforços feitos nas tradições principais sobre o assunto, o estudo contribui para avançar os achados do materialismo histórico, aprofundando-se a respeito da fase histórica de desenvolvimento do taylorismo como formação ideal: a fase da acumulação, a crise do século XIX e o estágio da luta de classes no período de elaboração de Taylor. Defende-se que o taylorismo é uma resposta tardia ao processo de acumulação.

Palavras-chave:
Taylorismo; Ideologia; Acumulação; Crise; Luta de Classes

Abstract

This paper presents the genesis of Taylorism as ideology through the main elements of the capitalist mode of production. Differentiating the efforts made by main traditions about the issue, this study uses historical materialism to capture the essential aspects of the historical phase of Taylorism development as ideal formation: the phase of accumulation, the XIX century crisis and the stage of class struggle in the period of Taylor elaboration. We argue Taylorism is a late response to the accumulation process.

Keywords:
Taylorism; Ideology; Accumulation; Crisis; Class Struggle

Gênese do taylorismo como problema material

É impossível subestimar os efeitos do taylorismo no desenvolvimento do capitalismo na primeira metade do século XX. É praticamente inútil colecionar todo o registro da disseminação das modificações na organização do trabalho em diferentes partes do mundo ao longo do século XX e referências ao scientific management. Determinar seus efeitos não é, portanto, um ponto de dificuldade para a investigação interessada no estudo histórico das teorias da administração ou, de modo mais geral, do pensamento administrativo1 1 Ainda que seja consistente o debate sobre tais efeitos, por exemplo, na particularidade brasileira anterior a 1970 -contraste Vargas (1985) e Antonacci (1993) -, é impossível cerrar os olhos para a chegada e difusão, ainda que limitada, principalmente no contexto paulista (pelo menos de 1918 em diante), da assim chamada racionalização, cuja pertinência como objeto de investigação deve ser resguardada ao estudo das teorias da administração e ideologia no Brasil (Paço Cunha & Guedes, 2016). .

A dificuldade começa quando a matéria é a gênese, em solo estadunidense, do taylorismo como formação ideal que, por decorrência, condiciona a função social que desempenhou na transição entre os séculos XIX e XX e além. Houve esforços, poucos na verdade, na direção de explicar a gênese dessa formação ideal particular, contribuindo para o estudo do conhecimento de talhe administrativo que se ocupa do entrelaçamento geral entre pensamento e sociedade2 2 Este aspecto contributivo dá ensejo para o enquadramento da presente discussão em uma sociologia do conhecimento. Como se sabe, as trilhas dessa sociologia não são lineares, partem mais claramente de Max Scheler, Karl Mannheim e Robert Merton, e alcançam a nova sociologia da ciência a partir dos anos de 1960 e também sua crítica. Nos fundamentos, particularmente naqueles presentes em Mannheim, estão as influências da problematização iniciada por Marx a respeito da relação entre consciência e relações materiais. Tais influências foram descaracterizadas ao longo do século XX em nome de uma causalidade mecânica. Como ficará evidenciado adiante, nossa posição recupera aquela problematização e difere tanto da linha geral da sociologia do conhecimento quanto da redução linear, pois nossos fundamentos estão ancorados na investigação da formação ideal a partir da usinagem “ontossocietária do pensamento” (Vaisman, 1999) e que reconhece o enraizamento prático do plano das ideias (Mészáros, 1993). . Tais esforços foram, quando não incorretos, relativamente vagos e passíveis de aprofundamento. Não basta, por exemplo,

ter presente . . . que essas ideologias difundidas no meio empresarial têm estreita ligação com o momento político e econômico de cada país. Os próprios fundamentos das obras de Taylor têm de ser entendidos dentro do contexto internacional e, particularmente, americano do início do século. (Fleury & Vargas, 1987Fleury, A., & Vargas, N. (Orgs.). (1987). Aspectos conceituais. In Organização do trabalho (pp. 17-37). São Paulo, SP: Atlas., p. 18)

Em termos sintéticos, é possível dizer que existem pelo menos três tendências em direções relativamente distintas na explicação da gênese do taylorismo. A primeira, muito comum aos livros didáticos, é a tendência de aceite das explicações que o próprio Taylor fornece: prevalência de métodos empíricos, desperdício, “cera” etc. Aqui é a experiência pessoal do autor nas indústrias pelas quais passou e seu íntimo desejo de elevar a “eficiência” e a “prosperidade” que explicam o desenvolvimento da formação ideal. É um método mais simples, poupa tempo, mas nos parece arbitrário supor que o próprio Taylor estivesse em condições de explicar corretamente o próprio processo em que estava imerso. É igualmente incerto que, como demonstraremos adiante, tenha extraído das condições objetivas a potência científica necessária à ultrapassagem dos níveis superficiais da realidade.

A segunda é a tendência de talhe diretamente weberiano. Por ela se explica que a “exigência da realização mais rápida possível das tarefas oficiais, além de inequívoca e contínua, é atualmente dirigida à administração, em primeiro lugar, pela economia capitalista moderna” (Weber, 1999Weber, M. (1999). Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB., p. 212). Nessa consideração, o aspecto decisivo, no entanto, não é a “economia capitalista moderna” (“moderna”, pois, para o autor, havia capitalismo na China, no Egito etc.), mas a ideia de que a “subsistência de toda ‘dominação’”, sempre entre aspas, “depende, no mais alto grau, da autojustificação mediante o apelo aos princípios de sua legitimação” (p. 197). Não por menos, Bendix (1974Bendix, R. (1974). Work and authority in industry: Managerial ideologies in the course of industrialization. Hoboken: John Wiley & Sons.) enfatizou em seu estudo a abordagem sobre a “relação de autoridade entre empregadores e trabalhadores” de modo a localizar as “ideologias gerenciais as quais justificam aquela autoridade” (p. 434, tradução nossa). É que a tônica de Weber recai não sobre a economia capitalista (tomada sempre de modo geral e em identidade a qualquer sistema monetário previamente existente), mas sobre o desenvolvimento por efeito de uma racionalização da cultura do “capitalismo moderno”. Nesse contexto, Weber (1999)Weber, M. (1999). Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB. sublinhou que “a disciplina descansa aqui completamente numa base racional, calculando em grau crescente, com a ajuda de métodos de medição adequados, o ótimo de rentabilidade de cada trabalhador individual, do mesmo modo que se faz com um meio de produção material” (p. 362). Assim, o próprio taylorismo tem arranque no caldo racionalizador, pois o “máximo triunfo festeja, como é sabido, o adestramento e treinamento racional do trabalho produtivo, baseado nestes cálculos, no sistema americano do scientific management, o qual chega às últimas consequências da mecanização e do disciplinamento da empresa” (p. 362).

Ainda nessa segunda tendência, e de modo bastante explícito para indicar a gênese do taylorismo, Guerreiro Ramos (2008Guerreiro Ramos, A. (2008). Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho. Brasília, DF: Conselho Federal de Administração.) explica que os

sistemas de racionalização, que se constituíram a partir de Taylor, não são criações abruptas, mas se precipitaram de um ambiente sociocultural que se formou muito lentamente. Eles são consequência lógica de uma radical transformação da atitude do espírito humano em face da natureza e da sociedade. (p. 43)

O taylorismo, portanto, teria gênese como desdobramento (lógico) da história das ideias; é resultado de um “ambiente racionalizador” (Guerreiro Ramos, 2008Guerreiro Ramos, A. (2008). Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho. Brasília, DF: Conselho Federal de Administração., p. 55). Com a desvantagem de ser mais weberiano do que o próprio Weber, o autor baiano redundou a relação entre o taylorismo e o protestantismo, pois, para ele, é de fato “significativo que Taylor seja descendente de uma família de ‘quakers’ e puritanos. O protestantismo teve certamente papel positivo, direto ou indireto, na formação do ambiente racionalizador” (p. 55). A tônica é a dimensão cultural, por assim dizer, o momento mais subjetivo, como justificação da existência da formação ideal.

Há nessa tendência posições intermediárias, como o caso de Tragtenberg. Por um lado, propõe que a “grande divisão de trabalho entre os que pensam e os que executam se realiza na grande empresa . . . [cria] as condições econômicas ao surgimento do taylorismo” (Tragtenberg, 1974Tragtenberg, M. (1974). Burocracia e ideologia. São Paulo, SP: Editora Ática., p. 71, grifo do autor) como, de modo geral, Weber também não deixou de apontar. Aparentemente dá ensejo para a compreensão da gênese material do taylorismo como prática gerencial, mas a tônica é outra quando o assunto é a formação ideal. Para essa, há a mesma tendência que em Guerreiro Ramos de enfatizar com muita força os aspectos religiosos a partir de uma leitura dos enunciados weberianos. Ilustrativamente, lemos que “Taylor, oriundo de uma família de quakers, foi educado na observação estrita do trabalho, disciplina e poupança. Educado para evitar a frivolidade mundana, converteu o trabalho numa autêntica vocação” (Tragtenberg, 1974Tragtenberg, M. (1974). Burocracia e ideologia. São Paulo, SP: Editora Ática., p. 73, grifo do autor).

Na mesma direção de enfatizar essa posição intermediária, Motta (2001Motta, F. C. P. (2001). Teoria das organizações: evolução e crítica (2a ed.). São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning.) esclareceu que o “taylorismo tem por função essencial passar, para a direção capitalista do processo de trabalho, os meios de se apropriar de todos os conhecimentos práticos, que, de fato, até então, eram monopolizados pelos operários” (p. 64). Como de hábito, desliza da economia à religião ao grafar que “Taylor nasceu numa família quaker da Nova Inglaterra, e o seu trabalho na indústria revela toda a moral do protestantismo ascético em perfeita consonância com o espírito do capitalismo” (p. 65, grifo do autor).

Essas posições intermediárias transitam entre determinar a gênese da formação ideal a partir do capitalismo, sempre sem especificidade, e apresentar essa formação por efeito de racionalização da cultura, da história das ideias e da origem religiosa que teria marcado a personalidade de Taylor. Essa transição, no entanto, dá ensejo para explicações da gênese mais atinentes às especificidades do capitalismo. É ainda o caso de Motta que, apesar do tom genérico, foi capaz de explicitar, seguindo João Bernardo (1977Bernardo, J. (1977). Marx crítico de Marx (3 vols.). Porto: Afontamento.), que

ciclos de mais-valia relativa implicam uma instrumentalização técnica e administrativa. Eles pontuam o que podemos chamar de dinâmica do sistema capitalista e são determinados pelas lutas sociais. Os aumentos na produtividade implicam inovação administrativa. As teorias organizacionais, que surgem cada vez mais rapidamente, visam promover a inovação e, ao mesmo tempo, legitimá-la socialmente. (Motta, 2001Motta, F. C. P. (2001). Teoria das organizações: evolução e crítica (2a ed.). São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning., p. 109)

Aqui está uma das chaves importantes na direção da terceira tendência ao determinar os fatores explicativos mais detidamente nos traços fundamentais do modo de produção capitalista.

Os problemas da gênese ficam mais evidenciados. Braverman (1977Braverman, H. (1977). Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), por exemplo, entrevê o taylorismo como uma resposta ao acirramento da luta de classes. Escreveu ele que os “capitalistas estavam tateando em direção a uma teoria e prática da gerência” (p. 67). Parafraseando Clausewitz, aponta o desenvolvimento do taylorismo na empresa como um “movimento num meio resistente porque implica o controle de massas refratárias” (p. 68, grifo do autor). Considerando Taylor como síntese de processos anteriores, sugere a existência de

um enorme aumento no tamanho das empresas, os inícios da organização monopolística da indústria, e a intencional e sistemática aplicação da ciência à produção. O movimento da gerência científica iniciado por Frederick Winslow Taylor nas últimas décadas do século XIX foi ensejado por essas forças. (p. 82)

Trata-se de uma formação ideal que parte do “ponto de vista do capitalista, do ponto de vista da gerência de uma força de trabalho refratária no quadro de relações sociais antagônicas” (p. 83). Aqui se registram pelo menos dois aspectos importantes aos quais voltaremos: o estágio de desenvolvimento da produção e o estágio da luta de classes.

Antes de prosseguir, é preciso reforçar essa terceira tendência. Outro exemplo encontramos em Coriat (1982Coriat, B. (1982). El taller y el cronómetro: Ensayo sobre el taylorismo, el fordismo y la producción en masa (12a ed.). Ciudad de México: Siglo XXI.), que restringiu as “condições da formação do taylorismo” (p. 24) aos processos migratórios que modificaram a composição da classe trabalhadora nos Estados Unidos. Mas, em outra obra, deteve-se no ponto também fundamental segundo o qual, certo ou errado, “na medida em que é um método de organização do trabalho, o taylorismo é um método particular - e particularmente eficaz - de produzir mais-valia relativa” (Coriat, 1976Coriat, B. (1976). Ciencia, técnica y capital. Madrid: Hermann Blume Ediciones., p. 96, tradução nossa). Ainda mais decisivo, o autor escreveu que o “nascimento e desenvolvimento do taylorismo” é uma das “respostas que o capital americano aporta para vencer a resistência dos trabalhadores e assegurar seu desenvolvimento” (p. 91). E arremata: “ao fundo, trata-se de conseguir a supressão de certa classe de freios, ou melhor, de discrepâncias que obstacularizam a expansão do capital e sua valorização” (p. 91). Aqui se coloca o aspecto decisivo da acumulação (à qual também voltaremos) no subsolo do desenvolvimento de uma organização do trabalho na transição entre os séculos XIX e XX.

Resta, ainda, uma indicação pouco ventilada, embora seja decisivamente importante. Trata-se da crise econômica de lucratividade entre 1872 e 1896, que corta aproximadamente o período de elaboração de Taylor. Gurgel e Ribeiro, em publicação mais recente, escreveram, em referência aos comentários iniciais de Taylor (1911/1953)Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911) presentes nos Princípios de administração científica, que

a avaliação do presidente Roosevelt não era bem verdade. Segundo Schultz, entre os anos 1895 e 1915, exatamente o período em que Roosevelt fez o seu discurso e Taylor escreveu o seu livro, a produção industrial dos Estados Unidos avançou 156% (SCHULTZ, 1945, p. 115). Foi uma decorrência clássica do processo imediatamente anterior, a crise de 1873: após vinte anos de prosperidade, “o capitalismo conhecia uma crise de grandes proporções, sua primeira crise contemporânea, que originou uma longa depressão até 1895” (COGGIOLA, 2009, p. 72). Confirmando o dito popular (e igualmente a teoria dos ciclos), após a crise veio a bonança. (Gurgel & Ribeiro, 2015Gurgel, C. R. M., & Ribeiro, A. J. G. (2015). Teorias organizacionais e materialismo histórico. Organizações & Sociedade, 22(73), 199-221. doi:10.1590/1984-9230731
https://doi.org/10.1590/1984-9230731...
, p. 205)

A crise de lucratividade do período foi intuída como anterioridade do crescimento do produto interno bruto (PIB) estadunidense, mas não como um dos fatores potencialmente explicativos do próprio taylorismo como formação ideal.

Importa reter o conjunto dos apontamentos. A luta de classes e o processo de crise do século XIX e suas relações com o processo de acumulação se apresentam como os fatores objetivos mais importantes para a determinação da gênese do taylorismo como formação ideal. É no sentido de contribuir para o desenvolvimento das posições intermediárias e desta terceira tendência que consideramos neste estudo a gênese do taylorismo, procurando superar as colocações genéricas ou lacunares. Que fique claro, não ignoramos os efeitos das ideias anteriores e já disseminadas, nem os da religião ou dos próprios argumentos autoexplicativos de Taylor. Nunca é demasiado esclarecer que o “mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social” (Lukács, 2012Lukács, G. (2012). Para uma ontologia do ser social (Vol. 1). São Paulo, SP: Boitempo ., p. 308). É que todos os fatores componentes do ser social não têm o mesmo peso que os pressupostos objetivos mais fundamentais e, por isso, os últimos são prioritariamente explicativos da gênese do taylorismo como formação ideal, conforme mostraremos adiante, criando as condições de possibilidade e desenvolvimento dessa forma de consciência. No conjunto articulado que forma o ser social, determinado fator desempenha o papel preponderante e “tem por identidade a condição de elo tônico no complexo articulado” (Chasin, 2009Chasin, J. (2009). Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 135).

Para efeito da presente exposição, uma formação ideal como o taylorismo não nasce como ideologia. Seguimos aqui, mais ou menos de perto, Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social (Vol. 2). São Paulo, SP: Boitempo .), para quem uma formação ideal se converte em ideologia quando é mobilizada por classes e grupos humanos em meio ao conflito social e, portanto, ganha força material, engendrando efeitos sobre a realidade social. Em outras palavras, desempenha uma função social em meio às contradições da sociabilidade. O que determina uma formação ideal como ideologia não é sua falsidade ou verdade, mas os efeitos materiais que engendra por meio das práticas das classes em meio aos conflitos. E é indubitável que o taylorismo tenha se convertido em ideologia com efeitos variados em setores determinados da economia - e não de modo generalizado (Moraes Neto, 2003Moraes Neto, B. (2003). Século XX e trabalho industrial: Taylorismo/fordismo, ohnoísmo e automação em debate. São Paulo, SP: Xamã.). Entretanto, estamos aqui, como já aludido logo de partida, fazendo abstração dos efeitos concretos em setores particulares ao longo do século XX. O que no momento nos interessa e segue relativamente lacunar na literatura é determinar os fatores objetivos de gênese da formação ideal, que criam as condições efetivas de conversão dessa formação em ideologia. Assim, a contribuição principal é atinente ao esforço científico de explicação da formação do conhecimento administrativo.

Para tanto, procedemos a uma pesquisa de talhe materialista capaz de explicitar as forças motrizes de ordem primária sob a formação ideal. De partida, assumimos que as ideias não têm história própria (Marx & Engels, 2007Marx, K., & Engels, F. (2007). A ideologia alemã. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 94). Tal como indica Lukács (1979Lukács, G. (1979). Existencialismo ou marxismo? São Paulo, SP: Ciências Humanas.), a formação ideal “não pode ser compreendida e criticada senão à luz das leis fundamentais da sociedade capitalista” (p. 26). Refletem-se no pensamento também as condições mais ou menos específicas da fase histórica. Nesse sentido, não bastam afirmações muito gerais. Importa apreender a determinação social do taylorismo, na qualidade de ideologia, como resultado histórico da lei geral da acumulação capitalista em uma fase de decadência ideológica da burguesia. Nossa tese principal é que o taylorismo é uma formação ideal que tem gênese relativamente tardia em relação aos processos objetivos, tratando-se de uma resposta ao processo de acumulação capitalista em um estágio de sua reprodução marcado por uma crise de lucratividade e por tensionamento da luta de classes nos Estados Unidos da América.

Decadência ideológica e determinação social do pensamento administrativo

Umas das principais lacunas no estudo da gênese do taylorismo como ideologia está na infrequente referência à ligação entre o taylorismo e o pensamento econômico. Não no sentido de ligações arbitrárias ao ponto de conectar o taylorismo a toda a tradição do racionalismo e identificá-los sem objeções, como procede Guerreiro Ramos (2008Guerreiro Ramos, A. (2008). Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho. Brasília, DF: Conselho Federal de Administração.) nos trechos anteriormente indicados. Coriat (1982Coriat, B. (1982). El taller y el cronómetro: Ensayo sobre el taylorismo, el fordismo y la producción en masa (12a ed.). Ciudad de México: Siglo XXI., p. 34) demonstra que Taylor repete aforismos da economia clássica, como o casamento entre a terra (a mãe) e o trabalho (o pai) para a criação da riqueza (uma recorrência de William Petty). A despeito de estar imerso nos problemas da produção, Taylor (1911/1953)Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911) aparenta, ao final do seu Princípios de administração científica, pender para o marginalismo e sua predileção por deslocar a atenção para a circulação das mercadorias. Taylor (1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), pp. 119-123) chega a sustentar que a parte mais importante não é a do empregador ou do empregado, mas dos consumidores (a “terceira maior parte”, “o povo em geral”), que mais se beneficiam com as modificações da organização do trabalho industrial.

O que é decisivo aqui não é a mera ligação com o pensamento econômico, mas a fase histórica específica em que o taylorismo se coloca como formação ideal. Chamamos atenção para a fase da decadência ideológica após 1848, que produz inúmeros efeitos sobre o pensamento, particularmente aquele que se quer científico. O fundamento dessa questão está na apreensão da determinação social do pensamento ou, o que dá no mesmo, da “sociabilidade como condição de possibilidade para o pensamento” (Chasin, 2009Chasin, J. (2009). Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 105). Em termos gerais, aponta-se para o caráter social e, por isso, histórico das formações ideais. Precisamente por esse motivo dissemos antes que as ideias não têm história própria em razão de ser geneticamente dependentes de uma sociabilidade particular. Nesses termos, podemos dizer que

vincadas à sociabilidade, e dela nascendo, as formas do pensamento “são uma expressão consciente - real ou ilusória - de suas verdadeiras relações e atividades” [Marx]. Em outras palavras, verdadeiras ou falsas, as representações dos indivíduos, os únicos dotados de capacidade espiritual, brotam sempre do terreno comum do intercâmbio social. Correta ou fantasiosa, efetiva reprodução ideal de um objeto, ou rombudo borrão mental, as ideações não são autoengendradas, variando de um polo a outro em função do potencial societário em que se manifestam… Condição de possibilidade da atividade ideal, a vida societária responde como fonte primária ou raiz polivalente pelas grandezas e falácias do pensamento. (Chasin, 2009Chasin, J. (2009). Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, SP: Boitempo., pp. 107-108, grifo do autor)

Aqui se demarca a prioridade objetiva da vida concreta em relação às formações ideais. A condição de existência da realidade objetiva é dada por ela mesma, independente da consciência dos agentes que atuam em seu interior. Ao contrário, são as relações e atividades práticas dos homens que constituem, a favor ou contra, as condições que tornam possíveis as formações ideais. Por esses termos, entretanto, não se compreende uma passividade do pensamento, das ideias. “Em verdade, as resgata da mera abstração para vida”, na exata medida em que “toda vida social é essencialmente prática”, pois:

o exame das formações ideais vinculado às inflexões da sociabilidade não compreende qualquer mecânica do constrangimento que reduza a produção espiritual a epifenômeno. Ao revés, reconhece a qualidade ativa das ideias, sua capacidade operativa, isto é, sua função social enquanto co-protagonistas de qualquer efetivação humana, inclusive quando falsas. (Chasin, 2009Chasin, J. (2009). Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 112)

Fica evidenciado que a explicação para a formação ideal, como o taylorismo (falso ou verdadeiro, não importa), deve ser buscada fora dela, isto é, na sociabilidade particular que a torna possível e sobre a qual também pode atuar, exercendo os mais diferentes resultados, mesmo quando falsa. De modo mais direto, é a sociedade capitalista, seus elementos fundamentais e os aspectos de dado período de seu desenvolvimento que explicam a gênese do taylorismo. Já aqui não se sustenta mais o que o autor diz de si mesmo ou as explicações que derivam o taylorismo da pura história das ideias ou por efeito do “ambiente racionalizador”, ou ainda da religião. Desse modo, é possível determinar que

a dimensão fundamental da determinação social do pensamento, ao contrário do que é genericamente suposto, diz respeito à sociabilidade como condição de possibilidade do pensamento. A consciência é reconhecida como consciência do ser social, como seu atributo e só enquanto tal pode se realizar. Assim, a sociedade fornece a matéria, os meios e as próprias demandas para a exercitação do pensamento, pois, da situação mais corriqueira à mais técnica ou sofisticada, é sempre como ser social que o homem pensa. (Vaisman, 1999Vaisman, E. (1999). A usina onto-societária do pensamento. Ad Hominem 1: Ensaios, 1, 399-444., p. 286, grifo do autor)

Destacamos a afirmação de que a “sociedade fornece a matéria, os meios e as próprias demandas” em razão de aí se demarcar o ponto de arranque para a formação ideal que estamos perscrutando. A esse expediente recorreremos outras vezes adiante para indicar a transposição dos imperativos do modo de produção capitalista para a formação ideal de Taylor por mediação de sua atividade prática na produção imediata. Por ora, lançamos mão desse expediente, indicando outra mediação importante: seu autodeclarado pertencimento de classe.

Taylor conta, ao seu estilo, a respeito de sua entrada na oficina de fabricação de máquinas da Midvale Steel Company em 1878. Quando, em parte por acaso, tornou-se chefe dos tornos, iniciou a aplicação de mudanças para sobrepujar as constantes limitações impostas pelos trabalhadores à produção. Ele explica que passou a sofrer com as constantes pressões por parte dos trabalhadores, pressões que foram responsáveis por todas as desistências dos chefes dos tornos passados naquela oficina. Taylor, porém, considerava os resultados positivos que alcançou, isto é, o maior rendimento dos homens - “getting more work out of the men” (Taylor, 1911/2003Taylor, F. W. (2003). The principles of scientific management. New York: Harper & Brothers Publishers . (Trabalho original publicado em 1911), p. 53) - provenientes, obviamente, das técnicas implantadas. Disse ele que “empenhou-se na direção de modificar o sistema de administração para que os interesses dos trabalhadores e da administração fossem os mesmos, ao invés de antagônicos” (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), p. 51). Complementou ainda ao dizer que na “preparação desse sistema o autor percebeu que o maior obstáculo para uma cooperação harmoniosa entre os trabalhadores e a administração repousa na ignorância da administração sobre o que realmente constitui um dia de trabalho de um trabalhador” (1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), p. 51). Mas duas outras causas, explicou, estiveram operantes para que conseguisse “arrancar mais trabalho dos homens”. Disse ele que “tinha duas vantagens, contudo, as quais não eram possuídas pelos capatazes, e elas eram provenientes, curiosamente, do fato de que ele não era filho de um homem trabalhador” (1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), p. 49). “Curiosamente”, disse ele:

Primeira - Em virtude de não ser filho de operário, os donos da fábrica acreditavam que eu tomaria o interesse da empresa em maior conta que os outros trabalhadores e depositaram em mim mais confiança que nos mecânicos, meus subordinados. (pp. 49-50)

Segunda - Se eu tivesse sido trabalhador e vivesse com os trabalhadores, eles teriam exercido pressão social tal que me seria impossível resistir à oposição deles. (p. 50)

As duas vantagens eram, em verdade, uma só.

Não existe, entretanto, qualquer relação fatalista entre a formação ideal e o pertencimento de classe. Há, em verdade, uma “relação complexa, desigual, não fatalista entre o ideólogo singular e o destino da sua classe” (Lukács, 2016Lukács, G. (2016). Marx e o problema da decadência ideológica. In Marx e Engels como historiadores da literatura (pp. 99-156). São Paulo, SP: Boitempo ., p. 120). Certo conflito de Taylor mesmo com o empresariado da época se reflete não só no apontamento anterior, de que a gerência desconhecia os detalhes da jornada de trabalho, como também o autor fez acusações que insinuam a prática recorrente por parte do empresariado de efetivar sempre o menor salário possível. Mas o significado disso é muito parco e incerto. É mais correto averiguar, no próprio sucesso relatado, uma relação mais harmoniosa entre o ideólogo em questão e sua classe.

Mais importante ainda é compreender o contexto histórico da formação ideal precisamente pela ligação entre Taylor e a classe capitalista. Nesse sentido é que a “sociedade fornece a matéria, os meios e as próprias demandas” (Vaisman, 1999Vaisman, E. (1999). A usina onto-societária do pensamento. Ad Hominem 1: Ensaios, 1, 399-444., p. 286).

Um marco significativo foram os episódios de 1848, que marcam a inflexão no pensamento dominante de então e aqui se sublinham como “decadência ideológica” (Lukács, 1979Lukács, G. (1979). Existencialismo ou marxismo? São Paulo, SP: Ciências Humanas., 2016Lukács, G. (2016). Marx e o problema da decadência ideológica. In Marx e Engels como historiadores da literatura (pp. 99-156). São Paulo, SP: Boitempo .). Como se sabe, a classe burguesa efetuou uma luta histórica contra a feudalidade donde resultou a sociabilidade regida pelo capital. A classe burguesa foi, por isso, uma classe revolucionária. A arte, a filosofia, a ciência etc. tiveram grande impulso na fase de ascensão da burguesia, refletindo e atuando sobre as modificações econômicas e políticas que fizeram época. A ascensão da classe burguesa trouxe consigo o crescimento de uma outra classe, a do proletariado. Em 1848 houve a registrada sublevação trabalhista por todo o continente europeu. Essa revolta foi abafada com espadas e baionetas. A classe outrora revolucionária torna-se conservadora com amplos efeitos sobre a arte, a filosofia, a ciência etc. Torna-se imperioso aos ideólogos, direta ou indiretamente, fazer apologia vulgar da sociedade capitalista, em que a possibilidade científica fica comprometida e, daí, sua decadência ideológica, fuga da realidade, seu mascaramento ou ainda a crítica romântica são resultados frequentes.

É possível destacar esse movimento na economia política à qual se liga a formação ideal de Taylor de modo complexo. A economia política clássica pôde realizar investigação científica, portanto, antes de 1848. Era necessário ao próprio avanço da sociedade capitalista sobre os escombros do feudalismo compreender os nexos objetivos da produção e distribuição da riqueza e fazê-las avançar. Mesmo que fosse burguesa em essência, a economia política clássica pôde inquirir a realidade para revelar aspectos importantes do funcionamento do capitalismo. Mas esse caráter científico se desmorona quando a ascensão da luta de classes ameaça a própria sociedade capitalista.

Por ser burguesa, isto é, por entender a ordem capitalista como a forma última e absoluta da produção social, em vez de um estágio historicamente transitório de desenvolvimento, a economia política só pode continuar a ser uma ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou manifestar-se apenas isoladamente. . . .

Na França e na Inglaterra, a burguesia conquistara o poder político. A partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente, formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre fúnebre pela economia científica burguesa. Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não as ordens policiais. O lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial. (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., pp. 85-86)

A partir desse ponto, que marca a decadência ideológica em questão, a economia política ficou dividida em duas correntes básicas, ambas com dificuldades de efetivar uma potência científica. “Nessas circunstâncias, seus porta-vozes se dividiram em duas colunas”, como explicou Marx (2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 87). “Uns, sagazes, ávidos de lucro e práticos, congregaram-se sob a bandeira de Bastiat, o representante mais superficial e, por isso mesmo, mais bem-sucedido da apologética economia vulgar” (p. 87). Essa corrente desaguará no utilitarismo de Bentham e na chamada “revolução subjetiva” que marca o início da escola marginalista e da escola austríaca. Os “outros, orgulhosos da dignidade professoral de sua ciência, seguiram J. S. Mill na tentativa de conciliar o inconciliável” (p. 87). Em outras palavras mais explicativas,

homens que ainda reivindicavam alguma relevância científica e que aspiravam ser algo mais do que meros sofistas e sicofantas das classes dominantes tentaram pôr a economia política do capital em sintonia com as exigências do proletariado, que não podiam mais ser ignoradas. Daí o surgimento de um sincretismo. (p. 86)

O desdobramento dessa corrente se refletirá em versões do “socialismo” e no pensamento econômico ocupado, já no século XX, com a regulação mais direta do sistema, como Keynes.

Não obstante, por esses poucos termos se vê que não é suficiente atribuir a formação ideal a um capitalismo genericamente afirmado. Considerando, ao contrário, em termos específicos, o taylorismo surge como o herdeiro prático da economia vulgar e em uma época em que a potência científica está comprometida.

Exemplos disso não faltam na própria elaboração de Taylor. Ele argumentou por todo texto que condensa suas ideias que a incorporação das técnicas de “organização racional do trabalho” não implicaria a eliminação de postos de trabalho. Entretanto, seus dados mesmos dão prova do contrário, ao evidenciar os resultados do novo sistema na Bethlehem Steel Company: antes do sistema, havia entre 400 e 600 trabalhadores e, após, 140, com redução de mais da metade dos gastos totais com salários (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), pp. 65-66). É próprio da potência científica ser desmentida tão diretamente por seus próprios dados? Outro exemplo aparece em sua recorrente afirmação de que o aumento do salário se deve exclusivamente ao aumento voluntário da produtividade do trabalho. Uma causalidade como essa deveria ser provada. Mas de modo envergonhado o autor estadunidense precisou reconhecer que, nas experiências que conduziu, os salários nunca cresceram proporcionalmente à produtividade (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), pp. 118-119). Esta pode quintuplicar enquanto o aumento do salário é comparativamente insignificante. Para contornar a situação, fecha o livro com argumento, já aludido antes, segundo o qual, a despeito desse desigual crescimento entre salário e produtividade, tal desigualdade se justificava por beneficiar principalmente a “sociedade”, os “consumidores” (o “povo em geral”), os quais recebem os lucros finais (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911)). Não revela que os próprios “consumidores” são, em fundamento, a massa de trabalhadores - descontando os bens de luxo e os bens de capital. Ainda mais significativo é não provar a necessidade causal entre aumento de produtividade e aumento de salários. Não apenas não há qualquer relação de necessidade causal como também a realidade concreta demonstra que as circunstâncias variam muito em razão de contingências e correlações de forças, podendo haver aumento de salários em termos médios maiores do que a produtividade em determinados períodos ou, em direção oposta, que a maior produtividade do trabalho funcione como meio de baratear a força de trabalho, rebaixando salários médios (compare Bivens, Gould, Mishel, & Shierholz, 2014,Bivens, J., Gould, E., Mishel, L., & Shierholz, H. (2014, 4 de junho). Raising America’s pay (Briefing Paper No. 378). Washington, DC: Economic Policy Institute. Recuperado de https://bit.ly/30xuiPR
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e Marquetti, Hoff, & Miebach, 2016Marquetti, A. A., Hoff, C., & Miebach, A. (2016). Lucratividade e distribuição: A origem econômica da crise política brasileira (Texto para Debate). Porto Alegre, RS: PUCRS. Recuperado de https://bit.ly/3jsHn5B
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). A determinação dos salários médios pela reprodução do capital nos ciclos econômicos de prosperidade e crise e pelos processos de exploração econômica do trabalho (conforme adiante indicamos) fogem inteiramente do horizonte de Taylor. Mesmo o desemprego na “Inglaterra (quiçá a nação mais viril do mundo)” é atribuído a uma “restrição deliberada da produtividade” por parte do operariado (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), p. 123). Atribuir exclusivamente aos trabalhadores a responsabilidade por seus próprios baixos salários é uma atualização do tribunal malthusiano que culpabilizava o pobre por sua pobreza. Trata-se de uma continuidade de decadência ideológica de mesma natureza.

A ausência de elementos probantes serve à defesa dos interesses da classe à qual pertence. Precisa defender o funcionamento do capital e sacrifica o impulso científico. Cindiu sua tecnologia de qualquer consideração séria sobre o funcionamento do capitalismo e preferiu sustentar nexos objetivos que seus próprios dados desmentiam. Essa apologética de Taylor também possui um aspecto sincrético. Como ele próprio revela, seu sistema de administração científica tinha por objetivo fazer com que os “interesses dos trabalhadores e da administração fossem os mesmos, ao invés de antagônicos” (1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), p. 51). Essa é uma das marcas maiores - à qual voltaremos mais tarde -, que corta toda elaboração de Taylor, do primeiro ao último texto. O sincretismo aparece na tentativa de conciliação por via do atendimento às necessidades salariais, ergonômicas etc., em suma, reivindicações trabalhistas centenárias. E esse sincretismo coabita o típico traço da apologética de encobrir o que já estava revelado: o antagonismo estrutural entre as classes. Aqui se mostra o esforço da harmonização à qual recorre a apologética. “Cada vez mais a economia se restringe à mera reprodução dos fenômenos superficiais. O processo espontâneo da decadência científica opera de mãos dadas com a defesa consciente e venal da economia capitalista” (Lukács, 2016Lukács, G. (2016). Marx e o problema da decadência ideológica. In Marx e Engels como historiadores da literatura (pp. 99-156). São Paulo, SP: Boitempo ., p. 105). Como herdeiro prático da economia vulgar, Taylor se esforça por apresentar uma fórmula tecnológica para “conciliar o inconciliável”.

Entendido, portanto, o taylorismo como formação ideal em continuidade com a decadência ideológica, cabe apreender agora seu aspecto relativamente tardio em relação à dinâmica concreta do capitalismo que se revela no processo da acumulação. Desse processo, extraímos adiante as demandas fáticas às quais o taylorismo em essência procura responder, quer dizer, responder tanto à acumulação quanto aos seus efeitos reais: a crise e a luta de classes.

Acumulação e ordenamento científico da produção

Já ficou claro ao fundo a fase histórica de gênese do taylorismo. Entretanto, o nexo entre o taylorismo e a decadência ideológica que culmina em uma resposta tecnológica como apologia sincrética às contradições do capitalismo não fica cabalmente explicitado sem outros elementos probantes. Nesse tópico tentaremos superar o grau muito abstrato de atribuição ao capitalismo como gênese do taylorismo e, ao mesmo tempo, abrir caminho aos elementos probantes mais adiante (a crise econômica e o estágio da luta de classes). Para isso é preciso apreender um dos aspectos centrais do modo de produção capitalista: a acumulação do capital.

Importam, portanto, aspectos bem específicos da acumulação capitalista, os processos históricos acoplados e os efeitos em termos sintéticos.

E logo de partida é preciso retirar da acumulação a acepção cotidiana do entesouramento. Acumulação aqui é categoria para expressar o processo real de expansão do capital e o premente imperativo de expandir para se apropriar de mais riqueza. Essa não é uma sugestão conceitual, mas uma determinação material.

Toda sociedade precisa converter parte de sua produção em novas condições para garantir a continuidade da produção. Por isso, produção é também reprodução (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 641). No modo de produção capitalista essa reprodução vai além de si mesma, isto é, não é a mera repetição do processo de produção, mas a sua continuidade em espiral crescente, isto é, “concretamente considerada, a acumulação não é mais do que a reprodução do capital em escala progressiva” (p. 657), em espiral crescente. E para acumular “é necessário transformar uma parte do mais-produto em capital” (p. 656), isto é, converter parte do mais-valor em meios de produção e em força de trabalho. Nas unidades produtivas isoladas e no conjunto do capital social total, parte desse mais-valor é convertida em modalidade de ampliar o capital com meios de produção e trabalho adicional. Para manter a extração e apropriação privada da riqueza, sempre uma massa crescente do mais-valor será convertida em meios de produção (capital constante) e meios de subsistência (capital variável).

Como aqui não nos interessa uma discussão aprofundada da composição técnica (meios de produção e força de trabalho) e orgânica (ou de valor: capital constante e variável) do capital (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 689), importa reter uma tendência fundamental apreendida da realidade histórica. A massa crescente de mais-valor não se converte igualmente em meios de produção e força de trabalho, mas em proporções desiguais. A depender de circunstâncias histórias específicas, a expansão do capital se dá por aumento da conversão do mais-valor relativamente maior em meios de produção, refletindo em alterações na composição média do capital. Essa tendência se confirma historicamente, inclusive na maior economia do mundo (Carchedi, 2016Carchedi, G. (2016, 27 de dezembro). L’esaurimento dell’attuale fase storica del capitalismo. Sinistrainrete: Archivio di documenti e articoli per la discussione politica nella sinistra. Recuperado de https://bit.ly/32BNGy1
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). O que explica isso, em termos básicos, é que a apropriação privada da riqueza depende da maior produção possível de mais-valor que, por sua vez, implica maior massa de meios de produção com um quantitativo menor de força de trabalho. No aspecto técnico da composição do capital, significa movimentar uma massa maior de meios de produção com o menor emprego de força de trabalho. Isso corresponde a uma variação desproporcional também na composição orgânica, pois o valor do componente constante (c) é, tendencialmente e em termos médios para as indústrias, maior do que o valor do capital variável (v). Como é a força de trabalho que cria o mais-valor, enquanto os meios de produção apenas transferem seu valor às mercadorias, a relação c/v expressa uma compulsão para uma maior exploração econômica da força de trabalho em circunstâncias que afetam a oscilação do volume da acumulação (considerada, provisoriamente, com velocidade constante).

Seguindo Marx (2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., pp. 674-684), a acumulação é afetada pelo grau de exploração da força de trabalho em termos absolutos, isto é, (1) tendência como pressão constante para redução forçada dos salários abaixo do valor da força de trabalho, implicando condições de pauperização absoluta e superexploração do trabalho3 3 Cabe um esclarecimento em razão da grande circulação da expressão “superexploração”. Podemos dizer que há uma tendência intrínseca ao modo de produção capitalista em baratear a força de trabalho, uma vez que também procura reduzir ao máximo o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias e, portanto, também o equivalente a esse tempo: o salário. O salário, em determinadas condições, pode descer abaixo do valor da força de trabalho, isto é, o equivalente monetário em mercadorias que garante a reprodução social da própria força de trabalho. Se essa tendência é efetivada, os trabalhadores alcançam um “nível niilista” de existência, como anotou Marx (2013, p. 675). Essa tendência pode ser contornada por diferentes meios, como historicamente, de fato, foi levada a cabo pela luta social, arrancando da esfera política barreiras à insaciável fome do capital, barreiras que apenas contingencialmente têm alguma potência, no entanto, como mostra o tempo presente. Essa questão da “superexploração do trabalho” ganhou contornos definidores de escolas do pensamento crítico que levaram a discussão bem mais longe. Para um exemplo contemporâneo, ver Ferreira, Osorio e Luce (2015), que exemplificam a teoria marxista da dependência. ; (2) prolongamento da jornada de trabalho. A acumulação também é afetada pelo grau de produtividade e barateamento do trabalho (mesmo com aumento médio dos salários) por meio de dois expedientes mais ou menos relacionados: (1) alterações tecnocientíficas na produção em base de processos e maquinaria, e (2) por modificações na organização social do trabalho. Seja pelo grau de exploração ou pelo grau de produtividade (métodos que se complementam e concorrem ao longo do desenvolvimento do capitalismo em que um ou outro prepondera em razão de circunstâncias históricas), a tendência da acumulação se efetiva pelo menos até que seja impedida ou desacelerada, provocando conturbações no ciclo industrial. Dobb (1975Dobb, M. (1975). Capitalismo, ontem e hoje (3a ed.). Lisboa: Editorial Estampa.) aponta esse elemento importante. Escreveu o autor que as crises são sintomas da obstrução do processo de acumulação, processo que opera por ciclos de expansão e retração do volume de capital invertido em razão das possibilidades de lucratividade4 4 Nessa discussão não podemos deixar de ser superficiais e, assim, não podemos considerar a diferença entre mais-valor e lucro tal como procede Marx (2017) entre os capítulos 2 e 15. . Em outros termos,

esse ciclo deve ser encarado essencialmente como um ciclo no processo da acumulação de capital e que os colapsos periódicos surgem porque o ímpeto contínuo em vista da acumulação e investimento de capital ultrapassa as condições que determinam o lucro que o capital aumentado pode usufruir. (pp. 68-69).

Em termos históricos, preponderou certa tendência de deslocamento dos expedientes que fazem oscilar a acumulação. Em razão das lutas trabalhistas durante séculos, a redução forçada dos salários ao nível niilista e o prolongamento da jornada de trabalho sofreram certas restrições (grife-se, porém, que não foram abolidas, como o contemporâneo brasileiro confirma). Assim, o método de extração do mais-valor relativo, isto é, pelo incremento da produtividade do trabalho em jornada limitada, prevaleceu como tendência forte e ajuda a explicar a diminuição do capital variável relativamente ao constante. “Uma vez dados os fundamentos gerais do sistema capitalista, no curso da acumulação chega-se sempre a um ponto em que o desenvolvimento da produtividade do trabalho social se converte na mais poderosa alavanca da acumulação” (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 698). Em termos gerais, o “grau social de produtividade do trabalho se expressa no volume relativo dos meios de produção que um trabalhador transforma em produto durante um tempo dado, com a mesma tensão da força de trabalho” (p. 698). Esse processo incide sobre o trabalho pago, provocando seu barateamento e, assim, ampliando a possibilidade de apropriação do trabalho não pago ou mais-valor. É incontornável registrar que

todos os métodos para aumentar a força produtiva social do trabalho surgidos sobre esse fundamento são, ao mesmo tempo, métodos para aumentar a produção de mais-valor ou mais-produto, que, por sua vez, forma o elemento constitutivo da acumulação. Portanto, tais métodos servem, ao mesmo tempo, para produzir capital mediante capital ou para sua acumulação acelerada. (p. 700)

A acumulação afeta e é afetada por dois processos importantes: a concentração e a centralização.

O primeiro é a concentração dos capitais. O desenvolvimento do capitalismo é também o crescimento da massa total de capitais pela expansão dos vários capitalistas individuais.

[A] acumulação e a concentração que a acompanha estão não apenas fragmentadas em muitos pontos, mas o crescimento dos capitais em funcionamento é atravessado pela formação de novos capitais e pela cisão de capitais antigos, de maneira que, se a acumulação se apresenta, por um lado, como concentração crescente dos meios de produção e do comando sobre o trabalho, ela aparece, por outro lado, como repulsão mútua entre muitos capitais individuais. (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 701)

A repulsão entre os capitais é “contraposta por sua atração”, isto é, o processo de centralização que expressa a “conversão de muitos capitais menores em poucos capitais maiores” (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 701). Esse movimento é impelido, basicamente, pela concorrência entre os capitalistas singulares e pelo desenvolvimento do sistema de crédito que a acompanha, permitindo a disponibilidade de maior volume de capitais como condição para processo ampliado da centralização. Aqui se marca o crescimento exponencial das corporações, das sociedades anônimas, dos trustes, em suma, do grande capital que marca o capitalismo dos séculos XX e XXI. Mas são processos já entrevistos na realidade do século XIX.

E devemos reter fundamentalmente que a combinação de acumulação, concentração e centralização modifica a composição técnica do capital e acelera o processo de acumulação. Essa combinação é histórica e significou transições importantes no padrão produtivo. Explicou Marx (2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo .) que

A centralização complementa a obra da acumulação, colocando os capitalistas industriais em condições de ampliar a escala de suas operações… A extensão aumentada de estabelecimentos industriais constitui por toda parte o ponto de partida para uma organização mais abrangente do trabalho coletivo, para um desenvolvimento mais amplo de suas forças motrizes materiais, isto é, para a transformação progressiva de processos de produção isolados e fixados pelo costume em processos de produção socialmente combinados e cientificamente ordenados. (p. 703)

Destaquemos a “transformação progressiva”, isto é, que tendencialmente se generaliza, da produção em uma combinação social diferenciada e “cientificamente ordenada”. Aqui tem lugar a transformação da modalidade de comando do capital sobre o trabalho, de uma subsunção formal a uma subsunção real (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 577). São processos que se alimentam mutuamente: a acumulação e a centralização, a extração do mais-valor relativo anteriormente aludido (pelo grau de produtividade do trabalho em jornada de trabalho limitada) e uma gradativa subsunção real, isto é, quando as personificações do capital alteram a forma de organização do trabalho em vez de apenas o empregar tal como encontra a força de trabalho disponível. A subsunção real é o controle efetivo da produção nas mãos do capital e das personificações de sua função (a gerência). O ordenamento científico da produção expressa uma forma específica de desenvolvimento das capacidades humanas sob domínio do capital. Queremos chamar atenção especificamente para a organização social do trabalho como a capacidade humana de organizar a efetividade sob uma forma particular de dominação social. Uma divisão social do trabalho planejada, o disciplinamento, a habituação e o convencimento (produção da vontade) da força de trabalho refletem uma forma particular de desenvolvimento da razão humana a serviço do imperativo da acumulação do capital. A contradição repousa, portanto, não na racionalidade em si, senão nas próprias relações sociais antagônicas que a constituem historicamente (Paço Cunha, 2018Paço Cunha, E. (2018). Ontogênese e formas particulares da função de direção: Introdução aos fundamentos históricos para a crítica marxista da administração. In E. Paço Cunha & D. L. Ferraz (Orgs.), Crítica marxista da administração (pp. 15-62). Rio de Janeiro, RJ: Rizoma.).

O taylorismo é formação ideal impulsionada por esse ímpeto básico da produção capitalista e de seus processos de transformação. É óbvio que Taylor não reflete esse problema da lógica subterrânea da acumulação. A fase de gênese dessa formação ideal, como vimos, é consideravelmente impeditiva para a posição em que o autor americano se coloca e, por isso, tende a estacionar nas manifestações superficiais. Nem mesmo o problema de organização do grande capital e suas exigências do modelo divisional (Chandler, 1962Chandler, A. D., Jr. (1962). Strategy and structure: Chapters in the history of the American industrial enterprise. Cambridge, MA: MIT Press.) são postos como uma questão decisiva, embora Taylor intua, por volta de 1903, a “era dos trustes” (Taylor, 1919Taylor, F. W. (1919). Shop management. New York: Harper & Brothers Publishers. Recuperado de https://bit.ly/2CpemHF
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, p. 17). O que se expressa de maneira mais extensa é a alavancagem da produtividade do trabalho sob as vestes da “prosperidade” e da “eficiência”. Em outras palavras, a “organização racional do trabalho” é resposta à acumulação; é uma forma de manifestação da acumulação. Não é por acaso que Taylor tenha dedicado esforços para, inclusive, modificar as ferramentas de trabalho. Ainda mais emblemáticos são o esforço de organização do trabalho nos termos amplamente conhecidos pelo estudo sistemático do processo e movimentos do trabalho e a transferência do controle do processo de produção para a gerência, tendo em vista o mais “baixo custo do trabalho na produção” (Taylor, 1919Taylor, F. W. (1919). Shop management. New York: Harper & Brothers Publishers. Recuperado de https://bit.ly/2CpemHF
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, p. 22). Já apontamos antes que o aumento dos salários é atribuído de modo causal e falsamente à produtividade do trabalho e que, como o próprio autor teve que confessar, não cresce na mesma proporção que a produtividade. Demos também o exemplo do próprio autor em que acusa a redução de força de trabalho empregada com a implantação do “novo sistema” de organização sistemática do trabalho. No conjunto, o taylorismo surge especialmente como organização social do trabalho que se confirma como alavanca para a oscilação positiva do processo de acumulação em vias de aceleração, culminando na forma centralizada e concentrada que conhecemos.

Chama atenção o caráter tardio do taylorismo como síntese de processos objetivos já postos, ao menos bastante evidenciados na indústria inglesa, assim como na estadunidense. Há um processo desigual de desenvolvimento não apenas entre Inglaterra e Estados Unidos no período em questão (conforme frisaremos mais adiante), mas também entre os processos objetivos e a formação ideal. A subsunção real do trabalho ao capital, no entanto, já era realidade nas principais economias do mundo na transição entre os séculos XIX e XX. As empresas das quais Taylor extraiu as circunstâncias de baixa eficiência e os próprios exemplos relatados pelo autor denotam isso (carregar lingotes, operar torno, descarregar areia de trens, inspecionar esferas metálicas, pedreiros etc.), são também exemplos de baixo desenvolvimento dos aspectos tecnológicos de produção, típicos do processo de modernização da manufatura ainda intensiva em mão de obra (Moraes Neto, 2003Moraes Neto, B. (2003). Século XX e trabalho industrial: Taylorismo/fordismo, ohnoísmo e automação em debate. São Paulo, SP: Xamã.).

Uma realidade diferente se apresentaria ao autor estadunidense caso sua biografia fosse construída com experiência na indústria química dos Estados Unidos, por exemplo, já adiantada em certos processos tecnológicos na década de 1880 (Chandler, 1962Chandler, A. D., Jr. (1962). Strategy and structure: Chapters in the history of the American industrial enterprise. Cambridge, MA: MIT Press.). Da mesma forma, o contexto do desenvolvimento da automação no setor de fabricação de latas, desenvolvimento já completo no início do século XX (Pearson, 2016Pearson, G. S. (2016). The democratization of food: Tin cans and the growth of the American food processing industry, 1810-1940. (Tese de Doutorado), Lehigh University, Bethlehem.), poderia inclusive impossibilitar a formação ideal sob análise (Paço Cunha, 2019Paço Cunha, E. (2019). Base técnica e organização do trabalho na manufatura e grande indústria: Inflexão, desenvolvimento desigual e reciprocidades. Verinotio, 25(1), 88-128. doi:10.36638/1981061X.2019.25.1.452/88-128
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). Mas se a subsunção real era efetiva em alguns pontos da indústria do país e em outros não, explica-se pela fase histórica de seu processo de generalização progressiva que coincide, também, com o processo de ultrapassagem da economia inglesa por aquela. Adicionalmente, mesmo questões cruciais como a transferência do controle para a gerência, como apontamos, são um processo da subsunção real, do ordenamento científico da produção e, portanto, historicamente anteriores à formação ideal tayloriana. Seria melhor apreender não simplesmente a transferência do controle, da aniquilação do saber operário, como sugere Linhart (1976Linhart, R. (1976). Lénine, les paysans, Taylor. Paris: Éditions du Seuil.), mas também a continuação de um processo de consolidação da personificação da função do capital num tipo específico de trabalho assalariado (gestores), como efeito do próprio processo de acumulação, particularmente complementada pela centralização. Esse processo torna essa função mais protuberante, pressiona para a diversificação do “trabalhador coletivo” (formado por variadas especialidades dado o avanço da divisão do trabalho). Nesse sentido, o taylorismo é também expressão de uma fase de transição ao modo de produção baseado nas grandes corporações, como já aludimos. Mas também a própria prática de Taylor impõe certo limite. Centrado na produção e em unidades produtivas com baixo desenvolvimento da maquinaria, não refletiu sobre os problemas mais amplos de organização do grande capital. Aqui é o acaso de um processo econômico-social que encontrou uma biografia tangente aos problemas básicos da organização do trabalho na oficina predominantemente manufatureira, de baixo nível tecnológico. Fosse outra individualidade, outra biografia, a formação ideal poderia refletir outros aspectos como, de fato, mais tarde aparecem com Fayol, Sheldon, Barnard etc. Nesse sentido, o problema do grande capital em vias de efetivação não se apresenta a Taylor em razão da fase ainda em progresso e pela natureza da biografia de Taylor, isto é, sua experiência prática específica em processos de trabalho tecnologicamente menos desenvolvidos, por assim dizer, aquém do desenvolvimento da base técnica que marca de fato a grande indústria como sistema de máquinas. Por isso, por um lado, é reflexo dos processos anteriores e, por outro, ainda incapaz de refletir plenamente sobre os problemas em vias de efetivação.

O que precisa ser registrado quando se constata a “organização racional do trabalho” como resposta tardia ao processo de acumulação nas condições do século XIX não é uma desimportância do taylorismo, mas a compreensão de que se refletem em Taylor os imperativos já em movimento. A síntese e sua difusão tiveram efeitos, inclusive de aceleração do processo de acumulação. Mas não é, por óbvio, o taylorismo que impõe uma lógica à realidade. Ao contrário, é efeito da lógica concreta da acumulação transposta não autenticamente ao pensamento por mediação da prática empírica na produção a partir da posição de classe e, por isso mesmo, limitada ao fenômeno, aos efeitos da acumulação ao fundo, limite também dado pela fase decadente em que se dá a formação ideal, que proporciona certo contorno classista à posição assumida.

Ocorre que a acumulação do capital está, como já apontamos, no centro dos processos de crise. Mas está também em nexo com a pauperização dada a tendência básica de diminuição proporcional do capital variável. Com o processo de acumulação, efetiva-se também uma pressão para que as unidades produtivas eliminem postos de trabalho. Enquanto os capitais já existentes repelem força de trabalho, os novos investimentos ocupam proporcionalmente menos trabalho. Há, ao mesmo tempo, a necessidade constante de empregar força de trabalho embora, como vimos, o crescimento do capital variável seja relativamente menor do que o constante. Cria-se, assim, uma sempre existente “população supérflua” que aumenta ou diminui em razão dos ciclos industriais. Em outros termos, a “acumulação capitalista produz constantemente, e na proporção de sua energia e seu volume, uma população trabalhadora acional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital e, portanto, supérflua” (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 705). A existência dessa população força tendencialmente os salários médios para baixo, servindo também de alavanca ao processo de acumulação. A população excedente se regula pela expansão ou retração do capital, isto é, pelos ciclos industriais. Mas mesmo na fase de prosperidade, de expansão, o “mecanismo da produção capitalista vela para que o aumento absoluto de capital não seja acompanhado de um aumento correspondente da demanda geral de trabalho” (p. 715), de modo que o “aumento do preço do trabalho é confinado, portanto, dentro dos limites que não só deixam intactos os fundamentos do sistema capitalista, mas asseguram sua reprodução em escala cada vez maior” (p. 697). O grau de produtividade do trabalho concorre, portanto, para a diminuição dos salários a médio prazo, ainda que os operários remanescentes sob os experimentos de Taylor possam obter ganhos momentâneos, obviamente proporcionalmente menores do que a elevação de sua produtividade.

Mas o destaque maior dessa constante população excedente que oscila em razão do ciclo industrial é que concorre para a pauperização absoluta ou relativa (quando a pobreza da população aumenta em razão da discrepância com respeito aos ganhos obtidos pelos potentados da economia). A obstrução do processo de acumulação afeta o ciclo industrial, que por sua vez interfere no destino de imensas massas humanas, pressionando a luta de classes como resposta aos efeitos visíveis de uma lógica subterrânea e oculta em nível imediato. Por esse motivo, para obtermos os elementos probantes sempre aludidos da gênese do taylorismo, é importante apreender as condições da crise de lucratividade no século XIX e o acirramento da luta de classes que a acompanha.

Crise e luta de classes (1873-1911)

A crise de 1873

Este tópico trata da crise do final do século XIX que começou na Europa, atingiu os EUA e trouxe diversas consequências, sendo um dos fatores que constituem as condições objetivas para a gênese da formação ideal sob análise. Trata-se de uma fase com forte pressão sobre a “eficiência produtiva” e a lucratividade das empresas em um período de transição da hegemonia da Inglaterra para os EUA. Segundo Dobb (1975Dobb, M. (1975). Capitalismo, ontem e hoje (3a ed.). Lisboa: Editorial Estampa.),

a maneira correta de encarar as crises econômicas é olhá-las, não como o produto inevitável de qualquer forma particular (ou aspecto) em que aparece a contradição essencial do capitalismo (entre as forças promotoras da produção e a rentabilidade do capital), mas mais como uma expressão desta contradição básica, que se pode manifestar sob grande variedade de formas. (pp. 77-78)

Roberts (2016Roberts, M. (2016). The Long Depression: How it happened, why it happened and what happens next. Chicago: Haymarket Books., pp. 31-32) mostra que a crise de lucratividade do século XIX teve início com um colapso no mercado de ações de Viena em maio de 1873. As dificuldades financeiras enfrentadas pelos países europeus afetaram os Estados Unidos em 18 de setembro de 1873, provocando, inicialmente, a falência da casa bancária Cooke and Co., que financiava a construção da Northern Pacific Railroad, seguida pelo colapso de outros bancos. A crise financeira retornou para a Europa quando Viena sofreu um segundo colapso. Alguns fatores são apresentados como motivos para o começo da crise, entre os quais as repercussões geradas após a Guerra Franco-Prussiana, a adoção do padrão-ouro e a política monetária contracionista dos EUA após a Guerra Civil.

Para confirmar a crise, Roberts (2016Roberts, M. (2016). The Long Depression: How it happened, why it happened and what happens next. Chicago: Haymarket Books.) comenta os esforços em demonstrar a diferença entre a produção real durante o período e a produção que haveria caso a tendência de crescimento anterior tivesse se mantido. Também comparou quanto tempo demorou para que a produção voltasse a uma taxa de crescimento superior à do pico anterior. Com isso, percebeu que as recessões que ocorreram antes de 1873 eram curtas e leves, enquanto essa foi prolongada e violenta e envolveu o setor financeiro inteiro. Ela precisou de um longo período de recuperação, assim como as crises de 1929 e 2008.

Enquanto se sabe que a crise na Inglaterra durou até 1896, o fim da crise nos EUA é controverso. A crise de 1873 iniciou o processo de mudança do poder econômico hegemônico da primeira para o segundo. A Inglaterra era o principal poder econômico, militar e político na segunda metade do século XIX, pois havia sido palco das duas primeiras assim chamadas Revoluções Industriais, mas sua superioridade estava em declínio (se o crescimento das potências nessa época fosse comparado, o do Reino Unido seria o menor deles). A depressão que durou até 1896 atingiu principalmente as indústrias de base, gerando grandes níveis de desemprego. Enquanto os salários nominais caíam, os preços decresceram mais ainda devido à forte concorrência internacional que os produtos ingleses enfrentavam. Dessa forma, os salários reais só puderam permanecer à custa dos lucros, e a baixa lucratividade fez com que o investimento na produção diminuísse. Isso impactou o investimento na construção civil, reduzindo mais ainda a produção industrial. A década de 1880 foi marcada por queda na exportação de produtos manufaturados britânicos e aumento da importação, devido à diminuição do investimento de capitais. Roberts (2016Roberts, M. (2016). The Long Depression: How it happened, why it happened and what happens next. Chicago: Haymarket Books.) arremata ao explicitar que a crise até pode ter se desencadeado por pânico financeiro, mas a sua causa não estava neste setor, nem era devido à pressão sobre a oferta monetária ou a adoção de um padrão-ouro rígido. Ela estava em problemas nos setores produtivos, ou seja, por ter havido uma “desaceleração do investimento nos negócios” (p. 40) em razão da queda tendencial da taxa de lucro no período5 5 É importante registrar en passant que não estamos reduzindo o problema das crises à taxa de lucratividade. Igualmente, entretanto, não se deve ignorar o comportamento dessa taxa média geral como reflexo de movimento ascendente ou descendente do ciclo econômico. Em outras palavras, as taxas podem declinar sem haver crise. A crise sistêmica depende de variados outros fatores, inclusive dos que contratendencialmente impedem a efetivação da queda tendencial da taxa de lucro. O fato é o seguinte: o período em questão registrou declinante taxa de lucro e crescente concentração e centralização como resposta, eliminando em parte a concorrência então existente. . No modo de produção capitalista, se não houver a taxa de lucro esperada, há retraimento dos investimentos, desemprego, estagnação e diminuição da demanda.

A despeito das diferenças entre autores, importa destacar a crise de lucratividade do século XIX. Duménil e Lévy (2011Duménil, G., & Lévy, D. (2011). The crisis of neoliberalism. Cambridge, MA: Harvard University Press., pp. 269-270) também mostram que houve um declínio acentuado da taxa de lucro no final do século XIX. Os primeiros sinais de uma recuperação surgiram no começo do século XX, o que iniciou uma tendência de crescimento da taxa que só vai ser interrompida na crise estrutural da década de 1970 (apesar de a Grande Depressão de 1929 estar situada durante esse período - ao contrário das crises das décadas de 1890 e 1970 -, ela não pode ser interpretada como resultado de uma queda da taxa de lucro, segundo os autores). A Figura 1 expressa uma queda acentuada entre 1880 e a última década do século XIX.

Figura 1
Perfil secular da taxa de lucro

Em 1911, Taylor publicou o livro Princípios de administração científica, ano do período de recuperação, como se vê na Figura 1. Nesse texto-síntese, o autor apresenta trecho do discurso do presidente Roosevelt em que cita “o problema mais amplo de aumentar a eficiência nacional”, já antes mencionado. Naquela oportunidade, o problema da “eficiência nacional” apareceu para indicar a sugestão de Gurgel e Ribeiro (2015Gurgel, C. R. M., & Ribeiro, A. J. G. (2015). Teorias organizacionais e materialismo histórico. Organizações & Sociedade, 22(73), 199-221. doi:10.1590/1984-9230731
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) com respeito a certa desconexão entre o argumento de Taylor e o crescimento no PIB norte-americano. De fato, a Figura 1 concede ainda mais peso à desconexão constatada. Entretanto, cabem aqui duas considerações. A primeira, menos importante, revela que enquanto o PIB cresceu praticamente durante todo o período entre 1873 e 1929 (Maddison, 2006Maddison, A. (2006). The world economy: Volume 1: A millennial perspective: Volume 2: Historical statistics. Paris: OECD Publishing., pp. 462-463), a taxa de lucratividade oscilou, caindo drasticamente entre 1880 e 1892 (Duménil & Lévy, 2011Duménil, G., & Lévy, D. (2011). The crisis of neoliberalism. Cambridge, MA: Harvard University Press., p. 270) para só recuperar o mesmo patamar anterior durante o período dourado do pós-guerra.

A segunda, decisivamente mais relevante, é a constatação de que o que informa a formação ideal tayloriana é o período anterior, marcado pela crise de lucratividade de décadas. Grande parte da trajetória de Taylor se deu em contexto de baixa tendencial da lucratividade. Taylor (1911/1953)Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911) comenta que “entrou na oficina de máquinas da Midvale Steel Company em 1878 . . . . Isso próximo ao final do longo período depressivo que se seguiu ao pânico de 1873” (pp. 47-48), embora aqui a percepção o traia, já que a recuperação de fato demandou um intervalo maior de tempo, como se vê na Figura 1. Na mesma direção, sua primeira publicação, A piece-rate system, de 1896, data precisamente do final da fase de crise e início de recuperação. É aceitável que esta recuperação fosse vista com prudência e que as melhoras nos indicadores do PIB (à época compreensivelmente pouco divulgados) não tenham produzido tamanha euforia. É possível, ainda assim, a existência de ambivalências, como considerar a possibilidade utópica para os termos do capitalismo de “prosperidade permanente” (Taylor, 1919Taylor, F. W. (1919). Shop management. New York: Harper & Brothers Publishers. Recuperado de https://bit.ly/2CpemHF
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, p. 20) em 1903, data da publicação de Shop management e, em 1911, escrever contrariamente nos Princípios de administração científica:

Não apresentamos aqui panaceia para resolver todas as dificuldades da classe obreira e dos patrões. Como certos indivíduos nascem preguiçosos e ineficientes e outros ambiciosos e grosseiros, como há vício e crime, também sempre haverá pobreza, miséria e infelicidade. Nenhum sistema de administração, nenhum expediente sob o controle dum homem ou grupo de homens pode assegurar prosperidade permanente a trabalhadores ou patrões. A prosperidade depende de muitos fatores, inteiramente livres do controle do grupo humano, Estado ou nação, e assim todos passam inevitavelmente por certos períodos e devem sofrer um pouco. Sustentamos, entretanto, que sob a administração científica, fases intermediárias serão muito mais prósperas, felizes e livres de discórdias ou dissensões. Também os períodos de infortúnio serão em menor número, mais curtos e menos atrozes. E isso se tornará particularmente verídico no país, região ou Estado que em primeiro lugar substituir a administração empírica pela administração científica. (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), pp. 30-31)

Em meio às mistificações típicas do “individualismo possessivo” e do pessimismo que animam historicamente o pensamento dominante e suas variantes (inclusive românticas) no período6 6 O “individualismo possessivo” é uma designação para se referir à atribuição do egoísmo à natureza humana imutável que caracteriza o pensamento político de Hobbes e Locke, por exemplo (Macpherson, 1962). Já a “crítica romântica” tendia a apreender traços reais do capitalismo e generalizar como condição humana universal e instransponível (Lukács, 2016). , desponta-se indicação da prosperidade como não permanente, mas que a “organização racional” garantiria períodos intermediários mais prósperos e as crises seriam menos violentas, menos frequentes e menos extensas. As grandes crises seguintes (1929, 1973, 2008) colocam certamente em dúvida essa expectativa. Mas o que importa de fato é registrar que a formação ideal de Taylor corresponde ao período conturbado do século XIX. Como resposta tecnológica à etapa da acumulação, pode-se dizer que o taylorismo é uma teoria da crise, a despeito das expectativas pessoais de Taylor e dos livros didáticos.

Luta de classes

Como sugerimos antes, o processo de acumulação em uma fase de crise de lucratividade pressionaria a elevação do conflito classista e isso também informaria a formação ideal em tela. Essa constatação é mais fácil do que a anterior com respeito às crises em razão de Taylor montar toda sua arquitetura sobre a negação do antagonismo estrutural do capital, resposta típica da fase da decadência ideológica e sem jamais alcançar as reais contradições de fundo que se manifestam no conflito classista.

Das formas que o trabalho assume sob as relações de produção capitalistas, Braverman (1977Braverman, H. (1977). Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) escreve que

a produção capitalista exige intercâmbio de relações, mercadorias e dinheiro, mas sua diferença específica é a compra e venda de força de trabalho. Para esse fim, três condições básicas tornam-se generalizadas através de toda a sociedade. Em primeiro lugar, os trabalhadores são separados dos meios com os quais a produção é realizada, e só podem ter acesso a eles vendendo sua força de trabalho a outros. Em segundo, os trabalhadores estão livres de constrições legais, tais como servidão ou escravidão, que os impeçam de dispor de sua força de trabalho. Em terceiro, o propósito do emprego do trabalhador torna-se a expansão de uma unidade de capital pertencente ao empregador, que está assim atuando como um capitalista. (pp. 54-55)

É importante destacar que o que o trabalhador vende é sua capacidade de trabalho durante certo tempo e, portanto, para garantir a continuidade do processo de acumulação, é interesse do capitalista elevar ao máximo a produtividade desta força de trabalho. Para isso: os “meios que ele utiliza podem variar desde o obrigar o trabalhador à jornada mais longa possível, como era comum no início do capitalismo, até a utilização dos mais produtivos instrumentos de trabalho e a maior intensidade deste” (Braverman, 1977Braverman, H. (1977). Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 58). Essa exploração econômica da força de trabalho intensifica o conflito de classes, além, como indicado antes, do contexto de crise e da constante população excedente e pressão à pauperização.

Para ter uma visão objetiva da amplitude das lutas de classes no final do século XIX e início do século XX, período contemplado por este artigo, recorremos a dados de pesquisa publicados pelo United States Bureau of Labor Statistics (Peterson, 1938Peterson, F. (1938, agosto). Strikes in the United States: 1880-1936 (Bulletin No. 651). Washington, DC: United States Government Printing Office. Recuperado de https://bit.ly/2OG87l4
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) a respeito da ocorrência de greves entre 1881 e 1905. Greve e lockout estão definidos na publicação como evidências de descontentamento e formas de protesto, como tentativas dos trabalhadores de obterem melhorias nas condições básicas de trabalho e no relacionamento entre empregados e empregadores. Para efeito de ilustração, o número de greves e lockouts em 1881, início da série, foi de 477, com 130.176 trabalhadores envolvidos e 2.937 estabelecimentos envolvidos. Em 1896, quando Taylor publica A piece-rate system, greves e lockouts atingem 1.066 com 248.838 trabalhadores e 5.513 estabelecimentos envolvidos. Em 1903, ano da publicação de Shop management, greves e lockouts alcançaram 3.648 com 787.834 trabalhadores e 23.536 estabelecimentos envolvidos. As tendências são muito claras e o comentário de Peterson (1938)Peterson, F. (1938, agosto). Strikes in the United States: 1880-1936 (Bulletin No. 651). Washington, DC: United States Government Printing Office. Recuperado de https://bit.ly/2OG87l4
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é emblemático a este respeito:

Durante o período de 25 anos, cerca de 10 milhões de trabalhadores estiveram envolvidos em 38.303 greves. Na primeira metade da década de 1880 o número foi pequeno. De 1886 até 1900, a média anual praticamente triplicou e, de 1901 a 1905 a média anual foi o dobro da média dos 15 anos anteriores. O ano de pico do período foi em 1903, quando as 3.648 greves que ocorreram envolveram quase 788.000 trabalhadores de 23.536 estabelecimentos. (pp. 2930, tradução nossa)

Troy (1965Troy, L. (1965). Trade Union Membership, 1897-1962. The Review of Economics and Statistics, 47(1), 93-113.) chama atenção para o fato de que entre “1897 e 1914, a adesão aos sindicatos aumentou mais de seis vezes, o maior aumento relativo para qualquer período de paz de duração similar” (p. 96, tradução nossa). O número de membros dos sindicatos saltou de 447 mil em 1897 para 2.343.400 em 1911 (p. 93).

É necessário também levar em consideração que o número e a magnitude das greves, embora importantes indicadores de agitação industrial, não são os únicos (Peterson, 1938Peterson, F. (1938, agosto). Strikes in the United States: 1880-1936 (Bulletin No. 651). Washington, DC: United States Government Printing Office. Recuperado de https://bit.ly/2OG87l4
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). Devido à crise, o desemprego atingiu altos níveis em 1893, com números estimados entre 900 mil e 3 milhões (Rezneck, 1953Rezneck, S. (1953). Unemployment, unrest, and relief in the United States during the Depression of 1893-97. Journal of Political Economy, 61(4), 324-345.). Entre 1900 e 1911, apesar de haver uma recuperação, os níveis de desemprego continuaram instáveis, sendo citados na obra de Taylor (1911/1953)Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911) como expressão de “uma das principais causas de nossas dificuldades sociais, por falta de emprego e por pobreza” (p. 19). Os números em milhares de pessoas acima de 14 anos apresentaram média anual de desemprego de 1.420 em 1900. A média mais baixa foi em 1906, com 280, e a mais alta em 1911, com 2.290 (Lebergott, 1957Lebergott, S. (1957). Annual Estimates of Unemployment in the United States, 1900-1954. In National Bureau of Economic Research, The measurement and behavior of unemployment (pp. 211- 242). Cambridge, MA: NBER., p. 215).

Enfim, os dados apresentados ilustram as condições da luta de classes no contexto estadunidense entre os anos de 1881 e 1911. E qualquer leitor isento pode constatar como esse contexto informa a formação ideal sob análise: o taylorismo é também uma resposta ao acirramento da luta de classes. Isso se confirma pelas inúmeras indicações do problema e de como a “organização racional do trabalho” implicaria a eliminação do conflito. Já em seu primeiro texto explicou que o “sistema de pagamento por peça corrente envolve um permanente antagonismo entre empregadores e seus homens” (Taylor, 1896Taylor, F. W. (1896). A piece-rate system: Being a step toward partial solution of the labor problem. Economic Studies, 1(2), 89-129. Recuperado de https://bit.ly/3fPGVw2
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, p. 89, tradução nossa). Tratava-se, portanto, de modificar essa situação sem nunca a compreender inteiramente. As inúmeras indicações desse problema aparecem registradas em seu Shop management, e em seu livro Princípios de administração científica Taylor reconhece a existência deste cenário conflitivo nos Estados Unidos e a necessidade, de sua posição social apologética, de combatê-lo: a “administração científica corresponde para o operário, patrão e particularmente para aqueles que a implantaram em primeiro lugar, a eliminação de todas as causas de disputa e desentendimentos entre eles” (Taylor, 1911/1953Taylor, F. W. (1953). Princípios de administração científica (2a ed.). São Paulo, SP: Atlas . (Trabalho original publicado em 1911), p. 124). Coube à realidade histórica e objetiva dar provas do contrário.

Considerações finais

O objetivo primário do presente artigo foi determinar a gênese do taylorismo como formação ideal, procurando superar as colocações genéricas ou lacunares a este respeito. Para tanto, procedemos à análise da determinação social do pensamento em que, sem ignorar os múltiplos condicionantes - inclusive o do plano das ideias -, foram destacados aspectos objetivos preponderantes e atinentes ao processo de acumulação.

Com efeito, e a partir da análise de conjunto, é possível dizer mais conclusivamente que não restam sérios obstáculos para a determinação da gênese da formação ideal tayloriana, em continuidade com a decadência ideológica, como resposta a uma fase do processo de acumulação na transição entre os séculos XIX e XX. O taylorismo não é apenas uma resposta tardia nos Estados Unidos nos ramos industriais específicos em que prevalecia uma base técnica ainda pouco desenvolvida, mas é também um efeito da crise de lucratividade e do estágio da luta de classes naquele período, donde o que explica a organização do trabalho que este taylorismo veio a ser em setores específicos são os nexos sutis que o ligam, como alavanca da produtividade do trabalho, ao conteúdo concreto manifesto no processo de acumulação do capital.

Entre os aspectos interessantes adicionais, há pelo menos um indicado antes, na figura das afinidades entre o ideário tayloriano e o desdobramento da teoria econômica na transição daquele período. O aprofundamento das conexões historicamente existentes pode ser útil ao esforço de destacar a especificidade do pensamento administrativo em comparação ao pensamento econômico de então, incluindo a extensão de suas respectivas influências sobre a realidade. Há evidências interessantes para se estabelecer ligação entre o taylorismo e a economia prática iniciada na década de 1870 no exemplo de William Jevons entre as influências, no quadro do marginalismo, indicadas anteriormente neste trabalho. Tal ligação também se presta a esclarecer a diferenciação, nesse contexto de desenvolvimento de um conhecimento gerencial, entre aquele pensamento econômico e o administrativo de talhe cada vez mais tecnológico.

Por fim, cabe considerar a necessidade de desenvolver a presente discussão em relação ao cânone e ao subsequente desdobramento da sociologia do conhecimento antes mencionada. Essa discussão deve considerar as aquisições da abordagem operacionalizada no presente trabalho com base na usinagem ontossocietária do pensamento. Mais especificamente tangente à administração, a problemática dessa discussão também se relaciona à história do conhecimento gerencial como ideologia, nos termos apresentados. O estudo da gênese de ideários específicos que fizeram época, como o de H. Fayol, C. Barnard, P. Drucker e cia, constitue um campo aberto e que demanda aprofundamento, considerando autores igualmente influentes, porém não tão difundidos, como O. Sheldon, W. Rathenau e R. Simonsen, este último no Brasil.

Agradecimentos

Agradeço à Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo financiamento do projeto de pesquisa que tornou possível a presente publicação.

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  • Weber, M. (1999). Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB.
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    Ainda que seja consistente o debate sobre tais efeitos, por exemplo, na particularidade brasileira anterior a 1970 -contraste Vargas (1985)Vargas, N. (1985). Gênese e difusão do taylorismo no Brasil. Ciências Sociais Hoje, 155-189. e Antonacci (1993)Antonacci, M. A. M. (1993). A vitória da razão(?): O Idort e a sociedade paulista. São Paulo, SP: Marco Zero. -, é impossível cerrar os olhos para a chegada e difusão, ainda que limitada, principalmente no contexto paulista (pelo menos de 1918 em diante), da assim chamada racionalização, cuja pertinência como objeto de investigação deve ser resguardada ao estudo das teorias da administração e ideologia no Brasil (Paço Cunha & Guedes, 2016Paço Cunha, E., & Guedes, L. T. (2016). “Teoria das relações humanas” como ideologia na particularidade brasileira (1929-1963). Farol, 3(8), 957-1018. doi:10.25113/farol.v3i8.3783
    https://doi.org/10.25113/farol.v3i8.3783...
    ).
  • 2
    Este aspecto contributivo dá ensejo para o enquadramento da presente discussão em uma sociologia do conhecimento. Como se sabe, as trilhas dessa sociologia não são lineares, partem mais claramente de Max Scheler, Karl Mannheim e Robert Merton, e alcançam a nova sociologia da ciência a partir dos anos de 1960 e também sua crítica. Nos fundamentos, particularmente naqueles presentes em Mannheim, estão as influências da problematização iniciada por Marx a respeito da relação entre consciência e relações materiais. Tais influências foram descaracterizadas ao longo do século XX em nome de uma causalidade mecânica. Como ficará evidenciado adiante, nossa posição recupera aquela problematização e difere tanto da linha geral da sociologia do conhecimento quanto da redução linear, pois nossos fundamentos estão ancorados na investigação da formação ideal a partir da usinagem “ontossocietária do pensamento” (Vaisman, 1999) e que reconhece o enraizamento prático do plano das ideias (Mészáros, 1993Mészáros, I. (1993). Filosofia, ideologia e ciência social: Ensaios de negação e afirmação. São Paulo: Editora Ensaio.).
  • 3
    Cabe um esclarecimento em razão da grande circulação da expressão “superexploração”. Podemos dizer que há uma tendência intrínseca ao modo de produção capitalista em baratear a força de trabalho, uma vez que também procura reduzir ao máximo o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias e, portanto, também o equivalente a esse tempo: o salário. O salário, em determinadas condições, pode descer abaixo do valor da força de trabalho, isto é, o equivalente monetário em mercadorias que garante a reprodução social da própria força de trabalho. Se essa tendência é efetivada, os trabalhadores alcançam um “nível niilista” de existência, como anotou Marx (2013Marx, K. (2013). O capital: Livro 1. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 675). Essa tendência pode ser contornada por diferentes meios, como historicamente, de fato, foi levada a cabo pela luta social, arrancando da esfera política barreiras à insaciável fome do capital, barreiras que apenas contingencialmente têm alguma potência, no entanto, como mostra o tempo presente. Essa questão da “superexploração do trabalho” ganhou contornos definidores de escolas do pensamento crítico que levaram a discussão bem mais longe. Para um exemplo contemporâneo, ver Ferreira, Osorio e Luce (2015)Ferreira, C., Osorio, J., & Luce, M. (Orgs.). (2015). Padrão de reprodução do capital: Contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo, SP: Boitempo ., que exemplificam a teoria marxista da dependência.
  • 4
    Nessa discussão não podemos deixar de ser superficiais e, assim, não podemos considerar a diferença entre mais-valor e lucro tal como procede Marx (2017)Marx, K. (2017). O capital: Livro 3. São Paulo, SP: Boitempo . entre os capítulos 2 e 15.
  • 5
    É importante registrar en passant que não estamos reduzindo o problema das crises à taxa de lucratividade. Igualmente, entretanto, não se deve ignorar o comportamento dessa taxa média geral como reflexo de movimento ascendente ou descendente do ciclo econômico. Em outras palavras, as taxas podem declinar sem haver crise. A crise sistêmica depende de variados outros fatores, inclusive dos que contratendencialmente impedem a efetivação da queda tendencial da taxa de lucro. O fato é o seguinte: o período em questão registrou declinante taxa de lucro e crescente concentração e centralização como resposta, eliminando em parte a concorrência então existente.
  • 6
    O “individualismo possessivo” é uma designação para se referir à atribuição do egoísmo à natureza humana imutável que caracteriza o pensamento político de Hobbes e Locke, por exemplo (Macpherson, 1962Macpherson, C. B. (1962). The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke. Oxford: Oxford University Press.). Já a “crítica romântica” tendia a apreender traços reais do capitalismo e generalizar como condição humana universal e instransponível (Lukács, 2016Lukács, G. (2016). Marx e o problema da decadência ideológica. In Marx e Engels como historiadores da literatura (pp. 99-156). São Paulo, SP: Boitempo .).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2018
  • Aceito
    04 Jul 2019
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