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Médicos e hiperutilizadores de baixo risco em emergências: implicações éticas

Resumo

É crescente a demanda de usuários com problemas de baixa complexidade clínica que procuram serviços hospitalares de urgência e emergência frequentemente. Essa hiperutilização dos serviços impõe dilemas éticos aos médicos e demais profissionais. O presente estudo analisa as implicações éticas do encontro entre médicos e usuários hiperutilizadores em uma unidade universitária. Trata-se de pesquisa qualitativa desenvolvida por meio de entrevistas semiestruturadas com médicos e pacientes hiperutilizadores de baixo risco clínico e observação de campo etnográfica. Observou-se que os profissionais tendem a estigmatizar a demanda desses usuários. Já os usuários demonstram satisfação com os médicos, mas descontentamento com a atenção básica e especializada ambulatorial. Conclui-se que a hiperutilização gera conflitos ético-profissionais decorrentes sobretudo da estigmatização dos pacientes pelos médicos. Apesar disso, os hiperutilizadores se sentem satisfeitos com o atendimento, o que os motiva a continuar frequentando os serviços com frequência.

Ética médica; Relações médico-paciente; Serviço hospitalar de emergência; Triagem

Abstract

There is an increasing demand for Emergency Department (ED) services from frequent users with problems of low clinical complexity. The overuse of ED poses several ethical-professional dilemmas for physicians and other medical staff. The study analyzes the ethical implications that emerge from the relationship between physicians and low-risk frequent users in a university hospital. This is a qualitative research developed through semi-structured interviews with physicians and low-risk frequent users and ethnographic observation in the field. It was observed that medical staff tend to stigmatize the demand of frequent patients. They, on the other hand, are satisfied with the physicians but discontent with primary health care and specialized outpatient care. It is concluded that the overuse generates ethicalprofessional conflicts, especially due to the stigmatization of these users by physicians. Nevertheless, frequent users are satisfied with the service, which motivates them to continue using it often.

Medical ethics; Physician-patient relations; Hospital emergency services; Triage

Resumen

Existe una demanda creciente de usuarios con problemas de baja complejidad clínica que frecuentemente buscan servicios hospitalarios de urgencia y emergencia. El uso excesivo de SUH impone varios dilemas éticos a los servicios, médicos y otros profesionales. El estudio examina las implicaciones éticas que surgen del encuentro entre médicos y pacientes hiperfrecuentadores de bajo riesgo clínico en un SUH universitario. Es una investigación cualitativa desarrollada a través de entrevistas semiestructuradas con médicos y pacientes hiperfrecuentadores de bajo riesgo clínico y observación de campo del tipo etnográfico. Se observó que los médicos tienden a estigmatizar la demanda del hiperfrecuentador. Los pacientes, por otro lado, muestran satisfacción con los médicos y refuerzan el descontento con la atención básica de salud y los servicios ambulatorios especializados. Se concluye que el uso excesivo del SUH genera conflictos en el ejercicio ético-profesional, principalmente como resultado de la estigmatización de estos pacientes por parte de los médicos. A pesar de esto, los hiperfrecuentadores están satisfechos con el servicio, lo que los motiva a convertirse en grandes usuarios.

Ética médica; Relaciones médico-paciente; Servicio de urgencia en hospital; Triaje

Os serviços hospitalares de urgência e emergência (SUE), conhecidos como prontos-socorros (PS), têm por objetivo atender indivíduos com quadros clínicos agudos que procuram atendimento de forma referenciada ou espontânea. Para regular o acesso e qualificar a gestão clínica, a Política Nacional de Atenção às Urgências preconiza a classificação de risco e a intervenção necessária e adequada aos diferentes agravos11. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no SUS. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 8 jul 2011 [acesso 28 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/2UjN4Lv
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. No entanto, observa-se crescente demanda de usuários que frequentam os SUE inadequadamente, apresentando queixas e problemas de baixa complexidade, e que poderiam ser atendidos em outros pontos da rede de saúde22. Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS [Internet]. 2019 [acesso 28 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3B5hv8S
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.

Desse modo, os SUE se tornaram a principal porta de entrada no sistema de saúde, seja pela dificuldade de acesso à atenção primária, seja conveniência da disponibilidade médica 24 horas33. Gnumbach K, Keane D, Bindman A. Primary care and public emergency department overcrowding. Am J Public Health [Internet]. 1993 [acesso 15 jan 2019];83(3):372-8. DOI: 10.2105/ajph.83.3.372 . O resultado é o acesso inapropriado, que interfere diretamente no uso de recursos e na qualidade dos serviços prestados, contribuindo inclusive para o fenômeno da superlotação44. Massachusetts. Division of Health Care Finance and Policy. Non-emergent and preventable ed visits, FY05 [Internet]. Boston: Division of Health Care Finance and Policy; 2007 [acesso 15 jan 2019]. (Analysis in Brief; 11). Disponível: https://bit.ly/3BanYiM
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, que impõe dilemas éticos aos médicos e demais profissionais.

Uma pequena parcela de usuários de baixo risco clínico são classificados como “hiperutilizadores” por acessarem frequentemente os serviços – em média quatro ou mais visitas no prazo de até 12 meses, conforme a literatura55. Soril LJJ, Leggett LE, Lorenzetti DL, Noseworthy TW, Clement FM. Characteristics of frequent users of the emergency department in the general adult population: a systematic review of international healthcare systems. Health Policy [Internet]. 2016 [acesso 15 jan 2019];120(5):452-61. DOI: 10.1016/j.healthpol.2016.02.006
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. Geralmente, esses usuários apresentam estado de saúde crônico e transtornos mentais66. LaCalle E, Rabin E. Frequent users of emergency departments: the myths, the data, and the policy implications. Ann Emerg Med [Internet]. 2010 [acesso 15 jan 2019];56(1):42-8. DOI: 10.1016/j.annemergmed.2010.01.032
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7. Kne T, Young R, Spillane L. Frequent ED users: patterns of use over time. Am J Emerg Med [Internet]. 1998 [acesso 16 jan 2019];16(7):648-52. DOI: 10.1016/s0735-6757(98)90166-8

8. Sun BC, Burstin HR, Brennan TA. Predictors and outcomes of frequent emergency department users. Acad Emerg Med [Internet]. 2003 [acesso 16 jan 2019];10(4):320-8. DOI: 10.1111/j.1553-2712.2003.tb01344.x
- 99. Duope MB, Palatnick W, Day S, Chateau D, Soodeen RA, Burchill C, Derksen S. Frequent users of emergency departments: developing standard definitions and defining prominent risk factors. Ann Emerg Med [Internet]. 2012 [acesso 16 jan 2019];60(1):24-32. DOI: 10.1016/j.annemergmed.2011.11.036 e, apesar de serem pouco representativos em relação ao total de pacientes dos SUE, demandam atendimentos que impactam fortemente os custos associados em longo prazo66. LaCalle E, Rabin E. Frequent users of emergency departments: the myths, the data, and the policy implications. Ann Emerg Med [Internet]. 2010 [acesso 15 jan 2019];56(1):42-8. DOI: 10.1016/j.annemergmed.2010.01.032
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, 1010. Kumar GS, Klein R. Effectiveness of case management strategies in reducing Emergency Department visits in frequent user patient populations: a systematic review. J Emerg Med [Internet]. 2013 [acesso 16 jan 2019];44(3):717-29. DOI: 10.1016/j.jemermed.2012.08.035

11. Althaus F, Paroz S, Hugli O, Ghali WA, Daeppen JB, Peytremann-Bridevaux I, Bodenmann P. Effectiveness of interventions targeting frequent users of emergency departments: a systematic review. Ann Emerg Med [Internet]. 2011 [acesso 20 jan 2019];58(1):41-52. DOI: 10.1016/j.annemergmed.2011.03.007

12. Huang JA, Tsai WC, Chen YC, Hu WH, Yang DY. Factors associated with frequent use of emergency services in a medical center. J Formos Med Assoc [Internet]. 2003 [acesso 20 jan 2019];102(4):222-8. Disponível: https://bit.ly/36LwPtb
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13. Hansagi H, Olsson M, Sjöberg S, Tomson Y, Goransson S. Frequent use of the hospital emergency department is indicative of high use of other health care services. Ann Emerg Med [Internet]. 2001 [acesso 20 jan 2019];37(6):561-7. DOI: 10.1067/mem.2001.111762

14. Cook LJ, Knight S, Junkins EP Jr, Mann NC, Dean JM, Olson LM. Repeat patients to the emergency department in a statewide database. Acad Emerg Med [Internet]. 2004 [acesso 20 jan 2019];11(3):256-63. DOI: 10.1111/j.1553-2712.2004.tb02206.x

15. Hunt KA, Weber EJ, Showstack JA, Colby DC, Callaham ML. Characteristics of frequent users of emergency departments. Ann Emerg Med [Internet]. 2006 [acesso 20 jan 2019];48(1):1-8. DOI: 10.1016/j.annemergmed.2005.12.030
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16. Cunha MBMRL. Hiperutilizadores das urgências: um estudo no Centro Hospitalar da Cova da Beira [dissertação] [Internet]. Covilhã: Universidade da Beira Interior; 2011 [acesso 20 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/2UKC0qK
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- 1717. Ovens HJ, Chan BTB. Heavy users of emergency services: a population-based review. CMAJ [Internet]. 2001 [acesso 20 jan 2019];165(8):1049-50. Disponível: https://bit.ly/3enKOda
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.

Nesse sentido, o fenômeno da hiperutilização também pode acarretar superlotação e maior tempo de espera, fatores que prejudicam a qualidade dos serviços1414. Cook LJ, Knight S, Junkins EP Jr, Mann NC, Dean JM, Olson LM. Repeat patients to the emergency department in a statewide database. Acad Emerg Med [Internet]. 2004 [acesso 20 jan 2019];11(3):256-63. DOI: 10.1111/j.1553-2712.2004.tb02206.x ao gerar conflitos ético-profissionais na relação médico-paciente. O médico e a equipe profissional podem, por exemplo, encarar tais pacientes como insistentes e consumidores de recursos, tempo e cuidados que seriam mais bem destinados a outras pessoas, em situação mais grave1818. Hackenschmidt A. Should access to emergency departments be limited for “frequent fliers”? J Emerg Nurs [Internet]. 2003 [acesso 20 jan 2019];29(5):486-8. DOI: 10.1016/S0099-1767(03)00284-8 , 1919. Dick T. Frequent flyer: loneliness is an emergency, when it’s yours. Emerg Med Serv [Internet]. 2004 [acesso 24 jan 2019];33(12):68. Disponível: https://bit.ly/3koD5PG
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.

Em alguns casos, o atendimento é preconceituoso, o que confronta o Código de Ética Médica (CEM), fundamentado no exercício da medicina sem discriminação de qualquer natureza e na responsabilidade de priorizar o bem-estar do paciente2020. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 24 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ihnCyo
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. Uma revisão sistemática2121. Malone RE. Almost “like family”: emergency nurses and frequent flyers. J Emerg Nurs [Internet]. 1996 [acesso 25 jan 2019];22(3):176-83. DOI: 10.1016/S0099-1767(96)80102-4 , por exemplo, identificou termos como “abusadores do sistema de saúde” e “pesadelos”, usados pelos profissionais para se referir a esses usuários. Verificou-se ainda descaso no atendimento, o que é grave, pois, ainda que na maioria das vezes não apresentem sinais e sintomas graves e urgentes, em algum momento os hiperutilizadores podem desenvolver um agravo sério e real que, se não avaliado e tratado corretamente, pode levar a complicações2222. Smith M. How’s your frequent flyer program? EMS Mag [Internet]. 2007 [acesso 25 jan 2019];36(7):25. Disponível: https://bit.ly/2U7Mjp3
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. Nesse caso, o médico responsável também estaria infringindo o CEM ao causar dano ao paciente, por ações inadequadas, indevidas ou omissão, que podem ser caracterizadas como imperícia, imprudência ou negligência2020. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 24 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ihnCyo
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O presente projeto de investigação tomou como referência três documentos: o CEM, aprovado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.217/20182020. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 24 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ihnCyo
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, que estabelece normas para o exercício da profissão médica; a Resolução CFM 2.077/20142323. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.077/14. Dispõe sobre a normatização do funcionamento dos Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência, bem como do dimensionamento da equipe médica e do sistema de trabalho [Internet]. Brasília: CFM; 2014 [acesso 25 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ekhu7e
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, que normatiza o funcionamento dos serviços hospitalares de urgência e emergência, bem como o dimensionamento da equipe médica e o sistema de trabalho; e a Portaria do Ministério da Saúde 1.600/2011, que reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências22. Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS [Internet]. 2019 [acesso 28 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3B5hv8S
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.

O estudo visou analisar as implicações éticas do encontro entre médicos e usuários hiperutilizadores de baixo risco clínico atendidos no pronto-socorro de um hospital universitário. Buscou-se ainda: identificar como médicos que atuam nos SUE reconhecem os preceitos éticos que devem pautar suas relações com os usuários hiperutilizadores de baixo risco clínico; analisar como esses médicos aplicam tais preceitos no cotidiano do trabalho; e analisar a percepção de usuários hiperutilizadores de baixo risco clínico em relação à dimensão ética dos cuidados prestados nos SUE.

Método

O artigo traz resultados de pesquisa qualitativa que utilizou técnicas mistas de coleta de dados (entrevistas semiestruturadas e observação de campo etnográfica), com foco na relação entre médicos e usuários hiperutilizadores de baixo risco clínico do pronto-socorro adulto do Hospital São Paulo (PS-HSP), da Universidade Federal de São Paulo.

Por meio do sistema de informações do HSP, levantaram-se dados de pacientes com quatro ou mais atendimentos no PS-HSP em 2018. A seguir, quatro pacientes hiperutilizadores foram selecionados para entrevista, de acordo com os seguintes critérios de inclusão: adultos, classificados pela enfermagem como “azul” ou “verde” (baixa complexidade), e que aceitaram participar da pesquisa e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Em relação aos profissionais, foram selecionados cinco médicos (residentes, assistenciais e docentes) diretamente responsáveis pelo atendimento dos hiperutilizadores entrevistados, e que aceitaram participar da pesquisa e preencher o TCLE. Optou-se por excluir internos do 5º e do 6º ano da graduação de medicina, por ainda estarem em fase de formação acadêmica.

Os usuários foram abordados dentro do PS-HSP, em locais de espera que não comprometessem o funcionamento dos serviços e respeitassem a integridade do paciente e o sigilo do diálogo. Os médicos foram entrevistados em momento oportuno, indicado por eles, dentro de sua rotina no PS-HSP.

Os roteiros semiestruturados de entrevista buscavam traçar um perfil geral dos participantes, entender a organização do PS-HSP e levantar as principais experiências, negativas ou positivas, na relação entre médicos e usuários hiperutilizadores de baixo risco clínico. Além das entrevistas, houve observação etnográfica dos atendimentos, sem qualquer interferência verbal ou física dos pesquisadores.

Na análise qualitativa dos dados, foram privilegiados os pontos de vista dos usuários e dos médicos, a fim de observar aspectos éticos do cuidado e das relações estabelecidas no cotidiano dos SUE. O material empírico foi explorado por meio de análise da transcrição das entrevistas e dos diários de campo, em busca de recorrências nas narrativas, mas sem descuidar da singularidade de cada paciente ou profissional. Para tanto, utilizou-se o conceito de planos de visibilidade para examinar e organizar o material de pesquisa em categorias.

O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Unifesp/HSP, em acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 466/20122424. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 15 jul 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3eoUjJ0
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e regulamentações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Os pesquisadores contaram com apoio de bolsa de pesquisa do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

Resultados

Médicos do PS-HSP

Conforme disposto no Quadro 1 , foram entrevistados cinco médicos, quatro mulheres e um homem, com idade entre 25 e 53 anos, todos graduados em universidades públicas. Os três profissionais mais jovens eram vinculados ao programa de residência médica do HSP/Unifesp.

Quadro 1
Caracterização dos médicos entrevistados do pronto-socorro do Hospital São Paulo

A partir das entrevistas e da observação, emergiram as seguintes categorias de visibilidade: “estigmatização e desvalorização da demanda do usuário”; “a culpa é do paciente”; “a culpa é da crise”; e “a culpa é da Unidade Básica de Saúde (UBS)”.

Estigmatização e desvalorização da demanda do usuário

Há sentimentos compartilhados pela maioria dos médicos entrevistados que variam desde a sensação de raiva até a dó, e que se manifestam tanto em relação a pacientes hiperutilizadores quanto a usuários de baixo risco clínico que não são hiperutilizadores. A investigação indica que o maior incômodo dos médicos entrevistados se refere a queixas simples, de pouca ou nenhuma gravidade e complexidade, que ocupam o tempo que poderia ser dedicado a pacientes graves e emergências:

“Nunca vi colega meu deixar de examinar ou então tratar mal algum hiperutilizador, mas o que eu sei é que existe uma irritação por parte de alguns médicos com o tempo perdido que se dedica a esses pacientes, enquanto há outros mais graves. Não acho que isso chegue ao atendimento, é algo mais interno” (M2).

“Muitos médicos não gostam ou não querem atender esses pacientes. Num plantão muito cheio, a gente sente um pouco de raiva dos pacientes” (M4).

“Como ele pode vir de madrugada com problemas tão simples? Eu não procuro um PS se estou apenas com dor de barriga ou um mal-estar” (M3).

Um dos médicos relatou que, nos últimos anos, com a instalação do sistema de prontuário eletrônico, a percepção sobre os pacientes mudou e, consequentemente, também a postura dos profissionais. Antes, a presença de hiperutilizadores não costumava ser percebida, tendo em vista a rotatividade dos residentes nos atendimentos. No entanto, com o prontuário eletrônico, antes de iniciar a consulta o médico consegue identificar a frequência do paciente ao PS-HSP e suas queixas mais comuns:

“Por sabermos quem é hiperutilizador através do computador, pode ser que tratemos com menos atenção esse paciente, o que é ruim, pois, se um dia houver uma queixa mais séria, pode acontecer de passar despercebido” (M1).

“É frequente ver esses pacientes mais de uma vez ao mês, então geralmente você já examina com uma ideia do que vai encontrar” (M2).

A identificação do paciente como hiperutilizador de baixo risco afeta também o tempo destinado ao atendimento, que na maioria das vezes acaba sendo mais rápido:

“Dependendo do paciente, algumas consultas duram até um minuto. Se tem sinal de alarme é uma coisa, mas, se não tem, a gente nem perde muito tempo (...). Não posso gastar tempo com um [paciente] que não tem nada complexo. Eu penso em queixas que me fazem investir no paciente. Se não for urgente, a gente já encaminha para UBS” (M3).

“Como eles sempre vêm com queixas parecidas ou pouco relevantes, a consulta também tende a ser mais rápida” (M4).

Dispositivos de gestão clínica, como a classificação de risco, voltados a priorizar o fluxo e otimizar o tempo de atendimento, parecem não interferir na forma como alguns médicos abordam os usuários, inclusive os de baixo risco e hiperutilizadores:

“Há pouca diferença entre os atendimentos de pacientes de baixo risco clínico daqueles com alto risco, incluindo hiperutilizadores. A triagem serve da porta para fora, para se estimar o tempo de espera do paciente. Aqui dentro, tento olhá-los sem diferença, todos são pacientes” (M1).

Durante a pesquisa de campo, não foi observado uso de apelidos ou adjetivos que caracterizam ou depreciam a imagem dos usuários hiperutilizadores.

A culpa é do paciente

Os médicos não têm uma percepção clara sobre as dificuldades dos pacientes em entender o funcionamento do sistema de saúde. Há consenso entre os profissionais entrevistados de que os pacientes não sabem identificar os níveis de atenção à saúde, o que aumenta a demanda pelo pronto-socorro. Todavia, todos afirmaram ter tomado conhecimento desse assunto somente após iniciarem a graduação de medicina. Um dos entrevistados argumenta que o papel de orientar os pacientes deveria ficar a cargo das UBS:

“Eu acho que é da UBS a responsabilidade de explicar à população os níveis de atendimento para evitar essa sobrecarga dos prontos-socorros. A UBS é quem tem grande proximidade e vínculo com os pacientes” (M5).

Alguns médicos, além de reconhecer que os pacientes não compreendem adequadamente os papéis de cada nível de atenção à saúde, consideram que parte dos hiperutilizadores de baixo risco são “malandros”, pois tentam evitar os fluxos estabelecidos de acesso, procurando o PS com a intenção de conseguir exames ou uma vaga no nível secundário de atenção à saúde:

“Quando a gente percebe que o paciente está realmente esperando há muito tempo por uma consulta, a gente encaminha ao ambulatório da Unifesp, mesmo não sendo o caminho mais correto do ponto de vista estrutural” (M2).

“Tem muito paciente que vem no intuito de pedir exame, a gente fala que não é aqui que vai conseguir. Outros porque querem encaminhamento para ambulatório, mas a gente não consegue mais. Raramente abrimos exceções” (M3).

Um dos motivos apontados para a procura inadequada do PS é a necessidade de suprir carências e de conversar dos hiperutilizadores. Uma parte significativa desses usuários é idosa e parece não encontrar espaço de escuta e acolhimento na sociedade ou mesmo nas UBS:

“Muitas vezes os pacientes vêm com alta frequência devido a uma necessidade de atenção, de conversar. A gente senta e escuta mesmo. Faz parte da profissão médica ouvir e ajudar como der. Há pacientes que conhecemos pelo nome. Nunca deixamos de atender ou mandamos embora sem examinar” (M2).

“Há um senhor que frequenta muitas vezes o PS e eu já o conheço de rosto, sei que ele não tem família e que a única oportunidade de ele ter um convívio social é no hospital, o que é a justificativa de suas vindas. Atender um hiperutilizador de baixo risco é ruim porque sentimos que é uma perda de tempo, mas o principal sentimento é dó, como no caso desse senhor que contei” (M3).

A culpa é da crise

A crise econômica também é indicada como uma das causas da alta demanda. A maioria dos entrevistados menciona que há uma parcela importante de moradores de rua que buscam o PS como refúgio e para dormir, uma vez que não há restrições para se manter no local de espera: “Moradores de rua vêm frequentemente ao PS, noite após noite, com uma queixa qualquer ou para tomar algum remédio como desculpa para dormir no hospital enquanto esperam a consulta” (M1).

O uso abusivo de álcool e outras drogas, ainda que se trate de um problema cuja complexidade extrapola a dimensão social, merece destaque, pois também influencia a frequência com que alguns pacientes buscam o PS:

“Outro paciente vem várias vezes com queixa de dor de garganta, mas sempre pede para ser examinado com lidocaína, provavelmente porque é alcoólatra. É importante ter no prontuário que o paciente é alcoólatra, ou que bebeu álcool em gel do pronto-socorro, ou qualquer outro vício, para evitarmos dar morfina e outros medicamentos” (M1).

A culpa é da Unidade Básica de Saúde

O papel da UBS apareceu com destaque em todas as entrevistas. Para os profissionais, quando os pacientes buscam a atenção primária, deparam-se com problemas de acesso e com a baixa qualidade da assistência fornecida, principalmente quando precisam ser encaminhados para a atenção ambulatorial especializada. Ao serem vistos a cada dia por um médico diferente no PS, os pacientes deixam de ter acompanhamento longitudinal, o que dificulta o controle de suas enfermidades:

“Para todos os pacientes é explicado e feito o encaminhamento à UBS, porém inúmeros deles passam por lá e não conseguem o mínimo, como a lavagem de cera de ouvido, voltando e sobrecarregando o PS” (M1).

“A gente tem que lidar com o volume, mas o ideal é que elas [as pessoas] tivessem a consulta perto de suas casas. Além disso, o médico clínico geralmente não atende queixas oftalmológicas e, como não há essa especialidade nas UBS, os pacientes sempre tendem a vir para cá, mesmo com queixas não urgentes” (M2).

Pacientes hiperutilizadores

Foram entrevistados quatro pacientes, três mulheres e um homem, caracterizados no Quadro 2 . Os entrevistados tinham entre 70 e 75 anos, eram aposentados e moravam na região de abrangência do PS-HSP. Apenas uma participante havia completado o ensino médio, e ninguém tinha plano privado de saúde. A frequência de uso em 2018 indica que os pacientes selecionados eram de fato hiperutilizadores, especialmente P1 e P3, que compareciam ao serviço, em média, a cada 6 e 14 dias, respectivamente.

Quadro 2
Caracterização dos pacientes hiperutilizadores de baixo risco clínico entrevistados (pronto-socorro do Hospital São Paulo)

Os achados foram agrupados em três categorias de visibilidade que emergiram a partir da observação e das entrevistas com os pacientes: satisfação e vínculo com os médicos do PS e o atendimento hospitalar; supervalorização médica vs . desvalorização da equipe multiprofissional; e falta de resolutividade das UBS e dos serviços ambulatoriais especializados.

Satisfação e vínculo com os médicos do pronto-socorro e o atendimento hospitalar

Os pacientes hiperutilizadores de baixo risco clínico se sentem bem cuidados no PS. Eles relatam que retornam frequentemente ao SUE porque se sentem acolhidos pelos médicos, com os quais criam vínculos: “Eu sou sempre tratada pela doutora Z, que fica aqui no pronto-socorro. Gosto muito dela, a consulta é maravilhosa e sempre venho nos dias que ela está (...). Inclusive, doutora Z irá aposentar e não quero mais vir quando ela sair” (P1).

Os pacientes se sentem respeitados e relatam que os médicos conversam com eles, examinam e não são displicentes:

“Os médicos são muito atenciosos. Outros do SUS [Sistema Único de Saúde] não fazem nada, mal olham para nossa cara e não falam o que a gente tem. Aqui eles examinam, fazem exames, vão à fundo na consulta. Eu gosto muito daqui, não troco por nada. Eu acho que eles estão de ‘saco cheio’, mas eu sempre venho” (P2).

Supervalorização médica vs. desvalorização da equipe multiprofissional

Percebe-se que os usuários tendem a supervalorizar o profissional médico, poupando-o dos problemas, atritos e insuficiências existentes no serviço. Eles atribuem os principais problemas encontrados aos demais trabalhadores do PS e não compreendem claramente a função desses profissionais no atendimento de urgência. Quando questionados sobre experiências negativas, pacientes revelam desavenças com profissionais da enfermagem, algumas delas causadas pela hiperutilização do serviço:

“Um dia a enfermeira da classificação de risco me perguntou o que eu estava fazendo de novo no HSP por ficar aparecendo toda hora no PS. Mas eu venho a hora que quiser e a hora que precisar, não estou vindo para passear ou porque gosto. O meu médico me recomendou que sempre que eu tivesse alguma dor ou problema, eu deveria correr ao PS por conta do infarto que já tive” (P1).

Falta de resolutividade das UBS e dos serviços ambulatoriais especializados

A maioria dos pacientes entrevistados frequenta a UBS, geralmente para consultas com clínico geral. No entanto, o tempo de espera por uma consulta médica, principalmente de especialidades, considerado excessivo, e a baixa qualidade dos atendimentos são os motivos alegados para recorrer aos SUE, ainda que em caso de problemas de baixa complexidade:

“Na UBS me encaminharam ao neurologista, porém este me indicou um tratamento que não teve resultado e mesmo assim me deu alta. Após isso, comecei a frequentar o PS-HSP e, depois de muita procura, os médicos do hospital me indicaram ao ambulatório de neurologia” (P2).

“Não faço nenhum outro tipo de acompanhamento em ambulatório, apenas frequento UBS, apesar de não gostar, porque espero cerca de 6 a 7 meses por uma consulta de especialista quando preciso, e também porque acho que os médicos da clínica geral pouco acompanham os problemas, não pedem exames de rotina” (P4).

Apesar de se sentirem satisfeitos com a resolutividade do PS-HSP, alguns pacientes se queixam de que os médicos não pedem exames complementares suficientes. Há uma ideia geral de que esses exames são provas fundamentais de que suas patologias estão sendo de fato tratadas:

“O atendimento da emergência é bom, mas aqui eles só passam remédio. Não faz aquele exame para ver a doença de verdade. Você só passa na consulta, eles examinam, passam remédio e te mandam embora” (P3).

Discussão

As experiências de médicos e usuários dos SUE são marcadas por dualidades, sobretudo quando entra em cena o atendimento de hiperutilizadores de baixo risco clínico. Do ponto de vista dos médicos, emerge principalmente a culpabilização e a estigmatização do paciente hiperutilizador, de baixo risco ou não. Em geral, entende-se que esse paciente consome tempo e recursos que deveriam ser disponibilizados àqueles que de fato precisam dos SUE. O sentimento de incômodo dos profissionais ao dedicar esforços ao atendimento de hiperutilizadores conflita com o CEM, que preconiza o exercício da medicina sem discriminação de qualquer natureza e determina que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional 2525. Conselho Federal de Medicina. 2019. p. 15. .

Embora os médicos não acreditem que o descontentamento com tais usuários afete a qualidade dos serviços, considerando que todos os pacientes, com queixas mais ou menos graves, são atendidos e têm seus problemas resolvidos, é inegável que esse julgamento muda a postura do profissional. Ainda que não haja prejuízo imediato ao paciente, há risco de danos causados pela subestimação das queixas e pela discriminação, práticas vedadas pelo CEM em seus artigos 1º e 23º, respectivamente2020. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 24 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ihnCyo
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Ao analisar os motivos da demanda de hiperutilizadores pelos SUE, que consideram inadequada e inoportuna, os profissionais fazem um julgamento moral que atribui a culpa aos próprios pacientes. Esses pacientes, na perspectiva dos médicos, estariam usando artifícios para acessar serviços que podem obter na atenção básica. Seu comportamento, desse modo, agravaria a superlotação dos SUE e prejudicaria o atendimento dos usuários que mais precisam. Os profissionais ainda culpam os hiperutilizadores por ignorar a arquitetura do sistema de saúde e não respeitar as “regras do jogo” (ainda que os próprios profissionais confessem só ter entendido a estrutura dos serviços após o início da graduação em medicina).

Na visão dos médicos, dois outros fatores são determinantes para compreender a hiperutilização dos SUE por usuários de baixo risco. Para eles, em primeiro lugar, o uso inadequado dos SUE está associado aos efeitos da crise econômico-social e à inexistência de políticas que, por exemplo, ofereçam serviços e acolhimento para pessoas que vivem em situação de rua. Essa população, como mostram as entrevistas, vê o pronto-socorro, disponível 24 horas por dia, como único lugar seguro para passar a noite e satisfazer necessidades básicas, como dormir e ir ao banheiro.

Os profissionais também enfatizam a incapacidade da atenção primária em dar conta das demandas apresentadas por usuários de baixo risco clínico. Sem ter suas necessidades supridas nas UBS, os hiperutilizadores buscam incessantemente os SUE, entendendo-os como uma rede de suporte para buscar consultas médicas, encaminhamento a especialistas (o que levaria meses seguindo os fluxos usuais da rede básica) e exames complementares que consideram decisivos para seu cuidado.

Esses usuários também se sentem acolhidos, ouvidos e atendidos em suas carências psicoafetivas nos SUE, o que aponta para a necessidade de que a atenção primária vá além do modelo técnico-assistencial baseado em consultas e procedimentos médicos2626. Cecílio LCO, Reis AAC. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saúde Pública [Internet]. 2018 [acesso 17 jan 2020];34(8):e00056917. DOI: 10.1590/0102-311X00056917 . Ou seja, ainda que os usuários compreendessem a forma correta de utilizar a rede de saúde, conforme a regionalização e a hierarquia propostas pelo SUS, ainda assim não haveria garantia de acesso oportuno e adequado nas UBS e serviços ambulatoriais especializados2727. Reis AAC, Soter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2017 [acesso 17 jan 2019];22(4):1045-54. DOI: 10.1590/1413-81232017224.26552016
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Observa-se certa tendência a superestimar e idealizar a atenção básica, como se esta dispusesse de um grande arsenal de recursos humanos e materiais e fosse capaz de atender rapidamente a todas as demandas não urgentes e de baixa complexidade, com eficiência e qualidade. A realidade, no entanto, é que esses serviços estão sobrecarregados devido ao desequilíbrio entre o número de pacientes e de profissionais da saúde, principalmente nas regiões periféricas ou em cidades afastadas de grandes centros, que concentram a tecnologia e os serviços de referência.

Além disso, predomina um modelo de atenção à saúde que pouco valoriza a prevenção. Tal modelo não estimula a autonomia e a corresponsabilização do usuário no “cuidar de si”, ignorando a potência do cuidado por equipes multiprofissionais, inclusive em grupos de pacientes, para além da mera oferta de consultas médicas individuais e da prescrição de medicamentos e exames, demandados incessantemente pelos usuários2828. Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. .

O estudo revela, todavia, o outro lado da moeda: o protagonismo dos usuários hiperutilizadores, que criam mapas de cuidado para além da regulação assistencial ou governamental2828. Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. . Pois há outras formas de regulação que se entrecruzam com a assistencial, dentre elas a chamada “regulação leiga”. Nela, o usuário, por meio de suas experiências e rede de contatos (família, amigos e vizinhos), busca minimizar o tempo da doença em relação aos tempos do gestor (tempo burocrático que rege os níveis de atenção à saúde) e do profissional (tempo do atendimento). Para isso, o hiperutilizador produz itinerários próprios em busca de cuidados, visitando serviços (por vezes de forma considerada excessiva e inadequada por gestores e trabalhadores da saúde) em que se sente acolhido e atendido em suas demandas2929. Cecílio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [acesso 20 jan 2020];30(7):1502-14. DOI: 10.1590/0102-311X00055913
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Assim, a partir de informações que adquire na prática, o usuário hiperutilizador de baixo risco busca e encontra a flexibilização dos serviços que procura. É isso, ao menos na perspectiva dos usuários, que explicaria a alta demanda pelos SUE, considerados mais acessíveis e resolutivos em comparação com as UBS. Além disso, o usuário também procura os SUE como um atalho, com o objetivo de ser encaminhado ao serviço especializado (ambulatórios) ligado ao hospital universitário, buscando escapar dos impedimentos impostos pelo sistema regulatório de acesso.

O estudo mostra que os médicos também têm suas próprias estratégias de regulação2929. Cecílio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [acesso 20 jan 2020];30(7):1502-14. DOI: 10.1590/0102-311X00055913
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. Muitas vezes, conforme as necessidades de seus pacientes e sua rede de interesses (seja a produção de pesquisas científicas ou a facilitação do acesso a serviços de especialidades), os profissionais criam fluxos informais para responder às demandas. Nesses casos, os limites para o exercício ético-profissional da medicina são muito tênues, e a atuação pode acabar se contrapondo ao que é estabelecido pelo artigo 20 do CEM2020. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 24 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ihnCyo
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: interesses políticos ou de qualquer outra ordem não devem interferir na conduta médica.

A superlotação, a baixa segurança, a infraestrutura deficiente e a falta de recursos foram os principais problemas do cotidiano de trabalho mencionados pelos médicos. Essa situação relatada pelos entrevistados viola o disposto no inciso III dos Princípios Fundamentais do CEM, que preconiza boas condições de trabalho para o exercício da medicina2020. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 24 jan 2019]. Disponível: https://bit.ly/3ihnCyo
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. Tal cenário gera insatisfação nos usuários, entretanto, o estresse e a frustração recaem menos sobre médicos e mais sobre outros profissionais que têm contato direto e prolongado com os pacientes, sobretudo enfermeiros que trabalham na classificação de risco ou na sala de medicação.

Devido ao tempo exíguo das consultas de hiperutilizadores, à pequena quantidade de procedimentos necessários nesses casos e à própria rotatividade do regime de trabalho em plantões, médicos plantonistas e residentes, quando comparados aos demais trabalhadores citados, estão mais distantes desses usuários. Deve-se considerar ainda que o médico entra em cena para atender um desejo do hiperutilizador, que alcança seu objetivo depois de muitas dificuldades, o que também contribui para a supervalorização da relação médico-paciente, ainda que tal relação se produza precariamente, em consultas que podem durar menos de um minuto, conforme evidenciado na pesquisa.

O HSP, por sua vez, apresenta uma singularidade diretamente relacionada ao acesso ao PS. Há muito tempo, o hospital é mantido em meio a crítica situação financeira, o que impõe a necessidade de captação de recursos governamentais. Nos últimos anos, porém, com o agravamento da crise econômica, tal situação alcançou seu ápice, tendo como consequência principal a iminência de fechamento do PS. Em 2017, a fim de evitar a descontinuidade do serviço, uma parceria foi firmada entre a instituição mantenedora do hospital e a Prefeitura de São Paulo para credenciar o serviço de urgência como Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h).

Com essa parceria, foi possível dar continuidade à operação do HSP, com a captação adicional de recursos. No entanto, tal medida obrigou o PS-HSP a atender urgências de baixa e média complexidade, para além do papel de referência aos demais serviços da região que sempre desempenhou. Dessa forma, é inegável que o cenário favorece a má interpretação da função do serviço, tendo em vista sua designação como UPA. Alguns pacientes entrevistados disseram procurar o PS-HSP justamente porque o local é descrito e identificado como UPA. Além disso, os próprios funcionários do HSP se sentem confusos quando se referem ao grau de especialização do PS, pois muitos ainda o consideram um pronto-socorro de alta complexidade.

Considerações finais

Os resultados deste estudo permitiram identificar a tensa relação entre médicos e pacientes hiperutilizadores de baixo risco clínico nos SUE. A hiperutilização é um problema complexo, que gera conflitos ético-profissionais decorrentes sobretudo do preconceito, pois médicos entendem que esses usuários frequentam excessivamente os serviços com queixas pouco relevantes, utilizando recursos que deveriam ser destinados a pacientes mais graves.

Ao interpretar o fenômeno dessa forma, os profissionais estigmatizam seus pacientes e dão margem ao descumprimento de preceitos éticos dispostos no CEM. A hiperutilização de baixo risco dos SUE também agrava a superlotação e a falta de recursos e revela a dificuldade dos demais níveis de atenção – como a atenção básica e as especialidades – em garantir que os pacientes sejam acompanhados de forma eficiente.

Quando discrimina o hiperutilizador de baixo risco, o médico pode descumprir o dever de respeitar e tratar com máximo zelo seu paciente. No entanto, paradoxalmente, os hiperutilizadores se sentem acolhidos e bem tratados nos SUE, motivo pelo qual retornam frequentemente, em particular por não se sentirem satisfeitos com as UBS, que não oferecem consultas e acesso a especialidades no tempo e na qualidade demandada por esses pacientes. Observa-se, assim, que os hiperutilizadores são protagonistas que produzem seus mapas de cuidado à revelia dos fluxos regulatórios e das insuficiências do SUS, ainda que isso não necessariamente signifique um melhor cuidado.

Por ter sido realizado em um hospital universitário de referência para o SUS, considerado de excelência, o estudo apresenta limites que não permitem generalizar os achados. Seria importante que outros estudos sobre o tema pesquisassem serviços com características diversas, ampliando a discussão dos resultados a fim de alcançar usuários e seus familiares, estudantes, residentes, médicos e outros profissionais da saúde, além dos gestores do SUS, indagando acerca da organização do sistema de saúde, do funcionamento dos SUE, das potências e limites da atenção básica, da regulação do acesso e das questões éticas envolvidas.

Ressalta-se o caráter universal dos hiperutilizadores e do uso inapropriado dos serviços de saúde em diversos níveis do cuidado. Compreender melhor esse uso inapropriado pode ampliar o olhar para o cuidado integral nos sistemas de saúde, e o serviço de emergência é ponto crucial para alcançar esse objetivo. Reconhecer o problema da hiperutilização leva a desenvolver perspectivas, ações e políticas com capacidade de impactar todo o sistema de saúde.

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  • Aprovação CEP-Conep 16810719.0.0000.5505

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    4 Ago 2020
  • Revisado
    27 Abr 2021
  • Aceito
    4 Maio 2021
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