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MACHADO DE ASSIS, O ESCRITOR EM FORMAÇÃO: RESENHA DE MACHADO DE ASSIS E AS PRIMEIRAS INCERTEZAS, DE WILTON JOSÉ MARQUES

MACHADO DE ASSIS, A WRITER IN THE MAKING: REVIEW OF MACHADO DE ASSIS E AS PRIMEIRAS INCERTEZAS, BY WILTON JOSÉ MARQUES

MARQUES, Wilton José. . Machado de Assis e as primeiras incertezas: a formação literária, o poema inédito e o malogro do primeiro livro. São Paulo: Alameda, 2022. 486 p.

Na mesma estante em que colocamos A juventude de Machado de Assis (1971MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.), de Jean-Michel Massa, vamos ter que acomodar o novo livro de Wilton José Marques, Machado de Assis e as primeiras incertezas: a formação literária, o poema inédito e o malogro do primeiro livro, lançamento recente da editora Alameda. Se, no primeiro, o estudo crítico e biográfico abrange a vida e a obra de Machado de Assis (1839-1908) da infância até a publicação de Falenas e Contos fluminenses, em 1870, o segundo contenta-se em esmiuçar o início da produção literária do escritor e analisar seus primeiros textos, escritos entre 1854 e 1860, e publicados em vários jornais fluminenses. O que motivou a redação desse livro foram as descobertas feitas pelo autor, em sua incansável e minuciosa pesquisa em fontes primárias, de novos dados que iluminam ainda mais o contexto literário, o meio jornalístico e a vida social e política daqueles anos que testemunharam o aparecimento do jovem Machado. Consequentemente, amplia-se a compreensão dos textos que ele escreveu no período, estimulado por amigos, companheiros de jornada e pelo próprio desejo de se tornar escritor.

Wilton demora-se nos comentários sobre a amizade entre Machado e o poeta português Francisco Gonçalves Braga, três anos mais velho. Jean-Michel Massa já havia abordado o assunto em sua obra, demonstrando como o segundo influenciou o primeiro, tendo sido seu primeiro "mestre". Mas Wilton vai mais longe: não só estuda os poemas de Gonçalves Braga como detalha sua luta para conquistar espaço entre escritores e jornalistas no Rio de Janeiro. Aos poucos, ele construiu uma rede de sociabilidade que acabou por beneficiar Machado. Por exemplo: em setembro de 1854, Gonçalves Braga começou a publicar no Periódico dos Pobres, jornal que acolheu a primeira publicação de Machado, um soneto, no mês seguinte, exatamente no dia 3. Em outubro e novembro do mesmo ano, o poeta português publicou poemas na Marmota Fluminense e em janeiro de 1855 foi a vez de Machado iniciar sua colaboração nesse jornal, cujo proprietário era Paula Brito, que se tornou seu protetor e editor das primeiras obras. Sem dúvida, Gonçalves Braga abriu caminhos para o amigo mais novo, com quem convivia, e até mesmo o influenciou como autor de poemas marcados pela dicção romântica. Aliás, em termos de orientação poética, a leitura de "Minha musa", de Machado, deixa claro que ele segue de perto o tema e a forma de "A minha lira", do poeta português - poemas que escreveram e publicaram em 1856.

Ainda no que diz respeito ao relacionamento dos dois jovens, Wilton esclarece a origem do poema "Maria Duplessis - (A dama das camélias) - (imitação de Alexandre Dumas Filho)", de Machado, publicado no Diário do Rio de Janeiro em abril de 1860 com o título extenso transcrito acima e incluído em Crisálidas (1864). Nem Jean-Michel Massa nem Galante de Sousa - autor da monumental Bibliografia de Machado de Assis (1955SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955.) - conseguiram determinar a fonte em que se baseou o escritor para realizar o que denominou "imitação". Como ambos procuraram versões do poema original, não chegaram à verdade dos fatos, narrada em minúcias por Wilton: o poema em questão foi escrito a partir de uma tradução em prosa do original, feita por Leonel de Alencar - irmão de José de Alencar - e publicada no Diário do Rio de Janeiro, em 30 de dezembro de 1855. Além disso, outro esclarecimento: também Gonçalves Braga escreveu a sua "imitação" e a publicou no mesmo jornal em 21 de janeiro de 1856. Nessa parte do livro, fica bem evidenciado que os dois jovens provavelmente fizeram juntos os poemas sobre Marie Duplessis, que os compararam, que trocaram ideias, que fizeram sugestões um ao outro. As passagens que tratam dessa amizade, portanto, ampliam o conhecimento que temos da juventude literária de Machado e explicam como ele conseguiu, muito jovem, colaborar em alguns periódicos fluminenses, tornando seu nome conhecido e preparando o terreno para o ingresso, em 1860, num jornal importante, o Diário do Rio de Janeiro, onde trabalhará por sete anos.

Mais ou menos a partir de 1858, diminui e logo cessa a ascendência de Gonçalves Braga sobre Machado. Como escreve Wilton, já é um "voo solo" todo o trabalho realizado pelo escritor no hebdomadário O Espelho, que circulou no Rio de Janeiro entre setembro de 1859 e janeiro de 1860. Nas páginas desse periódico, revela-se um folhetinista já dotado de humor e graça, bem como um crítico teatral competente, que deixou um registro perfeito das disputas entre o teatro romântico e o teatro realista nos palcos do Rio de Janeiro.

Outro fato sobre o qual os biógrafos de Machado tinham dúvidas - o trabalho como revisor de provas no Correio Mercantil - foi elucidado por Wilton. Com base no depoimento de Artur Barreiros, em artigo datado de 1884, sabemos agora que se tratou de um trabalho temporário, que durou cerca de um mês, entre janeiro e fevereiro de 1860, pouco antes do ingresso no Diário do Rio de Janeiro. Mais importante ainda foi determinar que o primeiro poema de Machado publicado no Correio Mercantil não foi "Esperanças", em 25 de outubro de 1858 - como pensavam seus biógrafos -, mas "O grito do Ipiranga", em 8/9 de setembro de 1856. Destaque-se que devemos a Wilton a descoberta desse texto até então inédito do jovem escritor. Como bom pesquisador, além de divulgá-lo, procurou estabelecer o que motivou a sua feitura. Embora fosse comum naqueles anos marcados pelo sentimento nacionalista que poetas escrevessem poemas para louvar a Independência do Brasil ou até mesmo o imperador d. Pedro II, talvez houvesse outro estímulo para o jovem poeta. Bastante pertinente, a hipótese levantada por Wilton é a admiração que Machado, naquela altura, tinha por um dos nossos primeiros escritores românticos, Teixeira e Sousa, que acabara de publicar, em março de 1855, o segundo tomo de seu extenso poema épico A Independência do Brasil. Em outubro do mesmo ano, Machado estampou na Marmota Fluminense o poema "O gênio adormecido", "Oferecido, dedicado e consagrado ao Ilmo. Sr. Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa". Nas passagens do livro em que é tratada a proximidade entre os dois escritores, o autor deixa bem claro que na origem de "O grito do Ipiranga" está A Independência do Brasil.

A leitura atenta dos jornais da época levou Wilton a uma nova descoberta. Em agosto de 1858, o Correio Mercantil anunciou a publicação de um livro de poemas de Machado. No mesmo jornal, em janeiro de 1860, e no Correio da Tarde, em fevereiro, outros anúncios traziam detalhes da publicação: o volume, intitulado Livro dos vinte anos, teria entre duzentas e 240 páginas e os interessados poderiam comprá-lo por assinatura "nas lojas de costume e na tipografia do Sr. Paula Brito, onde é impresso". Os biógrafos de Machado ignoraram os fatos em torno do que poderia ter sido o primeiro livro publicado pelo escritor. Wilton não só os reconstitui como levanta hipóteses para explicar o malogro da empreitada. Talvez o número de assinaturas tenha sido pequeno e o editor tenha desistido de publicar o livro; ou talvez a iniciativa tenha sido do próprio Machado, nessa altura mais crítico em relação aos primeiros poemas que escreveu; ou ainda seu maior envolvimento com o teatro, ao tornar-se crítico teatral em O Espelho e adepto do teatro realista. De qualquer modo, o mais importante foi trazer à luz um dado desconhecido da biografia do escritor. E como não poderia passar despercebido que o título Livro dos vinte anos evoca sua provável inspiração, a obra Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo, Wilton nos brinda com belas páginas dedicadas a demonstrar o quanto o jovem Machado leu e admirou os versos do poeta romântico, publicados postumamente em meados dos anos de 1850.

A contribuição de Machado de Assis e as primeiras incertezas para o conhecimento da vida e da obra de nosso maior escritor em sua juventude evidencia-se nos aspectos do livro que destaquei. Mas é preciso acrescentar que os novos dados trazidos à luz são sempre analisados com largueza, uma vez que Wilton nunca perde de vista o pano de fundo histórico, social, político e literário da época. É toda uma fase da vida de Machado e toda sua produção de poemas, crônicas, traduções, peças teatrais, artigos de opinião, crítica literária e teatral que são objeto de análises e interpretações, bem como a rede de relações pessoais e literárias que o escritor em formação cultivou entre os anos de 1854 e 1860. Escrito com sólido apoio em uma pesquisa nos jornais da época - possibilitada pela formidável hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - e pelo vasto conhecimento da obra de Machado e dos nossos escritores românticos, o livro de Wilton é exemplo de trabalho sério e bem fundamentado a ser seguido por estudiosos que desejem realizar pesquisas do mesmo teor e que tenham por objeto outros momentos da vida e da produção literária do autor de Dom Casmurro.

Referências

  • MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: ensaio de biografia intelectual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
  • SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    27 Set 2022
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