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RESENHA DE TODAS AS CRÔNICAS, DE MACHADO DE ASSIS

REVIEW OF TODAS AS CRÔNICAS, BY MACHADO DE ASSIS

ASSIS, Machado de. . Todas as crônicas . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021. 3 v. 1504 p.

Para Rita Martelini

Pelo menos quanto à recepção, talvez a crônica de Machado de Assis esteja em seu melhor momento. Galante de SousaSOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1955. 812 p., que em meados do século passado elencou as edições disponíveis das obras conhecidas desse escritor, hoje teria bastante dificuldade em fazê-lo - mesmo no que se refere a um gênero "menor", como a crônica.1 1 Cf. SOUSA, 1955, passim. A título de ilustração: uma série inteira, "Bons Dias!", originalmente publicada no final dos anos 1880 na Gazeta de Notícias e que demorou mais de meio século para integrar a obra machadiana em livro, está hoje inteiramente disponível para o público leitor de língua inglesa.2 2 Cf. ASSIS, 2018a. Essa mesma série, aliás, foi indicada para leitura por um dos vestibulares mais disputados do país, o da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nas seleções de 2022 e 2023, o que seguramente fará com que o cronista Machado ganhe mais espaço nas salas de aula do Ensino Médio.3 3 Cf. COMISSÃO PERMANENTE PARA OS VESTIBULARES, 2021.

Com o aumento do número de leitores, cresce também o interesse das editoras. As universitárias há algum tempo têm exercido papel fundamental no processo de edição e divulgação da crônica machadiana, e a elas devemos muitos dos melhores trabalhos feitos nessa área. A editora da Unicamp é a que nos tem oferecido mais títulos; cabe citar também a editora da Unesp e, mais recentemente, um periódico da Universidade Federal do Espírito Santo, a Machadiana Eletrônica.4 4 Cf. ASSIS, 2008a; 2008b; 2008c; 2009a; 2009b; 2011; 2014; 2018b; 2020; 2021. No que diz respeito às editoras comerciais, a participação é menor, pelo menos quanto a edições dignas de nota. Tais editoras costumam lançar bonitas caixas (boxes) com romances e contos machadianos, mas o ano de 2021 viu a chegada de algo que parecia improvável nesse mercado: uma caixa inteiramente dedicada à crônica de Machado. O feito é animador e merece nossa atenção, ainda que não se trate de uma edição para especialistas ou que traga novidades.

Todas as crônicas contém três volumes encantadores esteticamente (as capas, de Mateus Valadares, reproduzem ilustrações da imprensa oitocentista), e cada um deles é dedicado a uma das "fases" do cronista. O primeiro, intitulado "Aquarelas e outras crônicas", abrange a produção dos anos de 1859 a 1878 (as "outras crônicas" do título são as das séries "Comentários da Semana", "Crônicas", "Ao Acaso", "Histórias de Quinze Dias", "Histórias de Trinta Dias" e "Notas Semanais").5 5 Alguns títulos de séries foram pluralizados na designação adotada pela editora. Na imprensa fluminense, os títulos originais eram "Crônica" (na revista O Futuro), "História de Quinze Dias" e "História de Trinta Dias" (na Ilustração Brasileira). O segundo volume, "Balas de estalo e outras crônicas", cobre o período de 1883 a 1889 (as "outras crônicas" aí são as séries "A + B", "Gazeta de Holanda" e "Bons Dias!"). O terceiro volume, "A Semana e outras crônicas", cobre os anos de 1892 a 1900 (de 1892 a 1897, Machado foi o cronista d'"A Semana", na Gazeta de Notícias, e já desfrutava de um reconhecimento tão grande que nem precisava assinar seus textos; as "outras crônicas" são dois textos de 1900, publicados na mesma Gazeta, quando Machado substituiu o cronista da vez, Olavo Bilac). A tripartição propiciou um bom equilíbrio entre os volumes, quanto ao número de páginas.

Como costuma acontecer nesse tipo de publicação, não temos, na verdade, "todas as crônicas" conhecidas do autor. Mas é possível que tenhamos, sim, quase todas as crônicas publicadas em série e de cuja autoria não restem contestações. Textos de apoio e notas não são o forte dessa edição, o que, em princípio, causa estranheza, uma vez que estamos falando de crônicas publicadas há mais de um século, muitas delas num Brasil monárquico e escravagista. Em rigor, há apenas, nesse sentido, o prefácio de Henrique Marques Samyn (v. 1, p. 11-13), um panorama curto, mas eficiente, da trajetória do cronista. Nas quartas capas, temos a reprodução de trechos de autores que deixaram depoimentos sobre Machado: Marco Lucchesi, Octavio de Faria e Antonio Carlos Villaça (respectivamente, nos volumes 1, 2 e 3). Infelizmente, a edição não traz a íntegra desses textos nem mesmo informa as fontes.6 6 Pudemos localizar, pela internet, apenas a referência do texto de Lucchesi (sua Apresentação, como curador, a uma exposição organizada pela Biblioteca Nacional em 2008).

As notas fazem muita falta. O texto de Machado, evidentemente, vale por si, mas comentários de qualidade, feitos por quem tem boa convivência com os jornais da época, "iluminam" a leitura, respondem a pelo menos parte dos anseios e curiosidades do leitor, permitindo-lhe que avance na interpretação. Quem já leu crônicas de Machado anotadas por John Gledson, por exemplo, sabe como os comentários são, muitas vezes, um encanto a mais, quase uma "conversa" com o cronista. Outro problema está ligado ao estabelecimento de texto. Não são apresentados os critérios de como isso foi feito, se foram consultados os textos dos periódicos, se houve cotejo com edições em livro etc. Algo que pode incomodar alguns leitores está relacionado a isso. No volume 3, é difícil não sentir falta das crônicas que Machado republicou ainda em vida, no volume Páginas recolhidas, de 1899. Essas crônicas, que estão entre as mais famosas e apreciadas do autor e que foram intituladas por ele mesmo, como "O sermão do Diabo" (originalmente publicada em 4 de setembro de 1892) e "A cena do cemitério" (originalmente de 3 de junho de 1894), não constam nessa edição. Também não aparecem no volume dedicado a "A Semana" crônicas não escritas por Machado, mas pertencentes à série e publicadas durante o período em que Machado foi o responsável pela coluna. É o que acontece, por exemplo, com a crônica de 29 de abril de 1894, possivelmente de autoria de Ferreira de Araújo (um dos fundadores da Gazeta de Notícias). Na crônica seguinte, a de 6 de maio, Machado reaparece e já começa seu texto mencionando "[a] pessoa que me substituiu na semana passada". Sem o texto desse "substituto", a transição entre uma "Semana" e outra é prejudicada. Em suma: se o leitor puder ter apenas uma edição das crônicas de Machado, a recomendação é de que priorize as edições anotadas.

Isso não significa que a edição da Nova Fronteira não mereça um lugar na estante ou que não tenha seus méritos. Sua diagramação propicia uma leitura agradável, e ela traz uma possível contribuição à forma como nos referimos a esses textos de Machado: em vez das datas, os sumários designam as crônicas pelas palavras iniciais (um procedimento parecido com o que fazemos com poemas sem título, adotando o primeiro verso). Ficaria ainda melhor se a edição trouxesse um índice, com essas "primeiras palavras" em ordem alfabética, pois facilitaria a localização de um texto específico.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Bons dias!. introd. e notas de John Gledson. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008a. 320 p.
  • ______. Comentários da semana. Org., introd. e notas de Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas: Editora da Unicamp, 2008b. 216 p.
  • ______. Notas semanais. Org., introd. e notas de John Gledson e Lúcia Granja. Campinas: Editora da Unicamp, 2008c. 280 p.
  • ______. História de quinze dias. Org., introd. e notas de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas: Editora da Unicamp, 2009a. 304 p.
  • ______. O espelho. Org., introd. e notas de João Roberto Faria. Campinas: Editora da Unicamp, 2009b. 200 p.
  • ______. História de quinze dias, história de trinta dias: crônicas de Machado de Assis - Manassés. Org. de Silvia Maria Azevedo. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 224 p.
  • ______. O futuro. Org., introd. e notas de Rodrigo Camargo de Godoi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. 168 p.
  • ______. Good Days! = Bons dias!: Chronicles by Machado de Assis 1888-1889: Bilingual Edition. Translated by Ana Lessa-Schmidt with Greicy Pinto Bellin. Hanover: New London Librarium, 2018a. 428 p.
  • ______. A Semana [1894]. Edição, apresentação e notas por John Gledson. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 1, n. 2, 2018b. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/867/422>. Acesso em: 4 mar. 2022.
    » https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/867/422
  • ______. A + B [1886]. Edição e notas de Gilson Santos e José Américo Miranda. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 3, n. 6, 2020. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/983/764>. Acesso em: 4 mar. 2022.
    » https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/983/764
  • ______. A Semana [1895]. Edição, apresentação e notas por John Gledson. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, 2021. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/993?fbclid=IwAR00N3AT9AbdLAcEPBQtXhXfa4_iI4Zd8pJDiYujSbtOKKuvSdhI4ymzU1I>. Acesso em: 4 mar. 2022.
    » https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/993?fbclid=IwAR00N3AT9AbdLAcEPBQtXhXfa4_iI4Zd8pJDiYujSbtOKKuvSdhI4ymzU1I
  • COMISSÃO PERMANENTE PARA OS VESTIBULARES. Lista de obras 2022. Campinas: Comissão Permanente para os Vestibulares, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vestibular-2022/lista-de-livros-2022/ >. Acesso em: 4 mar. 2022.
    » https://www.comvest.unicamp.br/vestibular-2022/lista-de-livros-2022/
  • LUCCHESI, Marco. [Apresentação]. In: BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Machado de Assis: 100 anos de uma cartografia inacabada. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. p. 6-7. Disponível em: <Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1250757/icon1250757.pdf >. Acesso em: 4 mar. 2022.
    » http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1250757/icon1250757.pdf
  • SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1955. 812 p.
  • 1
    Cf. SOUSA, 1955SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1955. 812 p., passim.
  • 2
    Cf. ASSIS, 2018a______. Good Days! = Bons dias!: Chronicles by Machado de Assis 1888-1889: Bilingual Edition. Translated by Ana Lessa-Schmidt with Greicy Pinto Bellin. Hanover: New London Librarium, 2018a. 428 p..
  • 3
    Cf. COMISSÃO PERMANENTE PARA OS VESTIBULARES, 2021COMISSÃO PERMANENTE PARA OS VESTIBULARES. Lista de obras 2022. Campinas: Comissão Permanente para os Vestibulares, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vestibular-2022/lista-de-livros-2022/ >. Acesso em: 4 mar. 2022.
    https://www.comvest.unicamp.br/vestibula...
    .
  • 4
    Cf. ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Bons dias!. introd. e notas de John Gledson. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008a. 320 p.; 2008b______. Comentários da semana. Org., introd. e notas de Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas: Editora da Unicamp, 2008b. 216 p.; 2008c______. Notas semanais. Org., introd. e notas de John Gledson e Lúcia Granja. Campinas: Editora da Unicamp, 2008c. 280 p.; 2009a______. História de quinze dias. Org., introd. e notas de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas: Editora da Unicamp, 2009a. 304 p.; 2009b______. O espelho. Org., introd. e notas de João Roberto Faria. Campinas: Editora da Unicamp, 2009b. 200 p.; 2011______. História de quinze dias, história de trinta dias: crônicas de Machado de Assis - Manassés. Org. de Silvia Maria Azevedo. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 224 p.; 2014______. O futuro. Org., introd. e notas de Rodrigo Camargo de Godoi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. 168 p.; 2018b______. A Semana [1894]. Edição, apresentação e notas por John Gledson. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 1, n. 2, 2018b. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/867/422>. Acesso em: 4 mar. 2022.
    https://periodicos.ufes.br/machadiana/is...
    ; 2020______. A + B [1886]. Edição e notas de Gilson Santos e José Américo Miranda. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 3, n. 6, 2020. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/983/764>. Acesso em: 4 mar. 2022.
    https://periodicos.ufes.br/machadiana/is...
    ; 2021______. A Semana [1895]. Edição, apresentação e notas por John Gledson. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, 2021. Disponível em: <https://periodicos.ufes.br/machadiana/issue/view/993?fbclid=IwAR00N3AT9AbdLAcEPBQtXhXfa4_iI4Zd8pJDiYujSbtOKKuvSdhI4ymzU1I>. Acesso em: 4 mar. 2022.
    https://periodicos.ufes.br/machadiana/is...
    .
  • 5
    Alguns títulos de séries foram pluralizados na designação adotada pela editora. Na imprensa fluminense, os títulos originais eram "Crônica" (na revista O Futuro), "História de Quinze Dias" e "História de Trinta Dias" (na Ilustração Brasileira).
  • 6
    Pudemos localizar, pela internet, apenas a referência do texto de Lucchesi (sua Apresentação, como curador, a uma exposição organizada pela Biblioteca Nacional em 2008LUCCHESI, Marco. [Apresentação]. In: BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Machado de Assis: 100 anos de uma cartografia inacabada. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. p. 6-7. Disponível em: <Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1250757/icon1250757.pdf >. Acesso em: 4 mar. 2022.
    http://objdigital.bn.br/acervo_digital/d...
    ).

Pareceres

Sobre o autor do parecer

Avaliador A (Lúcia Granja): Correções obrigatórias.

Este parecer talvez incida mais sobre a edição do que sobre a resenha em questão. Infelizmente, a meu ver, apesar da excelente percepção crítica do resenhista (realmente destaco essa qualidade), o texto pode ser ainda mais incisivo, sendo o meu desagrado uma consequência do destaque a mais uma edição incompleta das crônicas machadianas. No meu ponto de vista, além das críticas que o resenhista já faz à edição (falta de notas, de paratextos, da identificação de paratextos etc.), a resenha deve apontar que foi feita recentemente, por Silvia Azevedo, a identificação de autoria de mais trezentas crônicas de Machado de Assis. Ela deve ainda reforçar a crítica à falta de notas explicativas do texto e dos contextos das crônicas, uma vez que, pouco a pouco, ao menos metade das séries de crônicas já receberam/estão recebendo essas notas/edição crítica. Seria interessante, por último, observar se a edição ao menos aponta estudos/possibilidades de se consultar outras edições. Fica a critério do resenhista fazer esses acréscimos (não há essa opção na "Recomendação" e por isso eu escolhi "Correções obrigatórias"), mas eu acho que, ao menos, esses dois primeiros pontos destacados devem ser reforçados a respeito da "bela" edição, de utilidade duvidosa. Reitero a honestidade intelectual do(a) resenhista.

  • recomendação: revisão

Pareceres

Sobre o autor do parecer

Avaliador B (Roberta da Costa Sousa): Aceitar.

A resenha em questão apresenta satisfatoriamente as características da obra Todas as crônicas, de Machado de Assis, e aponta de forma correta para alguns de seus problemas e limites.

  • recomendação: aceitar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2022
  • Aceito
    16 Mar 2022
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