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RECONFIGURAÇÃO DA PAISAGEM NAS SAVANAS DA AMAZÔNIA

RECONFIGURACIÓN DEL PAISAJE EN LAS SABANAS DE LA AMAZONIA

RESUMO

O processo de ocupação das savanas em Roraima tem refletido de forma marcante na modificação de suas paisagens. Neste estudo buscou-se analisar a expansão de atividades agropecuárias e as mudanças nas paisagens das savanas no município de Boa Vista (RR), conhecidas pela denominação local de "Lavrado", entre os anos de 2000 e 2014. Para atingir os objetivos, adotou-se a metodologia de Análise Ambiental por Geoprocessamento, com procedimentos de diagnóstico, como os inventários, assinaturas e avaliações ambientais. Os resultados indicaram que está ocorrendo intensificação do uso e modificação da cobertura da terra, ligadas à produção de grãos (soja). O processo histórico de ocupação e intensificação do uso ocorreu a partir das ações do Estado, como as medidas do governo estadual, que pautam suas estratégias no fortalecimento da agropecuária. Neste cenário, a conversão das savanas tornou-se estratégica ao processo produtivo, de forma semelhante ao ocorrido no bioma Cerrado do Brasil Central, principalmente a partir da década de 1970.

Palavras chaves:
Cerrado; Paisagem; Agropecuária; Mudança de uso e cobertura da terra

RESUMEN

El proceso de ocupación de las sabanas en Roraima ha reflejado de forma marcada en la modificación de sus paisajes. En este estudio se buscó analizar la expansión de actividades agropecuarias y los cambios en los paisajes de las sabanas en el municipio de Boa Vista (RR), conocidas por la denominación local de "Labrado", entre los años 2000 y 2014. Para alcanzar los objetivos, se utilizó la metodología de Análisis Ambiental por Geoprocesamiento, con procedimientos de diagnóstico, como los inventarios, firmas y evaluaciones ambientales. Los resultados indicaron que está ocurriendo intensificación del uso y modificación de la cobertura de la tierra, ligadas a la producción de granos (soja). El proceso histórico de ocupación e intensificación del uso ocurrió a partir de las acciones del Estado, como las medidas del gobierno estadual, que pautan sus estrategias en el fortalecimiento de la agropecuaria. En este escenario, la conversión de las sabanas se tornó estratégica al proceso productivo, de forma semejante al ocurrido en el bioma Cerrado do Brasil Central, principalmente a partir de la década de 1970.

Palabras-clave:
Cerrado; paisaje; agropecuaria; cambio de uso y cobertura de la tierra

ABSTRACT

The occupation process of the savannahs in Roraima which is reflected in an outstanding way in the modification of its landscapes. This study is aimed at analyzing the expansion of agricultural activities and the changes to the landscapes of the savannas in the municipality of Boa Vista (RR), known by the local name "Lavrado", between the years 2000 and 2014. To reach the objectives, the methodology of Environmental Analysis by Geoprocessing, was adopted, with diagnostic procedures such as inventories, signatures, and environmental assessments. The results indicated that intensification of the use and modification of land cover, occurring in the production of grains (soybean), is occurring. The historical process of occupation and intensification of use occurred as a result of the actions of the State, like the measures of the state government, which guide its strategies in the strengthening of agriculture and livestock. In this scenario, the conversion of the savannas became strategic to the productive process, like that which occurred in the Cerrado biome of Central Brazil, mainly during the 1970s.

Keywords:
Cerrado; Landscape; Agricultural; Change of use and land cover

INTRODUÇÃO

No cinturão de máxima diversidade biológica do planeta, a Amazônia se destaca pela extraordinária continuidade de suas florestas, pela grandeza de sua principal rede hidrográfica e pelas variações de seus ecossistemas em nível regional e de altitude (AB'SÁBER, 2003AB'SABER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.). O bioma Amazônia abrange uma área de 4.196. 943 km2 (IBGE, 2004BRASIL. IBGE. Mapa de Biomas do Brasil. Escala 1:5.000.000. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.) do território nacional; deste total, aproximadamente 200.000 km2 são campos e savanas que estão dispersos de forma isolada (enclaves) e não isolada (periférica) ao longo do contínuo florestal sob diferentes tipos climáticos, fatores edáficos, relevo e distúrbios antropogênicos (SANAIOTTI et al., 2002SANAIOTTI, T. M.; MARTINELLI, L. A.; VICTORIA, R. L.; TRUMBORE S. E.; CAMARGO, P. B. Past vegetation changes in Amazon savanas determined using carbon isotopes of soil organic matter. Biotropica, v. 34, p. 2-16, 2002.; SANTOS et al., 2007). As manchas disjuntas de cerrados, dispersas na floresta úmida nos estados do Amapá, Amazonas, Pará e Roraima, são conhecidas como savanas amazônicas (PRANCE, 1996). Sua fisionomia é semelhante a do Cerrado do Brasil Central, com um estrato graminoso e densidade variável de árvores e arbustos.

O estado de Roraima, situado no extremo norte da Amazônia brasileira, possui a maior área contínua de savanas do bioma Amazônia, ocupando uma superfície estimada em 43.000 km2 (BARBOSA; CAMPOS, 2011BARBOSA, R. I.; CAMPOS, C. Detection and geographical distribuition of clearing areas in the savannas (lavrado) of Roraima using Google Earth web tool. Journal of Geography and Regional Planning, v. 4, p. 122-136, 2011.). As savanas distribuem-se predominantemente na porção nordeste do estado e fazem parte do complexo paisagístico Rio Branco-Rupununi, estabelecido entre Brasil, Guiana e Venezuela.

O termo Lavrado, nome local atribuído às savanas em Roraima, segundo Vanzolini e Carvalho (1991), é derivado da língua portuguesa arcaica, mas ainda pode ser encontrada nos dicionários atuais, significando um local onde as árvores estão ausentes - o que é condizente com a paisagem das savanas de Roraima, dominadas por formações campestres. O processo histórico de ocupação antrópica em Roraima, realizado por meio de colonização dirigida ou espontânea, desencadeou implicações ecológicas em diferentes ecossistemas, tendo em vista o emprego de práticas tradicionais de preparo e manejo do solo para implantação de culturas agrícolas e pastagens.

A conversão das savanas para usos antrópicos voltados às atividades econômicas intensificou-se a partir do final da década de 1970, como fruto do estabelecimento ou da ampliação de eixos rodoviários que serviram de suporte para projetos de expansão agrícola e pecuária, associados ao crescimento populacional local (BARBOSA; CAMPOS, 2011BARBOSA, R. I.; CAMPOS, C. Detection and geographical distribuition of clearing areas in the savannas (lavrado) of Roraima using Google Earth web tool. Journal of Geography and Regional Planning, v. 4, p. 122-136, 2011.). Na região das savanas do Brasil atualmente se encontra a maior parte dos grandes planos de expansão para o setor de agronegócios (cana-de-açúcar, soja, silvicultura etc.), que desencadearam uma ampla modificação das condições geoecológicas da paisagem. Enquanto categoria de análise geográfica, a paisagem apresenta uma complexa multi-dimensionalidade, que possibilita a compreensão das relações entre o homem e as modificações no espaço onde vive.

Desse modo, para compreender a dinâmica da paisagem das savanas de Roraima na atualidade, torna-se relevante conhecer as mudanças no uso e cobertura da terra, o que inclui a expansão da agropecuária, que vem ocorrendo desde o final dos anos 1970. Para acompanhar a dinâmica da paisagem, o uso de geotecnologias tem se tornado imprescindível, em especial os produtos de sensores remotos, como suporte instrumental para o mapeamento e registro das mudanças de uso e cobertura da terra, visando, com a espacialização produzida, orientar o processo de tomada de decisão, formulação e implementação de políticas públicas.

Nesse contexto, o presente estudo objetivou investigar a dinâmica espaço-temporal de uso e cobertura da terra no município de Boa Vista (RR), no intervalo dos anos de 2000 a 2014. Esse recorte espaço-temporal foi considerado como um cenário representativo do recente processo de expansão da agropecuária e por reunir características intrínsecas das estratégias utilizadas no processo de ocupação das savanas amazônicas.

MATERIAIS E MÉTODOS

O trabalho se amparou na metodologia de Análise Ambiental por Geoprocessamento, proposta por Xavier-da-Silva e Carvalho-Filho (1993)XAVIER-DA-SILVA, J.; CARVALHO FILHO, L. M. Sistemas de Informação Geográfica: uma proposta metodológica. Anais... Conferência Latino Americana sobre Sistemas de Informação Geográfica, 4; Simpósio Brasileiro de Geoprocessamento, 2. São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 1993. p. 609-628., com procedimentos de diagnóstico, como os inventários, assinaturas e avaliações ambientais.

A primeira etapa envolveu o trabalho com dados secundários, e consistiu numa pesquisa bibliográfica e documental, baseada na revisão teórica, realizada em indexadores de periódicos, sites de bibliotecas públicas e bancos digitais de teses e dissertações, em busca de artigos, livros, dissertações e teses que contemplassem o processo histórico de ocupação do estado de Roraima. De forma concomitante, foi feita a compilação de bases cartográficas em ambiente SIG, especialmente as relacionadas ao meio físico, disponíveis em formato digital em portais de órgãos públicos, como o IBGE-RR e a Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento do Estado de Roraima (SEPLAN-RR). A segunda etapa foi dedicada ao trabalho com fontes primárias. Os procedimentos metodológicos consistiram, inicialmente, na aquisição de dados de Sensoriamento Remoto correspondente às imagens digitais do sensor TM/Landsat-5, referente ao ano de 2000, e OLS/Landsat 8, correspondente ao ano de 2014. As imagens foram obtidas junto ao catálogo de imagens do INPE (disponibilizadas em: <http:/www.inpe.br>) e no site Earth Explorer (http://earthexplorer.usgs.gov). Na Tabela 1 estão detalhadas as principais características desses dados.

Tabela 1
Características das imagens orbitais empregadas

Em ambiente de SIG, especificamente empregando-se o software ArcGIS 10.1, o processamento das imagens digitais consistiu na operação de pré-processamento de correção geométrica, através do registro imagem-imagem, utilizada para ajustar as linhas e colunas das imagens à sua correspondente localização geográfica. Para tanto, foi empregado o mosaico GeoCover, obtido junto ao site da Global Land Cover Facility (GLCF) da National Aeronautics and Space Administration - Nasa (https://zulu.ssc.nasa.gov/mrsid/).

A correção geométrica foi feita através da aplicação de transformação polinomial de 3º grau, com a coleta de 30 pontos de controle para a área de estudo. Na etapa de aquisição de pontos de controle via tela, considerou-se a distribuição regular desses por toda a área de estudo, além do número mínimo necessário para a transformação polinomial. Para a reamostragem dos pixels da imagem foi utilizado o método de convolução cúbica. A etapa seguinte consistiu no processamento de classificação digital, baseando-se nas operações de segmentação e classificação supervisionada por distância de Mahalanobis, em que se toma como referência, para cada classe, um ponto no espaço multidimensional definido pela média estatística de cada banda espectral considerada. Foram selecionadas amostras de treinamento para as classes de uso e cobertura da terra, por meio de análise visual das feições de cobertura e uso da terra, com base no conhecimento da área e informações de campo, coletadas em maio 2014. Em seguida foi realizada uma amostragem estratificada aleatória dos pixels, com as amostras selecionadas de cada padrão de cobertura e uso da terra.

Desse modo, foram discriminadas cinco classes: formação florestal, como matas de galeria ou buritizais ao longo de cursos d'água e "ilhas" de florestas; corpos hídricos, caracterizados por rios, lagos e demais corpos d'água; formação campestre ou savânica, correspondente a áreas cobertas por vegetação de savanas, tipicamente graminosas; agricultura, relativa às áreas de ocorrência de atividades agrícolas, pastoris ou de formações florestais cultivadas; área urbana, caracterizada pela presença de manchas urbanas.

A chave de interpretação, elaborada no desenvolvimento deste estudo, foi baseada em alguns conceitos do manual de uso da terra do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006). Após a classificação das imagens, os dados foram transformados em vetores, os quais passaram por uma nova etapa de inspeção visual polígono a polígono, gerando como produto final duas imagens temáticas que permitiram a identificação espaço-temporal das mudanças ocorridas nas formas de cobertura e uso da terra no município de Boa Vista (RR). Por fim, foi realizada a quantificação da área ocupada por cada classe em ambiente SIG.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

DEFINIÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

O município de Boa Vista está localizado na porção centro-leste do estado de Roraima e ocupa uma área de 5.687 km2, que abriga uma população estimada de 332.020 habitantes (IBGE, 2017). Do ponto de vista de aspectos geológicos, o município está inserido na grande superfície de aplainamento conservada do estado, e compreende principalmente, terrenos sedimentares de ambiente fluvio-aluvionar da Formação Boa Vista (Figura 1). Essa formação, na interpretação de Wankler, Evangelista e Sander (2012)WANKLER, F.L.; EVANGELISTA, R.A.O; SANDER, C. Sistema aquífero Boa Vista: "estado de arte" do conhecimento e perspectivas. ACTA Geográfica, Boa Vista, v.6, n.12, p. 21-39, maio/ago. 2012., é considerada de idade terciária e de origem fluvio-aluvionar, constituída por intercalações de sedimentos argilosos, siltosos e arenosos, de granulação fina a grossa, com sedimentos que recobrem parte do setor centro-leste do estado de Roraima.

Figura 1
Mapa Geológico do município de Boa Vista (RR) e entorno

Em relação às feições geomorfológicas, a paisagem na área de estudo compreende as unidades morfoestruturais denominadas de Depressão Boa Vista, Patamar do Médio Uraricoera, Planaltos Residuais de Roraima, Pediplano Rio Branco-Rio Negro e Planície Amazônica (Figura 2). Segundo os dados do IBGE (2005)BRASIL. IBGE. Projeto Levantamento e Classificação da Cobertura e do Uso da Terra - Uso da Terra no Estado de Roraima (Relatório Técnico). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística / Diretoria de Geociências / Coordenação de Recursos Naturais e Estudos Ambientais, 2005. 94p., a unidade Depressão Boa Vista, a maior unidade geomorfológica em extensão no município, corresponde a um modelo de acumulação (agradação) e se caracteriza por ser uma extensa região plana, com altitude média oscilando entre 80 a 110 metros, sem grandes restrições à mecanização.

Figura 2
Mapa das Unidades Geomorfológicas do Município de Boa Vista (RR) e entorno

A pedologia da área de estudo é representada pelos Latossolos, Argissolos e Neossolos. Contudo, a classe de solo mais extensa é o Latossolo Amarelo distrófico (LAd), que corresponde a 85% do total do município (Figura 3). A ocorrência do Latossolo Amarelo distrófico (LAd) nas áreas centrais do estado está relacionada aos sedimentos argilo-arenosos da formação Boa Vista datados do final do período Terciário e início do Quaternário (Plio-pleistoceno), elaborados a partir de ciclos alternados de climas úmidos e secos, sob cobertura vegetal do tipo savanas (VALE JR.; SCHAEFER, 2010VALE JUNIOR, J. F.; SCHAEFER, C.E.R.G. Solos sob savanas de Roraima. Boa Vista: Ioris, 2010., p. 20).

Figura 3
Mapa de solos do município de Boa Vista (RR) e entorno

A vegetação da área de estudo apresenta-se como um mosaico, predominando fitofisionomias savânicas, como Savana Gramíneo-Lenhosa (Sg). Entretanto, feições florestais também fazem parte da paisagem do Lavrado no município e são caracterizadas principalmente pela Floresta Ombrófila Aluvial, Floresta Estacional, Contato Floresta Estacional/Floresta Ombrófila Densa e Ilhas de Mata (enclaves semideciduais) e Floresta de Galeria (Figura 4). De acordo com o manual técnico da vegetação (IBGE, 2012BRASIL. IBGE. Manual Técnico da Vegetação Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. 182 p. - (Manuais técnicos em geociências, ISSN 0103-9598).), na fisionomia de Savana Gramíneo-Lenhosa (Sg) prevalecem, quando natural, os gramados entremeados por plantas lenhosas raquíticas, que ocupam extensas áreas dominadas por hemicriptófitos e que, aos poucos, quando manejados através do fogo ou pastoreio, vão sendo substituídos por geófitos, que se distinguem por apresentar colmos subterrâneos, portanto, mais resistentes ao pisoteio do gado e ao fogo.

Figura 4
Mapa da vegetação do município de Boa Vista (RR) e entorno

O Lavrado no município compreende ainda uma diversidade de fisionomias florestais que ocorrem em áreas com solos mais férteis ou com maior disponibilidade de água. As Florestas de Galerias acompanham a maior parte de rios e igarapés e são marcadas pela presença da palmeira buriti (Mauritia flexuosa), formando veredas que se destacam na paisagem em ambientes abertos de savanas adjacentes.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROCESSO DE OCUPAÇÃO DAS SAVANAS EM RORAIMA

O processo de ocupação antrópica do vale do rio Branco, atual estado de Roraima, oriundo da colonização europeia, ocorreu na segunda metade do século XVIII. Os colonizadores portugueses conseguiram um efetivo domínio dessa região por meio da construção do Forte São Joaquim e da instalação de três fazendas estatais, destinadas à atividade pecuária. Nessa conjuntura, as áreas de savanas/campos tornam-se as primeiras a serem ocupadas, devido a sua posição geográfica e às características fisiográficas peculiares, distintas das áreas florestadas da Amazônia. A pecuária bovina nas savanas do vale do rio Branco apresentou um longo ciclo virtuoso de desenvolvimento, que se estendeu do final século XVIII até o final do século XIX, constituindo-se na principal atividade econômica. Entretanto, no início do século XX a pecuária entrou em declínio, pelas limitações impostas à comercialização advindas da crise de extração da borracha na Amazônia, a partir de 1920 (DINIZ, 1998DINIZ, A. M. A. A evolução da fronteira em Roraima o caso das Confianças I, II e III. In: ALVES, C. L. E. (org.). Formação do Espaço Amazônico e Relações Fronteiriças. Boa Vista: Ed. Universidade Federal de Roraima, 1998. p.150-179.).

Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), distintas estratégias foram estabelecidas para estimular o povoamento perene e o desenvolvimento da economia. Não obstante as mudanças estruturais, Roraima permaneceu esparsamente povoada e economicamente isolada até o início década de 1970. Expressivas mudanças no espaço roraimense ocorreram no âmbito da intervenção estatal na Amazônia, inseridas no contexto do projeto geopolítico de integração nacional e aproveitamento dos recursos naturais, a partir da década de 1970. Em 1975 foi instituído o POLORORAIMA, vinculado ao Programa de Polos da Amazônia - POLOAMAZÔNIA, que viabilizou a construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista-Venezuela) e parte da BR-210 - conhecida como Perimetral Norte, projetada para interligar o Amazonas a Roraima, Pará e Amapá. Ao final da década de 1970 e início da década de 1980, o Governo do Território iniciou também a fase dos Programas de Assentamento Dirigido - PAD (BARBOSA, 1993bBARBOSA, R. I. Ocupação humana em Roraima. II. Uma revisão do equívoco da recente política de desenvolvimento e crescimento desordenado. Bol. Mus. Par. Emílio Goeldi, v. 9, n. 2, p. 177-197, 1993b.). Com a implantação das rodovias, acentuou-se a migração em direção a Roraima, segundo Barbosa (1993b, p.184)BARBOSA, R. I. Ocupação humana em Roraima. II. Uma revisão do equívoco da recente política de desenvolvimento e crescimento desordenado. Bol. Mus. Par. Emílio Goeldi, v. 9, n. 2, p. 177-197, 1993b.. Após a primeira etapa dos grandes assentamentos, a intensificação da exploração das riquezas minerais, no final da década de 1980, bem como a transição do Território Federal de Roraima para estado membro da Federação (1988), são os elementos que contribuíram para atração de fluxos populacionais em direção a Roraima. Entretanto, a atividade mineradora era conduzida de maneira clandestina e os garimpeiros atuavam em áreas institucionais de preservação ambiental e reservas indígenas.

O início da década de 1990 foi marcado pelo fechamento dos garimpos irregulares e pela demarcação das terras indígenas, o que levou ao arrefecimento das correntes migratórias para o estado, embora ainda tenham existido programas estaduais de recrutamento de migrantes nessa década. Mediante esse contexto, o governo do estado tem suas estratégias pautadas na agropecuária, como um dos vetores para alcançar o desenvolvimento econômico e social, desde então. Por conseguinte, as áreas de savanas tornam-se estratégicas, à medida que as políticas e planos do governo do estado voltam-se à incorporação dessas áreas ao processo produtivo. De forma semelhante às áreas do Cerrado do Brasil Central, um conjunto de fatores que envolvem aspectos políticos, econômicos associado aos condicionantes naturais concorrem para a intensificação da ocupação agrícola das savanas em Roraima. Dentre os condicionantes destaca-se o fato de que as paisagens de savanas distribuem-se em áreas de relevo plano, portanto, favoráveis à mecanização com a existência de um regime pluviométrico regular, grande oferta de água para irrigação e maior luminosidade devido à sua posição geográfica. Outro fator preponderante é a criação de programas e incentivos fiscais para empreendimentos agropecuários, por parte do governo do estado, especialmente com incentivo à produção de grãos (soja) em áreas de savanas. Nesse contexto, a pecuária foi inicialmente o principal fator de mudanças visíveis na paisagem da área de estudo, contudo o uso da terra para a agricultura é um processo recente dentro do contexto roraimense.

USO DA TERRA EM BOA VISTA NO ANO DE 2000

Em 2000, o município de Boa Vista contava com 200.568 habitantes (IBGE, 2000), o que representava 65,4% da população do estado de Roraima. Destes, 197.098 eram residentes em domicílios urbanos do município e 3.470 na área rural. Não obstante o processo de urbanização e o inerente desenvolvimento do setor de serviços e comércio, decorrentes do alojamento do setor público­administrativo, a geração de emprego é realizada, sobretudo, pelo setor público. Desse modo, a estrutura produtiva do município está assentada no setor terciário. Entretanto, o setor agropecuário de município de Boa Vista apresentou um importante componente da economia local ao longo dessa década, frente ao fechamento dos garimpos ilegais no estado, responsável pelo dinamismo econômico nas últimas duas décadas.

Ao analisar o padrão de distribuição espaço-temporal das classes de uso e cobertura da terra no município e a planimetria ambiental (Figura 5 e Tabela2), observa-se que as atividades antrópicas em 2000 eram incipientes, visto que 4.746 km2 (equivalente a 83,6% da área) ainda apresentavam cobertura vegetal remanescente, de formações campestres e savânicas. As áreas de florestas, especialmente as matas ciliares, apresentavam-se pouco fragmentadas, ocupando 646,2 km2, ou 11,38% da área total do município.

Figura 5
Mapa temático do uso e cobertura da terra do município de Boa Vista (RR) - 2000

Tabela 2
Planimetria do mapa de Uso e cobertura da terra do município Boa Vista (RR) em 2000

Entretanto, desde o século XVIII, vastas áreas de Lavrado do município foram sendo convertidas em pastagens naturais para a criação extensiva de gado bovino. De acordo com Costa (2009)COSTA, W. M. da. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 1997. 83 p., as pastagens nativas do Lavrado representavam o principal suporte alimentar do rebanho bovino. O uso do fogo, para renovação da biomassa, também esteve e ainda está arraigado na lógica cultural e econômica entre os pecuaristas das áreas de savana. Nesse sentido, é provável que as atuais paisagens das savanas tenham alguma contribuição antrópica, a partir do uso da terra, especialmente pela ação do fogo. As queimadas, segundo Walter, Carvalho e Ribeiro (2008, p. 35)WALTER, B.M.T.; CARVALHO, A.M.; RIBEIRO, J.F. As principais fitofisionomias do bioma Cerrado. In: SANO, S, M.; ALMEIDA, S.P.; RIBEIRO, J.F. (Ed.). Cerrado. Brasília-DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2008. p. 19-45., influenciam a distribuição e a composição florística das savanas, afetando as estruturas dos trechos da vegetação. O fogo tem sido, ao longo dos anos, o único elemento de manejo e o grande selecionador das espécies de gramíneas nativas nesse ecossistema, sendo utilizado até três vezes por ano, e constituindo-se em importante fator ecológico da região, mas com reflexos altamente significativos e negativos no passivo ambiental decorrente da atividade pecuária (CORADIN, 1979CORADIN, L. Aproveitamento dos campos nativos do território Federal de Roraima para a pecuária. Anais... Congresso Nacional de Botânica. Plantas Forrageiras. Campo Grande, 1979. p. 25-48.).

Ao que parece, no ano de 2000 as atividades agrícolas eram pouco expressivas no município, visto que as áreas destinadas à agricultura correspondiam a pouco mais de 50 km2, aproximadamente 0,89% da área total de Boa Vista. As áreas agrícolas destinavam-se ao cultivo de arroz irrigado e, provavelmente, soja e milho. Entretanto, não há estatísticas disponibilizadas pelo IBGE em relação à área plantada e produção de soja para o município no ano de 2000.

O cultivo do arroz em Roraima teve início na década de 1980, e a atividade foi viabilizada por meio de política pública do Governo Federal, com o Programa Nacional de Várzeas Irrigáveis - PROVÁRZEAS, que apresentava como diretriz o aproveitamento das várzeas existentes no então território, visando à incorporação de novas áreas ao processo produtivo. Inicialmente foi produzido o arroz de sequeiro, contudo, atualmente predomina o cultivo de modo irrigado, em nível comercial, e o plantio é realizado duas vezes ao ano no estado. Cordeiro (2005, p. 170)CORDEIRO, A. C. C. O cultivo do arroz irrigado em Roraima. In: BARBOSA, R. I. et al. Savanas de Roraima. Boa Vista: Femact-RR, 2005. ressalta que as áreas de várzeas, principalmente as localizadas em áreas de savanas, apresentam topografia plana e facilidades para a mecanização e irrigação. A produção de arroz em Roraima é favorecida por aspectos climáticos, especialmente a insolação, a baixa oscilação térmica e a disponibilidade hídrica, que contribuem significativamente para a quantidade e para a qualidade do arroz produzido na região (CORDEIRO et al., 2010CORDEIRO, A. C. C.; SUHRE, E; MEDEIROS, R. D.; VILARINHO, A. A. Sistemas de cultivo e manejo de água na produção de diferentes genótipos de arroz em várzea, no estado de Roraima. Pesq. Agropec. Trop., Goiânia, v. 40, n. 3, p. 362-369, 2010.). A produção média em 2008 oscilou entre 5.000 e 7.000 kg/ha (MOURÃO, 2008MOURÃO G. M. N. Roraima no Contexto Agrário. In: SILVA, P. R. de F.; OLIVEIRA. R. S. (orgs.) Roraima 20 anos. Boa vista, UFRRR, 2008., p. 106). Segundo dados da Pesquisa Agropecuária Municipal - IBGE (2000), as lavouras de arroz no município ocupavam, em 2000, uma área de 1.614 hectares, distribuídos principalmente às margens do rio Branco.

De acordo com dados do CPRM (2002)CPRM. Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais - Serviço Geológico do Brasil 2002. Zoneamento Ecológico-Econômico da Região Central do Estado de Roraima. Rio de Janeiro: CPRM, 2002. 1 CD-ROM., o sistema aquífero Boa Vista é um aquífero livre a semiconfinado e tem uma área de ocorrência de aproximadamente 14.000 km2 no estado, abrangendo a maior parte do município de Boa Vista. Os recursos hídricos do município são de relevância estratégica para o desenvolvimento socioeconômico, pois eles desempenham importante papel no abastecimento público e privado, suprindo as mais variadas necessidades de água para o abastecimento urbano, bem como indústrias, irrigação agrícola e atividades de lazer.

Por fim, a classe com menor extensão de ocorrência corresponde à mancha urbana de Boa Vista, que em 2000 ocupava 83,9 km2, ou 1,47% da área total do município. Contudo, a dimensão em área não guarda relação com a importância geográfica, dada a imensa concentração populacional da cidade em relação ao total do estado, além da centralização de atividades econômicas, educacionais, de saúde e da renda. Analisando Boa Vista no contexto hierárquico urbano estadual, Silva (2007)SILVA, P. R. de F. Dinâmica territorial urbana de Roraima. 2007. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 329 fls. destaca que para se ter uma ideia da relevância dessa cidade para a região, Boa Vista se concretiza como marco urbano na fronteira tríplice, sendo um centro de concentração para Roraima e para o extremo sul da Venezuela e da Guiana (SILVA, 2007SILVA, P. R. de F. Dinâmica territorial urbana de Roraima. 2007. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 329 fls., p. 205).

A INTENSIFICAÇÃO DO USO DA TERRA EM 2014: O AVANÇO DA AGRICULTURA

O mapa de uso e cobertura da terra de 2014 (Figura 6) e sua respectiva planimetria ambiental (Tabela 3) permitiram observar que houve grande expansão da atividade agrícola no município, bem como aumento expressivo do sítio urbano de Boa Vista, em relação a 2000. As principais mudanças no uso e cobertura da terra ocorreram em função da expansão de áreas destinadas à agricultura, representando um acréscimo de quase 4 vezes a área ocupada em relação ao ano de 2000. Em termos absolutos, a extensão das lavouras e florestas plantadas passou de um patamar de 50,9 km2 para 182,7 km2 (acréscimo de 131,8 km2). Em relação ao arroz, a área destinada ao plantio em 2013 correspondeu a 1.200 hectares (IBGE, 2013), apresentando uma redução em relação a 2000, da ordem de 25%. Essa diminuição da área plantada ocorreu tanto no estado quanto no município. Isto pode estar diretamente relacionado com a homologação, em caráter contínuo, da Terra Indígena denominada Raposa Serra do Sol, visto que, de acordo com IBGE (2009)BRASIL. IBGE. 2009. Produção Agrícola Municipal. Culturas Temporárias. Disponível em: <http//www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: março 2014.
http//www.sidra.ibge.gov.br...
, para o ordenamento territorial, principalmente na região das savanas, em que se verificava o uso conjunto da terra entre fazendeiros e comunidades indígenas, houve a necessidade de separar as terras indígenas, de uso e propriedades comunais, das terras dos fazendeiros, de uso e propriedade privados.

Figura 6
Mapa temático do uso e cobertura da terra do município de Boa Vista (RR) – 2014

Tabela 3
Planimetria do mapa de Uso e Cobertura da Terra do município Boa Vista (RR) em 2014

Entre 2009 e 2012 houve uma redução significativa na área semeada, uma vez que as lavouras deixaram de ser implantadas em áreas com aptidão para o cultivo de arroz irrigado naquela Terra Indígena. Segundo Cordeiro et al. (2010)CORDEIRO, A. C. C.; SUHRE, E; MEDEIROS, R. D.; VILARINHO, A. A. Sistemas de cultivo e manejo de água na produção de diferentes genótipos de arroz em várzea, no estado de Roraima. Pesq. Agropec. Trop., Goiânia, v. 40, n. 3, p. 362-369, 2010., o sistema de produção do arroz irrigado no estado era praticado, até 2010, por cerca de 25 produtores. Após a retirada destes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, apenas sete (7) produtores continuam na atividade no estado. Todavia, a cultura do arroz irrigado passou a ser praticada em nível comercial, com inserção de elementos tecnológicos no estado e em Boa Vista, como forma de elevar a produtividade.

Dentre os fatores que provavelmente concorreram para a redução da cobertura vegetal natural merece destaque a implantação de lavouras de soja, com início em meados da década de 2000 no município.

Quanto à produção de soja, Gianluppi e Smiderle (2005)GIANLUPPI, D. ; SMIDERLE, O. J. O cultivo da soja nos Cerrados de Roraima. In: Barbosa, R. I.; XAUD, H.A.M.; COSTA E SOUZA, J.M. (Org.) Savanas de Roraima. Boa Vista: FEMACT, 2005. p.177-182. afirmam que a área destinada ao plantio no município, em 2000, correspondia a apenas 250 hectares. Os autores argumentam, ainda, que no início da década de 2000, a falta de titulação das terras se constituía no maior empecilho à ampliação da área plantada de soja, pois inviabilizava a obtenção de crédito junto à rede bancária (GIANLUPPI; SMIDERLE 2005GIANLUPPI, D. ; SMIDERLE, O. J. O cultivo da soja nos Cerrados de Roraima. In: Barbosa, R. I.; XAUD, H.A.M.; COSTA E SOUZA, J.M. (Org.) Savanas de Roraima. Boa Vista: FEMACT, 2005. p.177-182., p. 180). Segundo dados do IBGE (2013), para a safra agrícola 2012/2013 havia uma área destinada ao plantio de soja equivalente a 1.100 hectares. Percebe-se, assim, um aumento muito expressivo do cultivo de soja no município em relação ao ano de 2000.

Dentre os elementos considerados para explicar o incremento na área de plantação de soja destacam-se o baixo preço da terra, a topografia, o clima, a disponibilidade de recursos hídricos, bem como a logística, especialmente a rodoviária, além da proximidade da capital.

Tais fatores são facilmente verificados no município. Entretanto, cabe observar que no período analisado persistem intenções por parte do governo do estado em atrair produtores de soja de outras regiões brasileiras para as áreas de savanas, dada a sua localização geográfica, características fisiográficas e a oferta de terras a preço baixo.

Arantes (2009, p. 212)ARANTES, E.C. Regularização Fundiária e direito de propriedade na Amazônia Legal. Porto Alegre. Dissertação (Mestrado Profissional Interinstitucional em Economia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS/PPGE, 2009. 316 f., analisando a valorização de mercado das terras em Roraima, constatou que em 2008 a terra mais cara no estado, que englobava áreas para agricultura destinadas ao cultivo de arroz em várzeas, na região de Boa Vista, alcançava o valor médio de R$ 1.600/ha; enquanto a cotação média do hectare no estado era de R$ 668,00.

Outro fator que certamente contribuiu e contribuirá para expansão das áreas agrícolas no município foi a transferência das terras do Governo Federal, a partir de 2009, para o governo do estado de Roraima, que passou a ter o direito sobre o território e maior autonomia na regularização junto aos órgãos ambientais e fundiários. Ademais, o manejo e a tecnologia dos sistemas produtivos têm também efeito marcante, uma vez que as áreas cultivadas representadas por culturas em nível comercial, especialmente a soja, caracterizam-se pela incorporação de inovações tecnológicas (Figura 7) tanto no preparo, cultivo e colheita, com o uso de capital e insumos adequados, visando principalmente ao mercado exterior.

Figura 7
Áreas de savana sendo preparadas para o plantio de soja, com destaque para a presença do pivô central de irrigação.

Mais recentemente, extensas areas de Lavrado estão sendo destinadas à silvicultura no município. As áreas alteradas com florestamento compreendem feições de reposição e/ou manejo florestal, com espécies diversas, de porte arbóreo, destacando-se aquelas ocupadas com Acácia mangium Willd (Figura 8). Estas atividades estão concentradas no município de Boa Vista, ao longo das margens da rodovia BR-174, sentido Boa Vista/Pacaraima; BR-401, de Boa Vista para Bonfim; e BR-432, de Boa Vista para Cantá (IBGE, 2009BRASIL. IBGE. 2009. Produção Agrícola Municipal. Culturas Temporárias. Disponível em: <http//www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: março 2014.
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).

Figura 8
Áreas de plantio de Acácia mangium em Boa Vista (RR)

De acordo com dados do CPRM (2002)CPRM. Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais - Serviço Geológico do Brasil 2002. Zoneamento Ecológico-Econômico da Região Central do Estado de Roraima. Rio de Janeiro: CPRM, 2002. 1 CD-ROM., em função da expectativa de instalação da fábrica de celulose em Boa Vista, as áreas de plantio foram expandidas e concentram-se num raio de influência marcado pelo acesso fácil e pelo menor custo no transporte de matéria-prima, beneficiando-se ainda das condições de relevo e os solos da região do Lavrado.

Vale Jr. et al. (2010)VALE JUNIOR, J. F.; SCHAEFER, C.E.R.G. Solos sob savanas de Roraima. Boa Vista: Ioris, 2010., ao avaliarem os impactos no solo decorrentes da conversão das savanas em plantios de Acácia mangium, com base em dados de erodibilidade e susceptibilidade à erosão, sustentam que os solos sob plantio de Acácia encontram-se, em sua grande maioria, susceptíveis à erosão, com a ocorrência expressiva de erosão laminar.

Diante da perspectiva de mudança na forma de uso e cobertura da terra no município, foi realizada monitoria ambiental para avaliar a evolução desse processo no período em análise. A monitoria permite o acompanhamento da evolução de características e fenômenos ambientais através da comparação de mapeamentos sucessivos no tempo. Assim, foi elaborada tal avaliação para a classe agricultura, cotejando os anos 2000 e 2014, tendo em vista que as mudanças causadas pela conversão das savanas em áreas agrícolas, aqui consideradas como agentes modificadores da paisagem e dos diversos elementos que a compõem, tendem a comprometer a vegetação nativa, os solos e os sistemas hídricos, dentre outros recursos naturais.

A partir da sobreposição espacial, da classe agricultura com o mapa temático de uso e cobertura da terra do município, elaborado para o período de 2014, foi possível identificar áreas que se mantiveram com agricultura, o incremento de áreas convertidas para a agricultura, e as novas categorias que ocupam as paisagens transformadas.

O resultado da monitoria, ilustrado na Figura 9, revela onde e como se deu a expansão da atividade agrícola no município. A área ocupada por essa classe em 2000, que correspondia a 0,89% da área total do município, aumentou para 3,29%. Esses resultados demonstram também o avanço da agricultura sobre os remanescentes de formações campestres e savânicas. Indicam, ainda, que a distribuição espacial das áreas agrícolas ocorreu de forma heterogênea. Contudo, observa-se que ocorreu concentração nas porções central e sul do município, favorecidos provavelmente pela expansão da malha rodoviária.

Figura 9
Monitoria ambiental para a agricultura

Em relação à pecuária, a criação de gado, foi a principal atividade econômica que consolidou a ocupação do município. Contudo, o rebanho bovino do município apresentou significativo decréscimo durante o período analisado. Em 2000, o rebanho bovino perfazia um total de 42.000 cabeças; já em 2013, o total de bovinos no município perfazia 27.778 cabeças (IBGE, 2013).

Este decréscimo deveu-se principalmente ao deslocamento geográfico da pecuária, dos tradicionais campos e savanas para as áreas de florestas do sul do estado IBGE (2009)BRASIL. IBGE. 2009. Produção Agrícola Municipal. Culturas Temporárias. Disponível em: <http//www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: março 2014.
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, uma vez que, atualmente, nas áreas de savanas está se consolidando o setor agrícola, com a expansão da produção de grãos, especialmente o cultivo de soja. O deslocamento da pecuária em direção às áreas previamente desmatadas no sul do estado é motivado, ainda, pela demarcação das terras indígenas na região das savanas. Não obstante o deslocamento, Mourão (2008)MOURÃO G. M. N. Roraima no Contexto Agrário. In: SILVA, P. R. de F.; OLIVEIRA. R. S. (orgs.) Roraima 20 anos. Boa vista, UFRRR, 2008. afirma que nas áreas de savanas coexistem os velhos sistemas de exploração pecuária e as modernas instalações agropecuárias com certo nível de aplicação tecnológica, que tiveram sua origem nos incentivos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) concedidos a Roraima, no início da década de 90.

Portanto, os dados reforçam a ideia da mudança na dinâmica de uso e cobertura da terra no município de Boa vista, de um modelo que era baseado exclusivamente na pecuária extensiva para um uso diversificado, incluindo policultura e pecuária modernizada (IBGE, 2009BRASIL. IBGE. 2009. Produção Agrícola Municipal. Culturas Temporárias. Disponível em: <http//www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: março 2014.
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). Em decorrência dessas mudanças, a cobertura vegetal remanescente (formações campestres e savânicas), por sua vez, apresentou redução de área entre 2000 e 2014, passando de 4.746 km2 para 4.643 km2.

As formações florestais, incluindo as fitofisionomias ombrófilas e estacionais, também apresentaram, no período analisado, redução de área em torno de 2,21%, especialmente as matas ciliares. Alguns cursos d'água chegam a não apresentar essa vegetação ou a apresentam de forma descontínua, indicando a pressão agrícola sobre as áreas de vegetação nativa, o que pode representar um risco aos recursos hídricos.

Por fim, o sítio urbano de Boa Vista também apresentou acréscimo de 22% em sua área no período analisado, passando de 83,9 km2 para 102,3 km2, num processo contínuo de consolidação da urbanização. Esse fenômeno refletiu, dessa forma, o incremento populacional registrado no estado de Roraima, caracterizado pelo adensamento da população no município de Boa Vista, concentrada principalmente na área urbana. De acordo com o censo demográfico IBGE (2010), Roraima constava com uma população de 450.479 habitantes, dos quais 284.313 estavam apenas em Boa Vista, ou seja, 63,11% do total. No município a população já era eminentemente urbana, pois apenas 2,3% dos habitantes estavam em domicílios rurais. Nessa conjuntura, Silva (2007)SILVA, P. R. de F. Dinâmica territorial urbana de Roraima. 2007. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 329 fls., ao analisar a concentração populacional em Boa Vista, destaca o processo migratório como um forte impulsionador desse processo, dinamizado pela vinda de migrantes atraídos pelos concursos públicos e em função da agropecuária e dos serviços daí decorrentes (SILVA, 2007SILVA, P. R. de F. Dinâmica territorial urbana de Roraima. 2007. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 329 fls., p. 274).

Cabe ressaltar que a expansão de forma desordenada tem provocado alteração na paisagem urbana de Boa Vista, à medida que a demanda crescente por habitação impulsiona a população, especialmente das classes sociais menos favorecidas, a ocupar Áreas de Preservação Permanente (APPs), principalmente às margens dos cursos d'água urbanos e os entornos de lagos, locais sem infraestrutura de coleta de esgoto e abastecimento de água tratada, trazendo sérios riscos de degradação dos sistemas hídricos e implicando em problemas de saúde pública.

O Sistema Aquífero Boa Vista (SABV) é responsável atualmente por 70% do abastecimento urbano, por meio de uma rede composta por 102 poços tubulares, sob o controle da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima - CAER (SEPLAN, 2008SEPLAN - Secretaria de Estado de Planejamento e Desenvolvimento de Roraima. Roraima. Boa Vista: SEPLAN-RR, 2008.). Wankler, Evangelista e Sander (2012)WANKLER, F.L.; EVANGELISTA, R.A.O; SANDER, C. Sistema aquífero Boa Vista: "estado de arte" do conhecimento e perspectivas. ACTA Geográfica, Boa Vista, v.6, n.12, p. 21-39, maio/ago. 2012. sustentam que a água subterrânea ainda é a alternativa técnica e econômica mais viável para o abastecimento dos bairros da periferia da cidade de Boa Vista. Na interpretação de Reis Neto et al. (2006), as mudanças no uso da terra, por meio do aterramento do sistema lacustre de áreas abaciadas, para ceder espaços a construções residenciais, assim como o aumento das superfícies impermeáveis, tem ocasionado sérios desequilíbrios ecológicos e contribuído para um aumento periódico de inundações em Boa Vista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa bibliográfica-documental e os dados e técnicas utilizadas mostraram-se eficientes para a análise da dinâmica espaço-temporal do uso e cobertura da terra do município de Boa Vista (RR). A partir das interpretações das imagens de satélite, apoiadas na confecção de mapas temáticos e quantificação em ambiente SIG, evidenciou-se que está ocorrendo intensificação do uso e modificação da cobertura da terra no município de Boa Vista, ligadas à produção de grãos, especialmente com a expansão do cultivo de soja, que tem contribuído para o deslocamento da pecuária, dos tradicionais campos e savanas para as áreas de florestas do sul do estado, contribuindo assim para a alteração das paisagens de savanas do município.

O processo histórico de ocupação e intensificação ocorreu a partir das ações do Estado, seguidas de medidas estratégicas do governo estadual, ao pautar suas ações no fortalecimento da agropecuária. Neste cenário, as áreas do Lavrado tornaram-se estratégicas ao processo produtivo. Constata-se, assim que o modelo de desenvolvimento que está se consolidando é marcado pelo uso intensificado das savanas e está se materializando no espaço por meio do monocultivo, principalmente de soja, associado à legitimação da concentração fundiária e intensificação da mecanização. E isso tem resultado em impactos ambientais negativos, caraterísticas essas semelhantes ao processo de ocupação ocorrido no Cerrado do Brasil Central, principalmente a partir da década de 1970.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2018
  • Aceito
    12 Nov 2018
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