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Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas

RESENHA

Martinho Braga Batista e Silva

Doutor em Antropologia Social - Instituto de Medicina Social / UERJ > silmartinho@gmail.com

MALUF, Sônia & TORNQUIST, Carmen (orgs.). 2010. Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas. 468 p.

A coletânea organizada pelas professoras das universidades federal (UFSC) e estadual (UDESC) de Santa Catarina divulga principalmente os resultados da pesquisa "Gênero, subjetividade e ‘saúde mental’: políticas públicas, ativismo e experiências sociais em torno de gênero e ‘saúde mental’", coordenada por elas e financiada pelo CNPQ e pela FAPESC. As três principais linhas de abordagem da pesquisa foram políticas públicas, ativismo político e experiências sociais, bem como os discursos e as práticas da biomedicina, esta última complementar, reunindo um material documental (planos, programas e políticas nacionais, estaduais e municipais, de um lado, projetos e ações de organizações não governamentais feministas e antimanicomiais, de outro) e interacional (trabalho de campo com entrevistas e observações em bairros e estabelecimentos de saúde) abrangente sobre gênero e saúde mental. Os dados qualitativos predominam sobre os quantitativos por causa da "[...] falta de informações sistematizadas por parte da rede pública" (:7).

Como as autoras destacam logo na "Apresentação", o objetivo da pesquisa não é apenas realizar uma reflexão sobre gênero e saúde mental, mas particularmente fazê-lo de modo "crítico" (:18). De maneira geral, esta perspectiva crítica aponta para a "[...] necessidade de se repensar a forma como os saberes e as tecnologias do campo da biomedicina têm servido para construir, reproduzir e reforçar as desigualdades e as hierarquias de gênero" (:18). De maneira mais específica, ela se diferencia de outras "perspectivas de gênero", como a que estava em vigor no âmbito das políticas públicas de saúde e

[...] se reduz à definição do que seriam as especificidades em geral ligadas à noção de "ciclo de vida" biológico, que remeteria a uma maior "vulnerabilidade" das mulheres em situações como adolescência, gravidez, pós-parto e menopausa, prevalecendo um modelo fisicalista e de racionalização médica da diferença de gênero (:37).

A perspectiva crítica de gênero sugerida "[...] deveria ter o sentido exatamente inverso ao constatado: deveria ter como objetivo rever as práticas que reforçam concepções reificadoras e reprodutoras da diferença sexual" (:37). O ponto de partida deste argumento é a constatação de um fenômeno sócio-histórico de profundo impacto sobre a vida de muitas pessoas: a "medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público" (:35). O "alto índice de consumo de psicofármacos no Brasil, e particularmente entre mulheres no caso dos medicamentos antidepressivos e os benzodiazepínicos" (:6), ou a "disseminação do uso de psicofármacos e psicotrópicos de todo tipo, com ênfase nos últimos anos nos antidepressivos, inclusive entre mulheres de classes populares, rurais e mulheres indígenas" (:22) parece ter sido o principal problema que motivou a pesquisa, embora, em outros termos, também o seja a receita médica de remédios como resposta governamental recorrente – e muitas vezes exclusiva – às vivências e às experiências de sofrimento divididas por elas com os/as profissionais no momento das consultas.

A reprodução das assimetrias de gênero nas políticas e nas práticas de saúde mental, a reificação da diferença sexual nos documentos governamentais e nos atendimentos na rede pública, bem como o processo de medicalização do social voltado para a população do sexo feminino são alguns dos muitos problemas colocados ao longo da coletânea. A contribuição de convidados externos que participaram dos seminários de pesquisa e o produto de teses de doutorado também foram incluídos nesta publicação. A coletânea finaliza com uma entrevista justamente com uma autora precursora dos estudos sobre gênero e saúde mental no Brasil, de modo que o livro é composto desta entrevista, de quatro textos dos convidados externos e mais os seis textos com os resultados da pesquisa.

O primeiro texto, "Gênero, saúde e aflição: políticas públicas, ativismo e experiências sociais", sintetiza os resultados da pesquisa desenvolvida desde 2006. A autora demonstra como apenas em 2007 se constatou a "necessidade de uma política de saúde mental também na perspectiva de gênero" em âmbito governamental (:32). Ela revisa a produção nacional das ciências sociais sobre o campo da saúde mental, mostrando como são "escassas" as abordagens que "dialogam com uma perspectiva de gênero" (:25). Também os estudos de gênero sobre saúde são objeto de reflexão, apontando para o fato de que eles se detêm principalmente sobre a saúde sexual e reprodutiva, menos do que a saúde mental. Desta, digamos assim, dupla escassez, se desdobram pelo menos duas contribuições teórico-metodológicas.

Primeira contribuição: a literatura antropológica aponta para o "uso de uma linguagem ou dialeto médico também entre mulheres de classes populares" (:24), classes que eram mais permeáveis à linguagem do nervoso (consagrada pelos estudos de L.F. Duarte, amplamente citados durante a coletânea) do que à médica ou psicológica para se referirem à experiência de mal-estar. A autora lança a questão: "Mas até que ponto a utilização de uma categoria médica significa a adoção dos mesmos sentidos dados a esta pelo campo biomédico e científico?" (:29). Desta maneira, questiona a perspectiva teórico-metodológica que une uso do jargão e adesão à visão de mundo psicológica, psicanalítica e biomédica, para ressaltar a relevância de construir um "modelo de compreensão sociológico da perturbação" – por sobre o "fisiológico da aflição" – e de desenvolver uma "sociológica da narrativa das mulheres" (:43-44).

Segunda contribuição: a literatura feminista sobre os processos de medicalização da reprodução avaliam a pílula anticoncepcional e outras tecnologias biomédicas basicamente de dois modos: positivamente, pois aumentariam o grau de autonomia das mulheres sobre o corpo, a vida e a sexualidade; negativamente, pois aumentariam o grau de dependência das mulheres em relação à indústria farmacêutica (:24-25). Segundo a autora, a literatura antimanicomial parece também avaliar positivamente a tecnologia biomédica: "A própria possibilidade de realização da Reforma Psiquiátrica e de desinstitucionalização da saúde mental no Brasil é remetida muitas vezes ao desenvolvimento de medicamentos que controlam a ‘loucura’, possibilitando a saída dos manicômios." (:47), algo que a conduz na direção de uma analogia entre os dois discursos: "Uma lógica semelhante aos discursos em torno da pílula anticoncepcional como ‘liberadora’ das mulheres [...]" (nota 47:60). Desta forma, demonstra como o "significado do medicamento" em certos "universos simbólicos" termina por fazê-lo "adquirir um estatuto de agente" (:46).

A "sociológica da narrativa das mulheres" comparece no segundo texto, "Velhas Histórias, Novas Esperanças", no qual as autoras imergiram em um trabalho de campo junto às "camadas populares da cidade de Florianópolis", moradoras de bairros no "continente" (fora da ilha), atentas às "experiências sociais ligadas ao diagnóstico de depressão" e ouvindo "discursos sociais sobre a experiência de sofrimento e aflição, que articulavam vivências pessoais singulares com a vivência política coletiva de um histórico de ocupação e conquista de um ‘teto para morar’" (:69-70). A "valorização dos espaços de conversa coletiva" como forma de alívio do sofrimento entre as mulheres locais "parece contrastar com a medicalização mais volumosa dos bairros do interior da ilha" (:119). Embora buscassem "narrativas individuais", as pesquisadoras se depararam com "formas coletivas de narração" em meio a uma "experiência coletiva e marcante, extremamente politizada", já que grande parte das interlocutoras participou do Movimento Sem Teto na década de 1990 (:71), sendo que as "entrevistas formais [...] nem sempre foram bem sucedidas" (:73).

As pesquisadoras eram constantemente confundidas com psicólogas e ligadas a projetos socioeducativos e filantrópicos que, de tão rotineiros no bairro, levavam à seguinte situação: "um congestionamento de mediadores ou pesquisadores no bairro, sendo comum, portanto, que em muitas reuniões e grupos estes estejam presentes em maior número do que os próprios moradores/as" (nota 17:123). Divididas entre dois bairros, reuniram cinco interlocutoras em um deles, três delas tendo sido internadas em hospital psiquiátrico, entre outras razões, por conta da vivência de dor se apresentar como "perturbadora da ordem do lar" (:89).

O medicamento que assume o estatuto de agente em certos universos simbólicos comparece no oitavo texto da coletânea, "‘A minha melhor amiga se chama fluoxetina’: consumo e percepções de antidepressivos entre usuários de um Centro de Atenção Básica à Saúde", no qual as autoras coletam material documental em um dos Centros de Saúde de uma rede municipal que alcançou 77% de cobertura populacional na Estratégia de Saúde da Família, ou seja, com mais de 2/3 da população de quase 400 mil habitantes tendo acesso à atenção básica em saúde (:335). Elas quantificaram a dispensação de antidepressivos durante três meses do ano de 2007, reunindo 855 receitas dispensadas a 692 usuários do estabelecimento de saúde, 564 delas a usuárias, as quais representam mais de 80% desta amostra (:337, 339). Comparando a prescrição de três tipos de medicamentos, destaca-se a fluoxetina – ocupa mais da metade das receitas – sendo que mais de 1 mil antidepressivos são receitados para aproximadamente 15 usuários por dia no Centro de Saúde (:338), predominantemente por psiquiatras e médicos de família e comunidade (em quase 30% dos casos cada um) (:341), os clínicos gerais quase não comparecendo nesse papel (apenas em 7% dos casos), diferentemente de outras pesquisas revisadas pelas autoras. Entrevistando duas usuárias do Centro de Saúde (:343), ressaltam que para uma delas "A fluoxetina assumia papel em sua vida que a religião não alcançou: o da cura" (:356).

O terceiro texto reúne as "narrativas" de mais seis "pessoas com deficiência com histórico de ativismo" (apenas uma delas do sexo masculino) e as "falas" de dois profissionais visando compreender a "manifestação da deficiência como identidade política" (:134-136). Em "A Construção da Pessoa na Experiência da Deficiência: corpo, gênero, sexualidade e saúde mental", são apresentadas histórias marcadas pela "resistência à patologização da deficiência", pelo "uso resiliente do humor, ou seja, encontrar o cômico nas suas próprias ‘desgraças’", ao mesmo tempo em que "as narrativas apontam para o estatuto de quase pessoa dado às próteses, a ideia das próteses como fetiches, na medida em que esses objetos são ‘cultuados’, corporificados e nomeados como pessoas pelos sujeitos" (:165). O estudo foi vivido como uma "novidade", inclusive pela pesquisadora, "pessoa com deficiência e ativista da deficiência", tendo em vista os momentos nos quais uma condição intrinsecamente adversa como a deficiência era enaltecida e tornava-se motivo de orgulho (:141).

O quarto texto reúne mais narrativas, agora de quatro "mulheres que trabalhavam como voluntárias da Pastoral da Saúde" de um bairro, todas frequentadoras da Igreja Católica. Em "Itinerários Terapêuticos e Modelos de Sofrimento entre Voluntárias da Pastoral da Saúde do Bairro Saco Grande II – Florianópolis / SC", a autora apresenta narrativas de sofrimento e busca de cura, nas quais há "identificação do espaço doméstico, a ‘casa’, com o sofrimento" (:200), bem como uma "valorização do diagnóstico e do tratamento médico" entre as entrevistadas (:201); há aceitação do tratamento a par com uma negociação do tratamento (:202), e é o trabalho voluntário que lhes "permite ‘sair de casa’" (:204). Dialogando com os "modelos de pessoa" formulados por L.F. Duarte, a autora apresenta seus "modelos de sofrimento": o modelo biomédico, o espiritual e o social-relacional (:207-208).

O sexto texto é o último a apresentar os resultados da pesquisa e defende de modo contundente que "O gênero [...] pressupõe o entendimento de que a questão do sofrimento psíquico ou ‘doença mental’ está diretamente relacionada com aspectos sociais, culturais e de poder", e que "tais sofrimentos advêm de relações assimétricas de gênero e de papéis sociais e identidades historicamente assumidos pelas mulheres" (:288-289). Em "O Gênero no Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira", é revisada a produção científica nacional sobre saúde mental e ressalta-se, de um dos artigos, como a autora "demonstra o quanto as mulheres têm estado presentes no campo da saúde mental, seja como usuárias dos serviços de saúde, familiares ou como trabalhadoras e gestoras" (:286). Segundo ela, "ainda que a categoria gênero não esteja presente nas políticas de saúde mental, nas diferentes esferas de governo, bem como no discurso dos trabalhadores e militantes e nos projetos terapêuticos dos serviços, sua presença no campo da assistência se inscreve de forma significativa" (:277, grifo meu). Mas essa presença do recorte de gênero nas políticas de saúde mental tinha sido sinalizada em outro texto desta mesma coletânea como algo vigente desde 2007. No final do texto diz-se, ainda sobre o recorte de gênero, que "este vem sendo pouco reconhecido, ainda que muito presente nas práticas assistenciais bem como na formulação e na execução das políticas de saúde mental" (:285, grifo meu).

Os textos dos convidados externos que participaram dos seminários de pesquisa e o produto de teses de doutorado também tocam em pontos relativos a políticas públicas, ativismo político e experiências sociais em gênero e saúde mental. O quinto texto acrescenta ao recorte de gênero não só o de classe, mas também o de geração, descrevendo e analisando o fenômeno das idosas que cuidam de idosas através de um extenso material interacional junto a Grupos de Terceira Idade. Em "A Obrigação de Cuidar: mulheres idosas em uma comunidade de Florianópolis", a autora mostra como o "cuidado de um doente idoso obedece a todas as regras locais do cuidado com os doentes: o cuidador principal é uma mulher, a esposa, os cuidadores secundários são membros da família, incluindo os filhos e as noras, as cunhadas e as sobrinhas" (:229), embora haja situações nas quais se contrata uma vizinha para cuidar (:233) ou pagam-se atendentes, cozinheiras e faxineiras (:239) para tanto, ou mesmo não se considera apropriado que um parente cuide do idoso (:236). O cuidado da "Terceira Idade" pela "Quarta" idade reproduz assim, segundo ela, o "drama cíclico da necessidade e do cuidado" (:263).

O sétimo texto apresenta os resultados de uma tese de doutorado sobre gênero e saúde mental em um dos principais estabelecimentos de saúde mental, instalado a partir do processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira: o Serviço Residencial Terapêutico – SRT. O estudo em um dos três SRTs do estado de Santa Catarina, um SRT "feminino", apresenta as narrativas de "seis mulheres que viveram mais de trinta anos num hospital psiquiátrico" (:295). A autora mostra a passagem vivida entre "paciente" e "moradora" e o quanto ajudar na limpeza e no cuidado das outras pacientes do hospital psiquiátrico foi critério para o encaminhamento para o SRT (:304), e o quanto a "demonstração de suas habilidades femininas" (:326) é fundamental para a manutenção desta identidade de "moradora". Em "Serviço Residencial Terapêutico – Morada do Gênero", nota-se também que "O casamento e a maternidade... são contraindicados à condição de moradoras, sob a visão das mesmas" (:313), e que "Algumas delas já são até madrinhas de filhos da comunidade onde residem" (:318). Assim, além de pacientes e moradoras, tornam-se madrinhas.

O nono texto também apresenta os resultados de uma tese de doutorado, tratando de uma "face específica da ideia mais ampla de um fisicalismo", o "cerebralismo" (:368), através da observação participante em um congresso de psiquiatria, no qual o autor coleta material publicitário da indústria farmacêutica nos estandes enquanto interage com expositores, congressistas, promotores e amigos. Em "Notas de um ‘não prescritor’: uma etnografia entre os estantes da indústria farmacêutica no Congresso Brasileiro de Psiquiatria", o único autor da coletânea sublinha que em um dos estandes, com propaganda de medicamentos para "problemas sexuais", "as imagens em destaque são sempre de mulheres" e transmite-se uma "relação entre a depressão e a imagem feminina" (:375-376), enquanto outro estante "destacava o distúrbio do pânico", acompanhado de um "grande cartaz" mostrando um "corpo – que parece ser masculino – em corrida" (:380). A difusão da noção cerebralizada de pessoa e da perspectiva de uma saúde mental que caminha junto com uma saúde cerebral é a sua principal contribuição, cuja condição de possibilidade foi a de carregar consigo um crachá de estudante – não prescritor, portanto – pelos estandes e, já na primeira manhã do congresso, ter "mais material impresso do que poderia carregar comigo, e mais do que eu já tinha tido acesso em vários anos de interesse no assunto" (:394).

O décimo e último texto também tem como tema o cérebro, descrevendo e analisando exclusivamente material documental – teses de medicina de meados do século XIX e artigos de divulgação científica contemporâneos – nos quais se difundem representações em torno do cérebro que demonstram "a recorrência da tentativa de descrever em bases naturalizantes as diferenças de gênero por parte da ciência" (:403). Em "O que se vê no cérebro? A pequena diferença entre os sexos ou a grande diferença entre os gêneros?", a autora destaca nas teses de medicina a construção de uma "justificativa biológica para os papéis sociais diferenciados exercidos por homens e mulheres", ou uma "justificativa anatômica da hierarquia de gênero" (:409), sendo que essa "preocupação em definir as diferenças de gênero em termos biológicos" comparece também em documentos científicos contemporâneos, divulgados em revistas como Viver – Mente e Cérebro (:422). Percebe que nessas revistas, "apesar de toda a preocupação com a correção política e mesmo da sintomática utilização do termo ‘gênero’ em situações em que parece estar se referindo a sexo, ainda perpassa uma hierarquia de valor na comparação entre homens e mulheres" (:424).

A entrevista com a Dra. Maria Lucia da Silveira, uma das precursoras do debate sobre gênero e saúde mental no Brasil, mostra como esta sanitarista começou a se interessar pelo assunto por conta do "excesso e [d]a facilidade de obtenção de psicotrópicos e de outros medicamentos cujo uso deveria ser controlado com rigor devido aos efeitos indesejáveis" (:443), desdobrando-se naquilo que seu trabalho de campo evidencia no cotidiano da população frequentadora dos estabelecimentos psiquiátricos: "seu estoque particular de substâncias controladas" (:445). No que tange particularmente às usuárias da rede pública de saúde, este estoque serve também para "ajudar pessoas próximas em situações dolorosas" e a estabelecer circuitos de troca e reciprocidade na comunidade (:446).

Como mencionado anteriormente, as organizadoras da coletânea e coordenadoras da pesquisa justificam o fato de os dados qualitativos sobre consumo de psicofármacos entre as mulheres predominarem sobre os quantitativos por conta da ausência de dados sistematizados na rede pública de saúde. Mas um dos textos realiza um levantamento de três meses de dispensação de antidepressivos em um estabelecimento de saúde, reunindo 855 receitas médicas e mostrando um consumo muito maior deles entre as usuárias. E quantificando não só os medicamentos, mas também os "dados qualitativos", separando do conjunto de textos apenas os que apresentam os resultados da pesquisa, notamos que foram entrevistadas 19 pessoas no total, 18 delas mulheres.

A coletânea pretende preencher um vazio na produção científica nacional: a articulação entre gênero e saúde mental. Vale a pena levar em conta que revisões internacionais sobre gênero e sexualidade já têm apontado não só para a ideia de que o gênero é a construção social do sexo, mas também que o próprio gênero é uma construção sócio-histórica (Moore, 1997). A farmacologização tem sido objeto de importante investimento teórico e metodológico em revisões de antropologia médica (Biehl & Moran-Thomas, 2009), reforçando a necessidade de pensar no que as autoras chamam de "medicamentalização" e não exclusivamente na "medicalização". Além disso, outros estudos de antropologia médica que foram conduzidos na região Sul do país também apresentam contribuições para o tema gênero e saúde mental, como a pesquisa de J. Biehl junto a uma interna de estabelecimento asilar em Porto Alegre-RS, embora o autor pareça destacar os processos sócio-históricos de desbiologização da patologia e sociologização do sofrimento neste cenário do processo de Reforma Psiquiátrica (Biehl, 2005) mais do que os de medicalização e medicamentalização.

No que tange ao cenário local, a cidade de Florianópolis-SC, deve-se atentar para a promulgação recente da Lei nº 9.018, de 24 de julho de 2012, que institui a política municipal de prevenção e diagnóstico de distúrbios psicomentais e da esquizofrenia na rede municipal de ensino. A lei alerta os professores para "o risco da manifestação de distúrbios entre os alunos" e conclama ao "combate aos referidos males". Ou seja, apesar destas e de outras ousadas pesquisas na UFSC e na UDESC, a prevenção da doença mental veio a compor a agenda governamental municipal, enquanto a agenda governamental federal tem caminhado na direção da promoção e da recuperação da saúde mental. Enfim, além do que já foi conquistado com a divulgação desta pesquisa, há muito ainda o que fazer para articular políticas públicas, ativismo político e experiências sociais em gênero e saúde mental.

Referências bibliográficas

BIEHL, João. 2005. Vita – life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press. 404 p.

BIEHL, João & MORAN-THOMAS, Amy. 2009. "Symptom: Subjectivities, Social Ills, Technologies". Annual Review of Anthropology, 38, p. 267-288.

MOORE, Henrietta. 1997. "Understanding sex and gender". In: INGOLD, T. (org.). Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge. p. 813-830.

  • BIEHL, João. 2005. Vita life in a zone of social abandonment Berkeley: University of California Press. 404 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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