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INTERAÇÕES DISCURSIVAS EM AULAS DE QUÍMICA AO REDOR DE ATIVIDADES EXPERIMENTAIS: UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA1 1 Para Bernstein, um texto legítimo significa qualquer atividade ou tarefa realizada pelo estudante que merece ser avaliada.

DISCURSIVE INTERACTIONS IN CHEMSTRY CLASSROOMS RELATED TO EXPERIMENTAL ACTIVITIES: A SOCIOLOGICAL ANALYSIS

Resumos

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com dois professores de química do ensino médio. Com base na observação e no registro das aulas, analisamos as interações verbais entre professores e alunos em torno da definição das atividades experimentais, utilizando, para isso, uma perspectiva oriunda da sociologia da educação desenvolvida por Basil Bernstein, o que nos permitiu contrastar as situações de ensino originadas em contextos escolares socialmente diferentes. Os resultados obtidos nos indicaram quais práticas pedagógicas se mostraram mais favoráveis à intervenção dos alunos e à produção por estes das tarefas solicitadas. Percebemos que os alunos submetidos à prática cuja professora exerce maior controle sobre a comunicação tiveram menos oportunidade de intervir nas atividades e uma instrução sobre a tarefa mais pobre que aqueles que possuíam maior liberdade nas interações com o professor.

Interações discursivas; Prática pedagógica; Atividades experimentais.


This article presents the results of a research done with two chemistry teachers of secondary schools. Based on observation and on registering classes, we analyzed verbal interactions amongst teachers and students around experimental activities and the tasks that followed them. We used a sociologic perspective from Basil Bernstein to analyze our data, which allowed us to contrast the teaching in two socially different school contexts. The results pointed out those pedagogic practices were most favorable to intervention of students and to production of the requested tasks. We noticed that the students submitted to a practice which teacher has a greatest control over communication had fewer chances to intervene during the activities and also a poorest instruction than students that had a major freedom during interactions with their teacher.

Discursive interactions; Pedagogic practice; Experimental activities.


INTRODUÇÃO

Passados mais de 40 anos que, de acordo com Coll e Edwards (1998COLL, C.; EDWARDS, D. (org.). Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula: aproximações ao estudo do discurso educacional. Porto Alegre: Artmed, 1998.), o "discurso educativo tornou-se um foco prioritário de atenção para aqueles que pesquisam os processos escolares de ensino e aprendizagem" (p. 9), temos a sensação de que muito ainda deve ser realizado para obtermos uma tão desejada teoria sobre a prática educativa, a qual leve em conta aspectos do discurso educativo. No campo específico da pesquisa em educação em ciências, 24 anos nos separam da publicação do livro Talking science: language, learning and values, de Jay Lemke (LEMKE, 1997LEMKE, J. Aprender a hablar ciencia: lenguaje, aprendizaje y valores. Barcelona: Paidós, 1997.), um marco de referência para os estudos sobre o discurso nas aulas de ciência (KELLY, 2008KELLY, G. Discourse in science classrooms. In: ABELL, S.K.; LEDERMAN, N.G. (eds.). Handbook of research on science education. New York: Routledge, 2008, p. 443-469.). Desde então, a linguagem e as interações discursivas tornaram-se dois dos focos principais da pesquisa em nossa área. Entretanto, como já foi dito, parece haver muito ainda por percorrer, e um dos pontos débeis da agenda dessa pesquisa vem a ser a formação de professores. Segundo Gregory Kelly (2008KELLY, G. Discourse in science classrooms. In: ABELL, S.K.; LEDERMAN, N.G. (eds.). Handbook of research on science education. New York: Routledge, 2008, p. 443-469.), ainda existe pouca pesquisa produzida relacionando o discurso e a formação de professores, e os resultados já consensuados da investigação ainda não foram capazes de influenciar as práticas de ensino e a aprendizagem em sala de aula.

Talvez parte dessa debilidade possa ser explicada considerando a multiplicidade de abordagens teóricas e metodológicas empregadas nos estudos sobre a linguagem e as interações discursivas. A esse respeito, Coll e Sánchez (2008) argumentam que essa situação é esperada, levando em conta que esse tipo de investigação encontra-se ainda em sua primeira fase de desenvolvimento. Com isso, o diálogo e a compreensão mútua dos resultados de pesquisas originadas por marcos teórico-metodológicos tão distintos entre si têm sido comprometidos. A introdução das teorias socioculturais sobre a aprendizagem na pesquisa em torno dos processos discursivos em educação em ciências, por sua parte, ainda não produziu conhecimento sobre como criar novos contextos educacionais para o ensino e a aprendizagem baseados nessas teorias (KELLY, 2008KELLY, G. Discourse in science classrooms. In: ABELL, S.K.; LEDERMAN, N.G. (eds.). Handbook of research on science education. New York: Routledge, 2008, p. 443-469.).

Esse descompasso entre a pesquisa e seus resultados e a prática educativa não é um privilégio da investigação sobre a linguagem e as interações discursivas, muito embora a proposição de novos modelos para o ensino baseados em conhecimento gerado pela pesquisa acadêmica seja, de certo modo, desencorajada em função do desejo de relações mais horizontais entre pesquisadores e docentes. Essa reorientação nas relações entre pesquisadores e docentes tem a ver, segundo Coll e Sánchez, com a "crise do modelo que estabelece uma relação epistemológica hierárquica e unidirecional entre a investigação acadêmica e a prática profissional" (2008, p. 15). Apesar disso, as chamadas pesquisas colaborativas entre pesquisadores e docentes que propõem novos modelos para essas relações ainda carecem de mecanismos para levar à prática os resultados de um campo crescente de conhecimento e avaliar sua implementação nos espaços educativos.

Neste artigo, analisamos e contrastamos a prática pedagógica de dois professores de química envolvendo atividades experimentais e que ensinam em escolas pertencentes a diferentes contextos socioeconômicos. Essa análise nos possibilita uma breve discussão sobre como o uso dos resultados dessa pesquisa pode ser empregado na formação inicial e continuada de professores dessa disciplina acerca dos temas aqui tratados.

SITUANDO O PROBLEMA

Avaliação recente da aprendizagem em química por estudantes do segundo ano do ensino médio na Bahia, Brasil, revela um quadro desolador: considerado como muito crítico, encontra-se abaixo do resultado obtido para as disciplinas física e biologia (BAHIA, 2012). Inúmeros fatores podem estar configurando esse desempenho dos estudantes baianos, alguns deles velhos conhecidos dos debates sobre a educação química escolar: professores malformados, turmas superlotadas de alunos, currículo descolado dos contextos cotidianos, ausência de laboratórios escolares, ensino memorístico e atrelado à exploração da linguagem simbólica da química, tempo limitado para o ensino e aprendizagem, entre outros. Sem ignorar a contribuição de cada um desses elementos para o sombrio panorama, nossa pesquisa orienta-se por premissas que nos levam a olhar para o interior das salas de aula e os intercâmbios que nelas ocorrem. Acreditamos que, como espaços de comunicação, as salas de aula nem sempre constituem meios transparentes, e podem dar origem a incompreensões e desentendimentos entre aquilo que docentes e alunos tentam comunicar uns aos outros (SANTOS, 2013SANTOS, B. F. Uma aproximação ao estudo entre a linguagem e o ensino de ciências. In: CHAPANI, D.T.; Silva, J. (orgs.). Debates em educação científica. São Paulo: Escrituras, 2013. p. 107-114.). Tais incompreensões e desentendimentos, quando acontecem, podem conduzir a rechaços e fracassos por parte dos estudantes.

A pesquisa em torno das interações discursivas interessa-se sobremaneira sobre os processos de cognição situada, ou seja, em como professores são capazes de contribuir com a promoção da aprendizagem de seus alunos em sala de aula, e considera a linguagem um artefato cultural mediador entre o conhecimento e os aprendizes (NASCIMENTO, 2007NASCIMENTO, S. A linguagem e a investigação em Educação Científica: uma breve apresentação. In: NARDI, R. (org.). A pesquisa em Ensino de Ciências no Brasil: alguns recortes. São Paulo: Escrituras, 2007. p. 131-142.). Entretanto, a ênfase predominante dessa linha de pesquisa recai sobre o escrutínio das perguntas dos docentes aos estudantes, sobre as respostas destes ou sua participação no discurso do tipo argumentativo (LOUCA; ZACHARIA; TZIALLI, 2012LOUCA, L.; ZACHARIA, Z.; TZIALLI, D. Identification, interpretation-evaluation, response: an alternative framework for analyzing teacher discourse in science. International Journal of Science Education, n. 12, v. 34, 2012. p. 1823-1856.). Investiga-se, principalmente, a relação entre esses intercâmbios e a aprendizagem dos conceitos e a aquisição da linguagem científica. No entanto, durante uma aula de química, diferentes tipos de episódios se integram sucessivamente, em sequências que correspondem não somente ao conteúdo a ser transmitido, mas também a estratégias de ensino que envolvem atividades e tarefas que os professores solicitam de seus alunos que as realizem. Para o êxito dessas estratégias, as interações verbais também constituirão um dos fatores determinantes do processo ensino-aprendizagem (ALTET, 2000ALTET, M. Análise das práticas dos professores e das situações pedagógicas. Porto: Porto Editora, 2000.). Sabemos, por outro lado, por meio de pesquisas etnográficas, que "o progresso nas lições escolares requer não apenas a compreensão estrita e passiva de conteúdo, mas a aquisição de competência de se envolver nas conversações em sala de aula" (SILVA; MORTIMER, 2010SILVA, A.C.; MORTIMER, E.F. Caracterizando estratégias enunciativas em uma sala de aula de química: aspectos teóricos e metodológicos em direção à configuração de um gênero do discurso. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 121-153, 2010. Disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID231/v15_n1_a2010.pdf>. Acesso em: 27 maio 2014.
<http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Ar...
, p. 123). Cabe, então, também investigar esses intercâmbios ao redor da definição de atividades e tarefas e sua relação com o engajamento dos estudantes naquilo que lhes é proposto nas aulas de ciências.

Sobre a participação e o desempenho dos estudantes nas atividades e tarefas, alguns autores compreendem o engajamento daqueles como uma forma de trabalhoconfigurado em uma dada organização:

Antes mesmo de se tornarem em momentos de aprendizagem, as actividades didácticas - escutar, intervir, responder a perguntas, resolver problemas, redigir - são tarefas consignadas aos alunos, que serão depois vigiadas, controladas e recompensadas pelo professor. (PERRENOUD, 1995, p. 117)

Sua participação e o trabalho solicitado exigem determinadas regras a serem conhecidas e obedecidas, e os estudantes, segundo Perrenoud, "tentam negociar ou virar a seu favor as regras e as ordens" (1995, p. 118). Segundo Doyle (citado por NUTHALL, 2000NUTHALL, G. El razonamiento y el aprendizaje del alumno en el aula. In: BIDDLE, B.J.; GOOD, T.L.; GOODSON, I.F. (comp.). La enseñanza y los profesores II: la enseñanza y sus contextos. Barcelona: Paidós, 2000. p. 19-113.), a participação dos alunos é função das exigências impostas pelas tarefas, e seu engajamento, um produto da clareza das instruções, da ambiguidade de seus resultados e o grau de risco e de esforço que implicam completar a tarefa. O papel do professor como mediador que fornece os recursos adequados à execução da tarefa exige que este explicite aos seus alunos o que pretende destes, uma vez que estes com muita frequência têm uma noção muito vaga sobre o que devem fazer (LOPES et al. 2010LOPES, J.B. et al. Investigação sobre a mediação de professores de ciências físicas em sala de aula. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010.).

A pesquisa sobre as interações discursivas em sala de aula nos informa sobre a existência de regras contextuais que são específicas das situações de comunicação que esses espaços sociais proporcionam. De acordo com Green (citado por CAZDEN, 1997GREEN, J. L. Research on teaching as a linguistic process: A state of the art. In: GORDON, E.W. (Ed.). Review of research in education, v. 10. Washington: AERA apud CAZDEN, C.B.El discurso del aula. In: WITTROCK, M.C. (comp.). La investigación de la enseñanza, v. 3. Barcelona: Paidós, 1997, p. 627-709.), as atividades apresentam estruturas de participação cujas regras são implícitas e se transmitem e se aprendem por meio das interações. Tais regras e suas finalidades raras vezes se tornam explícitas e são definidas por Edwards e Mercer (1994) como regras educacionais básicas. Para esses autores, os problemas mais graves de comunicação na educação não se limitam às questões de conteúdo:

Los malentendidos más profundos y graves pueden ser los relacionados con las reglas subyacentes, implícitas, de interpretación, que definen como hay que 'tomar' y responder a trozos determinados de habla, texto o lenguaje en clase. (EDWARDS; MERCER, 1994, p. 76)

Considerando que cada disciplina escolar apresenta particularidades como esquemas gerais próprios, e que contribuem com o professor com exemplos, problemas, explicações e exercícios, aquelas regras educacionais básicas devem se constituir de maneira específica nas situações de ensino. Além disso, as atividades e tarefas adquirem grande importância para o ensino e a aprendizagem, em função de sua estreita relação com o aproveitamento e as avaliações dos estudantes. Interessa então averiguar como, por exemplo, em química, professores e alunos interagem discursivamente em torno da definição de tarefas e atividades, e como tais interações e intercâmbios contribuem para o êxito dos aprendizes na realização de seus trabalhos.

A pesquisa das interações discursivas em torno das atividades e tarefas vem assim completar aquela que investiga o ensino e a aprendizagem da linguagem e dos conceitos científicos, e procura conhecer como os professores são capazes de promover ou limitar o engajamento de seus estudantes nos ambientes de sala de aula e de tornar explícitas para estes as regras para sua participação, realização e avaliação de suas produções. Entretanto, ainda se encontra pendente para essa linha de investigação a integração dos contextos microssociais de interação, como a sala de aula, com os contextos sociais, culturais e históricos mais amplos que englobam aqueles. Segundo Daniels (1995DANIELS, H. Pedagogic practices, tacit knowledge and discoursive discrimination: Bernstein and post-Vygotskian research. British Journal of Sociology of Education, n. 4, v. 16, 1995.), há uma persistente relutância dos adeptos das teorias originadas na psicologia, como a teoria sociocultural de Vigotsky, em considerar o mundo social para além das interações interpessoais que ocorrem em cenários particulares como as escolas. De fato, de acordo com Daniels, os efeitos dos processos de escolarização não são uniformes, pois as escolas diferem entre si e essas diferenças podem assumir significâncias sociais além daquelas psicológicas ou semióticas identificadas pelas pesquisas orientadas pela teoria sociocultural. E, se tais diferenças, por sua vez, implicam na desigualdade educativa, cabe também à pesquisa investigar como o discurso escolar é capaz de colaborar com a reprodução dessas desigualdades.

Para Gregory Kelly (2008KELLY, G. Discourse in science classrooms. In: ABELL, S.K.; LEDERMAN, N.G. (eds.). Handbook of research on science education. New York: Routledge, 2008, p. 443-469.), o discurso assume um papel central na mediação do conhecimento nas salas de aula e a aproximação dos pesquisadores das questões relacionadas com a equidade educativa de um ponto de vista da linguagem implica levar em conta que a aprendizagem é mediada não somente por fatores linguísticos, mas também por fatores sociais e culturais (LEE, 2005LEE, O. Science education with English language learners: synthesis and research agenda. Review of Educational Research, n. 4, v. 75, p. 491-521, 2005.). Estudos que incluam os contextos educacionais como os cenários de nossas pesquisas exigem assim um marco teórico que dê conta das complexas relações entre linguagem, cultura e a sociedade mais ampla que abarca esses contextos, pois, entre as diferenças apontadas por Daniels como efeitos dos processos de escolarização, podem ser incluídas aquelas resultantes das maneiras como os professores de ciência promovem ou limitam o engajamento e a participação de seus estudantes nas atividades e tarefas realizadas em sala de aula e, desse modo, contribuem a aproximar ou afastar as crianças e os adolescentes da ciência.

SOBRE A TEORIA DO DISCURSO PEDAGÓGICO

Basil Bernstein, sociólogo da educação britânico, é um autor cuja obra está centrada nas relações entre linguagem e educação e, de acordo com ele, seria um papel da sociologia da educação "explicitar as formas como as instituições educacionais expressam características da sociedade da qual fazem parte" (SANTOS, 2003SANTOS, B. F. Uma aproximação ao estudo entre a linguagem e o ensino de ciências. In: CHAPANI, D.T.; Silva, J. (orgs.). Debates em educação científica. São Paulo: Escrituras, 2013. p. 107-114., p. 21). Em seu pensamento, a educação ocupa um papel central na produção e reprodução das desigualdades e injustiças sociais, e os vieses que a educação apresenta podem significar uma ameaça econômica e cultural para a democracia. Esses vieses, em sua compreensão, "están muy profundamente arraigados en la misma estructura de los procesos de transmisión y adquisición del sistema educativo y sus supuestos sociales" (BERNSTEIN, 1998BERNSTEIN, B. Pedagogía, control simbólico e identidad. Madrid: Morata, 1998., p. 24). Bernstein, por meio de sua teoria do discurso pedagógico, buscou tornar possível a descrição e a integração entre os níveis de interação, os institucionais e os macroinstitucionais em uma mesma formulação analítica e teórica. Como um sociólogo crítico do processo de escolarização, Bernstein inclui a pedagogia, o currículo e a avaliação como formas de controle social (MAINARDES; STREMEL, 2010MAINARDES, J.; STREMEL, S. A teoria de Basil Bernstein e algumas de suas contribuições para as pesquisas sobre políticas educacionais e curriculares. Teias, n. 22, v. 11, 2010. Disponível em:<http://ri.uepg.br:8080/riuepg/bitstream/handle/123456789/243/ARTIGO_TeoriaBasilBernstein.pdf?sequence=1f>. Acesso em: 28 maio 2014.
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).

Em Bernstein, o processo de comunicação pedagógica se constitui no mais importante meio de controle simbólico, por meio do qual as escolas são capazes de distribuir os estudantes quanto ao sucesso e fracasso escolar, internalizando hierarquias relacionadas com a estrutura social as quais são inscritas no próprio aparelho pedagógico (SANTOS, 2003). Por meio dos conceitos de classificação e enquadramento, que permitem a esse autor investigar as relações de poder e controle veiculadas pelos sistemas educacionais, seria possível caracterizar diferentes modalidades da prática pedagógica e como tais práticas proporcionam aos alunos os princípios necessários para elaborar os textos legítimos1 1 Para Bernstein, um texto legítimo significa qualquer atividade ou tarefa realizada pelo estudante que merece ser avaliada. . A classificação refere-se à delimitação de fronteiras entre sujeitos, discursos e objetos, enquanto o enquadramento refere-se à comunicação legítima para as diversas categorias de acordo com as fronteiras estabelecidas pelas relações de poder. Em outras palavras, a classificação compreende o quê da prática pedagógica, enquanto o enquadramento, o como essa prática se realiza.

O autor reconhece dois conjuntos de regras presentes no enquadramento e que são chamadas de discurso regulativo e de discurso instrucional. O primeiro discurso refere-se à ordem social e o segundo, ao discurso sobre conhecimentos e habilidades. O discurso de instrução está sempre integrado ao discurso regulador, que constitui o discurso dominante (BERNSTEIN, 1998BERNSTEIN, B. Pedagogía, control simbólico e identidad. Madrid: Morata, 1998.). Nos contextos educacionais, a classificação (ou o poder) permite aos sujeitos adquirir as regras de reconhecimento, pois por meio delas é possível reconhecer a especificidade de um determinado contexto. Já o enquadramento (ou o controle) permite aos sujeitos adquirir as regras de realização, as quais permitem, por sua vez, a produção do texto adequado àquele contexto em que se encontram (SANTOS, 2003SANTOS, B. F. Uma aproximação ao estudo entre a linguagem e o ensino de ciências. In: CHAPANI, D.T.; Silva, J. (orgs.). Debates em educação científica. São Paulo: Escrituras, 2013. p. 107-114.). Esses dois conjuntos de regras constituem o código pedagógico (ROSA; VEIT, 2011ROSA, R.T.; VEIT, M.H. Estágio docente: análise de interações sociais em sala de aula. Educação e Realidade, v. 36, n. 1. p. 295-316, 2011. Disponível em: <http://www.redalyc.org/pdf/3172/317227056016.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2014.
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). Segundo Bernstein, "el código es un principio regulador, adquirido de forma tácita, que selecciona e integra los significados relevantes, su forma de realización y los contextos evocadores" (1998, p. 138).

Diferentes modalidades de prática pedagógica apresentam valores distintos de classificação e enquadramento. Para Bernstein, esses valores variam entre forte e fraco. Uma classificação forte significa que as categorias estão bem-separadas entre si, e seus limites são bem-definidos, enquanto uma classificação fraca implica que os limites entre as categorias são menos definidos e o grau de separação entre elas é menor. Um enquadramento forte significa que o transmissor2 2 Bernstein utiliza os termos transmissores e adquirentes para referir-se aos sujeitos das relações pedagógicas, mas tais termos não carregam juízos de valor com respeito à modalidade da prática. Ver comentário de Rosa e Veit (2011, p. 298) a esse respeito. nas relações pedagógicas mantém um controle sobre a transmissão, enquanto, em uma modalidade com um enquadramento fraco, o transmissor apresenta um controle menor sobre a prática. A classificação traduz as relações de poder e estabelecem identidades e vozes, ao tempo em que constrói o espaço social com suas estratificações, distribuições e localizações. Aplicado a qualquer relação pedagógica, o conceito de enquadramento se refere ao controle sobre a comunicação e interações entre os sujeitos: ele inclui o controle sobre a seleção, a sequência, o ritmo ou compassamento e os critérios de avaliação (BERNSTEIN, 1998BERNSTEIN, B. Pedagogía, control simbólico e identidad. Madrid: Morata, 1998.). Segundo Bernstein, os valores de enquadramento podem variar (entre forte e fraco) com respeito a qualquer um dos elementos da prática: "podemos tener un enmarcamiento débil en relación con el ritmo, pero fuerte con respecto a otros aspectos del discurso pedagógico" (p. 45).

De acordo com o modelo de discurso pedagógico de Bernstein, sem a regra de reconhecimento não é possível uma comunicação legítima em um determinado contexto. Como são as relações de poder que dão origem a diferentes distribuições sociais das regras de reconhecimento, ele acredita, por exemplo, que "en un nivel más concreto, es muy posible que algunos niños de las clases sociales desfavorecidas se mantengan en silencio en la escuela a causa de la distribución desigual de las reglas de reconocimiento" (BERNSTEIN, 1998BERNSTEIN, B. Pedagogía, control simbólico e identidad. Madrid: Morata, 1998., p. 49). Entretanto, possuir a regra de reconhecimento não garante que os sujeitos serão capazes de produzir uma comunicação legítima. Nesse caso eles não possuem a regra de realização e, desse modo, são incapazes de produzir o texto legítimo esperado. A aquisição das regras de realização, por sua parte, depende dos valores de enquadramento da prática pedagógica.

A aplicação da teoria do discurso pedagógico de Basil Bernstein ao estudo dos processos de escolarização na área de ciências tem sido realizada pelo grupo português ESSA (Estudos Sociológicos da Sala de Aula), liderado pela pesquisadora Ana Maria Morais. Ampliando o escopo da teoria de Bernstein com o socioconstrutivismo de Vigotsky, muitos de seus estudos e pesquisas buscaram verificar quais as características da prática pedagógica mais favorável para a aquisição de conhecimento e de competências científicas por estudantes de diferentes origens sociais. Entre suas descobertas que são de especial interesse para nós, encontra-se aquela que mostra que o efeito da prática pedagógica pode se sobrepor ao efeito da origem social dos estudantes e sugerem um modelo de pedagogia mista para uma aprendizagem científica, social e afetiva bem-sucedida (MORAIS; NEVES, 2001MORAIS, A.M.; NEVES, I. "Pedagogic social contexts: studies for a sociology of learning". In: MORAIS, A.M. et al. (eds.). Towards a sociology of pedagogy: the contribution of Basil Bernstein to research. New York: Peter Lang, 2001. p. 185-221.). Nessa modalidade de prática pedagógica, os elementos que caracterizam as relações de enquadramento são alterados de modo a tornar explícitos para os estudantes os critérios de avaliação, um enfraquecimento da ritmagem e do sequenciamento, e também uma alteração na classificação do espaço da sala de aula, enfraquecendo o espaço entre professores e alunos (HOADLEY; MULLER, 2013HOADLEY, U.; MULLER, J. Códigos, pedagogia e conhecimento: avanços na sociologia da educação bernsteiniana. In: APPLE, M.W.; BALL, S.J.; GANDIN, L.A. Sociologia da educação: análise internacional. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 89-98.).

Neste artigo, para a análise das interações discursivas de dois professores de química durante a definição de atividades experimentais, buscaremos caracterizar as práticas pedagógicas de acordo com as chamadas regras discursivas que constituem o enquadramento: a seleção, a sequência, a ritmagem, os critérios de avaliação e a relação entre discursos acadêmico e não acadêmico. Com essa análise, verificaremos se é possível identificar os elementos presentes da prática que facilitam ou dificultam, para os estudantes, a aquisição das regras de realização com respeito às atividades e tarefas definidas pelos professores por meio das quais é possível produzir o texto legítimo e adequado ao contexto das aulas de química.

OS CENÁRIOS E OS SUJEITOS DA PESQUISA

Os dados empíricos apresentados e analisados neste artigo foram coletados em duas escolas da cidade de Jequié3 3 Essa cidade possui em torno de 160 mil habitantes e se encontra a 360 km da capital do Estado, Salvador. , Estado da Bahia, Brasil. Uma delas é uma escola privada localizada na zona central da cidade, que atende principalmente estudantes oriundos de famílias da classe média local. A grande maioria dos estudantes, ao término do ensino médio, procura ingressar em alguma instituição de ensino superior. A outra escola é pública, pertencente à rede estadual da Bahia, e está situada em um bairro periférico. Seus estudantes, cuja maioria pertence às classes populares, ao fim do ensino médio procuram inserir-se no mercado de trabalho local, que tem como principais atividades econômicas o comércio e a indústria de transformação.

Os dois professores de química que participaram dessa pesquisa possuem trajetórias profissionais levemente distintas: a professora da escola pública é formada em ciências com concentração em química, possui especialização em ensino de ciências e mais de dez anos de experiência profissional como docente. O professor da escola privada é professor de química e mestre em química analítica, atuando em sala de aula há cinco anos. As turmas que foram observadas correspondem ao primeiro ano do ensino médio. Na escola privada a turma observada possuía 38 alunos, enquanto na escola pública, um total de 36.

Procedimentos metodológicos

Os dados apresentados neste artigo somente foram coletados após a aprovação pelo Comitê de Ética de nossa Universidade do projeto de pesquisa que dá origem a este trabalho. Os sujeitos pesquisados estavam cientes de nossa investigação por meio dos termos de consentimento livre e esclarecido e de autorização do uso de imagens e depoimentos. Ambas as turmas foram acompanhadas pelos pesquisadores durante duas unidades letivas, que abrangem aproximadamente quatro meses de aulas. Nossas observações eram registradas em caderno de campo, e as aulas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Dois gravadores digitais foram utilizados na gravação das aulas, um próximo à mesa do professor e outro próximo aos alunos. Após a transcrição procurou-se identificar os marcadores de fronteiras que indicam os diferentes momentos das aulas, pois por meio de sua localização foi possível fragmentar cada classe em seus episódios. Com isso, cada aula foi reconstruída como um mapa de episódios, o que permitiu a identificação e a classificação de cada tipo de atividade desenvolvida nas aulas e seu respectivo tempo4 4 Uma breve discussão sobre os procedimentos metodológicos para a análise de dados oriundos de interações em sala de aula pode ser encontrada em Mortimer et al. (2007). .

Os dados apresentados e analisados correspondem a fragmentos de aulas em que os professores definiam e organizavam atividades experimentais. A opção por essa escolha deve-se a que, em primeiro lugar, ambos os professores desenvolveram esse tipo de atividade durante o período em que suas aulas foram observadas, embora seus métodos de trabalho fossem bastante distintos entre si com relação ao modo em que tais atividades eram desenvolvidas. A professora costuma desenvolver aulas experimentais como demonstrações para seus alunos, enquanto o professor solicita que seus estudantes realizem pequenos experimentos fora da escola e registrem e apresentem seus resultados como tarefa de casa. Em um trabalho prévio sobre o estado da arte da pesquisa sobre linguagem e discurso no ensino de ciências no Brasil, encontramos que o laboratório - e as atividades experimentais, em consequência - tem sido um espaço muito pouco explorado nesse tipo de pesquisa (SOUZA et al., 2013SOUZA, G.M. et al. A pesquisa sobre linguagem e ensino de ciências no Brasil em teses e dissertações (2000-2011). In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Ciências, 9., 2013, Águas de Lindóia. Anais (eletrônicos). Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação em Ciências, 2013. Disponível em: <http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/ixenpec/atas/resumos/R1326-1.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2014.
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). Devido à importância que a experimentação assume para a educação científica, consideramos que seria frutífero o contraste entre as duas metodologias empregadas pelos docentes investigados.

Para a caracterização das práticas pedagógicas foram utilizados instrumentos de análise baseados e adaptados dos trabalhos do grupo ESSA e outros construídos e propostos por nós, com base nos registros das observações e em nossas questões de pesquisa. Esses instrumentos de análise constituem indicadores das regras discursivas, e cada indicador apresenta uma escala de valores com quatro graus de classificação e enquadramento, a qual varia entre muito forte a muito fraco (C++, C+, C-, C- -; E++, E+, E-, E- -). Com base nos resultados obtidos, foi possível caracterizar a prática pedagógica de cada um dos professores e comparar as características dessas práticas entre si.

ANÁLISE DOS DADOS

O quadro 1 abaixo apresenta um indicador utilizado na caracterização do contexto instrucional da prática pedagógica, referente à regra discursiva critério de avaliação, seguido de exemplos de fragmentos de nossa transcrição, que mostram valores diferenciados para o enquadramento dessa regra nas duas situações descritas nos exemplos, baseados na escala apresentada acima. A professora da escola pública é representada como PB e o professor da escola privada como PC.

Quadro 1:
Exemplo de um indicador de análise da regra discursiva critério de avaliação e exemplos de fragmentos.

A regra discursiva critério de avaliação diz respeito ao controle que o transmissor apresenta sobre os procedimentos de correção das diversas produções que os alunos realizam, seja uma síntese de um conteúdo, as respostas às perguntas dos professores, os trabalhos de casa ou as avaliações tipo exames. Nesse indicador selecionado, quanto mais pormenorizada for a instrução do professor com respeito à realização da tarefa, mais forte será o enquadramento apresentado por essa regra. Nas situações registradas, a professora PB indica que os alunos deverão produzir um texto com os resultados obtidos da atividade experimental, mas não fornece detalhes sobre a produção desse texto, enquanto o professor PC detalha bastante a apresentação dos resultados da tarefa, indicando como os alunos devem produzir seu trabalho.

Outro indicador definido por nós relaciona-se com a ritmagem. Uma etapa prévia ao desenvolvimento das atividades experimentais era a distribuição dos roteiros dos procedimentos entre os alunos, seguida da leitura em sala de aula. Episódios como esses foram observados nas duas práticas pedagógicas e deram origem ao indicador Leitura do procedimento experimental, cujos valores de enquadra mento e exemplos de fragmentos são apresentados no Quadro 2.

Quadro 2:
Indicador de análise da regra discursiva ritmagem e exemplos de fragmentos.

Uma comparação entre os dois episódios ilustrados pelos fragmentos do Quadro 2 nos mostra que a professora PB, apesar de anunciar que vai fornecer tempo para que os alunos procedam com a leitura do texto do procedimento experimental, os interrompe pouco depois, sem que estes tenham concluído a leitura. Isso indicaria um enquadramento muito forte, conforme o Quadro 2. No entanto, a professora em seguida solicita que algum aluno realize a leitura do procedimento em voz alta, o que enfraquece o seu enquadramento inicial. Já o professor PC, embora proclame inicialmente que não deverá ser interrompido em sua leitura, aceita as intervenções dos alunos e responde às suas dúvidas, caracterizando um grau de enquadramento diferente da professora PB.

Um terceiro indicador que surge em nossas observações relaciona-se com o registro dos dados e informações oriundas das atividades experimentais. Esse indicador, incluído entre as regras discursivas de sequência, varia com o grau de explicitação empregado pelo professor sobre o registro que os alunos devem realizar sobre aquilo que é observado durante a atividade experimental.

Quadro 3:
Indicador de análise da regra discursiva critério de avaliação e exemplos de fragmentos.

Nos exemplos apresentados no Quadro 3, os professores PB e PC se diferenciam com respeito às instruções fornecidas para os registros dos dados experimentais: o roteiro distribuído por PC traz as tabelas já construídas que os alunos preencherão, enquanto na prática de PB os próprios alunos constroem a tabela para o registro dos dados.

Outro indicador associado às atividades experimentais e que pode ser identificado nas práticas pedagógicas dos dois professores diz respeito à relação entre os discursos acadêmico e não acadêmico. Esses discursos, no caso das atividades experimentais, assumem as características do fato científico e da evidência empírica associados ao experimento, conforme discutido por Antonia Candela (1999CANDELA, A. Ciencia en el aula: los alumnos entre la argumentación y el consenso. México, DF: Paidós, 1999.). Relacionando-o com o nosso problema de pesquisa, esse indicador nos informa como os professores orientam discursivamente seus alunos quanto à observação a ser realizada e qual a primazia assumida pelo fato científico associado com o fenômeno sob observação. Os valores que atribuímos a ele se relacionam com o grau de importância do fato científico frente à evidência empírica e são observados no Quadro 4.

Quadro 4:
Indicador de análise da regra discursiva relação entre discursos acadêmico e não acadêmico.

A primazia do conhecimento do fato científico dada pela professora PB pode ser apreciada em outro fragmento, onde uma pergunta emitida pela professora cuja resposta envolvia o conhecimento da evidência empírica termina sendo respondida pela aluna, erroneamente, com o conhecimento do fato científico, mostrado no Quadro 5:

Quadro 5:
Quadro com fragmento de aula da professora PB representando o indicador relação entre a evidência empírica e o fato científico.

A resposta desejada pela professora só foi posteriormente respondida, ainda que timidamente (em tom de pergunta "as cores?") pela aluna. A resposta inicial da aluna ilustra a primazia do conhecimento do fato científico sobre a evidência empírica, pois os alunos não compreendem que as perguntas da professora PB endereçadas à observação do experimento admitam respostas envolvendo um conhecimento do âmbito não acadêmico ou do senso comum.

Por último, um indicador identificado em nossas observações relaciona-se com a regra discursiva seleção e diz respeito às interpretações e conclusões das observações. Entendemos, nesse caso, que as interpretações e conclusões do trabalho experimental estão diretamente vinculadas com a realização da atividade pelo aluno e seus resultados. Seus valores são apresentados abaixo no Quadro 6:

Quadro 6:
Indicador de análise da regra discursiva seleção.

O professor PC, ainda que oriente os alunos sobre o que observar no experimento, ao insistir com seus alunos que os resultados registrados devem ser estritamente aqueles observados e não os previstos, não antecipa as interpretações e conclusões do mesmo modo observado com a professora PB. Isso pode ser verificado no fragmento abaixo, conforme o Quadro 7, em que uma aluna questiona se seu resultado diferir daquele esperado por ela, como ela deve produzir a atividade.

Quadro 7:
Quadro com fragmento de aula do professor PC representando o indicador observações, interpretações e conclusões do trabalho experimental.

Os resultados encontrados nessas duas práticas pedagógicas podem ser organizados de modo a permitir uma "visualização" de cada modalidade de prática desenvolvida por PB e por PC, conforme dispostos na Tabela 1:

Tabela 1:
Caracterização das práticas pedagógicas dos professores PB e PC.

Podemos observar, nos valores atribuídos a cada indicador, que a professora PB apresenta uma tendência a um enquadramento mais forte em sua prática pedagógica com respeito às instruções sobre as tarefas relacionadas com as atividades experimentais que o professor PC. Isso significa que a professora PB tende a exercer maior controle sobre a comunicação com seus alunos que PC, que permite uma maior participação e condução de seus alunos nas interações discursivas ao redor das instruções sobre a tarefa. Uma olhada mais atenta aos resultados encontrados nos revela, entretanto, que PC apresenta um enquadramento muito forte exatamente naqueles indicadores mais diretamente relacionados à instrução sobre produção da atividade pelos alunos, enquanto PB, ao contrário, apresenta um enquadramento fraco nesses mesmos indicadores. Daí se pode concluir que os alunos de PC estariam recebendo instruções mais precisas e detalhadas que os alunos de PB sobre a forma que devem conduzir e preparar suas atividades. Os indicadores que a prática de PC apresenta enquadramento fraco ou muito fraco são aqueles relacionados às intervenções dos alunos nos momentos de definição das tarefas; isso significa que os alunos de PC contam com maior liberdade para interferir nas definições e na organização das atividades, enquanto o forte enquadramento apresentado por PB, por sua vez, representa uma prática em que os alunos têm pouca margem de manobra para decidir, em conjunto com a professora, sobre as atividades experimentais e as definições ao redor dos trabalhos que serão produzidos por eles a partir de suas instruções.

Ao levar em conta as características dos contextos socioeconômicos onde tais práticas pedagógicas se desenvolvem, podemos considerar que os alunos de PB interagem e participam menos que os alunos de PC, ou seja, aqueles alunos de uma origem social mais vulnerável têm menos oportunidade de participar das definições ao redor da química, uma vez que suas possíveis contribuições são menos estimuladas e permitidas que os alunos de uma origem social mais estabilizada. Isso é particularmente evidente quando se observa os valores de enquadramento dos dois últimos indicadores da Tabela 1, pois as observações, interpretações e conclusões dos alunos de PB são menos consideradas que as dos alunos de PC. As relações estabelecidas entre o conhecimento acadêmico e não acadêmico ao redor da definição da evidência empírica a ser observada não são temas menores nas aulas de química, pois, segundo Lemke,

"la forma en que planteamos la relación entre el conocimiento académico y el sentido común, entre hablar científicamente y hablar de otras maneras sobre un tema, conlleva ciertos valores y prejuicios" (1997, p. 60). Esse mesmo autor nos indica que, com muita frequência, o ensino de ciências tem maior êxito em convencer os alunos de que uma disciplina científica é "inherentemente mucho más compleja y difícil que las otras materias, de tal manera que los alumnos nunca la entenderán realmente" (p. 141).

Por último, um dado importante diz respeito ao currículo de química e sua relação com a seleção e a ritmagem. O professor PC conta com quatro aulas por semana para desenvolver seu programa, enquanto que as escolas públicas disponibilizam para PB apenas duas aulas. É muito provável que o enquadramento forte observado na prática pedagógica de PB seja, em parte, o resultado da busca por desenvolver um currículo com os mesmos conteúdos que PC desenvolve - pois é o currículo científica e socialmente reconhecido como o conjunto de conhecimentos da química a que os estudantes devem ter acesso - em um tempo menor. Percebemos tal esforço como algo positivo, pois demonstra que PB oportuniza a seus alunos um currículo muito próximo ao dos alunos de PC. Entretanto, tal enquadramento pode estar significando menos oportunidade para a aprendizagem da química por seus estudantes ou mesmo o seu rechaço a essa disciplina.

Por fim, gostaríamos de destacar que os resultados da análise efetuada neste artigo representam estratégias diferentes de ensinar química e que se relacionam com as concepções individuais de cada docente. Suas práticas pedagógicas, entretanto, não são resultado exclusivo de suas idiossincrasias, mas das interações que acontecem nos diferentes contextos onde eles ensinam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso da teoria do discurso pedagógico de Basil Bernstein e de seu desenvolvimento como elaborado pelo grupo ESSA para a investigação das interações discursivas em aulas de química nos resultou de grande potencial para a caracterização da prática pedagógica, e para o contraste dessas práticas entre si, considerando os cenários socioculturais distintos de nossa pesquisa. Por meio das análises desenvolvidas, foi possível verificar as diferentes estratégias empregadas pelos professores de química ao redor da instrução sobre as atividades experimentais e ponderar sobre quais situações se mostraram mais favoráveis para a consecução das tarefas pelos alunos. A análise realizada, no entanto, deve levar em conta aspectos como a carga horária disponibilizada a cada professor em suas respectivas escolas, pois, sob condições menos favoráveis, a professora da escola pública empreende uma prática pedagógica ilustrada por procedimentos experimentais em sala de aula que, na prática do professor da escola privada, são conduzidos como tarefas de casa.

A investigação da linguagem e das interações discursivas no ensino de ciências deve permitir, segundo Gregory Kelly, examinar "o que conta como ciência em um dado contexto, como a ciência é produzida nas interações, quem participa da construção da ciência e como as definições situadas da ciência implicam em orientações epistemológicas" (2008, p. 443). Entendemos que nossa pesquisa é capaz de contribuir para a compreensão de como professores oportunizam a seus alunos os espaços e tempos para sua participação ao redor da construção do conhecimento científico em sala de aula, especialmente em torno do desenvolvimento de atividades experimentais nas aulas de química, tão fundamentais para a aprendizagem dessa ciência.

Por fim, acreditamos que o conhecimento gerado aqui tem potencial para ser trabalhado na formação de professores - inicial e contínua, com possibilidades de que os professores, ao acederem os resultados da investigação, possam refletir sobre suas próprias práticas e questionar o lugar ocupado pela instrução das atividades e tarefas que logram desenvolver e sua relação com o desempenho e o engajamento de seus alunos.

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  • Trabalho realizado com o auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2014
  • Aceito
    29 Set 2014
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