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Marxismo, Estudos Organizacionais e a luta contra o irracionalismo

Introdução

Um dossiê cujo tema envolve a relação entre as diferentes versões do marxismo e os estudos organizacionais é algo a ser destacado. Sobretudo a vanguarda da Organizações & Sociedade em encampar um material desta natureza com o qual a Administração nutre uma hostilidade por vezes declarada. Se o espectro ideológico os separa com força considerável, o mesmo seria possível dizer com relação aos estudos organizacionais?

Dada natureza mais eclética e aberta, mesmo indefinida, a resposta necessariamente deveria ser negativa. Isso é ainda mais verdade se considerarmos a multiplicidade de possíveis relações entre eles. Temos acompanhado, porém, uma luta intestina de correntes teóricas, por assim dizer, formadas por diferentes inclinações (entre as quais situamos as versões do marxismo) e as correntes dominantes, com frequência demarcadas como mainstream. Se essa luta contra o caráter manipulativo das expressões teóricas mais atinentes aos interesses dominantes já acumula alguma história e muitas páginas, existe outra que se desenvolve de modo um pouco mais silencioso. Trata-se da luta contra o delírio contemporâneo: as formas variadas do irracionalismo.

Dito de outro modo, o desenvolvimento dos marxismos nos estudos organizacionais é um tema que merece atenção não tanto pelos vínculos históricos e pelos enlaces de importantes autores no século XX, mas muito mais em razão de resguardar, no interior mesmo desse campo de estudos, o potencial processo autoconstitutivo ao infinito do gênero humano; algo que confronta a dominância das formas teóricas míopes às contradições sociais e, mais importante, a corrosiva invasão das variadas versões do irracionalismo. Este último, que oscila do simbolismo mais solipsista, passando pelo encantamento da tão bradada “morte do homem” e que culmina nos pós-modernismos que se põem “de joelhos para o presente e de costas para o futuro” (CHASIN, 2000CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: CHASIN, J. A miséria brasileira - 1964-1994: do golpe militar a crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000. p. 177-288, p. 202), cultua o indeterminismo, enquanto constitui a forma mais acabada da justificação dos problemas sociais convertidos em virtudes: a falsidade socialmente necessária.

Um exemplo muito claro é o entendimento corrente de que vivemos uma sociedade do consumo e não mais da produção. Nessa formação social do consumo não haveria mais lugar para a luta de classes, mas apenas para lutas localizadas em torno de outras questões que não a exploração do trabalho como categoria econômica decisiva à compreensão do capitalismo. Aliás, “capitalismo” teria ficado para trás em nome de um conceito mais abrangente como pós-modernidade. Um observador mais imparcial teria que reconhecer que nunca houve, em qualquer momento da humanidade socializada, uma desconexão entre produção e consumo, o que, por decorrência, impede uma determinação de uma sociedade do consumo em oposição a uma sociedade da produção. Produção e consumo formam uma unidade de reciprocidades complexas. Eliminando artificialmente a produção e a lógica do valor que a governa, o mercado se desponta como exclusiva força social e, assim, suficientemente explicativa das condições atuais da vida social. Mas como é impossível a existência concreta do consumo sem produção, e desta sem trabalho, não se elimina as contradições moventes do capitalismo pela simples vontade teórica manifesta em expressões conceituais vazias, arbitrárias. Igualmente não se aboli os condicionantes da lógica do valor na vida social ao quebrar conceitualmente a unidade entre produção e consumo. A luta de classes, marcada pela contradição posta na produção do valor, segue existindo sob formas adversas, em estágio e intensidade variável e em complexas relações com os chamados “novos movimentos sociais”. A própria realidade mostra isso, em razão das reivindicações sociais de amplo espectro que são cortadas em grande medida pela proletarização de extensas camadas sociais. Por isso, as relações de classe não desaparecem ao ser entoada a mística palavra “pós-modernidade”.

As diferentes versões do marxismo não apenas são porta de entrada para as demandas da classe trabalhadora no campo dos estudos organizacionais, mas também veículos de sustentação sempre presente da questão prática da emancipação humana como horizonte autêntico, inclusive da produção teórica.

A justificação acabada do presente bradou ferozmente também, não por acaso, a “morte de Marx”. Eis que os séculos XX e XXI provaram e provam o contrário, pois o Mouro é reposto de modos e qualidades variadas – é verdade – em razão dos movimentos próprios da realidade que confirmam e superam, ao mesmo tempo, inúmeros nexos que Marx pôde expressar nos diferentes pontos de seu itinerário. Entre aquelas mais recentes, basta mencionar a imanência da desigualdade em relação ao modo de produção capitalista que recentemente ganhou destaque mundial por meio do livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI – ainda que o autor francês sustente uma leitura problemática de Marx e uma apreensão questionável da realidade ao restringir-se à distribuição da riqueza. Por isso que, a despeito dos erros e acertos dados pelas condições históricas de possibilidade, “a obra marxiana é imortal, a não ser que as possibilidades do homem já estejam definitivamente extintas. Do contrário, se resta alguma esperança – e resta –, há que compreender que a guerra marxiana ao capital é a luta irrenunciável pelo homem” (Chasin, 2000CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: CHASIN, J. A miséria brasileira - 1964-1994: do golpe militar a crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000. p. 177-288, p. 204).

Essa “luta irrenunciável”, travada diariamente, reflete-se no conjunto dos textos que recebemos para essa chamada. Ao todo, foram 22 textos, dos quais tivemos a difícil tarefa – compartilhada com os pareceristas convidados – de selecionar os 05 que compõem a publicação final. O número expressivo de textos recebidos de modo algum nos surpreendeu, pois, como mencionado no edital “Os variados temas e questões que a relação Marxismo-Estudos Organizacionais produziu no século XX e nos recentes anos do século presente estão longe de terem encontrado seu esgotamento, como se costuma afirmar sob a égide do irracionalismo contemporâneo. Ademais, destacamos que a tematização do Marxismo de forma mais direta em sua associação aos Estudos Organizacionais, enquanto parte de um movimento recente de resgate geral da importância do estudo dos clássicos das ciências sociais [...], encontra um conjunto de categorias/conceitos a ser apreendido, problematizado e atualizado”. Empreitada realizada por vários intelectuais pertencentes ao campo da Administração e dos Estudos Organizacionais, revelando, portanto, que o resgate de Marx e dos marxismos não se trata de exotismo ou de caprichos individuais, mas da compreensão da necessidade de combatermos o delírio contemporâneo indo à raiz das problemáticas postas pelo modo de controle antagônico da humanidade.

Diferentes reflexões decorrem dessa radicalidade e estão expressas nos textos selecionados para essa edição da O&S.

O artigo que abre a seção Tema central, intitulado Teorias organizacionais e materialismo histórico, é assinado por Claudio Roberto Marques Gurgel e Agatha Justen Gonçalves Ribeiro. O texto procura desenvolver um dos elementos-chave do marxismo: os nexos entre as formações teóricas e o desenvolvimento do capitalismo. Especificamente, os autores apresentam considerações sobre a relação entre os estágios do avanço do capitalismo norte-americano e o desenvolvimento das principais teorias organizacionais. A análise culmina numa instigante determinação, segundo a qual o desenvolvimento cíclico do capitalismo requer uma unidade científica que combina elementos da economia, administração, psicologia, política e filosofia. Explicita-se, assim, a complexa articulação entre as formações ideais e as relações materiais, algo de importância singular para dos estudos de inclinação marxista.

O segundo artigo é contribuição de Daniel Lacerda, denominado Overcoming Dichotomies through Space: the Contribution of Dialectical Materialism to Organization Studies. O artigo busca desenvolver a abordagem dialética da produção histórica do espaço como uma espécie de tertium datur entre o realismo e o idealismo no enfrentamento dos problemas sociológicos. Seguindo a tradição marxista da geografia humanista – que inclusive tem recebido considerável audiência nas últimas décadas –, o texto apresenta a centralidade as categorias ‘espaço’ e ‘tempo’ para uma consequente análise organizacional. Num diálogo, sobretudo, com David Harvey, Henri Lefebvre e Milton Santos, arma-se a contribuição ao estudo das organizações como produtos históricos e momentos sociais em contextos espaciais mais amplos. O texto é emblemático por indicar a capacidade de autocrítica que está contida no marxismo e o potencial de desenvolvimento à luz das categorias concretas em tela.

Na sequência aparece o artigo Dos antagonismos na apropriação capitalista da água à sua concepção como bem comum assinado por Rafael Kruter Flores e Maria Ceci Misoczky. Texto muito emblemático e de ligação concreta com os recentes momentos críticos vividos no Brasil, traz aos leitores as relações entre a apropriação capitalista da água como momento da produção do valor e a dinâmica da luta de classes. Não se compreenderia adequadamente o problema da apropriação da água fora desses marcos. A posição central do texto é, assim, a de que a determinação da água como bem comum nasce das lutas sociais travadas na própria lógica da apropriação capitalista da água, condicionando potencialmente os modos de gestão dos recursos hídricos. É mérito também do texto ter retomado Marx diretamente e em larga medida, mostrando que, embora o Mouro não tenha desenvolvido suficientemente a questão, suas ideias seguem sendo fundamentais para a compreensão da apropriação do valor durante a produção dos recursos naturais e de necessidade vital, como a água.

O quarto artigo, assinado por Diogo Henrique Helal, denominado Mérito, Reprodução Social e Estratificação Social: apontamentos e contribuições para os estudos organizacionais, busca um fértil diálogo com a sociologia de inclinação marxista. O texto sustenta a participação ativa das organizações na produção e reprodução das desigualdades sociais. Daí que o tema merece destaque por haver um pequeno desenvolvimento dos estudos sobre a estratificação social na Administração e nos Estudos Organizacionais em particular. Um dos méritos do texto, além do resgate de importante literatura sobre a estratificação social, recoloca as organizações em meio aos processos pulsantes da desigualmente, contribuindo para a desmistificação desses espaços apresentados, com muita frequência, como algo à parte dessas contradições sociais.

O último texto, intitulado Desenvolvimento e dependência no Brasil nas contradições do Programa de Aceleração do Crescimento, segue assinado por Priscilla Borgonhoni Chagas, Cristina Amélia Carvalho e Fábio Freitas Schilling Marquesan. A contribuição dos autores está, sobretudo, no diálogo com a teoria da dependência para analisar criticamente o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não obstante a aparência de que o PAC seja expressão de um modelo de desenvolvimento que combina autonomia nacional e integração ao mercado mundial, o texto sinaliza para as determinações que se escondem atrás dessa forma de manifestação. Ao se inserir internacionalmente de modo dependente, reproduz os mesmos padrões de desenvolvimento mas por mediação de particularidades, dando o caráter de um tipo novo de extrativismo. A possibilidade dessa argumentação é dada pelos méritos da teoria da dependência que consegue capturar o processo mundial do capitalismo e a precisa posição das economias subordinadas nessa dinâmica global.

Não poderíamos concluir esse texto sem agradecer às pessoas que, comprometidas com a construção do conhecimento e cientes de que ele é feito, em parte, por meio do embate de ideias, mantêm a Revista Organizações & Sociedade como um espaço profícuo ao debate contra-hegemônico, assumindo assim um papel de vanguarda no campo da Administração no Brasil, justamente por compreender que do hegemônico pelo hegemônico, resta-nos a reprodução. Dentre elas, gostaríamos de agradecer, em especial, aos caros e caras colegas: José Antonio Gomes de Pinho, Maria Candida dos Anjos Bahia, Antônio Sérgio Araújo Fernandes e Sandro Cabral. Esses guardam também os agradecimentos a todos os pareceristas pelo tempo despendido – e cedido – para as análises dos textos. Material que agora está disponível para a leitura de todos e todas, os quais estão convidados ao debate e a proposição de novos espaços aberto às radicalidades necessárias.

Referências

  • CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: CHASIN, J. A miséria brasileira - 1964-1994: do golpe militar a crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000. p. 177-288

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015
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