Acessibilidade / Reportar erro

Movimento agroecológico no Brasil: a construção da resistência à luz da abordagem neogramsciana

The agroecological movement in Brazil: crafting resistance in the light of a neo-gramscian approach

Resumo

Reconhecendo a necessidade de pesquisas sobre movimentos sociais no campo dos Estudos Organizacionais e partindo de uma abordagem de discurso neogramsciana em resistência, indagamos: de que forma o movimento agroecológico no município de Araponga (MG) promove resistência à hegemonia do agronegócio a partir da reconstrução de diferentes aspectos da realidade social na região? O desenho metodológico inclui pesquisa bibliográfica e também pesquisa de campo, esta última realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com atores envolvidos na experiência agroecológica desenvolvida no município de Araponga. As entrevistas foram analisadas buscando estabelecer relações entre agroecologia e conhecimento agroecológico, relações sociais, autonomia em relação a mercados e sistema de valores. Os resultados apontam que o movimento agroecológico resiste ao agronegócio por meio da articulação de uma identidade contra-hegemônica desenvolvida a partir de: associação e engajamento com outros movimentos sociais e agentes não governamentais; construção de conhecimentos pelos agricultores familiares que se legitimam como interlocutores nas relações com órgãos públicos e mercados, refletindo em mudanças nas relações de poder.

Palavras-chave
Abordagem de discurso neogramsciana; Resistência; Movimento social; Agroecologia; Agronegócio

Abstract

Recognizing the need for research on social movements and on neo-Gramscian discourse approach in resistance in Organizational Studies, we ask: in what way the agroecological movement in the city of Araponga (MG) promotes resistance to the hegemony of agribusiness from the reconstruction of different aspects of social reality in the region? The methodological design includes bibliographical research and field research. The latter was conducted through semi-structured interviews with actors involved in the agroecological experience developed in the municipality of Araponga. The interviews were analyzed in order to establish connections between agroecology and agroecological knowledge, social relations, autonomy from markets and value system. The results show that the agroecological movement resists agribusiness through the articulation of a counter-hegemonic identity developed from: association and engagement with other social movements and non-governmental actors; knowledge construction by small farmers legitimized as interlocutors with public institutions and markets, reflecting on changes in power relations.

Keywords
Neo-Gramscian discourse approach; Resistance; Social movement; Agroecology; Agribusiness

Introdução

O debate em torno de sistemas agroalimentares é crescente em diferentes campos disciplinares. Esses sistemas compreendem um conjunto de regimes alimentares, instituições, múltiplos atores e diferentes discursos que se estabelecem em uma rede complexa que deve ser explicitamente discutida, quando estão em foco questões como sustentabilidade e a equidade (PATEL, 2009PATEL, R. Food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 36, p. 663-706, 2009.; JAROSZ, 2011JAROSZ, L. Defining world of hunger: scale and neoliberal ideology in international food security policy discourse. Food, Culture and Society: An International Journal of Multidisciplinary Research, v. 14, p. 117-139, 2011.; HOLT-GIMÉNEZ; ALTIERI, 2013HOLT-GIMÉNEZ, E.; ALTIERI, M. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, p. 90-102, 2013.). O olhar em torno dos sistemas agroalimentares tornou-se ainda mais relevante após as crises internacionais financeira e alimentar de 2008, cujos efeitos negativos trouxeram à tona a importância de debates em torno do papel da agricultura para a garantia da segurança alimentar (FAO, 2011FAO. Food and Agriculture Organization. The state of food insecurity in the world: how does international price volatility affect domestic economies and food security? Roma: FAO, 2011.).

No Brasil, esse é tema de grande relevância, uma vez que a agricultura representa parte significativa da economia. Em 2011, o agronegócio compreendia 22,15% do PIB do país (CEPEA, 2014CEPEA. Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada. PIB do Agronegócio. Dados de 1994 a 2011. Disponível em: <http://cepea.esalq.usp.br/pib/>. Acesso em: 3 mar. 2014.
http://cepea.esalq.usp.br/pib/...
), e em 2013 atingiu o equivalente a 1 trilhão de reais, cerca de 21% do PIB brasileiro (VELOSO, 2013VELOSO, T. CNA projeta alta de 3,56% no PIB do agronegócio em 2013. Valor. 2013. Disponível em: <http://www.valor.com.br/agro/3369216/cna-projeta-altade-356-no-pib-do-agronegocio-em-2013>. Acesso em: 3 mar. 2014.
http://www.valor.com.br/agro/3369216/cna...
). Embora represente a hegemonia agrícola vigente, o agronegócio não é a única forma de se fazer agricultura no país. Existe uma forte oposição ao agronegócio no Brasil, fundamentada na argumentação de que esse modelo é altamente dependente de capital estrangeiro, possui foco na industrialização do campo por meio da monocultura, da adoção da biotecnologia, da alta mecanização, além de ser um modelo altamente hierarquizado e masculino (WELCH, 2005WELCH, C. A. Estratégias de resistência do movimento camponês brasileiro em frente das novas táticas de controle do agronegócio transnacional. Revista NERA (Unesp), v. 8, p. 35-45, 2005.). Os impactos ambientais – bem como sociais e econômicos – do modelo de agricultura que sustenta o agronegócio são focos de lutas do movimento agroecológico. Segundo o Grupo de Trabalho em Agroecologia (2006)GRUPO DE TRABALHO EM AGROECOLOGIA. Marco referencial em agroecologia. Brasília: Embrapa, 2006., as consequências do modelo industrial de agricultura e pecuária empregado a partir da última metade do século passado, e a não consideração de tais evidências na reorientação das estratégias produtivas, têm provocado pesados efeitos sobre a natureza, que incluem desmatamento, degradação dos solos, desertificação, perda de biodiversidade e emissão de gases de efeito estufa. Tais processos, por sua vez, representam elevados custos para a humanidade, tais como escassez de água, contaminação de fontes e alimentos com insumos químicos que representam riscos à saúde humana.

Em oposição ao agronegócio, a agroecologia emerge no país na década de 1980 como movimento social que propõe uma prática agrícola alternativa, que vem se constituindo como ciência na última década, e tendo sido reconhecida como ciência, em 2006, pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (DELGADO, 2008DELGADO, A. Opening up for participation in agro-biodiversity conservation: the expert-lay interplay in a brazilian social movement. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 21, p. 559-577, 2008.; WEZEL et al., 2009WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development, p. 503-515, 2009.). Desde esse período, o movimento tem se expandido e intensificado suas ações com agricultores familiares, campesinos, extrativistas, comunidades tradicionais e indígenas que compõem a sua base. Há poucos dados consolidados sobre as experiências agroecológicas no Brasil. A capilaridade do movimento e sua estruturação fluida, descentralizada, enraizada nas demandas e especificidades de cada região dificulta a quantificação de praticantes, militantes e produção, todos muito diversificados. No entanto, a agricultura familiar ainda é um dos grupos prioritários para o movimento agroecológico, e numericamente tem expressão significativa no Brasil. O último Censo Agropecuário (2006) revelou que os agricultores familiares respondem por 84,4% dos estabelecimentos do país, ocupam 24,3% da área cultivada e empregam 74,4% da mão de obra do setor agropecuário, respondendo por 9% do Produto Interno Bruto (PIB) total do país (AIAF, 2015AIAF. 2014, Ano Internacional da Agricultura Familiar, Camponesa e Indígena. Comitê Brasileiro. Agricultura familiar. Disponível em: <http://www.aiaf2014.gov.br/aiaf/agricultura-familiar>. Acesso em: 15 maio 2015.
http://www.aiaf2014.gov.br/aiaf/agricult...
).

Assim, como destacado anteriormente, o movimento agroecológico no Brasil surge como uma resposta à crescente preocupação com a deterioração ambiental e exclusão social dos pequenos produtores rurais face à modernização agrícola (NORGAARD, 1984NORGAARD, R. B. Traditional agricultural knowledge: past performance, future prospects, and institutional implications. American Journal of Agricultural Economics, v. 66, p. 875-878, 1984.). A prática agroecológica possui um método de cultivo cujo foco está na gestão do agroecossistema, e não no uso de insumos externos, dessa forma, atua como barreira para as tecnologias introduzidas pela chamada “Revolução Verde” (ROSSET et al., 2011ROSSET, P. M. et al. The Campesino-to-Campesino agroecology movement of ANAP in Cuba: social process methodology in the construction of sustainable peasant agriculture and food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 38, p. 161-191, 2011.; HOLT-GIMÉNEZ; ALTIERI, 2013HOLT-GIMÉNEZ, E.; ALTIERI, M. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, p. 90-102, 2013.). Ou seja, o movimento agroecológico no Brasil representa um movimento contra-hegemônico, que visa resistir às práticas do agronegócio (hegemonia agrícola do país).

Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001. desenvolveram a teoria do discurso neogramsciana, voltada para a análise de discurso em hegemonia, ao que Gramsci chama de “bloco hegemônico”. A hegemonia atua como situação político-social com uma determinada ideia sobre o que é a realidade. Dentro dela, compreendem-se alianças contingentes de forças que atravessam as esferas do Estado e da economia e se apoiam na sociedade civil como “cimento” para que essa hegemonia se estabeleça (KLIMECHI; WILLMOTT, 2011KLIMECHI, R.; WILLMOTT, H. Hegemony. In: TADAJEWSKI, M.; MACLARAN, P.; PARSONS, E. (Ed.). Key concepts in critical management studies. Los Angeles: Sage, 2011.). Segundo, Misoczky, Flores e Böhm (2008)MISOCZKY, M. C.; FLORES, R. K.; BÖHM, S. A práxis da resistência e a hegemonia da organização. Organizações & Sociedade, v. 45, p. 181-194, 2008., a hegemonia aponta para a existência não apenas de uma, mas de múltiplas possibilidades de organização social.

O estudo de Misoczky, Flores e Silva (2008)MISOCZKY, M.; FLORES, R.; SILVA, S. Estudos organizacionais e movimentos sociais: o que sabemos? Para onde vamos? Cadernos Ebape, v. 6, p. 1-14, 2008. também evidenciou uma insuficiência em pesquisas voltadas para movimentos sociais no campo disciplinar de Estudos Organizacionais, seguida de uma frequente negação de que esse objeto de estudo pertença a esse campo. Nos últimos anos, mais pesquisadores desse campo têm se dedicado à discussão e à produção acadêmica sobre movimentos sociais. No entanto, considerando a expressão dos movimentos sociais na atualidade, bem como as múltiplas possibilidades de interpretação desse fenômeno, podemos afirmar que ainda há demanda e espaço para o desenvolvimento de pesquisas sobre essa temática, que ainda ocupa posição marginal no campo dos estudos organizacionais. Nesse sentido, Bruno (2007, p. 3)BRUNO, R. A atualidade de Florestan Fernandes: o entrelaçamento entre arcaico e moderno como traço constitutivo da sociedade brasileira. Palestra proferida na I Conferência Vozes de Nossa América. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007. 10 p. lembra, debatendo a obra de Florestan Fernandes, que “organização é a configuração social da vida”. As organizações que caracterizam as dinâmicas da vida social na contemporaneidade ultrapassam os limites da formalidade, desenvolvendo-se de formas inesperadas, ainda não contempladas devidamente pelos estudos organizacionais e constituindo-se em unidades relevantes para a compreensão de nossas sociedades.

A literatura sobre o tema dos movimentos sociais tem destacado mudanças nas suas formas organizativas que carecem de problematização. Os novos movimentos sociais rompem com dinâmicas tradicionais ao campo e fazem emergir múltiplas identidades no âmbito da política. Com novas frentes de luta, o político deixa de ser espaço fechado e homogêneo e passa a permear as relações sociais para além da esfera de representação de interesses (ROSA; MENDONÇA, 2011ROSA, A.; MENDONÇA, P. Movimentos sociais e análise organizacional: explorando possibilidades a partir da teoria de frames e a de oportunidades políticas. Organizações & Sociedade, v. 18, n. 59, p. 643-660, out./dez. 2011.).

Partindo de tais evidências, buscamos, com o presente artigo, contribuir teórica e empiricamente para o debate em torno de movimentos sociais no âmbito de Estudos Organizacionais no Brasil, com foco especificamente no movimento agroecológico, nos perguntando: de que forma o movimento agroecológico no município de Araponga promove resistência à hegemonia do agronegócio a partir da reconstrução de diferentes aspectos da realidade social na região? Nesse sentido, desvelamos, por meio de pesquisa de campo, relatos e experiências de diferentes atores no município de Araponga, de forma a resgatar significados atribuídos por esses atores ao contexto no qual estão inseridos, tendo como referência o movimento agroecológico na região. Os dados coletados foram analisados com base na abordagem neogramsciana de discurso (LACLAU; MOUFFE, 2001LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001.; LEVY; EGAN, 2003LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.). Para isso, tomamos a agroecologia e suas diferentes formas de contestação como discurso contra-hegemônico na agricultura brasileira.

Após essa etapa inicial, em que são apresentados objetivo, tema e relevância da pesquisa, buscamos estruturar o artigo com mais quatro tópicos centrais. Primeiramente, efetuamos uma problematização teórica a respeito da abordagem neogramsciana em resistência e do movimento agroecológico. Em seguida, descrevemos a metodologia adotada no artigo. O tópico seguinte discorre sobre os resultados da pesquisa. Por fim, mas não menos importante, a última sessão destaca as considerações finais do estudo.

Referencial teórico

Abordagem neogramsciana em resistência

Neste tópico, partimos do pressuposto de que os movimentos sociais “desenvolvem processos, organizam, deliberam e produzem territórios das mais diversas formas – e, até mesmo, constroem estruturas” (MISOCZKY; FLORES; SILVA, 2008MISOCZKY, M.; FLORES, R.; SILVA, S. Estudos organizacionais e movimentos sociais: o que sabemos? Para onde vamos? Cadernos Ebape, v. 6, p. 1-14, 2008., p. 2). Como protagonistas de tais processos, os movimentos sociais não se envolvem apenas em conflitos internos ou contra organizações formais específicas, mas atuam, efetivamente, na construção da resistência a discursos hegemônicos (OTTO; BÖHM, 2006OTTO, B.; BÖHM, S. “The people” and resistance against international business: the case of the Bolivian “water war”. Critical perspectives on international business, v. 2, p. 299-320, 2006.).

Enfatizamos, portanto, a organização – especificamente os movimentos sociais – como processos relacionais, perspectiva que encontra suporte analítico na abordagem neogramsciana.

Nessa abordagem, agência, dinamismo e poder encontram-se integrados, o que evidencia a natureza continuamente dinâmica do “campo de lutas” (OTTO; BÖHM, 2006OTTO, B.; BÖHM, S. “The people” and resistance against international business: the case of the Bolivian “water war”. Critical perspectives on international business, v. 2, p. 299-320, 2006.; KLIMECHI; WILLMOTT, 2011KLIMECHI, R.; WILLMOTT, H. Hegemony. In: TADAJEWSKI, M.; MACLARAN, P.; PARSONS, E. (Ed.). Key concepts in critical management studies. Los Angeles: Sage, 2011.). Esse “campo de lutas” atua como um sistema dinâmico e de fluxo contínuo de contradições, ideologias e agentes, em que o equilíbrio nunca é atingido. Ao mesmo tempo, ideologias e atores são instituídos em estruturas e processos dentro do próprio campo, em um movimento dialético (LEVY, 2008LEVY, D. L. Political contestation in global production networks. Academy of management review, v. 33, p. 943-963, 2008.).

Aqui, tomaremos como campo de lutas a agricultura brasileira – entendida a partir da perspectiva dinâmica das relações que a estruturam e pelas quais é estruturada, envolvendo diferentes atores (organizações não governamentais (ONGs), agentes estatais, cooperativas de produtores rurais, organizações privadas, movimentos sociais e outros) –, materialidade e estruturas discursivas que competem pelos próprios interesses.

Dentro do campo de lutas da agricultura investigamos, então, o movimento social da agroecologia como resistência à hegemonia do agronegócio. Ou seja, focalizamos as relações de poder construídas e disputadas no campo pelo agronegócio (hegemonia) e o movimento agroecológico.

De acordo com Bieler e Morton (2001)BIELER, A.; MORTON, A. D. The Gordian Knot of agency-structure in international relations: a neo-gramscian perspective. European Journal of International Relations, v. 7, n. 1, p. 5-35, 2001., ao afirmar que agência e estrutura são partes de um processo histórico específico, a abordagem neogramsciana não buscaria, portanto, propor soluções, mas problematizações. Com raízes no pensamento marxista, as lentes teóricas neogramscianas assumem a centralidade das lutas que as relações capitalistas de produção geram para a política contemporânea. No entanto, elas diferem do marxismo econômico ao se desprenderem do pressuposto de que a base material necessariamente define a superestrutura ideológica (ANDRÉE, 2011ANDRÉE, P. Civil society and the political economy of GMO failures in Canada: a neo-Gramscian analysis. Environmental Politics, p. 173-191, 2011. ). Ao contrário, essa abordagem encoraja estudos voltados para as “relações de força” (material, institucional e discursiva) e suas conexões nos três níveis de atividade política mutuamente constitutiva: a ordem global, a sociedade civil e o Estado (GILL, 1998GILL, S. New constitutionalism, democratisation, and global political economy. Pacifica Review, v. 10, n. 1, p. 23-40, 1998.). Nessa abordagem, o conceito de hegemonia é crucial e representa uma importante referência à obra de Gramsci (1971)GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks. Londres: Lawrence and Wishart, 1971., na qual é a partir da hegemonia que se faz possível a compreensão da revolução socialista no mundo, assim como o seu fracasso. Em particular, argumenta-se que a hegemonia faz referência a uma forma de “poder consentido”, que permite a identificação de pessoas e suas instituições políticas e sociais, contrastando com formas coercitivas de dominação. Dessa forma, a hegemonia de uma classe social sobre a sociedade acontece quando o consentimento é alcançado, ou seja, quando o poder torna-se assegurado por meio de um tipo de liderança (ou autoridade) intelectual, moral e política (SPICER; BÖHM, 2007SPICER, A.; BÖHM, S. Moving management: theorizing struggles against the hegemony of management. Organization Studies, v. 28, p. 1667-1698, 2007.; LEVY, 2008LEVY, D. L. Political contestation in global production networks. Academy of management review, v. 33, p. 943-963, 2008.).

Por outro lado, a hegemonia é vista como incompleta e não monolítica, mas transitória e historicamente específica, o que possibilita o surgimento de resistências e oposições (GRAMSCI, 1971GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks. Londres: Lawrence and Wishart, 1971.; MORTON, 2000MORTON, A. D. Mexico, neoliberal restructuring and the EZLN: a neo-gramscian analysis. In: GILLS, B. K. (Ed.). Globalization and the politics of resistance. London: Palgrave, 2000. p. 255-79.). Mittelman (2000, p. 184)MITTELMAN, J. H. The globalization syndrome: transformation and resistance. Princeton University Press, 2000. reforça essa ideia, ao afirmar: “diferentes contextos históricos irão produzir diferentes formas de hegemonia com um conjunto diferente de atores”. Assim, o conceito de poder está profundamente entrelaçado com o conceito de resistência em estudos neogramscianos. A resistência emerge como oposição a projetos de cunhos universalísticos e homogeneizadores (p. ex., a globalização neoliberal, o consumismo, a cultura ocidental), com diferentes formas de ação e, nas últimas décadas, como uma resposta social à globalização mercadológica (GILLS, 2000GILLS, B. K. Globalisation and the politics of resistance. Londres: Palgrave Macmillan, 2000.).

De acordo com o pensamento neogramsciano em Laclau e Mouffe, a sociedade civil compreende o local no qual a hegemonia é consentida, reproduzida, sustentada, canalizada, mas é também o espaço em que forças contra-hegemônicas e emancipatórias podem emergir (MORTON, 2000MORTON, A. D. Mexico, neoliberal restructuring and the EZLN: a neo-gramscian analysis. In: GILLS, B. K. (Ed.). Globalization and the politics of resistance. London: Palgrave, 2000. p. 255-79.; LACLAU; MOUFFE, 2001LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001.; LEVY; EGAN, 2003LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.; GILL, 2003GILL, S. Power and resistance in the new world order. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2003.; SPICER; BÖHM, 2007SPICER, A.; BÖHM, S. Moving management: theorizing struggles against the hegemony of management. Organization Studies, v. 28, p. 1667-1698, 2007.; LEVY, 2008LEVY, D. L. Political contestation in global production networks. Academy of management review, v. 33, p. 943-963, 2008.). Gramsci (1971, p. 306)GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks. Londres: Lawrence and Wishart, 1971. descreve a sociedade civil como “o conjunto de organizações comumente chamadas de ‘privadas’” (incluindo também os atores empresariais e sindicatos, em contraste com os conceitos de Hegel da sociedade civil). Essa visão a respeito da sociedade civil permite uma análise de contradição e conflito dentro de um determinado âmbito social, ao invés de se voltar para a contradição primária entre Estado e sociedade civil (MACDONALD, 1994MACDONALD, L. Globalising civil society: interpreting international NGOs in Central America. Millennium-Journal of International Studies, v. 23, p. 267-285, 1994.).

Embora a estabilidade nunca seja atingida, certo alinhamento específico de forças e um período de pequenas perturbações podem acontecer, sendo ajustados e incorporados com quase nenhum impacto sobre a estrutura total. Nesses momentos de descontinuidade e mudança, fissuras se abrem gerando um efeito cascata, voltado para a reconfiguração de todo o sistema (LEVY; EGAN, 2003LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.). Quando isso acontece, significa que a legitimidade da classe dirigente entrou em colapso face a um fracasso político, no qual vozes das demandas incipientes de atores subordinados puderam emergir.

Agricultores, ONGs, ambientalistas e outros atores no movimento agroecológico se articulam socialmente e estabelecem atividades políticas para grupos que visam resistir a práticas hegemônicas na agricultura brasileira, no caso, o agronegócio. Essas dinâmicas, por sua vez, também buscam desenvolver novas “relações hegemônicas” como estratégia de resistência (LEVY; EGAN, 2003LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.). Isso se dá a partir da articulação de diversos atores, dentro e entre as suas próprias operações, articulando “cadeias de equivalência” que englobam a construção de ideologias comuns, identidades e estratégias de ação (BÖHM; SPICER; FLEMING, 2008BÖHM, S.; SPICER, A.; FLEMING, P. Infra-political dimensions of resistance to international business: a neo-gramscian approach. Scandinavian Journal of Management, v. 24 ,p. 169-182, 2008.).

A análise de discurso neogramsciana desenvolvida por Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001. nos permite, portanto, o entendimento sobre as práticas de resistência do movimento agroecológico dentro do campo de lutas da agricultura brasileira. Ou seja, essa perspectiva nos permite investigar, no processo de formação hegemônica, como se dão as contestações políticas e relações de poder por meio da investigação do conflito de interesses entre redes de atores, materialidade e estruturas discursivas.

Agroecologia e movimento agroecológico

Embora tenham ganhado mais destaque ao longo dos últimos anos, as ideias da agroecologia não são novas. Segundo Luzzi (2001)LUZZI, N. A associação dos agricultores ecológicos das encostas da Serra Geral: análise de uma experiência agroecológica. 2001. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade)–Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001., o conceito de agroecologia ganhou destaque a partir de meados do século XX, mas suas práticas “têm a idade da própria agricultura”. O termo “agroecologia” tem sido utilizado com significados diferentes ao redor do mundo (ALMEIDA, 2003ALMEIDA, J. A agroecologia entre o movimento social e a domesticação pelo mercado. Ensaios FEE, v. 24, p. 1-26, 2003.), sendo que os três mais comuns se referem à agroecologia como: ciência, movimento e prática agrícola (WEZEL et al., 2009WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development, p. 503-515, 2009.).

Alguns pesquisadores defendem a agroecologia como uma ciência que busca compreender o funcionamento interno dos sistemas agrícolas, o que frequentemente inclui pelo menos parte do componente humano (ALTIERI, 1995ALTIERI, M. Agroecology: the science of sustainable agriculture. CO: Westview Press, Boulder, 1995.; GLIESSMAN, 2007GLIESSMAN, S. R. Agroecology: the ecology of sustainable food systems. Nova Iorque: Taylor and Francis, 2007.). Abordagens mais recentes em agroecologia como ciência (anos 2000) se voltam para além da visão do campo e dos agroecossistemas para um foco mais abrangente em sistema alimentar global de produção, distribuição e consumo de alimentos (WEZEL et al., 2009WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development, p. 503-515, 2009.).

Para os que praticam a agroecologia (como agricultores, cooperativas, ONGs e outros), ela está relacionada a um método de cultivo cujo foco está na gestão do agroecossistema e no não uso de insumos externos, por conseguinte, é vista como uma barreira para as tecnologias introduzidas a partir da chamada “Revolução Verde”. A partir dela se dá o fortalecimento do debate sobre agroecologia na década de 1970, fundamentalmente em oposição ao modelo agrícola conservador implantado. Segundo Bauer e Mesquita (2008, p. 29)BAUER, M.; MESQUITA, Z. Organizações sociais e agroecologia: construção de identidades e transformações sociais. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 48, p. 23-34, 2008., a Revolução Verde “introduziu, no universo da agricultura familiar, uma nova realidade social, com a substituição de parte do conhecimento tradicional por um científico e instrumental”, que ainda não havia sido legitimado em virtude de condições objetivas.

Em perspectiva oposta às práticas de capital intensivo introduzidas por esse modelo, a agroecologia volta-se para o conhecimento intensivo, direcionando-se a pequenos produtores rurais, a áreas altamente diversificadas, ao mesmo tempo enfatizando a capacidade das comunidades locais de promoverem a inovação por meio de pesquisas desenvolvidas e transmitidas “de agricultor para agricultor” (ROSSET et al., 2011ROSSET, P. M. et al. The Campesino-to-Campesino agroecology movement of ANAP in Cuba: social process methodology in the construction of sustainable peasant agriculture and food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 38, p. 161-191, 2011.; HOLT-GIMÉNEZ; ALTIERI, 2013HOLT-GIMÉNEZ, E.; ALTIERI, M. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, p. 90-102, 2013.).

É nesse contexto de mudanças que a agroecologia consolida-se no início da década de 1980, apoiada no crescente interesse da opinião pública pela questão ambiental. A partir de então, a agroecologia passa a ser defendida como forma de proteção dos recursos naturais, como um roteiro para desenhar e gerir agroecossistemas sustentáveis, relacionando sustentabilidade e agricultura (ALTIERI, 1995ALTIERI, M. Agroecology: the science of sustainable agriculture. CO: Westview Press, Boulder, 1995.). Também no início dos anos 1980, centenas de ONGs na África, na América Latina e na Ásia promoveram projetos de agroecologia que incorporavam conhecimento tradicional, bem como práticas da ciência agroecológica moderna (PRETTY, 1995PRETTY, J. N. Regenerating agriculture: policies and practice for sustainability and self-reliance. Joseph Henry Press. London: Earthscan, 1995.; ALTIERI; ROSSET; THRUPP, 1998ALTIERI, M.; ROSSET, P.; THRUPP, L. A. The potential of agroecology to combat hunger in the developing world. Washington: International Food Policy Research Institute, 1998.; UPHOFF, 2002UPHOFF, N. Agroecological innovations: increasing food production with participatory development. London: Earthscan, 2002.). Pretty (2006)PRETTY, J. Agroecological approaches to agricultural development (version 1). November, 2006. Disponível em: <http://siteresources.worldbank.org/INTWDRS/Resources/477365-1327599046334/8394679-1327599874257/PrettyJ_AgroecologicalApproachesToAgriDevt[1].pdf>. Acesso em: 22 abr. 2015.
http://siteresources.worldbank.org/INTWD...
conduziu estudos sobre o impacto da agricultura sustentável, ecológica e camponesa em 286 projetos de 57 países pobres, em um total de 37 milhões de hectares, concluindo que a produtividade dessas terras com intervenções de conservação de recursos com baixo uso de recursos externos – importante eixo da agroecologia – aumentou em 79%, e a produção média de alimentos cresceu em 1,7 toneladas anuais (até 73%). Tais conclusões se reafirmam em estudos mais recentes. Segundo a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (2012)CÂMARA INTERMINISTERIAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL. Relatório apresentado pelo relator especial sobre direito à alimentação, Olivier de Schutter. Brasília: MDS, 2012., a pesquisa encomendada pelo projeto Foresight Global Food and Farming Futures do Governo do Reino Unido reviu 40 projetos em 20 países africanos nos quais a intensificação sustentável foi desenvolvida durante a década de 2000. Os projetos, que incluíram a ampliação nas colheitas, manejo integrado de pragas, conservação do solo e agroflorestal, tinham atingido, até 2010, 10,39 milhões de agricultores e suas famílias e aproximadamente 12,75 milhões de hectares. A produtividade nas culturas mais que dobrou na média em um período de 3-10 anos, resultando em um aumento na produção agregada de alimentos de 5,7 milhões de toneladas por ano, equivalente a 557 kg/propriedade agrícola. Após as crises financeira e alimentar de 2008, práticas agroecológicas têm se tornado amplamente reconhecidas, e são também relacionadas nos debates a respeito do futuro dos combustíveis e dos impactos das mudanças ambientais globais (HOLT-GIMÉNEZ, 2002HOLT-GIMÉNEZ, E. Measuring farmers’ agroecological resistance after Hurricane Mitch in Nicaragua: a case study in participatory, sustainable land management impact monitoring. Agriculture, Ecosystems & Environment, v. 93, p. 87-105, 2002.; DE SCHUTTER, 2010DE SCHUTTER, O. Report submitted by the Special Rapporteur on the right to food. Human Rights Council 16th Session. New York: United Nations General Assembly, United Nations, 2010.).

Na década de 1990, especialmente nos Estados Unidos e nos países da América Latina, o termo agroecologia passa a ser usado para descrever um movimento, para expressar uma nova forma de se observar a agricultura e suas relações com a sociedade. Atualmente, existem diferentes movimentos sociais que compartilham essa visão sobre a agroecologia (WEZEL et al., 2009WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development, p. 503-515, 2009.). A expansão da agroecologia na América Latina como movimento camponês e indígena de resistência produziu inovações tecnológicas, cognitivas e sociopolíticas, que têm sido relacionadas a novos cenários políticos no Equador, Bolívia e Brasil (RUIZ-ROSADO, 2006RUIZ-ROSADO, O. Agroecología: una disciplina que tiende a la transdisciplina. Interciencia, v. 31, p. 140-45, 2006.). No Brasil, a agroecologia se consolida como movimento social de resistência à hegemonia do agronegócio, estabelecida no país desde a adoção das práticas da Revolução Verde no país (DELGADO, 2008DELGADO, A. Opening up for participation in agro-biodiversity conservation: the expert-lay interplay in a brazilian social movement. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 21, p. 559-577, 2008.).

Para Sauer (2008)SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2008., o agronegócio envolve negócios agropecuários (envolvendo produtores), negócios da indústria e comércio de insumos e comercialização da produção (aquisição, industrialização e venda aos consumidores finais), com foco no aumento da produção e da produtividade. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio: Brasil 2012/13 a 2022/23, projeções de longo prazo. 2013. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/projecoes%20-%20versao%20atualizada.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2014.
http://www.agricultura.gov.br/arq_editor...
), as projeções evidenciam o contínuo aumento do agronegócio no Brasil até o ano de 2023, tendo grande destaque no comércio exterior. O agronegócio representa, portanto, a hegemonia agrícola no Brasil atual. Entretanto, o agronegócio também é associado ao capital estrangeiro, ao controle, à monocultura, à biotecnologia, a uma estrutura fechada e mecanizada, altamente hierarquizada e masculinizada (WELCH, 2005WELCH, C. A. Estratégias de resistência do movimento camponês brasileiro em frente das novas táticas de controle do agronegócio transnacional. Revista NERA (Unesp), v. 8, p. 35-45, 2005.). O estabelecimento e a popularização do agronegócio de fato implicam na imposição de modos de vida, tanto no campo como nas cidades.

Em geral, movimentos sociais voltados para “soberania alimentar” e “autonomia das populações locais” são considerados de grande relevância na América Latina e no Brasil como contra-hegemonia ao agronegócio. No Brasil, esses movimentos são considerados extremamente fortes, como é o caso dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, onde a agroecologia foi recentemente institucionalizada (apesar de severas críticas) (CAPORAL; MORALES HERNANDEZ, 2004CAPORAL, F. R.; MORALES HERNANDEZ, J. Rio Grande do Sul: vers l’agroécologie. L’Écologiste, v. 5, p. 40, 2004.).

A Via Campesina, hoje o maior movimento social internacional (THE GUARDIAN, 2013THE GUARDIAN. La Via Campesina celebrates 20 years of standing up for food sovereignty. 2013. Disponível em: <http://www.theguardian.com/globaldevelopment/poverty-matters/2013/jun/17/la-via-campesina-food-sovereignty>. Acesso em: 3 mar. 2014.
http://www.theguardian.com/globaldevelop...
), e com forte atuação no Brasil, em 2008, após encontro sobre a crise alimentar em Roma, assinou uma declaração ressaltando a agroecologia como solução para o pequeno produtor rural frente à crise alimentar. A Via Campesina, defensora da soberania alimentar, tem espalhado práticas agroecológicas em todas as suas próprias organizações de agricultores (MARTINEZ-TORRES; ROSSET, 2010MARTINEZ-TORRES, M. E.; ROSSET, P. M. La Vía Campesina: the birth and evolution of a transnational social movement. The Journal of Peasant Studies, v. 37, n. 1, p. 149-176, 2010.). Esses novos desenvolvimentos sugerem que a chamada internacional para a soberania alimentar está começando a criar raízes em redes de agroecologia de pequenos produtores. Dessa forma, redes locais agroecológicas se fundem com os movimentos agrícolas transnacionais, como o movimento da soberania alimentar, o que aumenta a pressão social em favor de ambos: soberania alimentar e agroecologia (HOLT-GIMÉNEZ; ALTIERI, 2013HOLT-GIMÉNEZ, E.; ALTIERI, M. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, p. 90-102, 2013.).

A agroecologia e o conjunto de organizações que se dedicam a essas questões e dilemas vêm crescendo desde que pela primeira vez se falou em agricultura alternativa no país. Todavia, segundo Almeida, Petersen e Cordeiro (2001)ALMEIDA, S. G.; PETERSEN, P.; CORDEIRO, A. Crise socioambiental e conversão ecológica da agricultura brasileira: subsídios à formulação de diretrizes ambientais para o desenvolvimento agrícola. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2001., no Brasil, em geral, as experiências de promoção da agroecologia vêm sendo forjadas, com pouca participação do Estado e dos grupos que dominam política e economicamente os rumos do desenvolvimento da agricultura. As estruturas de ciência, tecnologia e extensão, por sua vez, ainda exigem remodelações para atender à diversidade e demandas da agricultura familiar de uma forma geral e dos produtores agroecológicos, sobretudo quando se considera a alta variabilidade dos processos ecológicos e de suas interações com os fatores sociais, culturais, políticos e econômicos heterogêneos que caracterizam cada região e cada unidade de produção.

Mudanças no equilíbrio de poder entre técnicos, agricultores, a natureza, as instituições públicas e de mercado parecem estar na base do desenvolvimento hegemônico de uma experiência agroecológica, não apenas como objetivo a ser alcançado, mas como condição para o seu desenvolvimento (MAFRA, 2006MAFRA, F. L. N. Práticas, poder e perspectivas em reconstrução: um olhar sobre a trajetória da experiência agroecológica de Araponga, Minas Gerais. 2006. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade)–Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.). Em outras palavras, o movimento precisa mudar relações de poder estabelecidas no meio rural brasileiro, mantidas pela dominação do agronegócio, como forma de legitimar-se, construindo e fortalecendo uma estratégia contra-hegemônica.

Metodologia

Fundamentada na abordagem de discurso neogramsciana com base nos estudos de Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001., esta investigação visa compreender como o movimento agroecológico promove resistência ao modelo hegemônico da agricultura brasileira (o agronegócio), e, assim, constrói diferentes aspectos da realidade social (GLYNOS; HOWARTH, 2007GLYNOS, J.; HOWARTH, D. Logics of critical explanation in social and political theory. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2007.). Por nos permitir expor “discursos hegemônicos como algo contingente”, esta abordagem de análise do discurso torna-se útil para um estudo crítico que denuncie a “inevitabilidade de regimes estabelecidos de gestão” (OTTO; BÖHM, 2006OTTO, B.; BÖHM, S. “The people” and resistance against international business: the case of the Bolivian “water war”. Critical perspectives on international business, v. 2, p. 299-320, 2006., p. 308). Dessa forma, buscamos traçar os relatos e as experiências de diferentes atores no município de Araponga que atribuem significado aos acontecimentos, no contexto do movimento agroecológico. Essa análise pressupõe uma investigação em profundidade da formação hegemônica e dos processos de contestação da agroecologia como discurso contra-hegemônico.

Buscamos, portanto, analisar a complexidade dos processos de consentimento, resistência e coerção que modelam e são modelados pelos agricultores familiares envolvidos na experiência agroecológica de Araponga, município da zona da Mata de Minas Gerais, de forma a desvelar o movimento de resistência e atores nele envolvidos na região. Para isso, nos valemos da análise do que Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001. chamam de ponto nodal e significantes flutuantes na abordagem neogramsciana. Segundo os autores, a identidade emerge a partir da articulação e rearticulação de elementos significantes (VAN BOMMEL; SPICER, 2011VAN BOMMEL, K.; SPICER, A. Hail the snail: hegemonic struggles in the slow food movement. Organization Studies, v. 32, n. 12, p. 1717-1744, 2011.; DELLAGNELO; BÖHM; MENDONÇA, 2014DELLAGNELO, E.; BÖHM, S.; MENDONÇA, P. Organizing resistance movements: the contribution of political discourse theory. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 54, n. 2, p. 141-153, 2014.).

Ao propagar elementos significantes, Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001. ressaltam a existência de pontos nodais e significantes flutuantes. Significantes flutuantes são palavras carregadas de significado e podem ser “articuladas de formas diferentes em diferentes discursos” (TORFING, 1999TORFING, J. New theories of discourse: Laclau, Mouffe, and Zizek. Oxford: Blackwell, 1999., p. 301). Eles são flutuantes porque podem ser anexados a muitos padrões possíveis de significação e porque o seu significado depende de como eles estão ligados com outras palavras (VAN BOMMEL; SPICER, 2011VAN BOMMEL, K.; SPICER, A. Hail the snail: hegemonic struggles in the slow food movement. Organization Studies, v. 32, n. 12, p. 1717-1744, 2011.; DELLAGNELO; BÖHM; MENDONÇA, 2014DELLAGNELO, E.; BÖHM, S.; MENDONÇA, P. Organizing resistance movements: the contribution of political discourse theory. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 54, n. 2, p. 141-153, 2014.). Por exemplo, os movimentos sociais, muitas vezes, exploram uma série de significantes flutuantes na tentativa de criar uma linguagem mais rica para articular sua luta política, para mobilizar o apoio mais amplo e atrair potenciais aliados. Normalmente, a mídia emprega esses significantes (STAVRAKAKIS, 1997STAVRAKAKIS, Y. Green ideology: a discursive reading. Journal of Political Ideologies, v. 2, p. 259-279, 1997.; VAN BOMMEL; SPICER, 2011VAN BOMMEL, K.; SPICER, A. Hail the snail: hegemonic struggles in the slow food movement. Organization Studies, v. 32, n. 12, p. 1717-1744, 2011.).

A fim de reunir uma série de significantes flutuantes, os movimentos sociais procuram estabelecer pontos nodais (BARCELLOS; DELLAGNELO, 2014BARCELLOS, R.; DELLAGNELO, E. A teoria política do discurso como abordagem para o estudo das organizações de resistência: reflexões sobre o caso do circuito fora do eixo. Organizações & Sociedade, v. 21, n. 70, p. 405-424, jul./set. 2014.; BÖHM, 2006BÖHM, S. G. Repositioning organization theory. London: Palgrave, 2006.; VAN BOMMEL; SPICER, 2011VAN BOMMEL, K.; SPICER, A. Hail the snail: hegemonic struggles in the slow food movement. Organization Studies, v. 32, n. 12, p. 1717-1744, 2011.). Na teoria do discurso neogramsciana, ponto nodal é: “um ponto que, resultante de uma prática articulatória, reúne os interesses e demandas de diferentes elementos, articulando-os entre si” (BARCELLOS; DELLAGNELO, 2014BARCELLOS, R.; DELLAGNELO, E. A teoria política do discurso como abordagem para o estudo das organizações de resistência: reflexões sobre o caso do circuito fora do eixo. Organizações & Sociedade, v. 21, n. 70, p. 405-424, jul./set. 2014., p. 410). Movimentos sociais articulam esses pontos nodais, a fim de criar cadeias de equivalência que conectam uma variedade de interesses dos diferentes grupos, para um termo central bastante ambíguo (OTTO; BÖHM, 2006OTTO, B.; BÖHM, S. “The people” and resistance against international business: the case of the Bolivian “water war”. Critical perspectives on international business, v. 2, p. 299-320, 2006.). Para a análise de dados, serão destacados o ponto nodal e os pontos flutuantes sob investigação, evidenciados no Quadro 1, a seguir.

Quadro 1
Ponto nodal e significantes flutuantes do movimento agroecológico.

Considerando a diversidade de expressões do movimento agroecológico no Brasil e no mundo, a aproximação de uma experiência concreta, partindo da ótica dos atores que vivenciaram, sustentaram e até mesmo lutaram contra ela (no caso daqueles que são representantes do agronegócio na região), traz elementos interessantes tanto para discutir teoricamente quanto para apreender mais sobre as estratégias desenvolvidas por esses grupos, dando a elas visibilidade.

A pesquisa bibliográfica foi referência importante para caracterizar os debates centrais e concretizar a aproximação entre agroecologia e movimentos sociais e sua relevância no contexto dos Estudos Organizacionais, sobretudo, considerando a diversidade de visões e interpretações sobre agroecologia no Brasil e no mundo. Além disso, ela possibilitou um aprofundamento teórico a respeito da análise neogramsciana de discurso.

A pesquisa de campo foi realizada por uma das autoras, em uma das fases da coleta de dados, na sua pesquisa de doutoramento pelo Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados em duas etapas: de março a abril de 2004 e de abril a maio de 2005. Destacamos que a validade dos dados coletados em 2004 e 2005 está no fato de eles evidenciarem uma etapa de grande relevância e conquistas do movimento agroecológico na zona da Mata de Minas Gerais, que não foram analisadas anteriormente sob a ótica dos Estudos Organizacionais e resistência, como se propõe a fazer este artigo. Foi no período em questão que a experiência agroecológica de Araponga passou a ganhar destaque no país, sendo que seus protagonistas estabeleceram diálogos com órgãos de governo e consolidaram processos relativos a políticas públicas e mercados iniciados em décadas anteriores. Também é um período importante para a agroecologia do ponto de vista nacional, já que em 2004 foi criada a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). A análise da experiência nesse período, no entanto, não ignora a história de construção dessa manifestação específica do movimento agroecológico que se inicia na década de 1970, evidenciando a forma como a contra-hegemonia emergiu e foi consentida, reproduzida, sustentada e canalizada (GRAMSCI, 1971GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks. Londres: Lawrence and Wishart, 1971.; LEVY; EGAN, 2003LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.; SPICER; BÖHM, 2007SPICER, A.; BÖHM, S. Moving management: theorizing struggles against the hegemony of management. Organization Studies, v. 28, p. 1667-1698, 2007.; LEVY, 2008LEVY, D. L. Political contestation in global production networks. Academy of management review, v. 33, p. 943-963, 2008.).

Os entrevistados foram selecionados pela sua relevância dentro do processo de contestação e produção de contra-hegemonia na experiência agroecológica de Araponga, município da zona da Mata de Minas Gerais. De acordo com o censo demográfico de 2010 (IBGE, 2010IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse do Censo Demográfico 2010 Minas Gerais. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/ index.php?uf=31>. Acesso em: 18 mar. 2014.
http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse...
), o município tem população total de 8.152 habitantes, sendo que 63% vivem na área rural. Sustentando-se com atividades de comércio, pecuária, agricultura e, principalmente, da cultura do café, Araponga é marcada pela predominância da agricultura familiar, sendo 86% das propriedades destacadas pelo Censo Agropecuário (IBGE, 1996IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Contagem da população 1996. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem/conceitos.shtm>. Acesso em 20 fev. 2013.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
) de tamanho inferior a 50 ha.

Para avançar no debate, buscamos ilustrar as discussões e contraposições entre agronegócio e agroecologia (entendida como movimento de resistência) por meio de relatos daqueles que estavam diretamente ou indiretamente envolvidos com o movimento agroecológico em Araponga. Assim, construímos nossas análises com base em relatos, obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas, produzidos por: nove agricultores e quatro agricultoras agroecológicas, um representante da Associação de Agricultores Agroecológicos de Araponga, cinco técnicos do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), um sindicalista (Sindicato dos Trabalhadores Rurais – STR) envolvido na experiência agroecológica do município de Araponga e um professor universitário parceiro da experiência.

Além daqueles que estão diretamente envolvidos na construção da experiência agroecológica, foram realizadas seis entrevistas semiestruturadas também com outros atores que, tradicionalmente, estão envolvidos com a dinâmica do agronegócio e dos órgãos governamentais, como: Instituto Estadual de Florestas (IEF), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e prefeitura de Araponga. Todos os entrevistados tiveram suas identidades preservadas, utilizando-se nos trechos de relatos analisados nomes fictícios ou apenas a função exercida pelo entrevistado.

Após essa etapa, os dados foram analisados com base na abordagem neogramsciana de discurso em hegemonia (LACLAU; MOUFFE, 2001LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001.; LEVY; EGAN, 2003LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.).

Resultados da pesquisa: movimento agroecológico e resistência ao agronegócio

Na análise dos dados, destacamos o processo pelo qual o movimento agroecológico resiste à hegemonia do agronegócio, ao desvelarmos como se deu a construção de uma identidade comum contra-hegemônica para a organização do movimento. Nesse sentido, focamos na articulação do ponto nodal “agroecologia” e seus significantes flutuantes.

Articulação do ponto nodal “agroecologia” e seus significantes flutuantes

Conhecimento agroecológico

Para compreender o movimento agroecológico como a resistência, é preciso identificar a forma pela qual o agronegócio se impõe e os impactos que causa às formas de organização da agricultura familiar no campo, sintetizada no depoimento do agricultor agroecológico Marcos:

“[...] quando era criança não tinha... assim... agrotóxico. Tinha as terras e a gente plantava e produzia nas terras sem nada. E desta época pra cá... de 80 para cá... que começou a ter o adubo, através da Emater. A terra foi ficando pobre, a produção caiu demais, as pessoas foram ficando sem condições de sobreviver na roça. Aí, com o adubo, usando adubo, a produção cada vez crescia mais e o pessoal fez financiamento no banco para usar adubo e muitos perderam as terras e muitos foram embora para a cidade: ou porque não tinha condições de produzir mesmo [não podia comprar o adubo] e depois porque se endividou e até perdeu as terras.”

O fragmento revela um processo de mudança, a partir dos anos 1980, que vai impondo valores, práticas e tecnologias que definem o agronegócio em substituição aos conhecimentos e experiências acumulados pelos agricultores familiares durante gerações, desde “quando era criança”. Esse processo ocorre rapidamente com o auxílio de órgãos públicos – “através da Emater” –, e tem implicações para além da esfera produtiva, criando relações de dependência entre os agricultores, as empresas produtoras de insumos, os bancos e as organizações públicas de assistência técnica que difundiam esse modelo de produção. Um modelo que impulsiona a expulsão de várias famílias de agricultores do campo – “muitos perderam as terras e muitos foram embora para a cidade”. Assim, tem se constituído e se consolidado a hegemonia do agronegócio no Brasil: por meio de alianças entre Estado e corporações que reduzem a autonomia e poder dos agricultores familiares, assegurando liderança ou autoridade desse modelo de agricultura sobre outras formas produtivas, de organização e de vida.

Tal processo é instrumentalizado na noção de “pacote tecnológico”, que representa o controle do agronegócio sobre a agricultura brasileira e se observa na voz imperativa presente na fala do agricultor agroecológico Paulo: “[...] é que é pacote [a agricultura convencional]. A Emater fala assim: leva esse pacote aqui e abre e lê e faz”.

O significante flutuante conhecimento agroecológico se coloca em oposição ao “pacote tecnológico” do agronegócio, valorizando os saberes locais, a capacidade dos agricultores, o uso de recursos presentes nas propriedades, a autonomia àqueles que tradicionalmente produzem, disseminam e comercializam conhecimento. Traz, portanto, novos sentidos para a utilização do termo conhecimento, que passa a ser algo acessível aos agricultores, que podem também produzi-lo, adaptá-lo, compartilhá-lo.

A narrativa de Marcos também revela, por um lado, um processo de perda de identidade – agricultor familiar que vai para a cidade –, e, por outro, de reconfiguração de identidades de alguns agricultores que, por meio de organização e mobilização, passaram a construir a resistência ao agronegócio. A oposição entre agronegócio e agroecologia surge na fala de Marcos quando ele separa aqueles que permaneceram na perspectiva hegemônica – “o pessoal”, do grupo do qual ele faz parte, agricultores agroecológicos.

O movimento agroecológico como resistência tem origens em um processo de associação com movimentos sociais de base, com destaque para as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que atuavam no município desde a década de 1970, cujos valores e práticas vão encontrar respaldo na associação com outras organizações, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Araponga e o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA- ZM), ONG que apoia agricultores familiares na região.

“A gente nunca foi de usar veneno por causa da CEBs. Eles estavam sempre passando para o pessoal o que eram os venenos, por que quê veio para o Brasil, que já não conseguiam vender fora e queriam vender aqui. O pessoal que participa desta organização tem uma consciência diferente dos outros.” (Maria, agricultora agroecológica).

Além dos valores e práticas disseminados pelas CEBs, os agricultores entendem que a cada passo do movimento são necessários novos conhecimentos e práticas que muitas vezes precisam ser construídos tanto em conteúdo quanto em forma, porque não existem dentro de uma perspectiva hegemônica que utiliza apenas “pacotes”. A resistência demanda a construção do chamado “conhecimento agroecológico”, eixo temático que ganhou destaque nos últimos anos na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e na Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Esse conhecimento, por sua vez, se faz com envolvimento direto e ativo dos próprios agricultores, não apenas na esfera produtiva, mas em todos os aspectos que compõem a vida das famílias de agricultores. A construção do conhecimento agroecológico representa um processo de aprendizado, no qual os agricultores se tornam mais capacitados para enfrentar os novos desafios que surgem, promovendo mudanças nas relações de poder nas quais estão envolvidos.

“Há um capital grande no local. As pessoas que conseguiram avançar se relacionam com poder público, por exemplo, não mais como pedintes, mas para necessidades coletivas e como direitos. Há um acúmulo de capital. Quem tem autonomia de trabalho e na propriedade tem mais capital. Lá, em vez de pedirem coisas para a prefeitura, eles fazem com mutirão e o prefeito passa vergonha e ele acaba mantendo a estrada ou obra melhor depois.” (Técnico de CTA-ZM).

“A expectativa de qualquer pessoa no processo agroecológico é que se garanta o processo com desenhos infinitos. Não existe a verdade. Existem as verdades que vão se materializando e mudando. E a forma científica preditiva fica à mercê de várias situações em que o sujeito decide que o batom vermelho na boca da esposa é importante e ele toma uma atitude para garantir isso. E como construir isso? Aí é o espaço que garante a manifestação dela para ele em casa e dele para o grupo. Inclusive de relações com Emater que o agricultor assume e diz que vai implementar e todos aprendem com isso e a Emater também. E dá a ciência um grande valor quando se decide que vai se usar determinado método, técnica etc.” (Professor universitário parceiro da experiência).

Identifica-se a coerência (e a construção de uma contra-hegemonia) na fala dos agricultores Maria e Marcos e dos parceiros em relação à construção conjunta das alternativas: a ideia é construir “... junto com os grupos, fortalecer ações, iniciativas que possam ser potencializadas”, como lembra o técnico do CTA-ZM, reconhecendo que não atuam no vazio, mas em um espaço dinâmico em que a resistência em forma de movimento e processo de organização já havia sido semeada, e que qualquer estratégia precisa ser pensada no embate direto e cotidiano com práticas e valores impostas pelo agronegócio. Ao mesmo tempo, os fragmentos anteriores revelam que a dinâmica da resistência não está apenas no olhar e nas atitudes do grupo de agricultores familiares para fora, mas em novas lentes para rever as relações familiares, de trabalho, cotidianas, o que pode levar à seleção de outras prioridades: “e a forma científica preditiva fica à mercê de várias situações em que o sujeito decide que batom vermelho na boca da esposa é importante e ele toma uma atitude para garantir isso”. São enunciadas, assim, mudanças nas relações sociais.

Relações sociais

A oposição entre o conhecimento agroecológico e as estratégias do agronegócio se manifestam, por exemplo, no relacionamento com agentes de assistência técnica de órgãos públicos que atuam na mesma região. Para esses técnicos, os agricultores não têm condições de serem protagonistas da experiência agroecológica e são apenas manipulados por organizações como o CTA-ZM ou o STR. Segundo o técnico da Emater local: “O problema não está nos agricultores. O problema está no relacionamento institucional”.

Destaca-se a expressão “problema” no fragmento. Para o técnico, a experiência agroecológica representa um problema, porque não envolve as organizações públicas que tradicionalmente atuam com assistência técnica no meio rural brasileiro e desenvolve formas de produção que, mesmo mostrando-se efetivas, não compõem o repertório que o modelo hegemônico legitima. O fragmento destaca a importância do movimento agroecológico com suas formas particulares de organização, como resistência (“problema”, na visão do técnico) para o agronegócio. A mesma fala revela ainda como os órgãos governamentais de assistência técnica reproduzem relações de poder que separam os técnicos/cientistas, que têm conhecimento e poder, dos agricultores familiares, que não têm capacidade ou conhecimento. A desqualificação é uma forma de minimizar a importância e repercussão das iniciativas do movimento agroecológico e revela que há uma disputa por poder, uma disputa pelos agricultores agroecológicos que estão mudando relações de poder. Já que eles são manipulados, segundo o discurso dominante, seria ainda possível trazê-los de volta para o agronegócio.

As mudanças e disputas por poder também são sentidas pelos agricultores agroecológicos, que dizem sentir um tratamento diferenciado, com respeito e reconhecimento tanto pelos órgãos públicos como por outros agricultores que seguem a lógica do agronegócio. Concretamente essas mudanças se manifestam, de acordo com vários agricultores entrevistados: “no momento de pedir financiamento”, “de fazer o pedido para cortar uma árvore na propriedade”, “de falar na prefeitura ou ao conselho municipal de desenvolvimento rural”, “definir prioridades de ação do movimento”, “receber técnicos e visitas na propriedade”.

Os agricultores avaliam que o respeito dos órgãos públicos, os trabalhos e iniciativas em conjunto são resultado do processo de organização deles próprios, pautado na agroecologia. Nas palavras do agricultor agroecológico Paulo: “É uma parceria que conseguiu afetar o poder público para fazer parceria”.

O significante flutuante relações sociais, no âmbito da experiência agroecológica, problematiza os diferentes tipos de relacionamentos vivenciados pelos agricultores. Assim, acomodação, passividade, subalternidade, que caracterizavam a posição dos agricultores em relação a órgãos públicos, técnicos e políticos, em um contexto de hegemonia do agronegócio, são substituídos, a partir da experiência, pela construção do sentido de autonomia, respeito, capacidade de influência.

Autonomia em relação ao mercado

A necessidade de criação de novas relações sociais influencia também na construção de estratégias voltadas para o mercado (tratado pelos entrevistados como conjunto de relações que vão além da dinâmica do consumo), instância que exerce forte papel disciplinador e legitimador da hegemonia. Isso se manifesta na fala da agricultora Sônia:

“[agroecologia] é uma agricultura mais sustentável e a gente não fica preso só na propriedade. Agora tem o mercadinho [mercado da Associação de Agricultores Familiares de Araponga – AFA] onde a gente pode vender a produção. Não fica preso só no dinheiro do ano, a gente aproveita a produção da roça”.

A primeira parte do relato, “é uma agricultura mais sustentável e a gente não fica preso só na propriedade”, revela que os agricultores participam de diferentes atividades relacionadas à agricultura. O foco não é mais apenas a produção ou a produção altamente especializada, mas estratégias de sobrevivência. Os fragmentos “a gente não fica preso só na propriedade”, “a gente aproveita a produção da roça”, revelam que os agricultores agroecológicos resistem à especialização produtiva. Isso se manifesta em iniciativas, como processamento de alimentos e envolvimento direto na comercialização de seus produtos, com abertura de novos canais de comercialização (mercadinho da AFA).

A construção de um mercado específico para seus produtos, que é o mercado da Associação de Agricultores Familiares de Araponga (AFA), representa uma forma de diversificação, de aproveitamento do trabalho das mulheres nos quintais, na gestão do mercado, resultado de uma visão mais complexa sobre o trabalho na agricultura, que não está mais centrada apenas na perspectiva produtivista, como revela o fragmento a seguir.

“A primeira coisa a pensar é na horta orgânica. Como combater doenças se leva veneno em algum aspecto da propriedade ou da vida? É um conjunto de engrenagens: cada uma rodando no ponto certo e no tempo certo, senão não consegue rodar a roda grande.” (Marcos, agricultor agroecológico).

O fragmento anterior mostra que, embora a preocupação com o mercado seja grande, os agricultores pensam em outras questões para “rodar a roda grande”, que é simbólica das estratégias de vida desses que resistem à perspectiva hegemônica do agronegócio. Partindo dessa perspectiva, eles compreendem as diferentes engrenagens que compõem o sistema e deixam de ser, eles próprios, engrenagens isoladas e sem poder no conjunto de relações que envolve a agricultura, como impõe o agronegócio.

Como compradores eles também conquistaram autonomia em relação ao mercado. Muitos afirmaram nas entrevistas que compravam poucas coisas que não podiam produzir ou obter por meio de trocas e cooperação. “Semente. A maioria dos agricultores produz a sua própria semente. Feijão, soja, milho, amendoim. Tem liberdade de plantar e diversificar o que a gente quer.” (Paulo, agricultor agroecológico).

A questão da produção de insumos é muito importante para a sustentabilidade e é um dos pontos-chave de outra iniciativa voltada para o mercado, desenvolvida pelos agricultores agroecológicos, que é a produção de café orgânico. Essa foi uma iniciativa também para aumentar os ganhos financeiros dos agricultores, mas mesmo assim foi discutida, pensada, testada para ser implementada com uma perspectiva particular – agroecológica –, como se vê nos relatos a seguir:

“A gente tem feito estas discussões: não é o orgânico convencional. A gente está fazendo o orgânico convencional para entrar no mercado, mas também está discutindo esse mercado.” (Técnico do CTA-ZM).

“Então, hoje, inclusive, estamos vendo como é que a gente trabalha essa coisa de orgânico. [...] Por exemplo, o que significa trabalhar com orgânico? Até que ponto a gente não vai tá contribuindo com a diferenciação dos agricultores na medida em que o acesso a este mercado de orgânico não vai ser para todos? Vai ser pra aqueles que conseguirem e tiverem a capacidade de produzir orgânico e nem todos vão conseguir, né? Então, já é um questionamento que a gente tem que pensa seriamente hoje, se vale a pena investimento no mercado orgânico só com única perspectiva. Se a gente tem que pensar em outras alternativas.” (Técnico do CTA-ZM).

A análise do significante flutuante autonomia em relação ao mercado aponta primeiramente para a possibilidade de os agricultores familiares atuarem de forma mais ativa, seja como vendedores ou consumidores. Esse posicionamento se inicia, na experiência agroecológica, com a produção de novos sentidos para o próprio trabalho na agricultura, como algo que envolve também decisões relativas ao mercado e não apenas a replicação de um pacote tecnológico. Assim, esse agricultor, que também se vê como agente no mercado, toma decisões que fogem ao padrão dominante, como, por exemplo: comercializar, com orgulho, um produto que antes era destinado ao consumo da família, mas que passa a ser valorizado como fonte de saúde e, portanto, com valor para outras pessoas; implementar um mercado próprio, com regras específicas para dar visibilidade e comercializar produtos sem agrotóxicos da agricultura familiar local; investir na produção de insumos nas propriedades ou comprar coletivamente aqueles que ainda demandam como forma de reduzir custos e fortalecer suas estratégias produtivas.

Sistema de valores

A construção da resistência pelo movimento agroecológico se dá em várias dimensões conectadas: nas relações com outros agricultores, com movimentos sociais de base e nos processos de organização, no redesenho do relacionamento com órgãos governamentais, pautado por uma lógica não clientelista, no relacionamento com o mercado, redimensionando a importância e buscando construir novos canais de comercialização, como apontam os entrevistados. No entanto, essa é uma luta constante, já que para cada ruptura o modelo hegemônico reage para tentar incorporar as mudanças ao sistema total. Nesse sentido, a consolidação de uma identidade agroecológica se coloca como um aspecto importante.

“Alguma coisa tem que abrir mão e perder até dinheiro para entrar na agroecologia. Se eu fosse um cara que queria ganhar dinheiro só eu não teria entrado pra a agroecologia, teria ficado na convencional, mesmo com prejuízo pra mim.” (Marcos, agricultor agroecológico).

O relato de Marcos reforça que os valores que estão na base do movimento agroecológico são muito distintos: saúde, autonomia, segurança, respeito, aprendizado compartilham espaço com resultados financeiros porque eles não querem “ganhar dinheiro só”. A priorização do produtivismo e do ganho financeiro, presentes no modelo hegemônico, não é necessariamente boa para o agricultor e sua família, causando dependência e estreitamento das perspectivas e alternativas de sobrevivência. A experiência agroecológica desconstrói muitos mitos e expectativas defendidas pelo modelo hegemônico, como se observa nos relatos a seguir, de Sônia, João e Marta:

“Antes [da agroecologia] a gente achava que tinha que ir para a cidade, que as terras não valiam nada e agora a gente acha que aqui é o melhor lugar, o lugar mais puro [...]. Mudou o jeito como você olha o lugar onde nasceu. Hoje tem muito amor naquela terra.” (Sônia, agricultora agroecológica).

“Ah, as pessoas ficam em dúvida ainda [sobre a agroecologia]. Principalmente aqueles que estão mais longe do trabalho do sindicato e ficam ouvindo a voz de vizinho que pensa diferente.” (João, agricultor agroecológico e sindicalista).

“O convencional não tem perspectiva de futuro. Tem pessoas que estão no modelo convencional, como o parceiro: não consegue desenvolver o convencional e não vê opção para ter uma qualidade de vida melhor. Quem tem sua própria terra pelo menos pode sonhar: hoje eu não tenho dinheiro, mas não estou amarrado no patrão. Não uso veneno. Eu como coisa que presta, de qualidade, então o sonho a gente vê claro.” (Marta, sindicalista e agricultora agroecológica).

Enquanto o aspecto econômico compõe, mas não determina, as estratégias dos agricultores, representantes de órgãos públicos restringem sua avaliação da experiência e do movimento agroecológico aos elementos que constituem a perspectiva estreita do agronegócio. As oposições ficam evidentes em relatos como:

“Eu não vejo uma melhoria generalizada nas condições de vida desses agricultores. Uma casa melhor, por exemplo, eu não vejo. Tem uma preocupação grande com a agroecologia e muito pouca com as condições de vida da população, renda, etc.” (Técnico 1 da Emater local).

“Porque... como o agricultor não está preocupado em maximizar o lucro, o que eles conseguirem ali já está bom? Depois de 15 anos envolvidos nesse trabalho eles não conseguiram nada... melhorias, ganhos. Até quando eles vão esperar?” (Técnico 2 da Emater local).

Os relatos anteriores ignoram e desqualificam os ganhos e avanços do movimento agroecológico em Araponga: enquanto as prioridades dos agricultores são saúde, autonomia, segurança (sentidos constituintes do seu sistema de valores), os técnicos questionam melhorias materiais e financeiras (casa melhor, renda), revelando os sentidos opostos presentes e alimentados pelo discurso do agronegócio. Na perspectiva hegemônica, se o agricultor não se preocupa em maximizar o lucro, ele não tem nada.

Considerando a força da hegemonia, o técnico ainda questiona: “até quando eles vão esperar [por ganhos financeiros]?”. No entanto, os relatos mostram que os agricultores agroecológicos não estão esperando. Estão se movimentando, produzindo mudanças nas relações de poder e construindo ideologia e práticas alternativas de trabalho e de vida para a agricultura no país. A seguir, discorremos sobe as considerações finais e reflexões para futuras pesquisas sobre o tema.

Considerações finais

É crescente o olhar em torno dos sistemas agroalimentares em diferentes campos disciplinares (PATEL, 2009PATEL, R. Food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 36, p. 663-706, 2009.; JAROSZ, 2011JAROSZ, L. Defining world of hunger: scale and neoliberal ideology in international food security policy discourse. Food, Culture and Society: An International Journal of Multidisciplinary Research, v. 14, p. 117-139, 2011.; HOLT-GIMÉNEZ; ALTIERI, 2013HOLT-GIMÉNEZ, E.; ALTIERI, M. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, p. 90-102, 2013.). No presente artigo buscamos desvelar: de que forma o movimento agroecológico no município de Araponga promove resistência à hegemonia do agronegócio a partir da reconstrução de diferentes aspectos da realidade social na região?

Para isso, tomamos como base uma abordagem neogramsciana de discurso em Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001., cujo foco encontra-se na problematização de discursos hegemônicos como algo contingente. Nessa abordagem, a sociedade civil compreende, ao mesmo tempo, o local no qual a hegemonia é consentida, reproduzida, sustentada, canalizada, também, o local em que forças contra-hegemônicas e emancipatórias podem emergir (LEVY, 2008LEVY, D. L. Political contestation in global production networks. Academy of management review, v. 33, p. 943-963, 2008.). O foco deste artigo, contudo, encontra-se nos modos de articulação e contestações políticas contra-hegemônicos do movimento da agroecologia frente ao agronegócio. Para isso, destacamos como o movimento criou uma identidade comum por meio da articulação de significantes flutuantes (conhecimento agroecológico, relações sociais, autonomia em relação ao mercado e sistema de valores) que compõem o ponto nodal “agroecologia”. A investigação empírica se deu na experiência agroecológica de Araponga, município da zona da Mata de Minas Gerais, durante os anos de 2004 e 2005.

A pesquisa empírica em Araponga evidencia que o movimento agroecológico resiste ao agronegócio, em especial por meio de cinco vias centrais em seu processo de organização e mobilização política contra a hegemonia: 1) por meio de associação e engajamento com outros movimentos sociais de base e agentes não governamentais, cujos valores e práticas respaldam a organização do próprio movimento agroecológico; 2) por intermédio da construção de novos conhecimentos (não apenas científicos, mas também tácitos) e práticas (construídas e reconstruídas tanto em conteúdo quanto em forma, uma vez que não se estabelecem dentro da perspectiva hegemônica); 3) por meio da formação de novas relações de poder (para os agricultores, o respeito conquistado com os órgãos públicos, os trabalhos e as iniciativas em conjunto resultam do processo organizativo deles próprios, pautado na agroecologia); 4) por meio do engajamento com novos mercados e fomento de novas relações de mercado, instância que exerce forte papel disciplinador e legitimador da hegemonia (nessa alternativa de mercado, tanto a nova gestão do mercado quanto a visão do trabalho na agricultura e seus agentes não estão mais centrados na lógica produtivista); por fim, 5) via difusão e consentimento de valores tidos como fundamentais para o fortalecimento do movimento agroecológico (destacam-se valores como saúde, autonomia, segurança, respeito, aprendizagem e aproximação com perspectivas alternativas de sobrevivência, cuja prioridade não se encontra no produtivismo e no ganho financeiro, expectativas essas defendidas pelo modelo hegemônico).

As conexões estabelecidas entre os significantes flutuantes, conhecimento agroecológico, relações sociais, autonomia em relação ao mercado e sistema de valores, perpassam a construção e a consolidação da resistência ao agronegócio, em todas as suas dimensões. Tais significantes, interdependentes, são construídos no cotidiano da agroecologia (ponto nodal), que, por sua vez, se consolida a partir da prática articulatória desses mesmos significantes.

A partir dos resultados finais desta pesquisa, defendemos que o artigo contribui tanto teoricamente quanto empiricamente para o campo disciplinar de Estudos Organizacionais. Em primeiro lugar, o artigo contribui teoricamente para o debate em estudos críticos em resistência dentro de sociedade civil, em especial, para a teoria de movimentos sociais, por meio do aprofundamento teórico dentro do movimento agroecológico, inserido no campo da agricultura no Brasil (parte significativa da economia do país). Em segundo lugar, o artigo também contribui teoricamente para o entendimento de como os discursos contra-hegemônicos são construídos de forma dinâmica, a partir da adoção de uma abordagem neogramsciana de discurso. Por fim, a principal contribuição empírica do artigo se dá pela problematização de como o movimento agroecológico no município de Araponga promove resistência à hegemonia do agronegócio (como um discurso contra-hegemônico) a partir das relações de poder, experiências, falas, agentes, práticas, instituições, organizações e materialidades envolvidos nesse processo de resistência que, por sua vez, é contínuo e não monolítico. A partir deste estudo, sugerimos que futuras pesquisas em movimentos sociais dentro de Estudos Organizacionais sejam efetuadas a partir da realidade rural brasileira, tão rica e diversificada, mas ainda pouco explorada no nosso campo disciplinar.

Referência

  • AIAF. 2014, Ano Internacional da Agricultura Familiar, Camponesa e Indígena. Comitê Brasileiro. Agricultura familiar Disponível em: <http://www.aiaf2014.gov.br/aiaf/agricultura-familiar>. Acesso em: 15 maio 2015.
    » http://www.aiaf2014.gov.br/aiaf/agricultura-familiar
  • ALMEIDA, J. A agroecologia entre o movimento social e a domesticação pelo mercado. Ensaios FEE, v. 24, p. 1-26, 2003.
  • ALMEIDA, S. G.; PETERSEN, P.; CORDEIRO, A. Crise socioambiental e conversão ecológica da agricultura brasileira: subsídios à formulação de diretrizes ambientais para o desenvolvimento agrícola. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2001.
  • ALTIERI, M. Agroecology: the science of sustainable agriculture. CO: Westview Press, Boulder, 1995.
  • ALTIERI, M.; ROSSET, P.; THRUPP, L. A. The potential of agroecology to combat hunger in the developing world Washington: International Food Policy Research Institute, 1998.
  • ANDRÉE, P. Civil society and the political economy of GMO failures in Canada: a neo-Gramscian analysis. Environmental Politics, p. 173-191, 2011.
  • BARCELLOS, R.; DELLAGNELO, E. A teoria política do discurso como abordagem para o estudo das organizações de resistência: reflexões sobre o caso do circuito fora do eixo. Organizações & Sociedade, v. 21, n. 70, p. 405-424, jul./set. 2014.
  • BAUER, M.; MESQUITA, Z. Organizações sociais e agroecologia: construção de identidades e transformações sociais. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 48, p. 23-34, 2008.
  • BIELER, A.; MORTON, A. D. The Gordian Knot of agency-structure in international relations: a neo-gramscian perspective. European Journal of International Relations, v. 7, n. 1, p. 5-35, 2001.
  • BÖHM, S. G. Repositioning organization theory London: Palgrave, 2006.
  • BÖHM, S.; SPICER, A.; FLEMING, P. Infra-political dimensions of resistance to international business: a neo-gramscian approach. Scandinavian Journal of Management, v. 24 ,p. 169-182, 2008.
  • BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio: Brasil 2012/13 a 2022/23, projeções de longo prazo. 2013. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/projecoes%20-%20versao%20atualizada.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2014.
    » http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/projecoes%20-%20versao%20atualizada.pdf
  • BRUNO, R. A atualidade de Florestan Fernandes: o entrelaçamento entre arcaico e moderno como traço constitutivo da sociedade brasileira. Palestra proferida na I Conferência Vozes de Nossa América. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007. 10 p.
  • CÂMARA INTERMINISTERIAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL. Relatório apresentado pelo relator especial sobre direito à alimentação, Olivier de Schutter Brasília: MDS, 2012.
  • CAPORAL, F. R.; MORALES HERNANDEZ, J. Rio Grande do Sul: vers l’agroécologie. L’Écologiste, v. 5, p. 40, 2004.
  • CEPEA. Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada. PIB do Agronegócio Dados de 1994 a 2011. Disponível em: <http://cepea.esalq.usp.br/pib/>. Acesso em: 3 mar. 2014.
    » http://cepea.esalq.usp.br/pib/
  • DELLAGNELO, E.; BÖHM, S.; MENDONÇA, P. Organizing resistance movements: the contribution of political discourse theory. Revista de Administração de Empresas – RAE, v. 54, n. 2, p. 141-153, 2014.
  • DELGADO, A. Opening up for participation in agro-biodiversity conservation: the expert-lay interplay in a brazilian social movement. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 21, p. 559-577, 2008.
  • DE SCHUTTER, O. Report submitted by the Special Rapporteur on the right to food Human Rights Council 16th Session. New York: United Nations General Assembly, United Nations, 2010.
  • FAO. Food and Agriculture Organization. The state of food insecurity in the world: how does international price volatility affect domestic economies and food security? Roma: FAO, 2011.
  • GILL, S. New constitutionalism, democratisation, and global political economy. Pacifica Review, v. 10, n. 1, p. 23-40, 1998.
  • GILL, S. Power and resistance in the new world order Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2003.
  • GILLS, B. K. Globalisation and the politics of resistance Londres: Palgrave Macmillan, 2000.
  • GLIESSMAN, S. R. Agroecology: the ecology of sustainable food systems. Nova Iorque: Taylor and Francis, 2007.
  • GLYNOS, J.; HOWARTH, D. Logics of critical explanation in social and political theory Londres; Nova Iorque: Routledge, 2007.
  • GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks Londres: Lawrence and Wishart, 1971.
  • GRUPO DE TRABALHO EM AGROECOLOGIA. Marco referencial em agroecologia Brasília: Embrapa, 2006.
  • HOLT-GIMÉNEZ, E. Measuring farmers’ agroecological resistance after Hurricane Mitch in Nicaragua: a case study in participatory, sustainable land management impact monitoring. Agriculture, Ecosystems & Environment, v. 93, p. 87-105, 2002.
  • HOLT-GIMÉNEZ, E.; ALTIERI, M. Agroecology, food sovereignty, and the new green revolution. Agroecology and Sustainable Food Systems, p. 90-102, 2013.
  • IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Contagem da população 1996 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem/conceitos.shtm>. Acesso em 20 fev. 2013.
    » http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem/conceitos.shtm
  • IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse do Censo Demográfico 2010 Minas Gerais Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/ index.php?uf=31>. Acesso em: 18 mar. 2014.
    » http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/ index.php?uf=31
  • JAROSZ, L. Defining world of hunger: scale and neoliberal ideology in international food security policy discourse. Food, Culture and Society: An International Journal of Multidisciplinary Research, v. 14, p. 117-139, 2011.
  • KLIMECHI, R.; WILLMOTT, H. Hegemony. In: TADAJEWSKI, M.; MACLARAN, P.; PARSONS, E. (Ed.). Key concepts in critical management studies Los Angeles: Sage, 2011.
  • LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 2001.
  • LEVY, D. L. Political contestation in global production networks. Academy of management review, v. 33, p. 943-963, 2008.
  • LEVY, D. L.; EGAN, D. A neo-gramscian approach to corporate political strategy: conflict and accommodation in the climate change negotiations. Journal of Management Studies, v. 40, p. 803-830, 2003.
  • LUZZI, N. A associação dos agricultores ecológicos das encostas da Serra Geral: análise de uma experiência agroecológica. 2001. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade)–Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
  • MACDONALD, L. Globalising civil society: interpreting international NGOs in Central America. Millennium-Journal of International Studies, v. 23, p. 267-285, 1994.
  • MAFRA, F. L. N. Práticas, poder e perspectivas em reconstrução: um olhar sobre a trajetória da experiência agroecológica de Araponga, Minas Gerais. 2006. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade)–Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
  • MARTINEZ-TORRES, M. E.; ROSSET, P. M. La Vía Campesina: the birth and evolution of a transnational social movement. The Journal of Peasant Studies, v. 37, n. 1, p. 149-176, 2010.
  • MISOCZKY, M.; FLORES, R.; SILVA, S. Estudos organizacionais e movimentos sociais: o que sabemos? Para onde vamos? Cadernos Ebape, v. 6, p. 1-14, 2008.
  • MISOCZKY, M. C.; FLORES, R. K.; BÖHM, S. A práxis da resistência e a hegemonia da organização. Organizações & Sociedade, v. 45, p. 181-194, 2008.
  • MITTELMAN, J. H. The globalization syndrome: transformation and resistance. Princeton University Press, 2000.
  • MORTON, A. D. Mexico, neoliberal restructuring and the EZLN: a neo-gramscian analysis. In: GILLS, B. K. (Ed.). Globalization and the politics of resistance London: Palgrave, 2000. p. 255-79.
  • NORGAARD, R. B. Traditional agricultural knowledge: past performance, future prospects, and institutional implications. American Journal of Agricultural Economics, v. 66, p. 875-878, 1984.
  • OTTO, B.; BÖHM, S. “The people” and resistance against international business: the case of the Bolivian “water war”. Critical perspectives on international business, v. 2, p. 299-320, 2006.
  • PATEL, R. Food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 36, p. 663-706, 2009.
  • PRETTY, J. Agroecological approaches to agricultural development (version 1). November, 2006. Disponível em: <http://siteresources.worldbank.org/INTWDRS/Resources/477365-1327599046334/8394679-1327599874257/PrettyJ_AgroecologicalApproachesToAgriDevt[1].pdf>. Acesso em: 22 abr. 2015.
    » http://siteresources.worldbank.org/INTWDRS/Resources/477365-1327599046334/8394679-1327599874257/PrettyJ_ AgroecologicalApproachesToAgriDevt[1].pdf
  • PRETTY, J. N. Regenerating agriculture: policies and practice for sustainability and self-reliance. Joseph Henry Press. London: Earthscan, 1995.
  • ROSA, A.; MENDONÇA, P. Movimentos sociais e análise organizacional: explorando possibilidades a partir da teoria de frames e a de oportunidades políticas. Organizações & Sociedade, v. 18, n. 59, p. 643-660, out./dez. 2011.
  • ROSSET, P. M. et al. The Campesino-to-Campesino agroecology movement of ANAP in Cuba: social process methodology in the construction of sustainable peasant agriculture and food sovereignty. The Journal of Peasant Studies, v. 38, p. 161-191, 2011.
  • RUIZ-ROSADO, O. Agroecología: una disciplina que tiende a la transdisciplina. Interciencia, v. 31, p. 140-45, 2006.
  • SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2008.
  • SPICER, A.; BÖHM, S. Moving management: theorizing struggles against the hegemony of management. Organization Studies, v. 28, p. 1667-1698, 2007.
  • STAVRAKAKIS, Y. Green ideology: a discursive reading. Journal of Political Ideologies, v. 2, p. 259-279, 1997.
  • THE GUARDIAN. La Via Campesina celebrates 20 years of standing up for food sovereignty 2013. Disponível em: <http://www.theguardian.com/globaldevelopment/poverty-matters/2013/jun/17/la-via-campesina-food-sovereignty>. Acesso em: 3 mar. 2014.
    » http://www.theguardian.com/globaldevelopment/poverty-matters/2013/jun/17/la-via-campesina-food-sovereignty
  • TORFING, J. New theories of discourse: Laclau, Mouffe, and Zizek. Oxford: Blackwell, 1999.
  • UPHOFF, N. Agroecological innovations: increasing food production with participatory development. London: Earthscan, 2002.
  • VAN BOMMEL, K.; SPICER, A. Hail the snail: hegemonic struggles in the slow food movement. Organization Studies, v. 32, n. 12, p. 1717-1744, 2011.
  • VELOSO, T. CNA projeta alta de 3,56% no PIB do agronegócio em 2013 Valor. 2013. Disponível em: <http://www.valor.com.br/agro/3369216/cna-projeta-altade-356-no-pib-do-agronegocio-em-2013>. Acesso em: 3 mar. 2014.
    » http://www.valor.com.br/agro/3369216/cna-projeta-altade-356-no-pib-do-agronegocio-em-2013
  • WELCH, C. A. Estratégias de resistência do movimento camponês brasileiro em frente das novas táticas de controle do agronegócio transnacional. Revista NERA (Unesp), v. 8, p. 35-45, 2005.
  • WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sustainable Development, p. 503-515, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2014
  • Aceito
    22 Set 2015
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br