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Reflexões bioéticas sobre finitude da vida, cuidados paliativos e fisioterapia

Resumo

Nas últimas décadas, a evolução tecnológica e científica na área da saúde tem melhorado a expectativa de vida, propiciando maior longevidade e gerando outra percepção a respeito da morte. Engajada nesta nova perspectiva, a bioética propõe reflexão sobre o fim da vida orientando o olhar dos profissionais de saúde para os cuidados paliativos, a humanização e o princípio da dignidade humana. Nesse contexto, a fisioterapia está cada vez mais presente nas discussões atuais sobre cuidados médicos no fim da vida, embora o tema ainda necessite de maior aprofundamento.

Fisioterapia; Morte; Doente terminal; Bioética

Abstract

The significant evolution in healthcare in the last decades has improved life expectancy, providing the opportunity to live longer and generating a new perception about death. Committed to this new perspective, bioethics proposes a reflection about the end of life, directing the attention of health professionals to palliative care, the practice of humanization and the principle of human dignity. Physical therapy is incresingly presente in the core of current discussions about health care facing the finitude of life, although the issue still needs further elaboration.

Physical therapy specialty; Death; Terminally ill; Bioethics

Resumen

En las últimas décadas la evolución tecnológica y científica en el área de la salud ha mejorado la expectativa de vida, propiciando una mayor longevidad y generando otra percepción respecto de la muerte. Comprometida con esta nueva perspectiva, la bioética propone una reflexión sobre el fin de la vida dirigiendo la mirada de los profesionales de la salud hacia los cuidados paliativos, la humanización y el principio de la dignidad humana. En este contexto, la fisioterapia está cada vez más presente en las discusiones actuales sobre cuidados médicos en el fin de la vida, aunque el tema necesite aún una mayor profundización.

Fisioterapia; Muerte; Enfermo terminal; Bioética

Segundo Pessini 11. Pessini L. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola; 2004 . , baseando-se em estudos de Ariès 22. Ariès P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Saraiva; 2012 . , até o início do século XX, no Ocidente, no momento da morte o doente convocava ao seu leito pessoas próximas e familiares para se despedir. Recebia a extrema-unção para uma morte cristã ou simplesmente pedia perdão àqueles que viveram com ele ou o serviram.

Ariès 22. Ariès P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Saraiva; 2012 . explica que as mudanças nos rituais mortuários não ocorreram drasticamente, mas à medida que se incorporavam novos comportamentos e modificava-se a expressão de sentimentos sobre a morte do indivíduo ou de alguém próximo. Com o tempo, passou-se a encarar o luto de modo mais emotivo e dramático. O início do cuidado com o corpo, mudanças em cenários (como cemitérios), o zelo de amigos e familiares pela memória da pessoa falecida, entre outros ritos e comportamentos, levaram à atual situação: os últimos momentos da vida saíram do ambiente doméstico para o hospitalar, nem sempre com a presença de entes queridos.

Perales 33. Perales EB. Ética de la muerte: de la bio-ética a la tánato-ética. Daimon Rev Int Filos [Internet]. 2002 [acesso 20 ago 2011];(25):57-74. Disponível: https://bit.ly/2F2Tmo7
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propõe, assim como muitos especialistas no assunto, o estudo da “ética na morte” durante a formação dos profissionais de saúde, de modo a estabelecer reflexões éticas relativas ao cuidado no morrer. Segundo o autor, compreender o processo de morte é tão importante quanto pesquisar o início da vida, de forma que o tema não pode ser ocultado nem tratado apenas como apêndice na formação profissional. O autor recomenda que as disciplinas de tanatologia incluam o estudo de princípios, valores e representações envolvendo a morte – trata-se da “ tánato-ética” , ou “ética na morte”.

Vale retomar brevemente os princípios prima facie advindos da bioética principialista: beneficência, fazer o bem, evitando o paternalismo e preservando a dignidade do paciente; não maleficência, não fazer mal nem causar dano; autonomia, respeitar a liberdade de ação do indivíduo; e justiça, tratamento igualitário, sem distinções. Nunes 44. Nunes L. Ética em cuidados paliativos: limites ao investimento curativo. Rev. Bioética [Internet]. 2008 [acesso 10 ago 2011];16(1):41-50. Disponível: https://bit.ly/31yh0lO
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complementa estes princípios com o da vulnerabilidade, que etimologicamente indica a possibilidade de ser ferido, e para a bioética demonstra o quanto o indivíduo deve ser respeitado em sua fragilidade. Uma vez que a doença reduz a autonomia do sujeito, ele precisa ser protegido e amparado, sem paternalismo.

Dessa forma, a bioética propõe reflexões aos profissionais de saúde para promover o verdadeiro cuidado aos pacientes, e não apenas a manutenção da vida a todo custo. Pensar a ética no desenvolvimento científico implica reconhecer fronteiras, pois se a finalidade da ciência é melhorar a vida das pessoas e o convívio social, deve-se equacionar alguns limites éticos e o horizonte infinito do apetite pelo conhecimento científico 55. Badaró AFV. Ética e bioética na práxis da fisioterapia: desvelando comportamentos [tese] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008 [acesso 15 set 2011]. Disponível: https://bit.ly/2XcGCp8
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.

Essas reflexões, de acordo com Alves e colaboradores 66. Alves FD , Bigongiari A , Mochizuki L , Hossne WS , Almeida M . O preparo bioético na graduação de fisioterapia . Fisioter Pesqui [Internet]. 2008 [acesso 13 out 2011]; 15 ( 2 ): 149 - 56 . Disponível: https://bit.ly/2KgzbqT
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, oferecem subsídios necessários para a tomada de decisões referentes à vida, morte, dignidade, solidariedade, vulnerabilidade, responsabilidade e qualidade de vida, sempre tendo em vista a assistência humanitária. De maneira geral, as discussões bioéticas sobre a terminalidade se apoiam em três conceitos: eutanásia, distanásia e ortotanásia.

Eutanásia

Legalizada na Holanda, na Bélgica e em outros países, a eutanásia tem sido cada vez mais debatida na mídia, nos sistemas judiciários e na sociedade em geral, inclusive em diversas polêmicas ligadas a pacientes terminais, sobretudo aqueles em estado vegetativo. Brandalise e colaboradores 77. Brandalise VB , Remor AP , Carvalho D , Bonamigo EL . Suicídio assistido e eutanásia na perspectiva de profissionais e acadêmicos de um hospital universitário . Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 2 fev 2019]; 26 (2): 217 - 27 . DOI: 10.1590/1983-80422018262242
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relatam conflitos religiosos e morais envolvendo a questão, como o risco de o doente não ter controle sobre esse tipo de escolha, principalmente no caso de idosos e pessoas com deficiência, o que poderia gerar abusos.

Nos países onde a eutanásia é permitida, exige-se o pedido livre e voluntário do paciente e avaliação criteriosa dessa solicitação, para verificar se o sofrimento é realmente intolerável e não há perspectiva de cura ou melhora. Ainda assim, a legislação autoriza a eutanásia apenas em casos extremos, cabendo ao médico realizá-la após opinião similar de outro colega de profissão independente 11. Pessini L. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola; 2004 . .

Embora essa opção tenha ganhado espaço nos meios de comunicação, é bem menos praticada que a distanásia, principalmente em unidades de terapia intensiva (UTI), nas quais a obstinação terapêutica é tamanha a ponto de Alves e colaboradores 66. Alves FD , Bigongiari A , Mochizuki L , Hossne WS , Almeida M . O preparo bioético na graduação de fisioterapia . Fisioter Pesqui [Internet]. 2008 [acesso 13 out 2011]; 15 ( 2 ): 149 - 56 . Disponível: https://bit.ly/2KgzbqT
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as considerar catedrais de sofrimento humano. Às questões éticas de respeito à vida soma-se a questão do progresso técnico-científico, que aumenta a esperança de cura, mas pode simplesmente prolongar o processo do morrer: na luta pela vida contra a morte usa-se de todo um arsenal tecnológico que na prática se traduz a morte como se fosse uma doença para a qual tivéssemos que encontrar a cura a todo e qualquer custo ! 88. Pessini. L. Op. cit. p. 29.

Distanásia

Falar em distanásia ainda é algo incomum no meio acadêmico brasileiro, principalmente na área da saúde, ao contrário da eutanásia, que é frequentemente discutida 77. Brandalise VB , Remor AP , Carvalho D , Bonamigo EL . Suicídio assistido e eutanásia na perspectiva de profissionais e acadêmicos de um hospital universitário . Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 2 fev 2019]; 26 (2): 217 - 27 . DOI: 10.1590/1983-80422018262242
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. O prefixo “dis” remete a afastamento; dessa forma, significa um prolongamento exagerado do morrer. Trata-se de agir médico visando salvar um paciente terminal, causando-lhe sofrimento (obstinação terapêutica) 99. Pessini L. Distanásia: até quando investir sem agredir. Rev. Bioética [internet]. 1996 [acesso 1º ago 2019];4(1). Disponível: https://bit.ly/2IHa6ok
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A distanásia é sempre resultado de determinada ação médica cuja medida terapêutica se torna mais nociva que benéfica 99. Pessini L. Distanásia: até quando investir sem agredir. Rev. Bioética [internet]. 1996 [acesso 1º ago 2019];4(1). Disponível: https://bit.ly/2IHa6ok
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. Segundo Lepargneur 1010. Lepargneur H. Alguns conceitos bioéticos fundamentais. O Mundo da Saúde. 2002 ;26(1):101-8. , a obstinação terapêutica está relacionada ao temor da equipe médica diante da responsabilidade de deixar um paciente falecer sem ter feito tudo o que estava ao alcance para salvá-lo, ainda que de forma dolorosa ou inconsciente. Lepargneur 1010. Lepargneur H. Alguns conceitos bioéticos fundamentais. O Mundo da Saúde. 2002 ;26(1):101-8. também aponta que as condutas médicas baseadas em cuidados inúteis são menos propensas a processos judiciais de negligência ou erro médico.

Ortotanásia

Posicionada entre eutanásia (abreviação da vida) e distanásia (prolongamento da vida a qualquer custo), a ortotanásia, segundo Pessini 11. Pessini L. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola; 2004 . , é a síntese ética dos valores de “morrer com dignidade” e de “respeito à vida humana”. O paciente, seus familiares e amigos, diante da morte iminente e inevitável, são auxiliados pela equipe profissional a enfrentar os fatos com serenidade.

De acordo com Lepargneur 1010. Lepargneur H. Alguns conceitos bioéticos fundamentais. O Mundo da Saúde. 2002 ;26(1):101-8. , a ortotanásia consiste na aceitação razoável da morte natural, inclusive suspendendo ou renunciando a tratamentos e equipamentos de suporte vital, mesmo quando o paciente está inconsciente. Essa opção não dispensa medidas de analgesia nem o cuidado humano possível, com atenção religiosa e psicológica. Dessa forma, opta-se por suavizar o processo de morrer, sem negligenciar a qualidade de vida neste momento delicado, por meio dos chamados “cuidados paliativos”. Assim, a ortotanásia constitui-se de medidas terapêuticas voltadas à morte humanizada, cercada dos cuidados necessários.

O termo latino “ pallium ”, que significa manto, aponta a essência dos cuidados paliativos: aliviar efeitos de doenças incuráveis ou oferecer um “manto” àqueles que passam frio, porque já não podem ser ajudados pela medicina curativa 1111. Kovács MJ . Bioética nas questões da vida e da morte . Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 15 set 2011]; 14 ( 2 ): 115 - 67 . Disponível: https://bit.ly/2rV7ZjJ
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. Essa prática surgiu no Reino Unido dos anos 1960, tendo Cicely Saunders como pioneira. Médica, assistente social e enfermeira, ela enfatizou o alívio da dor, considerando aspectos orgânicos, sociais, psicoemocionais e espirituais 1212. Mendes EC. Cuidados paliativos e câncer: uma questão de direitos humanos, saúde e cidadania [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017 [acesso 28 jul 2011]. Disponível: https://bit.ly/2WAUzsE
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Nesse contexto se enquadra a fisioterapia, profissão cuja história se confunde com a da medicina, sendo considerada campo de atuação, e não área de conhecimento, conforme relata Badaró 55. Badaró AFV. Ética e bioética na práxis da fisioterapia: desvelando comportamentos [tese] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008 [acesso 15 set 2011]. Disponível: https://bit.ly/2XcGCp8
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. A fisioterapia inclui diversas especialidades, as quais podem se deparar com pacientes incuráveis, como os internados em UTI e os acometidos por doenças neurodegenerativas. Badaró 55. Badaró AFV. Ética e bioética na práxis da fisioterapia: desvelando comportamentos [tese] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008 [acesso 15 set 2011]. Disponível: https://bit.ly/2XcGCp8
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assinala que a característica marcante desse campo é a aproximação terapêutica, de modo que o profissional pode ser visto pelo doente como alguém de confiança, um amigo.

Considerando que os fisioterapeutas frequentemente atendem pessoas em condições de terminalidade, Silva 1313. Silva LFA. Dignidade e finitude da vida: estudo bioético do trabalho dos fisioterapeutas em cuidados domiciliares a pacientes terminais [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2010 [acesso 10 jun 2011]. Disponível: https://bit.ly/2RggcNQ
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ressalta a necessidade de formação relacional e dinâmica desses profissionais, tendo em vista que o processo do fim da vida é complexo e envolve diversos conflitos. Ademais, é importante para o fisioterapeuta ter formação acadêmica voltada não só para atuação técnica, mas também para questões éticas.

Resultados e discussão

Na obra “Sobre a morte e o morrer”, Kübler-Ross 1414. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2008 . questiona as demandas reais do doente terminal e daqueles que o cercam, familiares e equipe de cuidados, refletindo sobre como lidam com a situação. Muitas vezes o enfermo é rodeado de pessoas que monitoram cada batimento cardíaco, mas não se dispõem a ouvi-lo em suas necessidades, angústias e dúvidas.

Segundo Kübler-Ross 1414. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2008 . , cada vez mais os profissionais de saúde adotam postura tecnicista em detrimento da interação médico-paciente, pois, entre outras razões, a morte provoca nos membros da equipe e na família a quebra da falsa sensação de imortalidade. A autora descreve diálogos que teve com pacientes terminais na tentativa de criar vínculo mais humano e estimular em outros profissionais a reflexão sobre o sentido do seu trabalho e da própria vida.

Para Kovács 1111. Kovács MJ . Bioética nas questões da vida e da morte . Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 15 set 2011]; 14 ( 2 ): 115 - 67 . Disponível: https://bit.ly/2rV7ZjJ
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, no contexto da bioética, a dificuldade de lidar com a questão da morte e com as pessoas em situação de terminalidade decorre principalmente da confusão entre os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia. Nesse ponto surgem também os cuidados paliativos que resgatam, a partir da segunda metade do século XX, a possibilidade de humanizar o morrer, ao contrário do que vinha sendo imposto no cenário da medicina, ou seja, a visão da morte como circunstância a ser superada sem espaço para aceitação.

Cuidados paliativos são princípios de prevenção e alívio do sofrimento, destinados a pacientes em condições clínicas que ameacem a continuidade da vida. Surgem com o avanço das tecnologias em saúde nos hospitais e buscam priorizar o controle da dor e de outros sintomas associados a cada caso, a fim de proporcionar melhor qualidade de vida à pessoa enferma 1515. Carvalho RT, Parsons HA, organizadores. Manual de cuidados paliativos ANCP [Internet]. 2ª ed. São Paulo: ANCP; 2012 [acesso 1º fev 2019]. Disponível: https://bit.ly/2iT7S6B
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Na perspectiva da bioética, a dignidade humana é o valor fundamental da ética dos cuidados paliativos. De acordo com Pessini 11. Pessini L. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola; 2004 . , aos olhos da bioética, os cuidados paliativos partem do princípio de que o enfermo incurável ou em situação terminal deve ser tratado como pessoa, jamais como resíduo biológico por quem nada pode ser feito. Os cuidadores devem estar atentos a suas atribuições em relação ao paciente terminal para aliviar a dor, avaliando benefícios (beneficência) e riscos (não maleficência) de cada caso e os procedimentos para evitar tratamento fútil (distanásia), alheio aos objetivos do cuidado paliativo 1616. Machado KDG, Pessini L, Hossne WS. A formação em cuidados paliativos da equipe que atua em unidade de terapia intensiva: um olhar da bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 30 ago 2011];1(1):34-42. Disponível: https://bit.ly/2IGD0CC
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Kovács 1111. Kovács MJ . Bioética nas questões da vida e da morte . Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 15 set 2011]; 14 ( 2 ): 115 - 67 . Disponível: https://bit.ly/2rV7ZjJ
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enfatiza a necessidade de que os profissionais da saúde tenham atuação e formação focadas na ética dos cuidados paliativos, uma vez que esses conhecimentos ampliam a visão sobre fenômenos da vida e da morte, permitindo melhor diálogo com o paciente e seus familiares. O profissional de saúde não deve apenas se preocupar em “tratar a doença” ou “aliviar dores físicas”, ainda que isso seja fundamental, mas deve também saber ouvir, entender e acolher o paciente, estabelecendo relação de abertura, compreensão e confiança.

Cuidados paliativos e fisioterapia

A prática dos cuidados paliativos requer profissionais preparados para atuar em diferentes seções de hospitais, em clínicas ou até mesmo em domicílio, buscando proporcionar o máximo bem-estar físico e psicológico para a pessoa em estado terminal, sem omitir a dimensão religiosa, se for desejo do paciente 22. Ariès P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Saraiva; 2012 . . De acordo com Silva 1313. Silva LFA. Dignidade e finitude da vida: estudo bioético do trabalho dos fisioterapeutas em cuidados domiciliares a pacientes terminais [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2010 [acesso 10 jun 2011]. Disponível: https://bit.ly/2RggcNQ
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, para restringir o atendimento aos cuidados paliativos não basta identificar a impossibilidade de abordagem curativa, mas também definir quando determinada medida terapêutica ou clínica não proporcionará bem-estar ao paciente, e sim sua sobrevida em sofrimento.

Machado, Pessini e Hossne 1616. Machado KDG, Pessini L, Hossne WS. A formação em cuidados paliativos da equipe que atua em unidade de terapia intensiva: um olhar da bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 30 ago 2011];1(1):34-42. Disponível: https://bit.ly/2IGD0CC
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ressaltam que os profissionais de saúde precisam desenvolver a habilidade de estar ao lado da pessoa doente e da família. Segundo os autores, a formação acadêmica desses profissionais geralmente não aprofunda questões de como lidar com o fim da vida e o processo de morrer. Além disso, ressaltam que os cuidados paliativos são função da equipe multidisciplinar, que deve estar preparada para amenizar o sofrimento, medo e a angústia dos pacientes e familiares. Assim, é necessário refletir desde o início da graduação universitária sobre questões éticas no processo de morrer e sobre a melhor forma de tratar esses doentes.

A fisioterapia paliativa 1212. Mendes EC. Cuidados paliativos e câncer: uma questão de direitos humanos, saúde e cidadania [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017 [acesso 28 jul 2011]. Disponível: https://bit.ly/2WAUzsE
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utiliza recursos que visam aliviar a dor e promover a qualidade de vida e o bem-estar respiratório e/ou motor do enfermo terminal. Dessa forma, o profissional deve avaliar adequadamente o paciente no primeiro contato, percebendo suas necessidades físicas e o ambiente que o cerca.

Na prática fisioterápica, o toque é frequente, levando a dimensão que vai além do aspecto técnico. Montagu 1717. Montagu A. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus; 1988 . destaca a importância do toque no cuidado com aqueles que já não respondem como se espera, em especial na terceira idade, quando se vê a finitude cada vez mais próxima. Em contexto de carências e fragilidades, o toque tem função vital para quem sofre. Quando se reduz a distância, o paciente passa a se sentir mais acolhido, digno de afeto.

Fisioterapia, bioética e terminalidade da vida

Lidar com a morte e o morrer do paciente gera no profissional de saúde sentimentos como impotência, frustração e insegurança, pois, teoricamente, sua meta é salvar vidas 1313. Silva LFA. Dignidade e finitude da vida: estudo bioético do trabalho dos fisioterapeutas em cuidados domiciliares a pacientes terminais [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2010 [acesso 10 jun 2011]. Disponível: https://bit.ly/2RggcNQ
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. Da mesma forma, fisioterapeutas também enfrentam situações de morte para as quais nem sempre se sentem preparados. Nesses casos, comuns no atendimento domiciliar a pacientes terminais, os fisioterapeutas procuram melhorar funções motoras, sensitivas e neurológicas, além de tratar a dor com diversos recursos, priorizando diminuir o sofrimento do paciente, mas esses profissionais também sofrem com a frustração diante do fim da vida.

É preciso investir adequadamente na formação desses fisioterapeutas, como na dos demais profissionais de saúde, quanto aos fundamentos da bioética, principalmente no tocante à relação essencial entre terapeuta e paciente 1818. Badaró AFV , Guilhem D . Bioética e pesquisa na fisioterapia: aproximação e vínculos . Fisioter Pesqui [Internet]. 2008 [acesso 15 out 2011];15( 4 ): 402 - 7 . Disponível: https://bit.ly/2XaRtjj
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. A abordagem dessas questões na fisioterapia baseia-se nos quatro princípios propostos por Beauchamp e Childress, como ressaltam Schuh e Albuquerque 1919. Schuh CM, Albuquerque IM. A ética na formação dos profissionais da saúde: algumas reflexões. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 10 out 2011];17(1):55-60. Disponível: https://bit.ly/2Ks3N4X
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. Com o desenvolvimento da profissão e a evolução da saúde e da educação, a autonomia e os dilemas éticos estão cada vez mais presentes na vida do fisioterapeuta, o que reflete diretamente no cuidado com o doente. Assim, trata-se de abordagem de suma importância para boa atuação profissional 66. Alves FD , Bigongiari A , Mochizuki L , Hossne WS , Almeida M . O preparo bioético na graduação de fisioterapia . Fisioter Pesqui [Internet]. 2008 [acesso 13 out 2011]; 15 ( 2 ): 149 - 56 . Disponível: https://bit.ly/2KgzbqT
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Pessini 99. Pessini L. Distanásia: até quando investir sem agredir. Rev. Bioética [internet]. 1996 [acesso 1º ago 2019];4(1). Disponível: https://bit.ly/2IHa6ok
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salienta que a reabilitação é um dos objetivos da medicina paliativa. Muitos pacientes terminais são restringidos desnecessariamente por familiares, quando ainda poderiam executar algumas atividades que melhorariam sua autoestima e dignidade. O autor relata também que alguns programas de cuidados paliativos têm enfoque superprotetor, adotando maior tempo de hospitalização. Nesses casos, a reabilitação é importante para que o paciente viva da maneira mais ativa possível até o momento de sua morte. Trata-se de enfatizar o fazer do paciente em vez do ser atendido .

Silva 1313. Silva LFA. Dignidade e finitude da vida: estudo bioético do trabalho dos fisioterapeutas em cuidados domiciliares a pacientes terminais [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2010 [acesso 10 jun 2011]. Disponível: https://bit.ly/2RggcNQ
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descreve em suas pesquisas a importância de os fisioterapeutas estarem cientes dessa temática relacionada à morte, observando os conflitos encontrados na situação de doentes terminais. A autora defende a inclusão de tais reflexões desde o início da formação profissional, visando desenvolver e estimular a análise ética de casos. Assim, a reflexão com base na bioética torna-se ferramenta para promover o cuidado verdadeiramente humanitário:

A ética em fisioterapia partilha as suas questões mais importantes com as chamadas a ética médica, a bioética e a ética em geral. Os fisioterapeutas estão preocupados com as suas responsabilidades em relação aos doentes, os valores inerentes aos objectivos da fisioterapia, as decisões apropriadas acerca dos cuidados com os doentes, a ética do relacionamento entre os profissionais e as responsabilidades sociais da profissão2020. Guerra IS. Ética e fisioterapia: o consentimento informado. Fisio [Internet]. 2008 [acesso 15 ago 2019];1(1):4-7. p. 5. Disponível: https://bit.ly/2P0lWOi
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.

Sobre a formação do fisioterapeuta, Schuh e Albuquerque 1919. Schuh CM, Albuquerque IM. A ética na formação dos profissionais da saúde: algumas reflexões. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 10 out 2011];17(1):55-60. Disponível: https://bit.ly/2Ks3N4X
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mencionam que diversos autores salientam a importância do estudo da bioética e o aprofundamento da discussão pela análise de exemplos práticos de cada área. Já Badaró e Guilhem 1818. Badaró AFV , Guilhem D . Bioética e pesquisa na fisioterapia: aproximação e vínculos . Fisioter Pesqui [Internet]. 2008 [acesso 15 out 2011];15( 4 ): 402 - 7 . Disponível: https://bit.ly/2XaRtjj
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indicam que as principais questões envolvendo ética e fisioterapia se limitam a aspectos legais e deontológicos, sendo atualmente poucos os trabalhos voltados à participação do fisioterapeuta no contexto dos cuidados paliativos. Apesar disso, esses estudos são pioneiros em trazer essa reflexão para o campo da fisioterapia.

Pesquisas realizadas por Machado, Pessini e Hossne 1616. Machado KDG, Pessini L, Hossne WS. A formação em cuidados paliativos da equipe que atua em unidade de terapia intensiva: um olhar da bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 30 ago 2011];1(1):34-42. Disponível: https://bit.ly/2IGD0CC
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com 58 profissionais (21 fisioterapeutas, 25 enfermeiros e 12 médicos) revelam que grande parte dos fisioterapeutas ainda não está muito familiarizada com o significado de termos como “final de vida”. Quanto à formação acadêmica, 81% dos entrevistados negaram ter estudado o tema “final da vida”; 62% afirmaram que o curso não abordou o assunto “morte”; 71% negaram ter visto conteúdo sobre cuidados paliativos; e 95% negaram a abordagem sobre distanásia. No mesmo sentido, Silva 1313. Silva LFA. Dignidade e finitude da vida: estudo bioético do trabalho dos fisioterapeutas em cuidados domiciliares a pacientes terminais [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2010 [acesso 10 jun 2011]. Disponível: https://bit.ly/2RggcNQ
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descreve diversos conflitos e experiências de fisioterapeutas com relação a pacientes terminais. Os profissionais reconhecem a importância de sua atuação nesses casos, mas relatam dificuldades em lidar com questões como a autonomia do paciente e os sentimentos envolvidos nesse contexto.

Considerações finais

Conclui-se que a morte e o processo de morrer são acontecimentos presentes na experiência profissional do fisioterapeuta. Não obstante, o tema não é suficientemente abordado na formação acadêmica. Portanto, é preciso enfatizar mais o tema e seus fundamentos científicos para que o futuro fisioterapeuta esteja mais preparado para lidar tanto com as questões bioéticas relacionadas à finitude da vida quanto com o cuidado prático às pessoas nessa condição.

De qualquer forma, é importante salientar que a fisioterapia está em constante evolução, e a tendência é que os profissionais desse campo da medicina assumam postura cada vez mais efetiva nessas discussões, uma vez que dilemas éticos se tornam mais presentes na sua vivência laboral.

Agradecimentos

Agradecemos à profa. dra. Ana de Fátima Viero Badaró pela contribuição feita na revisão deste artigo.

Referências

  • 1
    Pessini L. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Loyola; 2004 .
  • 2
    Ariès P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Saraiva; 2012 .
  • 3
    Perales EB. Ética de la muerte: de la bio-ética a la tánato-ética. Daimon Rev Int Filos [Internet]. 2002 [acesso 20 ago 2011];(25):57-74. Disponível: https://bit.ly/2F2Tmo7
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2018
  • Revisado
    27 Nov 2018
  • Aceito
    11 Fev 2019
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