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ATIVIDADES COMERCIAIS DURANTE O PERÍODO COLONIAL EM GOIÁS - BRASIL

ACTIVIDADES COMERCIALES DURANTE EL PERÍODO COLONIAL EN GOIÁS - BRASIL

Resumo

Em Goiás, desde o período colonial, as atividades comerciais sempre se fizeram presentes e mesmo como atividades subsidiárias contribuíram para a dinâmica econômica da Capitania. Neste artigo, de cunho histórico-geográfico, buscamos discorrer sobre essas atividades no contexto da econômica colonial. A metodologia de pesquisa baseou-se no levantamento bibliográfico, sobre a formação histórico geográfica de Goiás e na pesquisa documental junto as bases do Instituto Histórico Geográfico de Goiás (IHGG) e do Arquivo Histórico Ultramarinho de Lisboa (AHU). O resultado da investigação demostrou que as atividades comerciais alicerçadas, preponderantemente, na importação, desenvolveram-se graças aos excedentes de capitais gerados pelo ouro.

Palavras-chave:
Comércio; Período Colonial; Goiás

Resumen

En Goiás, desde el período colonial, las actividades comerciales siempre se hicieron presentes e incluso como actividades subsidiarias contribuyeron a la dinámica económica de la Capitanía. En este artículo, de cuño histórico-geográfico, buscamos discurrir sobre esas actividades en el contexto de la económica colonial. La metodología de investigación se basó en la revisión de la literatura de la historia geográfica de Goiás y la formación en la investigación documental a lo largo de las bases del Instituto Geográfico Histórico de Goiás (IHGG) y File Historia Ultramarinho Lisboa (AHU). El resultado de la investigación demuestra que las actividades comerciales basadas, preponderantemente, en la importación, se desarrollaron gracias a los excedentes de capitales generados por el oro.

Palabras-clave:
Comercio; Período Colonial; Goiás

Abstract

Since the colonial period, commercial activities have always been present in Goiás and even as subsidiary activities, they contributed to the economic dynamics of the Captaincy. In this historical and geographical article, these activities are discussed in the context of colonial economics. The research methodology is based on a bibliographical survey of the historical geographic formation of Goiás, and the documentary research used the databases of the Historical Geographical Institute of Goiás (IHGG) and the Ultramarinho Historical Archive of Lisbon (AHU). The result of the investigation shows that the commercial activities based mainly on importation were developed thanks to the surplus capital generated by the gold.

Keywords:
Trade; Colonial period; Goiás

INTRODUÇÃO

A história econômica e urbana do estado de Goiás começa com o ouro e tudo aquilo que a exploração do metal representou. Este primeiro ciclo inicia-se na década 1720, com a chegada dos Bandeirantes e a ocupação oficial do território, e estende-se, grosso modo, até 1820, momento em que a extração aurífera já não era uma opção economicamente viável.

Durante o primeiro século da história socioeconômica de Goiás, marcado pela economia extrativista, é difícil falar sobre a existência de outras atividades econômicas propriamente estruturadas, principalmente, pela quase inexistência de serviços como de educação, saúde e comunicações, de atividades de transformação de matéria prima e pela pouca atividade agrícola desenvolvida na Capitania, já que, como explicam Palacin (1972), Alencastre (1979)ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da Província de Goiás. 2. ed. Goiânia: Governo de Goiás, 1979. e Furtado (2004)FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33° ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004., a alta lucratividade da atividade mineira, principalmente durante as fases iniciais, induzia à concentração de todos os recursos disponíveis na própria mineração, inibindo, dessa forma, o desenvolvimento de outras atividades produtivas.1 1 A autora agradece à leitura e sugestões do professor Dr. Tadeu Alencar Arrais Entretanto, o comércio de mercadorias sempre se fez presente e, em maior ou menor grau, contribuiu para a dinâmica produtiva da capitania. Neste artigo, de cunho histórico geográfico, nosso objetivo é discorrer sobre o desenvolvimento das atividades comerciais goianas no contexto da econômica colonial.

A metodologia de pesquisa baseou-se, em primeiro momento, no levantamento bibliográfico sobre a formação histórico geográfica de Goiás. Nesta etapa, destacam-se as clássicas contribuições de Palacin (1976)PALACIN, Luís. Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. 2. ed. Goiânia: Oriente, 1976., Salles (1992)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992., Palacin et al (1995)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995. e Bertran (1978BERTRAN, Paulo. Formação econômica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978., 2010)BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás. 2. ed. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2010., por se tratarem de obras construídas, primordialmente, com base na pesquisa de fontes documentais primárias. E, em um segundo momento, dedicou-se atenção à pesquisa documental junto as bases do Instituto Histórico Geográfico de Goiás (IHGG), e do Arquivo Histórico Ultramarinho de Lisboa (AHU). Os documentos analisados são relatórios fiscais da administração colonial local, que, embora limitados em relação à metodologia de coleta dos dados, às definições de termos e com falhas de periodicidade, forneceram importantes registros sobre os julgados goianos, que permitiu o delineamento de hipóteses sobre a dinâmica da atividade mercantil realizada no período.

O COMÉRCIO DURANTE O PERÍODO COLONIAL EM GOIÁS

É sabido pelos registros historiográficos goianos que as atividades mercantis acompanharam as atividades mineradoras durante o período colonial. No documento Notícia Geral da Capitania de Goiás de 1783 (BERTRAN, 2010BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás. 2. ed. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2010.), é descrita uma troca comercial realizada ainda no ano de 1726.

Depois de seis meses de Jornada, chegaram à chapada em que agora se acha o Arraial de Ouro Fino, e daí alguns dias chegou também Antônio Ferraz de Araújo, que era um dos mais impugnavam a segunda entrada, conduzindo quarenta porcos, com que depois se arranchou no Cabasaco, e os vendia à libra de ouro cada um. Com a chegada deste, o mandou o Capitão Mor que examinasse o Ribeirão, que hoje é o Rio Vermelho, até encontrar com umas capoeiras em que seu pai plantara roça havia 40 anos. (BERTRAN, 2010BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás. 2. ed. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2010., p. 48)

Salles (1992, p. 110)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992. ressalta que o fato relatado não ilustra o comércio que deveria surgir com as atividades mineradoras e com a implantação da administração real na capitania, mas “tratou-se de uma troca eventual e irregular, que, no entanto, muitas vezes iria se repetir ao longo da história colonial.” A historiadora prossegue salientando que a “anomia e improvisação constituíram a fase inicial da vida mercantil na região, até que as primeiras vias de acesso ao núcleo populacional de Sant’Ana delineassem as normas do sistema” (p. 110).

O Arraial de Sant’Ana, atual cidade de Goiás, foi instalado por Bartolomeu Bueno da Silva no ano de 1727. A partir daí, multiplicaram-se os núcleos de povoamento na extensa região das Minas dos Goyazes.2 2 A exemplo, Alencastre, governador da província de Goiás entre 1861 e 1862, registra em seu Anais da Província de Goiás, elaborado em 1863, que durante os anos iniciais da ocupação do território goiano “A mineração era alvo de todos os desejos, uma como que febre ou delírio de que o povo estava tomado. O proprietário, o industrialista, o aventureiro, finalmente todos convergiam suas vistas, seus esforços, seus capitais, toda sua atividade em suma, para o mister da mineração” (ALENCASTRE, 1979, p. 18). Na figura 1 é possível verificar a localização e o ano de fundação dos centros de mineração em Goiás durante o século XVIII.

Figura 1
Arraiais do Ouro, Capitania de Goiás, século XVIII

Como se pode observar na figura 1 e é também evidenciado por Gomes et al (2004)GOMES, Horieste; TEIXEIRA NETO, Antônio; SALES, Altair. Geografia: Goiás-Tocantins. Goiânia: UFG, 2004., um dos principais aspectos do povoamento determinado pela mineração é seu caráter pontual e irregular. Essa característica surge da própria natureza da atividade mineradora colonial, como explica Furtado (2004, p. 82)FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33° ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.:

[...] a empresa mineira não permitia uma ligação à terra do tipo que prevalecia nas regiões açucareiras. O capital fixo era reduzido, pois a vida de uma lavra era sempre algo incerto. A empresa estava organizada de forma a poder descolar-se em tempo relativamente curto.

Em Goiás, predominou a exploração do ouro de aluvião, com os principais núcleos de exploração instalando-se próximos às margens dos rios. Como escreveu Palacin (1976)PALACIN, Luís. Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. 2. ed. Goiânia: Oriente, 1976., bastava água e ouro para que se fundasse um arraial pelo imenso território das Minas dos Goyazes.

A formação dos Arraiais do ouro, como destacam Palacin et al (1995, p. 32)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995., “trouxe uma nova forma de povoamento ao Brasil colonial: um povoamento de tipo urbano”. Esse perfil de ocupação é, por sua natureza, gerador de demandas de consumo, seja por gêneros de primeira necessidade ou por artigos complementares. O novo perfil de povoamento propiciou o surgimento de fluxos comerciais determinados pela lógica da sociedade que ali se engendrava. Como explica Palacin et al (1995, p. 37)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995.:

A concentração humana e a preponderância da atividade mineradora, aliadas às grandes distâncias dos outros centros, propiciaram, pela primeira vez em Goiás, a formação de um mercado interno, que comprava e vendia cavalos, bestas e gado, além de comerciar outros produtos, como alimentos e manufaturas.

Sobre a predominância da atividade mineradora e a dependência do abastecimento externo, D’Alincourt (1975, p. 113)D’ALINCOURT, Luís. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975., em sua passagem por Goiás no ano de 1818, registrou que:

[...] os primeiros descobridores, ávidos deste metal precioso, correram grande parte do País onde encontraram descobertos riquíssimos, e não olhando para o futuro, prenderam-se a eles, e ali fundaram suas fabricas, e julgando talvez que as fontes auríferas erão inesgotáveis, desprezaram totalmente a agricultura, vindo com a mesma facilidade, com que extraiam o ouro, a passá-lo para outras mãos, em troca de gêneros de que precisavam.

Para comprovar o “caráter urbano” da população goiana durante o período colonial, Palacin et al (1995)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995. chamam a atenção para o número de estabelecimentos comerciais que arrecadaram o imposto da Capitação,nos anos de 1736 e de 17423 3 Denominação como fica conhecido o território goiano-tocantinense enquanto ainda subordinado à Capitania de São Paulo (PALACIN, 1976). A Capitania de Goyaz foi instalada pelo alvará de 8 de novembro de 1744, que a desmembrou da de S. Paulo. (NATAL E SILVA, 2002). . A Tabela 1 demonstra que naqueles anos mais de 300 estabelecimentos já se distribuíam pelos arraiais goianos.

Tabela 1
Estabelecimentos relacionados para pagamento do imposto de capitação, Minas dos Goyazes, 1736 - 1742

Número de estabelecimentos bastante expressivo, considerando que as estimativas populacionais para o período eram de 15.000 habitantes, em 1736, e 20.000 habitantes, em 1742.4 4 Em 1735, o Quinto, quinta parte de todo o ouro extraído, foi substituído pela Capitação. Esse imposto incidia sobre escravos, casas de comércio e profissões, e era cobrado duas vezes ao ano por meio de bilhetes de 1º e 2 º matrículas. Para efeito de taxação, as casas de negócio eram divididas em três classes: grandes, médias e mínimas. As primeiras pagavam 60 oitavas, as segundas 30, e as últimas 15 e as vendas 20 oitavas. Em Goiás, os valores da Capitação eram maiores do que em outras capitanias. O imposto foi extinto em 1751, quando houve o retorno do Quinto (PALACIN et al, 1995). Isso representava a média de um estabelecimento para cada 45 habitantes, em 1736, e de um estabelecimento para cada 56 habitantes, em 1742, “uma proporção só encontrada, à época, em concentrações urbanas” (PALACIN et al, 1995PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995., p. 39).

Conforme registra Palacin et al (1995)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995. as lojas, em geral, vendiam gêneros de primeira necessidade reunidos todos em um mesmo estabelecimento. Salles (1992)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992., destaca que nelas vendiam-se, principalmente, farinha de trigo, unguentos, tecidos como baetas, aniagem, veludo, linho, estopa, rendas,cobertores, cetim, tecidos diversos, linhas de cozer, fitas, rendas, galões, cravo, canela, pimenta do reino, armas, pólvora, chumbo, implementos agrícolas, vinho, fechaduras, peneiras de arame, tinta de pintura de obras de arte e que nas vendas e tabermas fazia-se o pequeno comércio de bebidas e utilidades mais elementares dos frutos da terra produzidos nas lavouras de milho, mandioca, arroz, feijão e mamona.5 5 De acordo com Palacin et al (1995), pode-se arriscar uma periodização da evolução populacional de Goiás no período colonial. Em 1736, os escravos eram em torno de 10.000; partindo-se do pressuposto de que eles constituíam dois terços da população, os autores estimam que o total deva ter chegado a 15.000 habitantes. Em 1750, os escravos, segundo os registros da capitação, eram 20.000; como a população havia se diversificado um pouco mais, é possível calculá-la em torno de aproximadamente 35.000 habitantes. Em 1783, esse total atingiu 59.287 habitantes, o máximo registrado no período colonial, e em 1804, de acordo com o censo, 50.155 pessoas. Portanto, é possível deduzir que a classificação apresentada pelos documentos oficiais (tabela 1), estava mais relacionada com o tamanho dos estoques existentes no momento da fiscalização do que propriamente com a especialização dos estabelecimentos comerciais.

Mesmo com a limitação conceitual dos documentos, com eles, é possível mensurar ao menos o quantitativo mínimo de estabelecimentos comerciais existentes na época, como o que é apresentado na tabela 2, na qual aparece o número de estabelecimentos das Intendências de Vila Boa e de Tocantins, que quitaram a Capitação durante as primeiras e segundas matrículas entre os anos de 1738 a 1751.

Tabela 2
Estabelecimentos Comerciais das Intendências de Vila Boa e Tocantins, Capitania de Goyaz, 1738 a 1751, 1º e 2º matrículas do imposto de Capitação1 1 O imposto da Capitação era recolhido duas vezes ao ano durante a 1ª e 2 ª matrícula.

A leitura das tabelas 1 e 2, sugere uma instabilidade das atividades comerciais praticadas durante o período. Essa característica é percebida pelas diferenças entre os números de estabelecimentos existentes durante as primeiras e segundas matrículas e pelas variações positivas ou negativas entre os anos. Acredita-se serem três, ou a soma deles, os fatores relacionados a essa instabilidade. O primeiro estaria relacionado à vinculação do comércio à mineração. Portanto, o fluxo mercantil dependia diretamente dos novos descobertos e do nível de produção das lavras. Essa relação explica o maior número de estabelecimentos até a primeira matrícula de 1741, período rico em novas descobertas (rever figura 01).

É também nesse período que se observa o maior número de lojas classificadas como grandes ou 1º classe. Na Intendência de Vila Boa na ocasião da 2º matrícula de 1741, chega a registrar um total de 24 estabelecimentos desse porte, 14 em Vila Boa, 8 em Crixás e 2 em Meia Ponte. A partir desse período, conforme Palacin (1976)PALACIN, Luís. Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. 2. ed. Goiânia: Oriente, 1976., começam a faltar novos achados auríferos e, entre os anos de 1745 e 1750, apenas três importantes arraiais se formaram: Carmo (1746), Santa Luzia (1746) e Cocal (1749), e depois se extinguem quase por completo.

Na figura 2, é possível verificar que a partir de 1753, ano em que as arrecadações de tributos sobre a exploração do ouro alcançaram seu ponto mais alto, 40 arrobas, houve uma tendência à queda das receitas fiscais provenientes da mineração.

Figura 2
Arrecadação dos tributos sobre extração do ouro, Capitania de Goiás. 1736 a 1822

* Para o período de 1736 a 1750, os valores referem-se à arrecadação obtida pelo imposto da Capitação.

Para o período de 1752 a 1822, os valores referem-se à arrecadação obtida pelo imposto do Quinto.


A queda torna-se acentuada com a década de 1770 e, no final do período colonial, a contribuição da mineração para os cofres públicos foi tão irrisória que não cobria sequer os custos de manutenção das casas de fundição onde o ouro deveria ser quitado.

A queda da produtividade, além de afetar as receitas coloniais, prejudicou também a dinâmica do comércio. Palacin et al (1995)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995., com base numa fonte documental de 1763, registram o franco declínio do imposto municipal da “aferição”, pago pelas lojas na ocasião da fiscalização de seus sistemas de pesos e medidas. Em Vila Boa, o imposto baixou de “1.250 e 1.280 oitavas em 1752 e 1753 para 709 oitavas em 1760 e 1761”. Como assinalam os autores, “a crise da vida urbana, que deveria processar-se com a decadência da mineração, já se anunciava claramente em Vila Boa” (p. 53).

A figura 3, que demostra a queda de arrecadação do imposto de entrada, sugere que desde a década de 1780 o comércio de bens importados reduziu-se consideravelmente na capitania.

Figura 3
Rendimento do Imposto de Entradas, Capitania de Goiás, 1762-1807.

A figura 4, elaborada com base nas informações disponíveis no documento Notícia Geral da Capitania de Goiás em 17836 6 É difícil estabelecer com clareza os ramos de comércio praticado pelas lojas durante o período colonial. Cunha Matos, em sua Chorografia da Província de Minas Gerais, assim define: “Cumpre notar que por fazenda seca se entende nos registros de Minas toda a qualidade de gêneros que se serve para o vestuário e por fazenda molhada, a qualidade de comestíveis, metais, pólvora e geralmente aquilo que se não veste” (CUNHA MATOS, 1874, p. 237). , corrobora a afirmação anterior, pois é possível verificar que, em 1783, o comércio em Goiás era realizado predominantemente pelas vendas e tabernas. Tal fato comprova a maior vinculação do comércio com a produção interna da capitania que, devido à redução das atividades mineiras, ensaiava seu desenvolvimento.

É importante destacar que, embora Bertran (2010)BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás. 2. ed. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2010. registre o aumento do número absoluto de estabelecimentos, em termos relativos à população, houve diminuição. A média de habitantes por estabelecimento que, em 1736, era de 43 por 1, sobe, em 1783, para 116 por 1.

Pela leitura da figura 4, também é possível verificar a situação privilegiada, em relação ao comércio, da capital Vila Boa, favorecida por sua função administrativa, e dos arraiais de Meia Ponte e de Santa Luzia, por localizarem-se em entroncamentos de caminhos o que facilitava o recebimento de bens comercializáveis.

Figura 4
Comércio por categorias, Capitania de Goiás, 1783

A segunda causa para explicar a instabilidade do comércio pode ser creditada à dificuldade de abastecimento. O comércio instalado em Goiás, embora muito ativo nos anos iniciais, alicerçou-se, preponderantemente, na importação de bens das capitanias litorâneas. Sobre isso, Chaim (1975, p. 61)CHAIM, Marivone Matos. A Idade do Ouro e a Paisagem Social Goiana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Goiânia, n. 5, 1975. registrou que:

[...] no Brasil, as minas auríferas constituíram uma espécie de colônia dentro da colônia, um território dependente economicamente dos produtores e dos comerciantes da Bahia, Rio e São Paulo, pois os territórios de mineração deveriam dedicar-se quase exclusivamente à produção de ouro, não desviando esforços na produção de outros bens, que poderiam ser importados das demais capitanias.

A grande distância dos centros abastecedores, aliada às dificuldades naturais dos caminhos, dificultava a chegada dos bens comercializáveis. De acordo com Funes (1986)FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. UFG, 1986. (Coleção Teses Universitárias), gastava-se mais ou mesmo oito meses para percorrer o caminho do Rio de Janeiro a Vila Boa. Esse fato poderia levar algumas casas comerciais a encerrarem suas atividades em alguns meses do ano por falta de produtos. Tal hipótese explica, por exemplo, as oscilações entre o número de estabelecimento em um mesmo ano. Em 1741, chega-se a registrar uma diferença de 82 estabelecimentos entre a primeira e a segunda matrícula.

Como foi possível constatar nas tabelas 1 e 2, há uma tendência para maior número de estabelecimentos na segunda matrícula, cobrada no segundo semestre do ano, período que coincide o auge da estação seca na região centro oeste brasileira, o que facilitava a chegada de produtos para o abastecimento das lojas. O registro deixado por Saint-Hilaire, ao passar por uma fazenda entre o Arraial de Meia Ponte e Arraial do Jaraguá, embora de ano bem posterior aos dados das tabelas, meados do mês de junho de 1819, corrobora a observação.

Perguntei a meu hospedeiro se naquele ano haviam passado por ali muitas tropas de burros vindos do Rio de Janeiro, da Bahia e de São Paulo. Ele me respondeu que ainda não vira nenhuma e que, em geral, elas só começam a chegar depois da festa de S. João, pois, compreensivelmente, nunca se podem pôr a caminho antes do final da estação das águas (SAINT-HILAIRE, 1975SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1779-1853. Viagem à província de Goiás. Tradução de Regina Reis Junqueira. Apresentação de Mario Guimaraes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975., p. 42).

O terceiro fator, que podemos relacionar às oscilações nos números dos estabelecimentos até 1751, é a prática de sonegação do imposto, fato esse também indicativo de que, possivelmente, o número real de casas de comércio era maior do que o representado pelos Mapas de Rendimento da Real Capitação. Como destaca Salles (1992, p. 113)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992.:

A injusta discriminação [Em Goiás as taxas da Capitação eram maiores do que em outras Capitanias] levava o colono a se ressarcir através da sonegação e do contrabando. Nos descampados do Norte e Nordeste o comércio ilícito talvez fosse mais rendoso que o dos estabelecimentos legalmente instalados.

Logo adiante, Salles (1992, p. 114)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992. prossegue expondo que “é provável ainda que o imposto de Capitação exercesse uma certa influência, obrigando ao fechamento gradativo das firmas comerciais menos sólidas”.

Em Gumiero (1991)GUMIERO, Maristela Portifirio da Paz. Os tropeiros na história de Goiás: séculos XVIII e XIX. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Goiás, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Goiânia, 1991., um levantamento elaborado a partir do exame de documentos do Arquivo do Museu das Bandeiras, na Cidade de Goiás, registra que os principais produtos a darem entrada na Capitania de Goiás, entre 1761 a 1799, foram: sal marinho, secos e molhados, queijos, pólvora, chumbo, fumo, algodão, escravos, enxadas, vinho, carnes e peixe seco, sabão, cavalos, bois, cera, ferragens, cobre, pregos, farinha e ferro. A autora indica ainda que os principais abastecedores de Goiás eram São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Chama a atenção nos dados apurados por Gumiero (1991)GUMIERO, Maristela Portifirio da Paz. Os tropeiros na história de Goiás: séculos XVIII e XIX. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Goiás, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Goiânia, 1991., como é possível conferir no quadro 1, a quantidade de carregamentos de sal recebidos no final do século XVIII:

Quadro 1
Produtos importados pela Capitania de Goiás, 1761 -1799.

Os dados de importação de sal sugerem que a pecuária era, no final do século XVIII, uma atividade forte na economia goiana. Se relacionarmos o quadro 01 com figura 04, anteriormente apresentada, e que demostrou a predominância de estabelecimento de comércio de gêneros locais em 1783, não é exagero afirmar, que a pecuária substitui o ouro como motor para a manutenção, ainda que em volume menor, do comércio de importação na capitania. Dados de 1804, levantados por Funes (1986)FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. UFG, 1986. (Coleção Teses Universitárias), demostram que o gado já representava 37% das exportações goianas nos julgados do Norte e 11% dos julgados do Sul. Conforme destaca Campos (1982, p. 132-133)CAMPOS, Itami. Questão Agrária: uma proposta de análise. Revista do ICHL, Goiânia, 1982. a importância da pecuária para Goiás é inegável porque evitou, após a queda da produção aurífera, o total despovoamento e falência econômica de Goiás e funcionou como como elemento de fixação do homem e de ocupação de novas parcelas do território goiano.

O PAPEL DO COMÉRCIO PARA A ECONOMIA E ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO COLONIAL EM GOIÁS

Além do abastecimento dos mineiros, os comerciantes desempenharam papel fundamental na circulação do ouro produzido nas lavras. Sobre isso Palacin (1976, p. 60)PALACIN, Luís. Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. 2. ed. Goiânia: Oriente, 1976. destaca:

O mineiro extraía o ouro e podia usá-lo como moeda no território das minas, pois proibida a moeda de outro, o ouro em pó era a única moeda em circulação. No momento em que decidisse retirar o seu ouro para outras capitanias é que lhe urgia a obrigação de fundi-lo e pagar o quinto. [...], mas, este era um caso raro em relação ao minério. Comprando todas as coisas a crédito, em longos prazos, por preços altíssimos, todo seu ouro ia parar, imediatamente, às mãos dos comerciantes, que eram os que, em realidade, canalizavam o ouro das minas para o exterior e deviam, por conseguinte, pagar o quinto correspondente.

Embora a legislação proibisse o uso do ouro em pó como moeda em Goiás desde o início do período colonial até as duas primeiras décadas do século XIX − devido principalmente a quase inexistência de comércio exterior −, o ouro em pó foi a moeda corrente entre os colonos.

O comércio praticado em Goiás, durante os séculos XVIII e XIX, era todo abastecido pelas tropas. Como explicam Palacin et al (1995, p. 127)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995.:

Os tropeiros eram empresários do transporte, indispensáveis para o comércio de exportação e importação. Funcionavam também como mensageiros, transmissores de notícias pessoais e das novidades que vinham e ouviam nas outras regiões do país. Muitas vezes, tornavam-se também comerciantes, e agiam como intermediários no envio e retirada do ouro, numa época em que ainda não existiam bancos na região.

Saint-Hilaire (1979, p. 41)SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979., em sua passagem por Minas Gerais em 1818, oferece uma descrição detalhada sobre o funcionamento de uma tropa:

Dá-se o nome de tropeiros aos homens que conduzem as caravanas de burros destinados a empreender essas viagens e outras semelhantes. As tropas um pouco consideráveis são divididas em lotes de sete animais, e cada um é confiado à guarda de um negro ou mulato que, caminhando na retaguarda dos cargueiros de que está encarregado, os incita e dirige por meio de gritos ou por um assobio bastante brando. Costuma-se carregar cada besta com oito arrobas (cerca de 120 quilos), e para não feri-los, iguala-se a carga com o maior cuidado. Cada caravana que chega a um rancho aí toma o seu lugar; os animais são logo descarregados; arrumam-se as mercadorias com ordem: cada animal recebe sua ração de milho; levam-nos ao pasto; arranjam-se-lhes as albardas, e se desentortam os cravos destinados a ferrá-los. Enquanto isso o mais jovem da tropa vai buscar água e lenha, acende o fogo, arma em redor três bastões que se unem superiormente, amarra-os, e suspende um caldeirão na tripeça, onde se põe a cozinhar o feijão preto destinado ao jantar do dia e no almoço do seguinte. Os tropeiros das diversas caravanas se aproximam uns dos outros, põem-se a conversar, relatam suas viagens e aventuras amorosas, e, às vezes, um deles encanta o trabalho dos vizinhos tocando guitarra e cantando algumas dessas árias brasileiras que têm tanta graça e doçura. Tudo se passa por ordem, raramente discutem, e falam entre si com delicadeza desconhecida na Europa entre homens de classe inferior. No dia seguinte levantam-se bem cedo; dão aos burros nova ração de milho. Deixando o rancho, saúdam os tropeiros que ainda aí ficam; fazem nova caminhada de três a quatro léguas, e chegam a outra estação pelas duas ou três horas da tarde.

O trabalho dos tropeiros representou um papel essencial para a integração entre o litoral e o interior do Brasil. Como bem destaca Furtado (2004, p. 84)FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33° ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.:

A tropa de mulas constitui-se autêntica infraestrutura de todo o sistema. A quase inexistência de abastecimento local de alimentos, a grande distância por terra que devia percorrer todas as mercadorias importadas, a necessidade de vencer grandes caminhadas em região montanhosa para alcançar os locais de trabalho, tudo contribuía para que o sistema de transporte desempenhasse um papel básico no funcionamento da economia, criou-se um grande mercado para animais de carga.

Conforme escreve Chaim (1975)CHAIM, Marivone Matos. A Idade do Ouro e a Paisagem Social Goiana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Goiânia, n. 5, 1975., grandes áreas do Brasil, desde os sertões do Maranhão e do Piauí até as planícies do Rio Grande do Sul, sofreram grande agitação comercial até então desconhecida. “Todos os centros produtores dessa área aumentaram sua capacidade produtiva para abastecer as regiões mineratórias” (p. 61)7 7 Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783, Paulo Bertran (Org.), 2ª ed. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2010. . Sobre isso também escreve Furtado (2004, p. 83)FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33° ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.:

se considerar em conjunto a procura de gado para corte e de muares para transporte, a economia mineira constituiu, no século XVIII, um mercado de proporções superiores ao que havia propiciado a economia açucareira em sua etapa de máxima prosperidade.

A atuação das tropas reverberou também na formação espacial de Goiás. Cunha Matos (1875, p. 87)CUNHA MATOS, Raimundo José da. Chorographia da Província de Goiás por Raimundo da Cunha Matos. Revista do IHGB, 1874. diz que os arraiais de Ouro Fino e de Ferreiro perderam a sua importância depois que os tropeiros passaram a usar o caminho chamado Picada do Correio de Goiás, retirando os dois arraiais da rota de transporte. Gomes et al (2004, p. 87)GOMES, Horieste; TEIXEIRA NETO, Antônio; SALES, Altair. Geografia: Goiás-Tocantins. Goiânia: UFG, 2004. apontam os pousos das tropas como um considerável fator de urbanização de Goiás, pois surgiam ao longo dos caminhos e, dependendo da frequência das tropas, “logo evoluíam para uma pequena aglomeração, em que se podia contar com alguns serviços típicos de uma pequena aglomeração urbana: um pequeno comércio e diversões para os tropeiros e viajantes”. Nesse sentido, registram os autores:

Não são poucas as cidades que nasceram desses movimentos de homens e tropas: Três Ranchos, que depois se transformou em um registro ou posto fiscal, sob o nome de Mão de Pau, Campo Alegre de Goiás, Damianópolis e Mambai, ao pé da Serra Geral de Goiás, em um caminho de Tropas que demanda à Bahia, Itaberaí, a antiga Curralinho, que dava pouso às primeiras Tropas de que penetraram em Goiás, só século XVIII, Ituaçu, ao longo da GO-070, Palmelo, Varjão, Sanclerlândia e, a de nome mais charmoso dentre elas, Pouso Alto, rebatizada, também charmosamente, de Piracanjuba. (p. 87)

A melhor situação econômica de Meia Ponte no final do século XVIII decorria de ser este arraial ponto de reabastecimentos das tropas que viam de Cuiabá e seguiam para Bahia e São Paulo. O que, inclusive, influenciou o desenvolvimento da agricultura da região (D’ALINCOURT, 1975D’ALINCOURT, Luís. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975.).

Com a diminuição das atividades mineradoras, registrou-se também a queda do movimento das tropas. A tabela 3 dá o exemplo da redução do número de tropas que passaram pela contagem de São João das Três Barras, entre 1788 a 1818.

Tabela 3
Movimento de tropas das entradas, em mil réis, contagem de São João das Três Barras

As longas distâncias e a estrutura do transporte influenciavam os valores praticados pelo comércio. Palacin e Morais (1989, p. 22)PALACIN, Luís; MORAES, Maria Augusta Sant’Ana. História de Goiás. Goiânia: UCG, 1989. destacam que, inicialmente, “os preços de tudo eram extraordinariamente altos, pois as minas não produziam nada e as distâncias do Rio, da Bahia e de São Paulo eram tão grandes para as coisas importadas e os juros cobrados pelos comerciantes altíssimos”. O relato de D’Alincourt (1975, p. 110)D’ALINCOURT, Luís. Memórias sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975., em passagem por Goiás durante sua viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá realizada em 1818, é ilustrativo dessa afirmação:

[...] a agricultura foi inteiramente desprezada, e só os vivandeiros, que de continuo estavam a chegar de S. Paulo, tiravam sólido, e avultados lucros, e eram senhores de taxar os gêneros, que subiram naquela época a grandes preços; basta dizer-se, que o alqueire de farinha custava dez, e onze oitavas de ouro, o dêste grão seis, e sete; o primeiro porto, que apareceu vendeu-se por oitenta, e a primeira vaca de leite por duas libras de ouro; e, apesar dêstes preços nem por isso deixava, em algumas ocasiões, de sentir-se a fome; porque o povo era muito; e as tropas não podem conduzir o necessário: assim os homens sequiosos só de ouro, andavam como aturdidos, e nem ao menos um instante pensavam nos seus verdadeiros interesses, depositando fielmente uma grande parte da riqueza que obtinham com trabalho excessivo, nas mãos de que lhes forneciam, sem muito custo o indispensável à vida.

Uma tabela comparativa dos valores de alguns gêneros comercializados em Goiás entre os anos de 1736 e 1786, extraída de Salles (1992, p. 121)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992., oferece uma ideia dos altos valores praticados nos anos iniciais da mineração:

A baixa dos valores dos itens indicados na tabela 4, conforme indica Salles (1992, p. 123)SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992.:

Tabela 4
Preços praticados pelo comércio da Capitania de Goiás em 1736 e 1786

sugere que a míngua do ouro despertou o interesse pela lavoura e pecuária, aumentando a produção de alguns gêneros, como o feijão, o gado e galináceos, e abaixando seu valor, os períodos de colheita no decorrer dos anos de boa safra forçavam, igualmente, a diminuição dos preços.

Funes (1986)FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. UFG, 1986. (Coleção Teses Universitárias) afirma que o declínio a mineração e alto valor dos produtos alimentícios desencadearam um processo de ocupação das áreas próximas aos centros mineradores:

No momento em que o ouro deixou de ser o produto base da economia goiana, as pessoas que não abandonaram a província dirigiam-se para a zona rural, onde passaram a dedicar-se a lavoura e a pecuária. (p. 95).8

Bertran (1978)BERTRAN, Paulo. Formação econômica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978. estima que no final da década de 1770 a agricultura já era responsável por 30% da renda goiana, a mineração ainda representava 50% e o comércio de importação, tão ativo em anos anteriores, representava os 20% restantes.

Palacin et al (1995)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995. ressaltam que devido aos altos preços praticados pelos comerciantes, principalmente nos anos iniciais da mineração, o comércio representou um importante meio de acumulação de capital na nascente capitania. Para ilustrar o argumento, os autores usam uma citação do viajante francês Ferdinand Denis, que passou pelo Brasil entre os anos de 1816 a 1819:

A afluência torna-se tal, ao fim de dois anos, que uma espécie de fome se declarou e os víveres mandados de São Paulo foram insuficientes. Então se viu renovar o que acontecera na América, em todas as regiões onde as minas são exploradas. Os colonos que aparentemente haviam seguido o caminho mais lento para se enriquecer foram exatamente os que caminharam de um modo mais direto para a fortuna. (Denis, 1980, p. 345 apud Palacin et al, 1995PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995., p. 138)

O imposto de Entrada também contribuía para os altos valores das mercadorias. O trecho de um contrato de exploração do imposto nos dá conta de alguns dos valores cobrados durante a passagem das mercadorias nos registros:

Com condição que a ele contratador pertencerão todos os direitos que se pagam nos caminhos do Rio de Janeiro, Parati, São Paulo, Sertão da Bahia e Pernambuco e da mesma forma lhe pertencerão os ditos direito de outros quaisquer caminhos que ao presente haja abertos, ou no tempo de seu contrato se possam abrir, cobrando ele contratador por cada escravo ou escrava, que passar pelos registros, duas oitavas, e por cada cabeça de gado uma oitava e por cada cavalo ou outra besta muar que entrar sem carga, sem sela, em pelo e não montada, duas oitavas, e por cada carga de fazenda seca de peso de duas arrobas uma oitava e meio e por cada carga de molhado pagarão meia oitava. [grifo nosso]

Contrato das entradas das minas, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Goiás cód. 19.2.8, p. 2, In: PALACÍN et al, 1995PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995., p. 153.

Os altos valores praticados também resultavam da venda a crédito, “danoso recurso que estimulava a alta dos produtos” (SALLES, 1992SALLES, Gilka V. F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992., p. 123).

De forma indireta, o Dízimo, imposto cobrado sobre a produção agrícola, também desestimulava o desenvolvimento da agricultura e, consequentemente, a produção de excedentes em quantidades que possibilitassem a redução dos valores e aumento da oferta de produtos comercializáveis.

Além dos fatores acima destacados, as leis proibitivas impostas à Capitania contribuíam para o alto valor dos bens, pois dificultavam a concentração de excedentes comercializáveis. Entre elas, destacam-se a carta régia de 10 de janeiro de 1730, a qual determinava que houvesse apenas um caminho para Goiás, e, em seguida, a proibição da navegação pelo rio Tocantins, só revogada em 1782. Soma-se ainda a estas a lei de 1732, que determinava a proibição dos engenhos de açúcar e a destruição das lavouras de cana existentes na Capitania. Esses fatores influenciavam na menos disponibilidade de gêneros locais para comercialização durante o período colonial em Goiás.

CONCLUSÕES

As diversas considerações apresentadas neste artigo nos leva a concluir que, durante o ciclo minerador em Goiás, as atividades comerciais, alicerçadas preponderantemente na importação de bens, desenvolveram-se graças aos excedentes de capitais gerados pelo ouro e embora, essas atividades tenham surgido como subsidiárias à produção mineral, elas foram durante o século XVIII importantes mecanismos de acumulação de capital, devido, principalmente, sua capilaridade e aos altos valores praticados pelos comerciantes durante o período.

O comércio interno ou de exportação, durante as primeiras décadas coloniais em Goiás, era pequeno, decorrente, principalmente, da excessiva atenção dada ao desenvolvimento das atividades de mineração e da consequente reduzida produção agrícola-pecuária e manufatureira do território, tornando, dessa forma, a capitania muito dependente do abastecimento de outras regiões da colônia, principalmente, das capitanias de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

O declínio das atividades mineradoras, principalmente, a partir da segunda metade do século XVIII, levou à queda de capital em circulação, provocando, dessa forma, a redução das importações. Essa redução, somada à incipiente estruturação de uma agricultura de subsistência e aliada ao isolamento geográfico da capitania, não conseguia de imediato movimentar o comércio de exportação promovendo a involução das trocas mercantis na capitania. Porém, as atividades comerciais continuam a existir concentrando-se nos centros urbanos mais estruturados e incorporando gradualmente os gêneros da produção local na cartela de bens oferecidos.

NOTAS

  • 1
    A autora agradece à leitura e sugestões do professor Dr. Tadeu Alencar Arrais
  • 2
    A exemplo, Alencastre, governador da província de Goiás entre 1861 e 1862, registra em seu Anais da Província de Goiás, elaborado em 1863, que durante os anos iniciais da ocupação do território goiano “A mineração era alvo de todos os desejos, uma como que febre ou delírio de que o povo estava tomado. O proprietário, o industrialista, o aventureiro, finalmente todos convergiam suas vistas, seus esforços, seus capitais, toda sua atividade em suma, para o mister da mineração” (ALENCASTRE, 1979ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da Província de Goiás. 2. ed. Goiânia: Governo de Goiás, 1979., p. 18).
  • 3
    Denominação como fica conhecido o território goiano-tocantinense enquanto ainda subordinado à Capitania de São Paulo (PALACIN, 1976PALACIN, Luís. Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura numa capitania de Minas. 2. ed. Goiânia: Oriente, 1976.). A Capitania de Goyaz foi instalada pelo alvará de 8 de novembro de 1744, que a desmembrou da de S. Paulo. (NATAL E SILVA, 2002NATAL e SILVA, Colemar. História de Goiás. Goiânia: IGL/AGEPEL, 2002.).
  • 4
    Em 1735, o Quinto, quinta parte de todo o ouro extraído, foi substituído pela Capitação. Esse imposto incidia sobre escravos, casas de comércio e profissões, e era cobrado duas vezes ao ano por meio de bilhetes de 1º e 2 º matrículas. Para efeito de taxação, as casas de negócio eram divididas em três classes: grandes, médias e mínimas. As primeiras pagavam 60 oitavas, as segundas 30, e as últimas 15 e as vendas 20 oitavas. Em Goiás, os valores da Capitação eram maiores do que em outras capitanias. O imposto foi extinto em 1751, quando houve o retorno do Quinto (PALACIN et al, 1995PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995.).
  • 5
    De acordo com Palacin et al (1995)PALACIN, Luís; GARCIA, Franco Leonidas; AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia: UFG, 1995., pode-se arriscar uma periodização da evolução populacional de Goiás no período colonial. Em 1736, os escravos eram em torno de 10.000; partindo-se do pressuposto de que eles constituíam dois terços da população, os autores estimam que o total deva ter chegado a 15.000 habitantes. Em 1750, os escravos, segundo os registros da capitação, eram 20.000; como a população havia se diversificado um pouco mais, é possível calculá-la em torno de aproximadamente 35.000 habitantes. Em 1783, esse total atingiu 59.287 habitantes, o máximo registrado no período colonial, e em 1804, de acordo com o censo, 50.155 pessoas.
  • 6
    É difícil estabelecer com clareza os ramos de comércio praticado pelas lojas durante o período colonial. Cunha Matos, em sua Chorografia da Província de Minas Gerais, assim define: “Cumpre notar que por fazenda seca se entende nos registros de Minas toda a qualidade de gêneros que se serve para o vestuário e por fazenda molhada, a qualidade de comestíveis, metais, pólvora e geralmente aquilo que se não veste” (CUNHA MATOS, 1874CUNHA MATOS, Raimundo José da. Chorographia da Província de Goiás por Raimundo da Cunha Matos. Revista do IHGB, 1874., p. 237).
  • 7
    Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783, Paulo Bertran (Org.), 2ª ed. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2010.
  • 8
    Straforine (2001)STRAFORINI, Rafael. No Caminho das Tropas. Sorocaba: TCM, 2001. demostra como a economia no sul do Brasil foi dinamizada pela demanda de gado muar da região das minas e como o comércio desses animais refletiu no desenvolvimento de Sorocaba, cidade que sediou grande feira de muares.
  • 9
    De acordo com Funes (1986, p. 95)FUNES, Eurípedes Antônio. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. UFG, 1986. (Coleção Teses Universitárias), as formas de ocupação da terra em Goiás não fugiram às praticadas nas demais regiões brasileiras, ou seja, a concessão de sesmarias, como a primeira forma legal de apropriação do solo, e a posse - uma prática constante entre os goianos. A elas juntaram-se, posteriormente, outras formas legais de aquisição da terra: a compra, a herança e outras de menor importância.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2019
  • Aceito
    31 Maio 2019
  • Publicado
    15 Jul 2019
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