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Delineamento de pesquisas sobre escrita e tecnologias digitais: construindo um lugar para o trabalho em Estudos Linguísticos no Brasil a partir de seus programas de pós-graduação

Research outlining of writing and digital technologies: framing a place for Academic Research in Linguistic Studies in Brazil in post-graduation programs

Resumos

Neste artigo será apresentado o trabalho de "estado da arte" a partir do levantamento de programas de pós-graduação brasileiros, em estudos linguísticos, que articulam linguagens e tecnologias digitais, a fim de se delinear as pesquisas de mestrado e doutorado sobre escrita e Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação - TDIC - de 1999 a 2010. Para tanto, foram identificados cursos de pós-graduação nos principais centros de Ensino Superior do país e analisadas suas teses e dissertações. Pudemos verificar tendências nessas pesquisas publicadas até a primeira década do século XXI e notar como as investigações evidenciam uma complexidade de se trabalhar com objetos relacionados ao digital. Assim, acreditamos poder colaborar para conhecimento do campo que se configura, entendimento de suas pesquisas e situar os estudos linguísticos.

Pós-graduação; estudos linguísticos; tecnologias digitais; levantamento de teses e dissertações


This paper will present the research of the "state of art" from the survey of postgraduate programs in Brazil on linguistic studies, which articulate languages and digital technologies, in order to delineate master's and doctorate's theses on writing and Digital Information and Communication - DICT - from 1999 to 2010. Postgraduate courses were, then, identified in the main universities of the country and theses and dissertations were analyzed. We could establish some trends in the papers published as far as the first decade of the 21st century as well as notice that they highlighted the complexity of working with subjects related to digital. We, therefore, believe we can contribute to the knowledge of the field which has been established, understanding its researches and situating its linguistic studies.

Postgraduate; linguistic studies; digital technologies; theses and dissertations survey


Delineamento de pesquisas sobre escrita e tecnologias digitais: construindo um lugar para o trabalho em Estudos Linguísticos no Brasil a partir de seus programas de pós-graduação1 1 Este artigo é decorrente da pesquisa de "estado da arte" desenvolvida na dissertação de mestrado Entrelaçando on-line e off-line: práticas de escrita e reescrita em comunidades da rede social Orkut, defendida em 2012, sob orientação da Profa. Dra. Raquel Salek Fiad, no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas, na subárea de Língua Materna, com financiamento da CAPES.

Research outlining of writing and digital technologies: framing a place for Academic Research in Linguistic Studies in Brazil in post-graduation programs

Flávia Danielle Sordi Silva Miranda

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Campinas – São Paulo / Brasil. flaviasordi@gmail.com

RESUMO

Neste artigo será apresentado o trabalho de "estado da arte" a partir do levantamento de programas de pós-graduação brasileiros, em estudos linguísticos, que articulam linguagens e tecnologias digitais, a fim de se delinear as pesquisas de mestrado e doutorado sobre escrita e Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação – TDIC – de 1999 a 2010. Para tanto, foram identificados cursos de pós-graduação nos principais centros de Ensino Superior do país e analisadas suas teses e dissertações. Pudemos verificar tendências nessas pesquisas publicadas até a primeira década do século XXI e notar como as investigações evidenciam uma complexidade de se trabalhar com objetos relacionados ao digital. Assim, acreditamos poder colaborar para conhecimento do campo que se configura, entendimento de suas pesquisas e situar os estudos linguísticos.

Palavras-chave: Pós-graduação; estudos linguísticos; tecnologias digitais, levantamento de teses e dissertações.

ABSTRACT

This paper will present the research of the "state of art" from the survey of postgraduate programs in Brazil on linguistic studies, which articulate languages and digital technologies, in order to delineate master's and doctorate's theses on writing and Digital Information and Communication – DICT – from 1999 to 2010. Postgraduate courses were, then, identified in the main universities of the country and theses and dissertations were analyzed. We could establish some trends in the papers published as far as the first decade of the 21st century as well as notice that they highlighted the complexity of working with subjects related to digital. We, therefore, believe we can contribute to the knowledge of the field which has been established, understanding its researches and situating its linguistic studies.

Keywords: Postgraduate; linguistic studies; digital technologies; theses and dissertations survey.

Introdução

Creio que o sofrimento de submeter-se à virtualização sem compreendê-la é uma das principais causas da loucura e da violência de nosso tempo (LÉVY, 1996, p. 147).

O ambiente virtual passou a ser visto e explorado como contexto emergente de investigação para muitas disciplinas em diversas áreas como estudos matemáticos, linguísticos, pedagógicos e biológicos, entre outros. Quando voltamos o olhar para os estudos relativos à linguagem, em particular, podemos notar que nos últimos anos, sobretudo na primeira década do século XXI, houve crescimento de pesquisas cujo enfoque estava de alguma maneira relacionado às novas mediações tecnológicas (computador, celular, videogame...).

Trata-se de um período histórico de constituição de uma área de investigação dos estudos linguísticos que se estabelece diante do surgimento e crescimento do fenômeno gerado pela interação humana com as tecnologias digitais, como as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – TDIC – que propiciam novas práticas sociais e, inclusive, letradas, sendo que encontramos o estabelecimento de uma tendência de pesquisa que, com pequenas variações terminológicas, caracteriza-se pela abordagem da linguagem relacionada às TDIC, nos últimos anos, no contexto brasileiro.

Assim, deparamo-nos com alguns programas de pós-graduação em universidades distintas nos quais se destacavam áreas e/ou linhas de pesquisa, denominadas, por exemplo, como "Linguagem e Tecnologias" no programa de pós-graduação em Linguística Aplicada no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL-UNICAMP); "Linguagem, Tecnologia e Ensino" no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); "Linguagem e Tecnologia" no programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e "Linguagem, Tecnologia e Educação" no programa de pós-graduação em Linguística Aplicada e Estudos Linguísticos da Pontifícia Universidade Católica do Estado de São Paulo (PUC-SP), entre outras existentes.

Esta pequena amostragem de algumas áreas de concentração e/ou linhas de pesquisa de programas brasileiros de pós-graduação já aponta para a variação geográfica (diferentes estados), institucional (universidades federais, estaduais e privadas) e de grupos de pesquisa (professores e estudantes que se filiam a tal área) onde os trabalhos são desenvolvidos, indicando a amplitude e expressividade do momento histórico em que nos encontramos que, por conseguinte, demanda pesquisas para o entendimento do modo como as mediações tecnológicas têm sido usadas, transformadas ou utilizadas para transformar práticas letradas, bem como suas implicações e possibilidades.

É, pois, tencionando realizar um delineamento dessas pesquisas sobre as relações entre linguagem e tecnologias nesses últimos anos, mais especificamente, até o período de 2010, no Brasil, que buscamos inscrever este artigo. Apresentaremos um levantamento de programas de pós-graduação, em humanas,2 2 Devido à necessidade de recorte para análise, as áreas de exatas e biológicas foram excluídas por não estarmos inseridos em nenhuma delas e nossos interesses de pesquisas não se encontrarem nesses campos. focalizando, principalmente, aqueles em estudos linguísticos que possuem linhas de pesquisa na área, identificando trabalhos acadêmicos neles desenvolvidos, a fim de melhor compreendermos tanto a configuração desta nova tendência, como situar os estudos linguísticos e, em particular, o estudo da escrita, nesse meio.

Letramentos digitais e a emergência de pesquisas em estudos linguísticos

A existência de programas de pós-graduação que se declaram como centros de investigação acerca das articulações entre práticas de linguagem e o meio digital aponta, por consequência, para trabalhos acadêmicos que possuem interesses de pesquisas ligados, de alguma forma, ao diálogo entre letramentos e as TIDC, como puderam mostrar os trabalhos de Lima e Lima-Neto (2009) e de Vieira (2004), os quais se propuseram a delinear pesquisas sobre letramento digital que emergiram no Brasil nos primeiros anos do século XXI por meio da análise de resumos de teses e dissertações, no primeiro caso, e da busca por estudos publicados em congressos, no segundo. Seja como for, tais levantamentos enfocaram a procura por investigações sob o prisma do letramento digital, como apontam os títulos desses trabalhos: "Panorama das pesquisas sobre letramento digital no Brasil: principais tendências" e "Tecnologia eletrônica e letramento digital: um inventário da pesquisa nascente no Brasil", respectivamente (grifos nossos).

Percebe-se que o conceito de letramento digital, então, sempre é posto em questão como o eixo das pesquisas identificadas. Bawden (2008), no primeiro capítulo da obra Digital Literacies: concepts, policies and practices propõe-se a descrever o surgimento e o desenvolvimento da ideia de letramento digital, demonstrando como o conceito pode estar relacionado a vários outros letramentos e vem sendo tomado de diversas maneiras já que não se encontra – e acreditamos que nunca se encontrará – inteiramente definido, revelando usos diferentes para o termo.

Para tanto, cita alguns autores (BAWDEN, 2001; BAWDEN; ROBINSON, 2002; COPE, 2006; MARTIN, 2006 e WILLIAMS; MINNIAN, 2007 apud BAWDEN, 2008) – entre os quais ele próprio se insere – que tencionam esclarecer a suposta desordem, apresentando em seu texto algumas das definições difundidas. A primeira definição para o conceito de letramento digital apontada no capítulo é a de Gilster (1997 apud BAWDEN, 2008) que não elaborou listas de habilidades, competências ou atitudes definindo o que é ser digitalmente letrado, mas apresentou uma ampla e genérica definição em que determinou o conceito como habilidade para entender e usar a informação de uma variedade de fontes digitais (GILSTER, 1997 apud BAWDEN, 2008).

Ademais, para ele, ser digitalmente letrado implicaria em conhecimento cognitivo e não somente no domínio de técnicas, o que, por um lado, possibilitaria aos indivíduos gerenciar suas ideias, ler e entender informações dinâmicas e não sequenciais, adquirindo conhecimentos que pudessem ser usados na vida e, por outro lado, permitiria que usuários fizessem julgamentos sobre suas atividades, envolvendo, portanto, o pensamento crítico, na publicação e na comunicação da informação.

Bawden (2008) adverte que, embora Gilster tenha sido um dos primeiros a aplicar o termo, ele não foi o pioneiro no uso da expressão letramento digital que já vinha sendo empregada por alguns autores ao longo da década de 1990 com conotações diversas para tratar das formas de ler e compreender itens da informação em hipertextos ou formatos multimídia que estavam se tornando acessíveis, como, por exemplo, Bruce (1994/1997 apud BAWDEN, 2008), Lanham (1995 apud BAWDEN, 2008) e Shapiro e Hughes (1996 apud BAWDEN, 2008).

Bruce (1994/1997 apud BAWDEN, 2008) consideraria o letramento na era da informação e tecnologia menos como uma série de competências para serem administradas e mais como um conjunto de conhecimentos e atitudes para serem empossados pelos sujeitos. Assim, uma pessoa letrada na era da informação seria aquela que se empenharia em direções próprias (e independentes) de aprendizado, usando processos de informação, empregando uma variedade de tecnologias e sistemas, internalizando valores que promovessem a utilização da informação, bem como anunciando o conhecimento do mundo da informação, abordando-a criticamente e com estilo pessoal.

Lanham (1995 apud BAWDEN, 2008), por sua vez, teria enfatizado o fato de que as fontes digitais puderam gerar muitas formas de informação (textos, imagens, sons), sendo necessário o surgimento de novos letramentos mediante essas novas maneiras de apresentação da informação. Ainda na década de 1990 estão as considerações de Shapiro e Hughes (1996 apud BAWDEN, 2008) que entendem o conceito como a compreensão de sete componentes: competência para usar as ferramentas; entender as formas de acesso às fontes de informação; entender a produção e o significado social da informação; usar as ferramentas tecnológicas para pesquisas e contextos escolares; habilidade para comunicar e publicar a informação; entender os novos desenvolvimentos em Tecnologias Digitais da Informação e a habilidade para avaliar os benefícios da tecnologia de maneira crítica.

Na virada do século, novas definições também surgiram, como de Eshet (2002 apud BAWDEN, 2008), que considera letramento digital além da habilidade para usar recursos digitais efetivamente, sendo, na realidade, um tipo especial de conjunto de habilidades mentais ou pensamento. Definição que amplia tempo depois com Alkalai (2004 apud BAWDEN, 2008).

Desse modo, em Eshet e Alkalai (2004 apud BAWDEN, 2008) encontra-se nova acepção para o termo, na qual o letramento é visto como uma espécie de habilidade de sobrevivência na era digital, sendo baseado na integração de cinco letramentos: letramento foto-visual, letramento de reprodução, letramento da informação, letramento da ramificação e, por fim, letramento sócio emocional.

Entre as muitas considerações feitas em torno do conceito, um exemplo também pertinente são os "sete pilares" desenvolvidos pela SCONUL – Society of College, National and University Libraries (Sociedade de Bibliotecas Universitárias, Nacionais e Escolares) – que consistem em: reconhecer a informação necessária; distinguir caminhos de tratar as lacunas; construir estratégias para localizar; localizar e acessar; comparar e avaliar; organizar, aplicar e comunicar e, finalmente, sintetizar e criar.

No século XXI também podem ser encontradas definições: Williams e Minnian (2007 apud BAWDEN, 2008) que abordam o letramento digital focando nas habilidades em lidar com a tecnologia informática de modo crítico e Kauhanen-Simanainen (2007 apud BAWDEN, 2008) que enfatizam usos efetivos da Internet e de outros recursos de rede para se falar em letramento digital, por exemplo.

Burniske (2007 apud BAWDEN, 2008), por seu turno, centra o conceito no aspecto de relacionar-se ao pensamento crítico, incluindo o uso crítico da linguagem, a avaliação crítica de websites, análise do conteúdo visual da web, bem como da informação visual para credibilidade, lógica e conteúdo emocional contido. Além disso, ressalta a prática de princípios éticos e etiqueta na Internet.

Dentre os muitos autores que se destacam no quadro teórico, localiza-se também Cope (2006 apud BAWDEN, 2008) que revisa o conceito de letramento digital, argumentando que esse deve ser entendido como possuindo um componente relativo ao letramento acadêmico, fechado para o letramento de pesquisa, aprendizagem de estilos, interpretação e integração de escritores iniciais.

Já Markless e Streatfield (2007 apud BAWDEN, 2008) preferem pensar em letramento digital como letramentos de informação e críticos que ofereçam uma adaptação não linear de modelos lineares tradicionais, enfatizando o pensamento crítico e a comunicação. Assim, apresentam três elementos interligados, a saber, conexão com a informação, interação com a informação e uso da informação.

Uma última definição trazida por Bawden (2008) que será mencionada, pertence a Martin (2003, 2005, 2006 apud BAWDEN, 2008) que sugeriu o estabelecimento de sinonímia entre letramento digital e e-literacy por ambos envolverem não somente outros letramentos (informacional, computacional, moral), como a consciência, o entendimento e a avaliação reflexiva. Nessa perspectiva, letramento digital não se limitaria a habilidades relacionadas ao computador, mas também à consciência, atitude e competência dos indivíduos ao se apropriarem do uso das ferramentas digitais (identificando informações, acessando, gerenciando, integrando, avaliando, analisando e sintetizando recursos digitais) e construírem novos conhecimentos, possibilitando comunicação, ação social e reflexão sobre o processo. Assim, ser digitalmente letrado tornar-se-ia uma habilidade para a vida e não necessariamente apenas para a educação formal.

Finalmente, podem-se citar outros trabalhos além dos levantados por Bawden (2008) que abordam o assunto, inclusive no meio acadêmico brasileiro, como Buzato (2007) que, pensando também na questão da inclusão, propõe como letramento digital "redes complexas de letramentos (práticas sociais) que se apoiam, se entrelaçam, se contestam e se modificam mútua e continuamente por meio, em virtude e/ou por influência das TIC" (BUZATO, 2007, p. 168) e Marcuschi (2005), que o define como "letramento digital, isto é, o modo como lidamos socialmente com a escrita digital" (MARCUSCHI, 2005, p. 11, grifo do autor).

De modo geral, emergiram uma série de definições com particularidades, porém, elas apresentam algumas recorrências. Entre as características mais destacadas estão a descrição de habilidades e competências específicas que seriam necessárias a todos para que informações no meio digital sejam encontradas e gerenciadas; a correlação com habilidades já conhecidas pelos indivíduos; a relação com outros tipos de letramentos; a consciência sobre as transformações em práticas no meio digital; a avaliação da informação, o uso – ou melhor, as diversas possibilidades de uso – da informação, entre outras. É plausível afirmar também que em muitas das definições a abordagem extrapola o meio digital e relaciona-se a contextos de outros meios.

Ao cotejar todas as definições acima explicitadas, como bem afirma Eshet e Alkalai (2004 apud BAWDEN, 2008) pode-se pensar em dois grandes grupos quando se trata do conceito de letramento digital: o que centra seus interesses, em última instância, nas habilidades operacionais para localização e acesso a informações e técnicas e um grupo que, diversamente, inclui aspectos socioemocionais e cognitivos, acrescentando a questão da ética e de elementos socioculturais para abordar o meio digital. Seja como for, a influência do meio digital é sempre distinguida nas acepções por se tratar de característica elementar do letramento digital.

Ainda assim, é extremamente complicado – e desnecessário – definir o termo em sentido estrito, na medida em que por abordar objetos complexos, torna-se arriscado e até mesmo sem propósito uma homogeneização conceitual. A indefinição, porém, propicia usos indistintos que acabam por gerar ambiguidades. Contudo, escolher, pois, uma dentre as muitas definições existentes, torna-se tarefa difícil e até improdutiva, uma vez que cada conceito traz ênfases importantes a depender da situação e dos indivíduos relacionados.

Dessa forma, com vistas a entender melhor a abordagem de pesquisas concernentes ao letramento digital por trazerem as TDIC ao campo dos estudos linguísticos, nosso trabalho se insere na cadeia dos levantamentos já realizados (LIMA; LIMA-NETO, 2009; VIEIRA, 2004), tencionando ampliar o período de investigação – abarcamos trabalhos de 1999 a 2010 – e afunilar as análises no que diz respeito a pesquisas sobre escrita.

Explorando currículos: sistematização de programas de pós- graduação no Brasil

Para atingir o objetivo almejado de fazermos um panorama de pesquisas que articulavam linguagens e tecnologias digitais, realizamos levantamento das principais Instituições de Ensino Superior brasileiras, com ênfase nas federais e estaduais, buscando por programas de pós-graduação, na área de humanas, que se denominassem como polos de produção de pesquisas ligadas às tecnologias digitais, a fim de construirmos um "estado da arte" dos estudos sobre o tema a partir de tais universidades e seus respectivos programas de pós- graduação. Foram mais de duzentas as instituições investigadas, sendo que nosso procedimento pautou-se pela identificação das páginas eletrônicas de cada uma delas e, na sequência, pela localização de seus cursos de pós-graduação strictu sensu – mestrado e doutorado – bem como de suas linhas de pesquisa e áreas de concentração e/ou subáreas.

A despeito de nossa hipótese inicial de que não haveria muitos cursos nesse sentido por se tratar de área ainda relativamente recente, encontramos uma riqueza de programas e linhas de pesquisa em tais locais investigados cujos resultados serão neste trabalho apresentados. No Quadro 1 a seguir,3 3 O Quadro 1 foi elaborado com base em buscas realizadas até setembro de 2010 e o critério para a sequência de apresentação dos programas de pós-graduação dos estados brasileiros como consta nele é a ordem alfabética. enumeramos cada um desses programas, bem como as universidades em que se encontram, estados brasileiros, cursos de pós-graduação, nível e linhas de pesquisa/área de concentração. Observe:


Os dados trazidos mostram um considerável número de cursos de pós- graduação (34 cursos) que deixam explícitos em seus programas o objetivo de abordar as novas mediações tecnológicas em suas pesquisas de mestrado e doutorado. Pudemos constatar, observando tais programas, que na área de humanas há um campo bem amplo em que existem trabalhos, sobretudo, nos cursos de Comunicação, Educação e de Estudos Linguísticos/da Linguagem (Letras, Linguística, Linguística Aplicada).

É possível observar ainda a distribuição dos programas de pós-graduação na área de humanas cujas linhas de pesquisa ou áreas de concentração estão relacionadas às tecnologias digitais no Brasil. Deste modo, a região que mais se destaca é a sudeste, com 19 programas (10 no estado de São Paulo, 6 no Rio de Janeiro e 3 em Minas Gerais); seguida pela região sul, com 8 programas: 6 no Rio Grande do Sul e 2 em Santa Catarina.

Na região nordeste, por sua vez, encontram-se programas espalhados por vários estados, como Pernambuco e Alagoas, sendo dois deles localizados no mesmo local (Bahia), ainda que em universidades distintas.

É interessante notarmos como todas as regiões brasileiras já apresentavam programas de mestrado e doutorado desse tipo no período analisado, ou seja, até o penúltimo trimestre de 2010, ainda que fosse somente um, como é o caso da região norte (um programa em Roraima) e da região centro-oeste (um programa no Mato Grosso).

Se por um lado esses cursos abordam o tema, por outro lado, eles próprios possuem diferentes perspectivas de pesquisas. Alguns, como na área de Comunicação, focalizam processos de interação, produtos midiáticos e comunicativos, outros na área de Educação são relativos às implicações das tecnologias digitais para os processos educativos ou mesmo à possibilidade de ensino-aprendizagem nesses contextos, como é o caso da educação à distância (EAD).

Vale a pena ressaltar que esse levantamento proposto, cujos resultados de sua realização foram apresentados não consegue identificar a quantidade de grupos de pesquisa que estão vinculados aos programas de pós-graduação encontrados e também trabalham na área, nem contemplar todos os programas existentes e, por conseguinte, teses e dissertações que se ocuparam da temática. Assim, é imprescindível advertir que pode haver trabalhos que, embora não inseridos nessas áreas de concentração e linhas de pesquisa explicitamente denominadas como relativas às novas mediações tecnológicas identificadas e transcritas no Quadro 1, também abordem o tema.

Em outra via, devido ao fato de nosso interesse ser por pesquisas que se voltem para a linguagem nesse processo de interação com as novas mídias e, como toda pesquisa exige que se faça um recorte com objetivo analítico, diante da impossibilidade prática de abarcar todo o campo, optamos por enfocar, então, os programas de pós-graduação dos cursos de Letras, Linguística e Estudos da Linguagem/Linguísticos para analisarmos mais profundamente, observando as dissertações e teses produzidas por seus alunos de pós-graduação, tendo em vista descrevê-las e compreender mais amplamente o campo.

Assim, ao consideramos as possibilidades de realização deste trabalho, restringimos nossas buscas mais profundas às produções acadêmicas dos programas de pós-graduação de cursos nos estudos linguísticos5 5 Embora no Centro de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) tenhamos identificado o programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem com mestrado em "Linguagens, Ensino e Mediações Tecnológicas", este programa não foi selecionado, pois, até o momento de nossa pesquisa, seus trabalhos acadêmicos não estavam disponibilizados para consulta. em que já sabemos haver linhas de pesquisa e áreas de concentração sobre o assunto por explicitarem em seus nomes, como mostrado no Quadro 1. São eles:

1. Programa de pós-graduação em Linguística Aplicada da UNICAMP.

2. Programa de pós-graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP.

3. Programa de pós-graduação em Linguística da UFSCar.

4. Programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos da UFMG.

5. Programa de pós-graduação em Letras da UFPE.

6. Programa de pós-graduação em Linguística da UFSC.

7. Programa de pós-graduação em Linguística Aplicada da UNISINOS.

8. Programa de pós-graduação em Letras da PUC-RJ.

9. Programa de pós-graduação em Linguística da UFRJ.

Antes de iniciarmos as considerações sobre as teses e dissertações identificadas dentro desses programas, é preciso ressaltar que, durante nosso levantamento, encontramos uma gama de trabalhos pertencentes a programas que, mesmo não denominados como relacionando linguagens e tecnologias, faziam tal associação. Na Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL – no programa de pós-graduação em Ciências da Linguagem, por exemplo, existe a área de concentração "Linguagem e Cultura" que apesar de não trazer a temática "tecnologias" explícita em seu nome, possui pesquisas no tema. Um exemplo é o trabalho de mestrado Gêneros digitais e a escrita no orkut: reconfigurações do gênero bilhete (MARTINS, 2007).

Mais um local em que essa situação pôde ser verificada foi na Universidade de São Paulo – USP – onde encontramos trabalhos distribuídos em diversas unidades e cursos. Na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), por exemplo, localizamos a tese Conectores de causa e condição em fóruns de discussão na Internet (INGLEZ, 2008), no departamento de Filologia e Língua Portuguesa; a tese Interação de professores em fóruns eletrônicos: um estudo de caso do programa Educar na Sociedade da Informação (STAROBINAS, 2008) na Faculdade de Educação (FE) e ainda o trabalho de doutorado A rizomática aventura da hipermídia: uma análise da narrativa no ambiente digital (TEIXEIRA, 2007), na Escola de Comunicações e Artes (ECA).

Desse modo, a primeira consideração a ser feita acerca dos trabalhos na área é sobre a peculiaridade de realizarem interfaces, ou seja, não há como enquadrá-los dentro de limites acadêmicos como áreas de concentração, linhas de pesquisa e departamentos, uma vez que tratam de objetos complexos que não se restringem a divisões disciplinares, indicando como a "contaminação" entre linhas e áreas é característica do objeto.

As interseções muitas vezes extrapolam os próprios limites dos cursos. No programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina foi desenvolvida a pesquisa de mestrado Compartilhando regras de fala: interação e sociabilidade na lista eletrônica de discussão cibercultura (MÁXIMO, 2002), por exemplo, que ratifica tal fato. Outro caso é a dissertação Usos políticos do ciberespaço pelas redes de movimentos sociais (GONÇALVES, 2001), localizada no programa de pós-graduação em Direito da mesma universidade.

Por outro lado, também podem ser encontrados trabalhos que são definidos pelos limites acadêmico-administrativos como pertencentes à área de linguagem e tecnologia, mas não o são de fato. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro encontramos duas dissertações no Programa de Pós-graduação em Linguística, na linha de pesquisa "Tecnologias Linguísticas e Materiais Pedagógicos" que tinham foco em questões de fonética, fonologia e outros aspectos linguísticos que prescindem do meio digital para serem desenvolvidas, a saber, O desenvolvimento da consciência fonológica e o processamento auditivo em crianças da última série do ensino infantil (PEREIRA, 2007) e Uma análise funcionalista do uso das construções com ONDE no português do Brasil (MANFILI, 2007).

Destacamos, portanto, que forte tendência verificada nos estudos da linguagem relacionados às tecnologias digitais nos últimos anos é a interface entre linhas, departamentos e cursos e nossa hipótese é a de que essa situação seja decorrente da complexidade de se investigar práticas mediadas pelas TDIC que recorrem a outros campos, áreas e disciplinas para estudos mais produtivos e amplos (KLEIMAN; CAVALCANTI, 2007).

Finalmente, tendo em vista a impossibilidade de dominarmos todos os trabalhos produzidos na área, optamos pela busca daqueles que se nomeavam como tal, ou seja, os pertencentes aos nove programas de pós-graduação já mencionados e selecionados. Sabemos que ainda assim nossa investigação não abarcará tudo o que fora produzido nessas universidades analisadas, tampouco possuiu a pretensão de compreender a totalidade dos trabalhos; mas acreditamos estar realizando um levantamento bastante extenso que possibilita um significante delineamento do campo.

Programas de pós-graduação em estudos linguísticos: descrições metodológicas e considerações relevantes

Com os programas de pós-graduação definidos, realizamos um levantamento de suas teses e dissertações, bem como a leitura integral de seus resumos e, em alguns casos, do texto completo desses trabalhos. Para tanto, foi-nos fundamental o acesso às páginas virtuais de cada uma das universidades, onde pudemos localizá-los, quando disponibilizados em suas respectivas bibliotecas virtuais. É importante destacarmos que as datas a partir das quais as pesquisas de mestrado e doutorado foram disponibilizadas variam de uma instituição para outra, entretanto, como nossos interesses estavam nos estudos mais recentes, isso não se mostrou um problema, pois geralmente as publicações referem-se aos últimos anos.

Assim, nossa primeira etapa foi percorrer essas produções disponíveis, buscando por aquelas que, em alguma medida, tivessem como objetos de investigação a ocorrência de gêneros mediados pelas TDIC, visto ser este nosso foco de análise. Mais precisamente, foram quatro os critérios para a seleção dos trabalhos:

a) Teses e dissertações que estivessem em áreas de concentração e/ou linhas de pesquisa relacionadas com os Estudos Linguísticos e que se autodenominassem ligadas às tecnologias digitais;

b) Teses e dissertações que tratassem de ambientes virtuais da World Wide Web, a Internet;

c) Trabalhos cujos corpora fossem constituídos de produções linguísticas realizadas ou disponíveis na web;

d) Pesquisas que focalizassem gêneros escritos6 6 Destacamos aqui que o privilégio pelos gêneros escritos deu-se pelo interesse da pesquisa de mestrado geradora deste artigo, cujo foco estava nas práticas de escrita mediadas ou em ambientes digitais. Por isso, não entraram na análise, por exemplo, gêneros orais que circulam na web, entre outros. que circulam no ciberespaço e o desenvolvimento dessa escrita nos meios virtuais.

Os critérios refinaram as buscas, levando-nos a compor um conjunto de 88 produções acadêmicas dentre teses e dissertações, desenvolvidas na UFMG, UFPE, UFSCar, UNICAMP, UNISINOS, PUC-RJ e PUC-SP para investigações e consequentes reflexões. No Quadro 2 abaixo é possível conhecer os programas de pós-graduação, suas áreas e/ou linhas de pesquisa, bem como a quantidade de trabalhos encontrados que respondiam aos critérios estabelecidos:7 7 O Quadro 2 foi composto por pesquisas nas bibliotecas virtuais até o período de 21 de outubro de 2010.


Pode-se perceber que dentre os nove programas de pós-graduação inicialmente selecionados, somente sete corresponderam aos critérios utilizados, sendo aqueles nos quais foram identificados trabalhos acadêmicos que abordavam a escrita nas páginas da web ou nelas disponibilizadas. A etapa que se sucedeu foi o conhecimento do conteúdo dessas pesquisas. Além disso, sabemos que as informações apresentadas compõem pequena amostragem dentre os trabalhos que abordam a temática no Brasil, porém, por meio delas já se pode verificar tendências ao analisá-los mais detalhadamente. Foi, então, o que procuramos fazer, conhecendo o conteúdo das teses e dissertações e identificando seus objetivos gerais e específicos, metodologias, materiais e objetos analisados, bem como as teorias que as embasaram, por exemplo, pela leitura de seus resumos e, em alguns casos,8 8 Os resumos de alguns trabalhos acadêmicos eram insuficientes para apreensão de seus objetivos, metodologias, objetos de estudo e fundamentações teóricas. Dessa forma, colocava-se necessária a leitura do texto integral para identificação desses elementos e compreensão da pesquisa. dos trabalhos integrais.

Dentro do período de investigação, isto é, até o ano de 2010, observamos que as produções acadêmicas selecionadas variavam entre os anos de 1999 e o mesmo ano em que a pesquisa de "estado da arte" foi finalizada, ou seja, contemplaram o último ano do século XX e a primeira década do terceiro milênio em contiguidade com a disseminação das TDICs e a globalização, tanto cultural como econômica, ancoradas às possibilidades oferecidas pelos computadores e, em especial, pela Internet (BRAGA, 2007).

A passagem para o século XXI pode ser considerada um marco histórico para os estudos linguísticos por oferecer novas práticas letradas no meio digital ou mesmo transformar algumas já existentes, como indicam os trabalhos encontrados. Ao procurar estabelecer um panorama deles em termos cronológicos, pôde ser elaborado o Gráfico 1, exibido a seguir:


Por meio dos dados do gráfico, observa-se crescimento no número de trabalhos defendidos na área, na virada do século, com destaque para os anos 2000, 2003 e de 2006 a 2009. O aumento no interesse por estudos no início do século XXI pode ser justificado pela relevância social que tiveram as TDIC com a difusão de computadores no cotidiano dos brasileiros, quedas nos preços das máquinas, lançamento de telefones móveis com várias funções e acesso ao meio digital, criação de diferentes programas para que não especialistas pudessem usar as novas tecnologias (alguns até gratuitos), popularização da Internet e da web 2.0 e de suas redes sociais. O Orkut e o Facebook, por exemplo, foram criados em 2003 e 2004, respectivamente.

Ao observar os trabalhos, conhecemos que os propósitos de investigação dos mestrandos e doutorandos nos estudos da linguagem eram diversos, ainda que alguns deles tenham trabalhado com o mesmo material linguístico. Assim, há desde pesquisas voltadas para preocupações pedagógicas até análise de interações em fóruns on-line e de relações entre a escrita em ambientes da Internet e em contextos off-line, por exemplo. Os materiais frequentemente analisados são: enunciados obtidos em sites, blogs, ambientes de EAD, redes sociais e ferramentas como e-mail, MSN-Messenger e salas de bate-papo.

O relevo das TDIC para a sociedade e, por conseguinte, para o meio acadêmico brasileiro nesses anos pode ser ratificado também pela formação no campo de grupos científicos, como o Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologia Educacional da Universidade Federal de Pernambuco (NEHTE) criado em 2005 e a Associação Brasileira de Estudos de Hipertexto e Tecnologia Educacional (ABEHTE) criada em 2007; pelo estabelecimento de novas áreas de concentração e linhas de pesquisa nos programas de pós-graduação, como a área de concentração "Linguagem e Tecnologias" no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP no programa de pós-graduação em Linguística Aplicada em 2005; pela organização de eventos como o Encontro Nacional sobre Hipertexto, que ocorre desde 2005 e pela elaboração de periódicos e revistas como a Revista Novas Tecnologias na Educação (RENOTE), publicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul a partir de 2003, por exemplo.

Voltando ao gráfico, nossa hipótese é a de que os índices de 2010 não se destacaram devido ao fato de nossa pesquisa de "estado da arte" ter se encerrado no final de outubro desse ano, não contemplando possíveis trabalhos que poderiam estar sendo concluídos, mas ainda não terminados ou publicados nas bibliotecas virtuais das universidades. O número poderá ampliar-se com pesquisas futuras que levantarem produções acadêmicas entre o final de 2010 e 2012-2013.

Ademais, as discussões dos pesquisadores sobre o ciberespaço e a produção textual dos indivíduos nesses ambientes refletem-se não somente dentro da academia, como também em documentos oficiais. Nos PCNEM (2000), por exemplo, considera-se:

Cabe à escola, em parceria com o mercado, o Estado e a sociedade, fazer do jovem um cidadão e um trabalhador mais flexível e adaptável às mudanças que a tecnologia vem impondo à vida moderna. A educação permanente será uma das formas de promover o contínuo aperfeiçoamento e as adequações necessárias às novas alternativas de adequação profissional.

Em síntese, a informática encontra-se presente em nossa vida cotidiana e incluí-la como componente curricular da área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias significa preparar os estudantes para o mundo tecnológico e científico, aproximando a escola do mundo real e contextualizado (BRASIL, 2000, p. 61).

Diante da preocupação em voltar o ensino para problemáticas contemporâneas, caracterizamos outra tendência das produções acadêmicas selecionadas, que foi articular reflexões teóricas aos acontecimentos históricos e a questões atuais que precisam ser investigadas, como as TDIC cujos usos feitos pelos sujeitos mudaram práticas letradas ou mesmo propiciaram a existência de outras. As teses e dissertações se prestaram, então, a tentativas de elaboração de metodologias de ensino, formulação e/ou análise de atividades, resolução de problemas em contextos de ensino-aprendizagem que poderiam ser utilizados pela escola para atender às exigências de preparar sujeitos "para o mundo tecnológico e científico".

Um exemplo é a dissertação de mestrado O uso de blogs como estratégia motivadora para o ensino de escrita na escola (RODRIGUES, 2008) na qual são investigadas possibilidades oferecidas pela tecnologia, especialmente por intermédio da utilização de um blog para melhorar e motivar a produção textual de estudantes no Ensino Médio. Trabalhos como esse são recorrentes no meio acadêmico e também no conjunto de produções acadêmicas analisadas, apontando para outra tendência dos estudos linguísticos que é a articulação entre interesses teóricos e práticos.

Em relação aos quadros teóricos utilizados pelos pesquisadores para o embasamento de seus trabalhos, verificamos o uso de mais de uma teoria, indicando hibridismo teórico. O fato de conjugar estudos não traduz confusão ou contradição por parte dos autores das produções acadêmicas, mas demonstra, antes, a riqueza com que uma pesquisa pode ser constituída e a necessidade de mais de uma base teórica, dependendo da complexidade dos objetos e dos objetivos, revelando, com isso, uma necessidade da ordem do discurso científico em integrar teorias e disciplinas.

Dentre os arcabouços teóricos mais utilizados nas pesquisas, encontramos, em relevo, os chamados estudos em Letramento Digital, denominados dessa maneira por articularem investigações sobre práticas letradas no meio digital. A inexistência de uma definição fechada, como já apontado acima, também apareceu nas produções acadêmicas observadas que ora utilizavam o conceito com base em uma definição, ora em outra.

Acreditamos que, embora possa parecer um problema, essa indeterminação conceitual – que sendo menos confusão, deve-se à complexidade dos objetos e do meio digital – pode ser benéfica por evidenciar o necessário olhar para importantes reflexões que essa diversidade de definições ocasiona e como, diante de situações e práticas totalmente novas e complexas, ainda há muito para ser discutido e adequado aos diferentes contextos, o que é feito pelos pesquisadores das teses e dissertações do conjunto examinado cujos diversos usos que fazem sob a denominação de letramento digital apontam não apenas para uma diferença taxonômica, mas de perspectivas, indicando hibridismo teórico e conceitual.

Enfim, por meio da "pesquisa de estado da arte" e conhecimento das produções acadêmicas em estudos linguísticos e aplicados descritas foi possível perceber como a abordagem de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação propicia o estabelecimento de trabalhos com objetos complexos cuja investigação não se esgota por nenhum aporte teórico-disciplinar, impondo tratamento interdisciplinar que não é limitado a uma linha de pesquisa, área ou curso, mas contempla diversos campos do conhecimento, levando-nos à síntese de quatro tendências de pesquisa a esse respeito nos últimos anos, em particular, na primeira década do século XXI:

(1) Tendência das pesquisas acadêmicas em contemplarem diversos campos do conhecimento, diluindo fronteiras e estabelecendo interfaces entre linhas de pesquisa e áreas de concentração, convidando à interdisciplinaridade;

(2) Tendência das pesquisas acadêmicas em analisarem enunciados circulantes, mas, principalmente, aqueles que foram constituídos no ciberespaço, bem como o funcionamento de ambientes no meio digital;

(3) Tendência das pesquisas acadêmicas em se voltarem para preocupações sociais, especialmente relativas ao ensino diante da emergência e proliferação das TDIC;

(4) Tendência das pesquisas acadêmicas em realizarem hibridismo teórico- metodológico, com propensão à conjugação de vários estudos com os pressupostos teóricos do chamado letramento digital, ainda que esse não seja um conceito, todavia, bem definido.

Essas tendências identificadas nos trabalhos acadêmicos observados são fortes argumentos para a defesa da tese de que objetos heterogêneos são complexos, possuem limites porosos e demandam interfaces pra seu estudo, demonstrando a realização de "estratégias de reconversão" (GARCÍA- CANCLINI, 2008, p. 22) pelos pesquisadores no desenvolvimento de suas teses e dissertações, isto é, na apropriação daquilo que lhes interessa e seja significativo para adaptá-lo a novas condições. No caso, os autores das teses e dissertações analisadas valeram-se de pressupostos teóricos já consolidados, unindo-os a novas perspectivas sob a alcunha de letramento digital para abordarem processos e objetos híbridos que implicam em permeabilidade de teorias, como também de áreas e campos do conhecimento.

Considerações finais

Neste artigo, em especial, tencionamos construir um panorama das teses e dissertações brasileiras produzidas nos programas de pós-graduação de instituições de Ensino Superior do país que se denominavam explicitamente ligadas à área de estudos que relaciona linguagens com as TDIC e se concentravam na escrita. A intenção não foi exaurir as possibilidades de investigação nesse sentido, tampouco estabelecer um quadro total e fixo, visto que sempre existe algo que fica "por dizer" e novos olhares com os quais outros estudos podem ser concebidos.

Em última instância, o objetivo principal se estruturou em procurar entender o momento histórico em que vivemos nos estudos linguísticos por meio de uma pesquisa de "estado da arte" que compreendeu teses e dissertações publicadas até o ano de 2010, ou seja, a primeira década do tão abordado século XXI, a fim de, a partir da construção desse panorama, delinear a formação de uma área de pesquisa em estudos linguísticos e seu espaço na produção acadêmica brasileira.

Para tanto, tornou-se indispensável o entendimento e conhecimento das produções acadêmicas da área (teses e dissertações), de modo geral, buscando compreender quais foram seus interesses de pesquisa, bem como metodologias, fundamentações teóricas e tipos de análise desses trabalhos, que além de propiciarem a construção de um quadro amplo das pesquisas, revelaram a presença de algumas tendências dos trabalhos no campo.

Nesse sentido, os dados apontaram para estritas relações entre acontecimentos sócio-históricos e os objetos de pesquisa dentro da academia, como os momentos de proliferação das TDIC em contextos de uso variado nas práticas de ação humana. Desse modo, nosso levantamento e posterior análise das produções acadêmicas nos possibilitou visualizar a constituição desse campo de pesquisa em estudos linguísticos, servindo como base para o entendimento das teses e dissertações que vem sendo produzidas no contexto brasileiro e distinguir um lugar para os estudos linguísticos.

Recebido em 17/05/2013.

Aprovado em 23/09/2013.

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  • 1
    Este artigo é decorrente da pesquisa de "estado da arte" desenvolvida na dissertação de mestrado
    Entrelaçando on-line e off-line: práticas de escrita e reescrita em comunidades da rede social Orkut, defendida em 2012, sob orientação da Profa. Dra. Raquel Salek Fiad, no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas, na subárea de Língua Materna, com financiamento da CAPES.
  • 2
    Devido à necessidade de recorte para análise, as áreas de exatas e biológicas foram excluídas por não estarmos inseridos em nenhuma delas e nossos interesses de pesquisas não se encontrarem nesses campos.
  • 3
    O
    Quadro 1 foi elaborado com base em buscas realizadas até setembro de 2010 e o critério para a sequência de apresentação dos programas de pós-graduação dos estados brasileiros como consta nele é a ordem alfabética.
  • 4
    M = Mestrado e D = Doutorado.
  • 5
    Embora no Centro de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) tenhamos identificado o programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem com mestrado em "Linguagens, Ensino e Mediações Tecnológicas", este programa não foi selecionado, pois, até o momento de nossa pesquisa, seus trabalhos acadêmicos não estavam disponibilizados para consulta.
  • 6
    Destacamos aqui que o privilégio pelos gêneros escritos deu-se pelo interesse da pesquisa de mestrado geradora deste artigo, cujo foco estava nas práticas de escrita mediadas ou em ambientes digitais. Por isso, não entraram na análise, por exemplo, gêneros orais que circulam na
    web, entre outros.
  • 7
    O
    Quadro 2 foi composto por pesquisas nas bibliotecas virtuais até o período de 21 de outubro de 2010.
  • 8
    Os resumos de alguns trabalhos acadêmicos eram insuficientes para apreensão de seus objetivos, metodologias, objetos de estudo e fundamentações teóricas. Dessa forma, colocava-se necessária a leitura do texto integral para identificação desses elementos e compreensão da pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Maio 2013
    • Aceito
      23 Set 2013
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