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O MACHADO SIGNIFICADÔ(R): LITERATURA NA AFRODESCENDÊNCIA

THE SIGNIFYIN(G) MACHADO: LITERATURE IN AFRICAN DESCENT

Resumo

Tendo "Pai contra mãe" e Memórias póstumas de Brás Cubas como material central de estudo, o artigo aproxima, pelo viés de questões raciais, a obra de Machado de Assis à produção literária e crítica afro-americana representada pelo conto "Recitatif" de Toni Morrison e pela teoria de interpretação baseada na figura do Signifyin(g) Monkey proposta por Henry Louis Gates Jr.

Palavras-chave:
Signifyin(g); Toni Morrison; "Pai contra mãe"; Memórias póstumas de Brás Cubas; raça

Abstract

I discuss racial issues in "Father against Mother" and The Posthumous Memoirs of Brás Cubas by connecting Machado de Assis's work to African American literary and critical tradition represented by Toni Morrison's short story "Recitatif" and the theory of interpretation centered on the Signifyin(g) Monkey developed by Henry Louis Gates Jr.

Keywords:
Signifyin(g); Toni Morrison; "Father against Mother"; The Posthumous Memoirs of Brás Cubas; race

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- Noire? Aussi blanche qu'une autre.

Machado de Assis, Bons dias!

Apesar do processo de branqueamento levado a cabo no século XX, o maior autor brasileiro, Machado de Assis, era, como recentes estudos e evidências vieram a confirmar, ou melhor, restaurar, um homem afrodescendente e, portanto, sujeito às realidades das pessoas afrodescendentes. Realidades essas que, obviamente (talvez nem tanto), sempre foram tão plurais quanto os matizes da tez dessas pessoas em todos os aspectos, ainda que, por fatores relacionados aos legados da escravidão, o número das que se deparam com condições desfavoráveis permaneça maior do que o daquelas que conseguiram sobressair. Talvez seja por isso que Harold Bloom (2002BLOOM, Harold. Genius: a Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds. New York: Warner Books, 2002., p. 675) tenha se espantado ao deparar-se com a afrodescendência de Machado depois de haver se apaixonado por Memória póstumas e presumido que ele era um autor branco e, assim como Carlos Fuentes (2001FUENTES, Carlos. Machado de la Mancha. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2001., p. 7-9), para quem Machado foi o maior romancista ibero-americano do século XIX, tenha empregado a expressão "milagre" para referir-se a ele.1 1 Todas as traduções são de minha responsabilidade.

A grande questão seria determinar que tipo de afrodescendente ele teria sido. G. Reginald Daniel (2012DANIEL, G. Reginald. Machado de Assis: Multiracial Identity and the Brazilian Novelist. University Park: The Pennsylvania State University Press, 2012.) chega à conclusão, baseada em um ponto de vista filtrado pela cultura americana e sua maneira de entender as relações raciais, de que Machado teria tido ou assumido uma identidade multirracial que lhe teria proporcionado trânsito "livre" em ambos os mundos, o dito "mundo branco" e o dito "mundo negro", como se de fato tal dicotomia se aplicasse à sociedade fluminense da época. O conto "Pai contra mãe" é um dos melhores exemplos de que, ao menos no perímetro urbano, as coisas não eram tão "preto e branco".

Para David Brookshaw (1986BROOKSHAW, David. Race and Color in Brazilian Literature. Metuchen: The Scarecrow Press, 1986., p. 179-180), Machado teria sido o típico exemplo de autor cuja obra era alheia à sua origem racial, que teria dedicado sua vida a ser aceito e que teria evitado referências à sua ascendência. Brookshaw, em uma analogia forçada, se vale da comparação de C. L. Innes (1978INNES, Catherine Lynette. Through the Looking Glass: African and Irish Nationalist Writing. African Literature Today, [London], v. 9, p. 10-24, 1978., p. 13-14) para chegar a tal conclusão, todavia, estudos recentes demonstram que sua obra está repleta de referências, explícitas ou não, à questão racial. Se Machado se identificava como afrodescendente ou não se torna uma questão secundária quando se tem em mente que ele inexoravelmente o era. As pessoas afrodescendentes, quaisquer que sejam suas posições nas sociedades criadas com a colonização e a escravidão, sempre tiveram de negociar sua existência lançando mão das mais diversas estratégias, muitas delas descritas e teorizadas abundantemente, mas sempre tendo como base "suas estruturas institucionais expressivas, seus sistemas metafísicos de ordem e suas formas de atuação" que fizeram a travessia atlântica com os sequestrados (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 3-4). Resta-nos examinar sua obra para tentarmos observar de que maneira essa condição nela se manifesta.

Henry Louis Gates Jr. (1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. xxii) nos recorda que um escritor afrodescendente aprende a escrever lendo, principalmente, os textos ocidentais e tal fato se pode comprovar facilmente na obra de Machado, que dialogou com os grandes textos de seu tempo. Seu diálogo com escritores de língua inglesa, como William Shakespeare e Laurence Sterne, entre outros, costuma ser privilegiado pela crítica em relação ao com os de outras tradições. Pode ser que essa maior atenção dispensada a seu trato com a produção em língua inglesa seja resultado de um processo iniciado no século XIX e descrito por Carlos Fuentes (2001FUENTES, Carlos. Machado de la Mancha. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2001., p. 10): "[…]ser negros ou indígenas era ser bárbaros, ser espanhol era ser retrógrado: havia de ser yanqui, francês ou britânico para ser moderno e para ser […] próspero, democrático e civilizado". É um fato inegável que o nosso maior escritor estabeleceu tais diálogos, com um detalhe digno de nota que é exatamente a maneira como o fez. A não ser por Shakespeare, contemporâneo de Cervantes, todos os demais autores europeus de língua inglesa citados por Machado dialogaram com o romance inaugural do espanhol.2 2 Para uma discussão sobre esse tema, veja-se: Dutra, 2019. Para Fuentes (2001FUENTES, Carlos. Machado de la Mancha. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2001., p. 19), o humor do autor brasileiro vai além do de Cervantes e de Sterne e, portanto, como assevera Eduardo de Assis Duarte (2009______. A capoeira literária de Machado de Assis. Machado de Assis em Linha, n. 3, 2009., p. 38), "Machado não é 'Sterne dos trópicos'". Isso, diferentemente do que pensava Bloom, que, provavelmente desconsiderando a relação tanto de Machado quanto do escritor anglo-irlandês com a obra de Cervantes,3 3 Para uma discussão sobre a imensa (e sistematicamente apagada pela crítica anglo-saxônica) influência de Dom Quixote na literatura de língua inglesa, veja-se: Mancing, 2005/2006. cria ser Machado o principal discípulo de Sterne no "novo mundo" (BLOOM, 2002BLOOM, Harold. Genius: a Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds. New York: Warner Books, 2002., p. 674).

Determinar como ele se posiciona frente a essa literatura por meio da qual, como escritor afrodescendente, aprendeu a escrever para se tornar o maior romancista ibero-americano do século XIX e o maior autor brasileiro não é tarefa simples. Duarte (2009______. A capoeira literária de Machado de Assis. Machado de Assis em Linha, n. 3, 2009., p. 38) prefere associar a questão a uma condição "moderna", pois afirma que se Machado "cita e, mesmo, reverencia alguns mestres europeus, o faz com a convicção moderna de quem elege seus precursores e os acolhe em seu repertório, com eles dialogando em igualdade de condições". Contudo, numa manobra borgeana, pode ser que valha a pena examinar, num exercício de imaginação, como Machado dialogou com autores posteriores a ele e neste caso com a produção de afrodescendentes que escreveram em língua inglesa. Pode ser que então outras portas se abram e novas leis de equivalência das janelas e maneiras de entender sua relação com a literatura se apresentem.

Passo então a uma breve leitura de "Pai contra mãe" e de Memórias póstumas de Brás Cubas, tendo como base a teoria de interpretação e leitura desenvolvida por Henry Louis Gates Jr. a partir do conceito de Signifyin(g) por ele explorado por meio das figuras de Exu e do Signifyin(g) Monkey, e recorrendo ao conto "Recitatif" de Toni Morrison e sua peculiaridade de jogar com estereótipos associados à construção social de raça.

Gates Jr. desenvolveu uma teoria de leitura e interpretação para a/da produção literária afro-americana a partir de duas figuras mitológicas de tradições africanas transplantadas para esse continente com os sequestrados que vieram nos navios negreiros: o Signifyin(g) Monkey e Exu. Segundo o autor, ambos se manifestam na cultura como personagens ardilosos, tricksters,4 4 Talvez neste contexto o termo "malandro", sobretudo, mas de maneira nenhuma exclusivamente, em suas acepções positivas, seja o mais adequado para uma tradução. no original em inglês, que lançam mão da linguagem para praticarem seus "truques" e são, em última instância, distintos aspectos de um fenômeno maior e unificado (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. xxi). Exu - muito conhecido, apesar de demonizado no Brasil, porém de maneira nenhuma figura exclusiva desse país, pois está presente nas mitologias Yoruba também em Cuba e no Haiti, para citar alguns lugares - além de ser um trickster é um mensageiro dos deuses, o intérprete, o linguista divino, o senhor dos caminhos e das encruzilhadas e o mestre do duplo sentido. Por sua vez, o Signifyin(g) Monkey, "a inversão irônica recebida de uma imagem racista na imaginação ocidental do africano como simiesco" (GATES JR., 2004______. The Blackness of Blackness: a Critique on the Sign and the Signifying Monkey. In: RIVKIN, Julie; RYAN, Michael (Org.). Literary Theory: an Anthology. 2. ed. Malden: Blackwell, 2004. p. 987-1004., p. 988), é derivado das anedotas sobre o macaco que engana o leão ao usar linguagem figurada (que este sempre entende literalmente) e, portanto, ele é aquele que habita as - e nas - margens do discurso, é o rei dos trocadilhos, o que constantemente incorpora as ambiguidades da linguagem (GATES JR., 2004______. The Blackness of Blackness: a Critique on the Sign and the Signifying Monkey. In: RIVKIN, Julie; RYAN, Michael (Org.). Literary Theory: an Anthology. 2. ed. Malden: Blackwell, 2004. p. 987-1004., p. 988).

Acreditando ser a assimilação da figura do Signifyin(g) Monkey uma realização tipicamente afro-americana devido ao costume e à prática de "signify" dentro de dita cultura e porque ele serve como o tropo-mor em que estão codificados muitos dos tropos da tradição retórica afro-americana, é que Gates Jr. (1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. xxi) propõe sua teoria de leitura. Como o autor aponta, "signification" não tem o mesmo sentido ou uso na interseção entre a linguagem afro-americana e o inglês chamado padrão:

Esse nível de dificuldade conceitual decorre - de fato, parece ter sido intencionalmente inscrito dentro - da seleção do significante "Significação" para representar um conceito notavelmente distinto daquele conceito representado pelo significante do inglês padrão, "significação". Pois a palavra padrão em inglês é homônima da palavra vernácula afro-americana. […] esses dois homônimos têm tudo a ver um com o outro e, ao mesmo tempo, absolutamente nada. (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 45).

"Signification" em inglês padrão denota o significado que um termo comunica ou pretende comunicar, porém, ainda de acordo com Gates Jr. (1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 47), a tradição vernácula afro-americana criou um trocadilho homônimo que joga tanto com a linguagem formal como com seu uso e suas convenções. Fazer um trocadilho com a própria palavra que representa a natureza do processo de criação de sentido é, além do mais, "revisar o signo recebido literariamente explicado na relação representada por significado/significante em seu nível mais aparentemente denotativo é criticar a natureza do próprio significado (branco), desafiar através de uma crítica literal do signo o significado do significado" (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 47). Tal revisão resultou em um sistema de estratégias retóricas peculiar à tradição vernácula afro-americana a partir do momento em que esvaziaram o significante (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 47) e, portanto, tornou-se "uma prática ritualística que serve a várias funções em diferentes espaços discursivos e comunitários afro-americanos" (NORDQUIST, on-lineNORDQUIST, Richard. What Signifying Means in African American Discourse. ThoughtCo. Disponível em: <Disponível em: https://www.thoughtco.com/signifying-definition-1691957 >. Acesso em: 17 ago. 2022.
https://www.thoughtco.com/signifying-def...
). Em suma, trata-se de uma estratégia verbal que explora a brecha entre o denotativo e o conotativo em que somente àqueles que partilham dos valores ou códigos culturais de um grupo de falantes é que se faz o contexto acessível. E é esse fenômeno linguístico, cultural e político que se denomina "Signifyin(g)", ou "Significadô(r)".

Tanto Exu quanto o Signifyin(g) Monkey têm seus lugares em suas tradições determinados pela sua tendência a refletirem sobre o uso da linguagem formal. Este último e sua linguagem tornam-se uma metáfora para uma revisão formal, ou intertextualidade, dentro da tradição literária afro-americana (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. xxi). Entretanto, creio que se possa expandir essa metáfora para uma tentativa de revisão formal de literaturas produzidas por afrodescendentes fora da tradição afro-americana porque há aspectos da metáfora que, mesmo que não recebam o nome de Signifyin(g) Monkey, como sua demonstrada relação com Exu atesta, parecem se repetir em outros lugares onde houve forte presença de africanos e afrodescendentes. Além do mais, vale recordar que, como tropo, "Signifyin(g)" tem o potencial de incluir ou absorver vários outros tropos e figuras retóricas, como ironia, metáfora, metonímia, hipérbole, litotes, quiasmo, entre outros, ao mesmo tempo. E é essa teoria de interpretação, com as devidas mediações e a proposição de um Signifyin(g) Mode à brasileira, que será aqui pensada em relação à obra de Machado de Assis. Não sem antes, porém, recapitularmos um dos exemplos mais formidáveis do emprego de Signifyin(g) como tropo e técnica literária.

"Recitatif" narra os encontros entre duas mulheres que se conheceram em um orfanato. Após deixarem a instituição, cada uma segue seu caminho, e Twyla e Roberta acabam por se encontrar em momentos e situações diferentes até um derradeiro em que finalmente conversam sobre o tempo passado no orfanato. Os encontros se dão por acaso somente no sentido de que não são por elas programados, contudo, muito bem concatenados pela autora, eles ocorrem em momentos e situações em que questões raciais são explícitas ou implicitamente latentes. A questão gira em torno do fato de que uma das meninas é branca e a outra é afro-americana, sem que se possa apontar com precisão quem é quem. Ainda assim, leitores/as são compelidos a crer que Twyla é branca e Roberta afro-americana e vice-versa, baseando-se muito mais em suas ideias preconcebidas sobre os estereótipos criados em relação a costumes e práticas de determinado grupo racial do que no texto em si.

Como a própria autora explica, o conto foi "um experimento sobre a remoção de todos os códigos raciais de uma narrativa sobre duas personagens de diferentes raças para as quais a identidade racial é crucial" (MORRISON, 1992______. Playing in the Dark: Whiteness and the Literary Imagination. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992., p. xi). Um pequeno exemplo da técnica da autora nesse experimento pode ser encontrado logo no princípio, quando Twyla, que é a narradora, comenta: "Sua mãe tinha trazido coxas de frango e sanduíches de presunto e laranjas e uma caixa inteira de biscoitos grahams cobertos de chocolate […]. A comida errada está sempre com as pessoas erradas" (MORRISON, 1983MORRISON, Toni. "Recitatif". In: BARAKA, Amiri; BARAKA, Amina (Org.). Confirmation: an Anthology of African American Women. New York: William Morrow, 1983. p. 243-261., p. 248).

Na cultura americana, criaram-se estereótipos sobre os costumes alimentares das pessoas, e o alimentar-se de carne de frango é, pejorativamente, associado aos afro-americanos, por exemplo. A afirmação da narradora sobre a comida cria o que Morrison denomina de códigos raciais e que são por ela removidos do conto, mas que ao mesmo tempo são aquilo que leva leitores/as a definirem a raça das personagens. Um bom exemplo disso é Elizabeth Abel (1993ABEL, Elizabeth. Black Writing, White Reading: Race and the Feminist Interpretation. Critical Inquiry, [Chicago], v. 19, n. 3, p. 470-498, 1993., p. 471), quem confessou que havia aprioristicamente atribuído uma determinada raça às personagens: "Fui apresentada a 'Recitatif' por […] Lula Fragd. Lula tinha certeza de que Twyla era afro-americana; eu estava igualmente convencida de que ela era branca; a maioria dos leitores que convocamos para resolver a disputa dividiu-se igualmente em linhas raciais".

A própria Abel (1993ABEL, Elizabeth. Black Writing, White Reading: Race and the Feminist Interpretation. Critical Inquiry, [Chicago], v. 19, n. 3, p. 470-498, 1993., p. 471) identifica alguns símbolos usados por Morrison: "[…] uma série de elementos culturais desagregados - meias com recortes cor-de-rosa, calças verdes justas, brincos de argola grandes, habilidade em jogar Jacks, gosto por Jimi Hendrix ou por água engarrafada e aspargos".

Vários são os códigos e seria impossível listá-los todos aqui, porém destaco o primeiro período, que é onde começa a lista de códigos e a aplicação do Signifyin(g) Mode como recurso narrativo: "Minha mãe dançava a noite toda e a da Roberta estava doente" (MORRISON, 1993, p. 243). O dançar a noite toda remete tanto à prática das dançarinas de striptease, o que obviamente se associa à prostituição, quanto à possível prática de uma mãe jovem e descuidada de sua prole. E obviamente que leitores/as, devido ao preconceito existente, associariam a primeira a uma mulher afrodescendente e a segunda a uma mulher branca porque é mais fácil associar a figura da mulher afrodescendente com o "trabalho" sexual (desde a escravidão) e a mulher branca com uma juventude irresponsável que não passa de uma fase. Porém o contrário também pode acontecer, associar-se a prática da prostituição à mulher branca. A indeterminação do tipo de enfermidade que acometia a mãe de Roberta adiciona um elemento de contraponto à construção em espelho proposta no período composto por coordenação, pois bem se sabe que historicamente certos tipos de doenças, em determinadas épocas, são associados a, e usados como, elemento discriminador contra grupos de pessoas, a exemplo do que não faz muito tempo acontecera frente ao surgimento da aids.

O primeiro período do conto, sua construção e suas ambiguidades se espraiam pelo texto, porque esta unidade basilar do texto "Signifies" upon, ou seja, signifies sobre e a partir de possibilidades de estereótipos e sobre a própria tessitura e temática do conto. Para se chegar a um entendimento pleno, faz-se necessário partilhar do conhecimento dos estereótipos e de que eles o são. Morrison, em pleno Signifyin(g) Mode, construiu um texto que, ainda hoje, desnuda os preconceitos raciais embutidos nos/as leitores/as. Essa faceta do jogo com a ambiguidade dos códigos criados socialmente e explorados pela autora nos interessa de perto também, com as devidas mediações, no caso de Machado de Assis.

"Pai contra mãe" desperta a curiosidade de e causa espanto nos leitores e nas leitoras devido à maneira supostamente crua como Machado apresenta um dado da sociedade fluminense da época. Cândido Neves, com um filho a caminho, dedica-se a capturar escravizados em troca de recompensas e, assim, ir sobrevivendo parcamente. Como resultado narrativo, Neves agarra Arminda, que, ao ser devolvida a seu "dono", sofre um aborto não espontâneo, enquanto Candinho pode voltar para casa com a recompensa e com seu filho recém-nascido em vez de concluir a árdua tarefa, iniciada momentos antes, seguindo conselho de tia Mônica - que custava ao narrador escrever e mais ainda ao pai ouvir -, de deixá-lo na roda dos enjeitados.

A situação narrada e seu desfecho levaram a leituras que afirmam aprioristicamente que Neves é um homem branco, sem que haja no conto uma descrição física sua sequer. Todos os seguintes pesquisadores da obra de Machado afirmaram categoricamente que Candinho é um homem branco: Alfredo Bosi (1982BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. Machado de Assis. In: ______ et al. São Paulo: Ática, 1982. p. 437-457., p. 455); Eduardo de Assis Duarte (2007DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo (antologia). Rio de Janeiro: Pallas; Belo Horizonte: Crisálida, 2007., p. 261); Leda Marana Bim (2010BIM, Leda Marana. Amor e morte: uma comparação dos contos "Pai contra mãe" e "Mariana". In: BERNARDO, Gustavo; MICHAEL, Joachim; SCHÄFFAUER, Markus (Org.). Machado de Assis e a escravidão. São Paulo: Annablume, 2010. p. 115-124., p. 122); Marli Fantini (2011FANTINI, Marli. Machado de Assis. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. v. 1, p. 143-171., p. 155-156); Selma Vital (2012VITAL, Selma. Quase brancos, quase pretos: representação étnico-racial no conto machadiano. São Paulo: Intermeios, 2012., p. 109-110); Sidney Chalhoub (2016CHALHOUB, Sidney. The Legacy of Slavery: Tales of Gender and Racial Violence in Machado de Assis. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Org.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave, 2016. p. 55-69., p. 66); Marcus Wood (2019WOOD, Marcus. The Black Butterfly: Brazilian Slavery and the Literary Imagination. Morgantown: West Virginia University Press, 2019., p. 93); Debora Gutierrez e Vitor Cei (2019GUTIERREZ, Debora Priscila Arevalo; CEI, Vitor. A reificação do negro em Machado de Assis e Rubem Fonseca: estudo comparado dos contos "Pai contra mãe" e "Placebo". Lampejo: Revista Eletrônica de Filosofia e Cultura, Fortaleza, v. 8, n. 2, p. 19-32, 2019., p. 20-22). Seu nome, uma suposta crueldade, uma equivocada associação com o ofício de capitão do mato,5 5 O que Neves não era oficialmente, porque tal profissão era regulamentada e comissionada, e, além do mais, havia capitães do mato afrodescendentes. Em todo o caso, muitas pessoas, como o próprio conto e o estudo de Silvia Lara (1988, p. 318) revelam, dedicavam-se a capturar pessoas escravizadas exercendo esse trabalho na "informalidade", para usar uma expressão contemporânea. entre outros elementos, é o que leva leitores/as a presumirem que a personagem é branca.

Alex Flynn, Elena Calvo-González e Marcelo Mendes de Souza talvez tenham sido os primeiros a chamarem a atenção para a impossibilidade de determinar a raça de Cândido Neves argumentando que o conceito de "branco" é uma categoria fluida, negociada e construída na sociedade brasileira e que, portanto, "Machado foi seriamente mal interpretado e mal-entendido por uma posição crítica que coloca as categorias naturalizadas de 'branco' e 'negro' em oposição, algo que Machado não fez" (FLYNN; CALVO-GONZÁLEZ; SOUZA, 2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and Race in Contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013., p. 5). Fernando Sousa de Rocha (2016ROCHA, Fernando Sousa de. "Father versus Mother": Slavery and Its Apparatuses. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Org.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave , 2016. p. 91-103., p. 97), apesar de reconhecer que Machado nunca declara a raça de Candinho de maneira explícita, prefere interpretar a personagem como parte de uma microcomunidade de pessoas africanas e afrodescendentes livres, libertas e escravizadas definida por uma sociabilidade proveniente da experiência da escravidão (ROCHA, 2016ROCHA, Fernando Sousa de. "Father versus Mother": Slavery and Its Apparatuses. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Org.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave , 2016. p. 91-103., p. 91-92). A razão para tal interpretação, baseada numa hipotética sugestão de que nem Neves nem sua esposa Clara sejam brancos, está localizada na passagem em que o narrador comenta que seus nomes eram motivo de "trocados" e que as personagens riam-se da situação (ASSIS, 1980______. Pai contra mãe. In: BRAYNER, Sônia (Org.). O conto de Machado de Assis: antologia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 282-291., p. 285). Como nos lembra Luiz Fernando Valente (2001VALENTE, Luiz Fernando. Machado's Wounded Males. Hispania, [s. l.], v. 84, n. 1, p. 11-19, 2001., p. 13), Machado é um escritor que "nunca emprega palavras que não façam a narrativa avançar". Talvez por amparar-se nesse fato é que Rocha (2016ROCHA, Fernando Sousa de. "Father versus Mother": Slavery and Its Apparatuses. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Org.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave , 2016. p. 91-103., p. 91-92) conclui que os nomes seriam paradoxais devido à sua (suposta) cor real. A escolha de palavras de Machado - que em pleno Signifyin(g) Mode esvazia o significante "trocados" e o transforma em um trocadilho homônimo ao jogar com os sentidos de "mudados", "trocadilhos", "substituídos" (ou até mesmo, "diminuído", como na expressão "dinheiro trocado"), criando, assim, um trocadilho com a própria palavra que significa trocadilho - parece escapar a Rocha, assim como também não é percebida pelos que creem que Neves é branco baseados em seu nome. Nenhum desses pesquisadores se dá conta de que Machado está exatamente "trocando" tudo, principalmente os códigos raciais, num efeito Big Bang, e, sendo assim, apagando-os.6 6 Vale a pena anotar que em outra passagem costumeiramente mencionada quando se trata de identificar a raça de Candinho - "Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa" (1980, p. 287, grifos meus) - Machado recorre novamente ao campo semântico de "trocar" e "mudar".

A passagem é extremamente ambígua e a prova disso é que ela tem suscitado tais interpretações, diametralmente opostas. Ambas se valem de leituras literais que apagam o potencial de sua ambiguidade. O cerne da questão do Signifyin(g) Monkey é que "o macaco e o leão não falam a mesma língua; o leão não é capaz de interpretar o uso da linguagem do macaco" (MITCHELL-KERNER, 1972MITCHELL-KERNAN, Claudia. Signifying, Loud-Talking, and Marking. In: KOCHMAN, Thomas (Org.). Rappin' and Stylin' out: Communication in Urban Black America. Champaign: University of Illinois Press, 1972. p. 315-335., p. 315), uma vez que "o macaco fala figurativamente, num código simbólico; o leão interpreta ou lê literariamente" (GATES JR., 2004______. The Blackness of Blackness: a Critique on the Sign and the Signifying Monkey. In: RIVKIN, Julie; RYAN, Michael (Org.). Literary Theory: an Anthology. 2. ed. Malden: Blackwell, 2004. p. 987-1004., p. 991). Ambas as interpretações pecam porque a leitura é literal - surpreendentemente, mesmo quando esses pesquisadores supõem enxergar ambiguidade, porque se satisfazem com o que é apenas a primeira camada dela, com a ponta do iceberg - e assim como o leão, que não entende o macaco, os pesquisadores que recorrem a tal passagem, para determinar ou mesmo insinuar que ela é evidência da raça de Neves, acabam enganados por Machado de Assis.

A grande questão não está somente no fato de a leitura da passagem ser literal e, sim, no que isso representa, pois se fazem leituras literais de Machado no sentido de até chegar a não se reconhecer sua condição afrodescendente ou fazê-lo apenas parcialmente, como algo secundário, já que abunda a minimização da questão racial e certa miopia sobre o que é ser afrodescendente, pois o código simbólico de Machado de Assis é lido a partir de pressupostos eurocêntricos, de difícil extirpação, que foram desenvolvidos ao longo do século XX, assim como as percepções sobre as categorias de "branco" e "negro" que costumam ser tomadas como fixas e associadas a determinados parâmetros. Como resultado, parte da crítica não consegue interpretar o uso da linguagem de Machado por meio de uma abordagem que considere plenamente a questão da afrodescendência e, assim, não fala a mesma língua do escritor. Não é somente a ironia machadiana, amplamente reconhecida, que promove as interpretações equivocadas e os mal-entendidos como argumentam Flynn et al., mas também sua combinação com essa distância entre o leão e o macaco, entre o uso real que o Machado afrodescendente, o Machado Significadô(r) faz da linguagem e o que a crítica se acostumou a entender como esse uso.

Já o romance Memórias póstumas de Brás Cubas traz a narrativa do famoso defunto-autor que do além, e sem explicar como isso é possível, reflete, em capítulos curtos, sobre sua vida e a das personagens que a rodearam com dose cavalar de ironia e desfaçatez. Salvo engano, nunca antes o personagem teve sua categorização racial questionada. Contudo não seria exagero presumir que leitores e leitoras o leem como uma pessoa branca, devido a seu status abastado e de pessoa que transita na alta sociedade fluminense já que, como bem lembram Flynn et al. (2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and Race in Contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013., p. 5), houve uma cristalização da branquitude como categoria fixa quando na verdade, no século XIX, a dicotomia social era estabelecida entre pessoas livres e escravizadas, como o próprio episódio da surra que os parentes de um homem "preto livre" lhe aplicaram a Neves atesta.

Três detalhes do romance merecem atenção neste contexto: a "obscura" origem do nome da família, a maneira ambígua como Cubas sempre é preterido em favor de outrem, especialmente no caso de Lobo Neves que lhe arrebatou a esposa e a candidatura, e o desfecho do capítulo das negativas. Assim como no caso de Neves, não há descrição física de Brás e tal fato já não pode ser ignorado se queremos mergulhar a fundo na organização social fluminense desenhada por Machado e afirmar seu arguto olhar sobre ela e sua apurada técnica literária. As personagens do romance só podem ser ficcionalizações do material que a sociedade fluminense produziu à época. Sendo assim, elas podem sim ser afrodescendentes ou não, mesmo que Machado tenha preferido omitir descrições físicas. Se imaginamos um Brás Cubas branco, como tem sido a norma, as interpretações vão em uma direção. Se o imaginamos afrodescendente, outros caminhos se abrem.

Como a existência do próprio Machado de Assis atesta, afrodescendentes transitavam nos altos círculos da sociedade fluminense. Portanto, supor que Cubas era um homem branco somente por ser abastado, ter recebido educação privilegiada, inclusive cursando a universidade na Europa, ser cruel quando menino com os/as escravizados/as, possuir escravizados, e tantos outros códigos que a priori cristalizam a categoria "branco", que, na verdade, como os já citados Flynn et al. argumentam, é fluida, é fazer um exercício análogo ao dos que supõem que Neves é branco. Pode ser que, como no caso da personagem de Aluísio Azevedo do romance O mulato (1881), que apresenta algumas dessas características aqui elencadas, Cubas não seja um homem branco. Contudo, determinar sua raça não é o caso, uma vez que à sua maneira (à maneira de Machado), e ao contrário da personagem e do romance de Azevedo em que a ambiguidade não é um recurso empregado, aquele é uma personagem ambígua. Sua própria condição de defunto-autor, que é a base da narrativa e se desdobra ao longo dela, aponta para essa ambiguidade. Tal fato, entretanto, não impede um exercício de imaginação em que ele fosse afrodescendente, sempre, porém mantendo no horizonte que não se pode, assim como em "Recitatif", determinar sua raça. Passemos então a um exercício de imaginação tendo como base os três detalhes mencionados.

A genealogia de Brás é assim apresentada:

Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai […] que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour. (ASSIS, 1963ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Organização, introdução, revisão de texto e notas de Massaud Moisés. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1963., p. 28).

Incorporando uma técnica que repete em outras instâncias, como fica demonstrado no caso dos "trocados" de "Pai contra mãe", Machado discute a origem da família representada na questão do nome Cubas, o que é sugestivo num contexto de uma sociedade que prezava pelo purismo sanguíneo (impossível não pensar na tanoaria e na metáfora cristã do sangue e do vinho), e cita literalmente o trocadilho. Este é um homônimo ("Cubas" e "cubas") e o emprego do termo originário do francês "Calembour", em jogo implícito com a questão da origem de Cubas, cobra importância se pensamos no uso da linguagem formal e da brecha entre o denotativo e o conotativo em que Machado cria o seu Calembour, porque agora estamos falando da origem ambígua de Cubas.

Há outro momento em que Machado lança mão do termo. Trata-se da crônica do "meteorólito Bendegó", situada no contexto da abolição e da iminente Proclamação da República:

[…] está na boca de muitas pessoas é um rumor de república ou coisa que o valha, que esta ideia ainda anda no ar…

- Noire? Aussi blanche qu'une autre.

- Tiens! Vous faites de calembours? (ASSIS, 1990______. Bons dias!: crônicas (1888-1889). Edição, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec; Editora da Unicamp, 1990., p. 72, grifo meu e do original).

Três instâncias se apresentam, o trocadilho (plurilíngue) formado pela aproximação sonora entre "no ar e noire", que para Duarte (2007DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo (antologia). Rio de Janeiro: Pallas; Belo Horizonte: Crisálida, 2007., p. 250) alude "ao temor disseminado entre as elites de uma revolta de libertos inspirada na République Noire do Haiti", de forma debochada, autorizada pelo emprego de idioma estrangeiro (quase nacionalizado pelos anseios europeizantes da sociedade) "Noire? Aussi blanche qu'une autre", e a palavra "calembours", que é empregada no seu sentido e língua originais. Na crônica, assim, além de fazer trocadilhos, Machado questiona o próprio uso da linguagem formal fazendo um calembour com a palavra "calembour", pois uma vez mais esvazia o significante e o substitui por um homônimo (o termo apropriado e incorporado ao português e que se repete em Memórias póstumas). O meteorito fala uma linguagem figurativa por meio de um uso formal do francês, tão caro à sociedade da época como modelo de status e civilização, que essa mesma sociedade, por arrotar conhecimentos do idioma, entende literalmente como um mero jogo de sonoridades e provavelmente deixa de perceber que Machado estava falando exatamente daquilo que Duarte mencionou, de modo que o trocadilho é triplamente qualificado. Esse parêntese serve ao propósito de reforçar o argumento de que é deliberada a construção feita de forma ambiguamente sutil das origens "obscuras" e, portanto, ambíguas de Cubas numa sociedade que prezava pela pureza sanguínea apesar de ser resultado de séculos de miscigenação.

Cubas sempre é preterido em praticamente tudo a que se propõe e o exemplo mais explícito disso é sua relação com Lobo Neves: "um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e, todavia, foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura" (ASSIS, 1963ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Organização, introdução, revisão de texto e notas de Massaud Moisés. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1963., p. 87). Não há nenhuma explicação para a escolha de Neves a não ser que sua candidatura "era apoiada por grandes influências" (ASSIS, 1963ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Organização, introdução, revisão de texto e notas de Massaud Moisés. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1963., p. 87), o que abre a brecha para interpretações, porque, apesar de ser algo extremamente difícil de se provar, as pessoas afrodescendentes são preteridas o tempo todo - mesmo quando seu concorrente branco "não é mais esbelto, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático" - sem que nenhuma explicação plausível seja necessária, uma vez que está entranhada no pensamento da sociedade brasileira a suposta superioridade branca.

Da mesma forma que supostos códigos levaram a leituras de Cândido como branco, aqui há um que poderia levar a uma leitura de Cubas como afrodescendente, contudo, o texto de Machado nunca deixa nada explícito como o do já citado Azevedo, em que o personagem é discriminado e preterido abertamente. Portanto, mais uma vez paira "noire" a ambiguidade da situação e o importante são as possibilidades propostas por Machado de Assis. Imaginemos que, seguindo a tentadora ideia de que seu nome significa o oposto (como muitos o fizeram no caso do outro Neves), Lobo Neves seria um Cordeiro Negro, em oposição a um Cubas branco, um afrodescendente que lhe arrebatou a esposa e a candidatura. As palavras deste soariam racistas e sua dor de cotovelo justificada pelo mesmo viés, e isso inclusive "explicaria", com outras tintas, o espanto de seu pai que veio a falecer devido à mágoa que o episódio lhe causou.7 7 Lembremo-nos de que seu pai, segundo o narrador, teve "uma imaginação graduada em consciência" (ASSIS, 1963, p. 88). Imaginemos o espanto de um pai, que fez de tudo para associar sua origem à nobreza, vendo seu filho perder para um afrodescendente. Logicamente, todas essas são especulações, porque assim como nos casos de "Pai contra mãe" e de "Recitatif" é impossível atribuir uma raça específica às personagens.

Examinando a onomástica das personagens, encontramos outro trocadilho que extrapola a questão dos nomes que representam o contrário das características das personagens, no sentido de que enquanto Cândido, pelas circunstâncias, acaba por ser partícipe no aborto de Arminda, Lobo Neves poderia ser o que se acostumou a chamar hoje em dia de "corno manso", mesmo depois de lhe haver arrebatado a esposa a seu futuro comborço. Na fina ironia de Machado, Cubas torna-se amante da mulher que lhe foi arrebatada. Ler Cubas e Lobo Neves como personagens brancos é completamente distinto de lê-los como ou ambos afrodescendentes ou sendo de raças opostas. Cada uma dessas leituras é possível, sempre que não seja feita aprioristicamente e que se aceite o fato de que o processo de branqueamento levado a cabo no século XX filtra nosso entendimento das relações sociais e raciais no século XIX.

Um último detalhe que sempre foi objeto de curiosidade e, por isso, vale a pena mencionar, é o famoso e polêmico desfecho do livro no capítulo "Das negativas". Após listar algumas das coisas que não conseguiu realizar, Cubas aponta uma das negativas como saldo: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria" (ASSIS, 1963ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Organização, introdução, revisão de texto e notas de Massaud Moisés. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1963., p. 199). Além do fato de mais uma vez criar uma construção Signifyin(g) complexa, um saldo negativo que é positivo ou um saldo positivo que é uma negativa,8 8 Lembremo-nos outra vez mais de que Signifyin(g) incorpora vários tropos e figuras retóricas. o autor, Cubas, retoma o seu prólogo e suas rabugens de pessimismo e a tinta da melancolia, porém sem descuidar-se da pena da galhofa. Para uma personagem que é descrita durante toda a narrativa como completamente egoísta, chama a atenção o emprego da primeira pessoa do plural. Quem seria esse "nós" a quem Cuba se refere e, portanto, o grupo no qual se insere? Sendo Cubas uma personagem branca, as interpretações seguem um caminho; sendo ele afrodescendente, elas seguem outro.

Um Cubas branco se insere numa tradição ocidental, e Machado desvela ironicamente o desejo do colonizado de fazer parte do sistema de civilização imposto pela empreitada colonial com o que uma parcela de seus leitores provavelmente se identificaria, talvez até sem perceber que estavam sendo objeto de galhofa. Um Cubas afrodescendente, sem pretensão de esgotar as possibilidades de interpretação, uma pessoa arrancada de sua ancestralidade e inserida a fórceps, como tem acontecido até hoje, num ideal de cultura ocidental, acaba por levar uma vida inteira sem sentido, uma vida fútil de desperdícios e de negativas. A infertilidade, nesse caso, se lembrarmos o aborto de Arminda em oposição à sobrevivência do filho de um suposto Candinho branco que tem sido lido como metáfora do futuro da nação e resultado do processo de escravização, cobra outros sentidos também.

Machado e Morrison, ao "Signify" sobre o material cultural de que dispunham, criaram personagens e narrativas em que a remoção dos códigos raciais resultou em interpretações raciais apriorísticas. Machado, ao usar a literatura ocidental, revisou "o signo recebido literariamente explicado na relação representada por significado/significante em seu nível mais aparentemente denotativo" (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 47) e criticou "a natureza do próprio significado (branco)" (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 47), desafiando assim, "através de uma crítica literal do signo o significado do significado" (GATES JR., 1988GATES JR., Henry Louis. The Signifying Monkey: a Theory of African American Literary Criticism. New York: Oxford University Press, 1988., p. 47), fazendo com que o leão da sociedade oitocentista (efeito que se estende aos dias atuais) acreditasse que estavam falando a mesma língua. Porém, o Signifyin(g) Monkey, o Machado Significadô(r), está signifyin(g) sobre tal literatura e, portanto, falando outra língua e fazendo outro uso da linguagem e da literatura ocidental, de seus modelos e expectativas.

Referências

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  • WOOD, Marcus. The Black Butterfly: Brazilian Slavery and the Literary Imagination. Morgantown: West Virginia University Press, 2019.
  • 1
    Todas as traduções são de minha responsabilidade.
  • 2
    Para uma discussão sobre esse tema, veja-se: Dutra, 2019DUTRA, Paulo. Machado de Assis: Author of Don Quijote versus Brás Cubas: Author of Memórias póstumas. Chasqui: Revista de Literatura Latinoamericana, v. 48, n. 2, p. 299-314, 2019..
  • 3
    Para uma discussão sobre a imensa (e sistematicamente apagada pela crítica anglo-saxônica) influência de Dom Quixote na literatura de língua inglesa, veja-se: Mancing, 2005/2006MANCING, Howard. The Quixotic Novel in British and American Literature. Central Institute of English and Foreign Languages Bulletin, Hyderabad, v. 15/16, n. 2/1, p. 1-18, 2005/2006..
  • 4
    Talvez neste contexto o termo "malandro", sobretudo, mas de maneira nenhuma exclusivamente, em suas acepções positivas, seja o mais adequado para uma tradução.
  • 5
    O que Neves não era oficialmente, porque tal profissão era regulamentada e comissionada, e, além do mais, havia capitães do mato afrodescendentes. Em todo o caso, muitas pessoas, como o próprio conto e o estudo de Silvia Lara (1988LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., p. 318) revelam, dedicavam-se a capturar pessoas escravizadas exercendo esse trabalho na "informalidade", para usar uma expressão contemporânea.
  • 6
    Vale a pena anotar que em outra passagem costumeiramente mencionada quando se trata de identificar a raça de Candinho - "Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa" (1980, p. 287, grifos meus) - Machado recorre novamente ao campo semântico de "trocar" e "mudar".
  • 7
    Lembremo-nos de que seu pai, segundo o narrador, teve "uma imaginação graduada em consciência" (ASSIS, 1963ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Organização, introdução, revisão de texto e notas de Massaud Moisés. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1963., p. 88).
  • 8
    Lembremo-nos outra vez mais de que Signifyin(g) incorpora vários tropos e figuras retóricas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2022
  • Aceito
    11 Out 2022
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