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Significados do cuidado de enfermagem ao paciente em morte encefálica potencial doador

Significados de cuidado de la enfermería al paciente en muerte encefálica potencial dolor

Resumo

OBJETIVO

Compreender os significados do cuidado ao paciente em morte encefálica potencial doador para enfermeiros, e construir um modelo teórico.

MÉTODO

Estudo qualitativo sustentado na Teoria Fundamentada nos Dados, realizado em dezembro/2010 a junho/2011, por meio de entrevista aberta com 12 enfermeiros de Hospital Universitário, distribuídos em três grupos amostrais.

RESULTADOS

O fenômeno Desvelando relações e interações múltiplas do enfermeiro na complexidade do cuidado ao paciente em morte encefálica potencial doador sustenta-se por cinco categorias e emerge pela necessidade de organização das práticas de cuidado no contexto da unidade de terapia intensiva, considerando as interveniências na relação entre enfermeiros, equipe e família e revela desafios para o enfermeiro diante da complexidade do processo de cuidar.

CONCLUSÕES

O significado do cuidado ao paciente em morte encefálica potencial doador está em entender sua complexidade para além de um ser morto, mas como gerador de vida por meio da doação de órgãos.

Palavras-chave:
Cuidados de enfermagem; Morte encefálica; Obtenção de tecidos e órgãos; Relações enfermeiro-paciente; Cuidados críticos.

Resumen

OBJETIVO

Entender el significado del cuidado al paciente en muerte cerebral potencial donador para las enfermeras, y construir un modelo teórico.

MÉTODO

Estudio cualitativo con la Teoría Fundamentada. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas estructuradas con 12 enfermeras, distribuidos en tres grupos amuestrales en un hospital universitario en el noreste de Brasil, a partir de diciembre/2010 a junio/2011.

RESULTADOS

El fenómeno Revelando múltiples relaciones e interacciones de las enfermeras en la complejidad de la atención al paciente en muerte cerebral potencial donador es sostenida por la interrelación de las cinco categorias surge la necesidad de la organización de las prácticas de atención a este paciente en el contexto de la unidad de cuidados intensivos, teniendo en cuenta los factores que intervienen en la relación entre las enfermeras, el personal y la familia y revela los desafíos para las enfermeras sobre la complejidad del proceso de atención.

CONCLUSIONES

El significado del cuidado al paciente en muerte cerebral potencial donador es entender su complejidad además de un ser muerto, y sino como un dador de vida a través de la donación de órganos.

Palavras-clave:
Atención de enfermería; Muerte encefálica; Obtención de tejidos y órganos; Relaciones enfermero-paciente; Cuidados críticos.

Abstract

OBJECTIVE

To understand the meanings of care to brain dead potential organ donors for nurses, and construct a theoretical model.

METHOD

Qualitative study based on the Grounded Theory approach. Data were collected through open interviews with 12 nurses, distributed in three sample groups in a university hospital in northeastern Brazil, from December 2010 to June 2011.

RESULTS

The phenomenon Unveiling multiple relationships and interactions of nurses in the complexity of patient care in brain dead potential donors is supported by the interrelationship of five categories and results from the need to organize care practices in the context of the intensive care unit, considering the factors involved in the relationship between nurses, staff and family and reveals challenges for nurses imposed by the complexity of the care process.

CONCLUSIONS

The meaning of care to brain dead potential donors involves understanding the complexity of this patient who can save somebody’s life through organ donation.

Keywords:
Nursing care; Brain death; Tissue and organ procurement; Nurse-patient relationships; Critical care.

INTRODUÇÃO

O cuidado tem sua origem no desejo de perpetuar a vida. É um valor, bem social, produto de um sistema organizacional de cuidados, com múltiplas interações humanas estabelecidas entre o enfermeiro e os pacientes, suas famílias, bem como os demais profissionais da equipe de saúde e da gestão dos serviços, para cuidar do ser humano no seu processo saúde-doença11. Deckman LR, Deon SMP, Silva EF, Lorenzini E. Competência gerencial na enfermagem: uma revisão integrativa. Rev Eletr Gestão Saúde . 2013;4(2):389-400., bem como na sua morte.

A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) configura-se como cenário que reflete o modo de organização próprio caracterizado pelo aparato tecnológico, pela gravidade de seus pacientes e pelas frequentes situações de estresse envolvendo a vida e a morte, exigindo do enfermeiro o estabelecimento de relações para que o cuidado se efetive.

Nesse ambiente crítico, o enfermeiro cuida de pacientes acometidos por patologias variadas como acidentes vasculares encefálicos e politraumatizados que, por vezes, evoluem para morte encefálica (ME), exigindo cuidados intensivos e específicos22. Freire ILS, Vasconcelos QLDAQ, Torres GV, Araujo EC, Costa IKF, Melo GSM. Structure, process and outcomes of organ and tissue donation for transplantation. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):555-63..

Estima-se que a proporção dos casos de morte encefálica seja de 60 para cada milhão de habitantes por ano, correspondendo a 12% das mortes que ocorrem na Unidade de Terapia Intensiva de um grande hospital geral. No Brasil, até setembro de 2017, foram notificados 7.981 casos de morte encefálica33. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dados numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: janeiro/setembro-2017. RBT. 2017 [citado 2017 dez 5];XXIII(3). Disponível em: Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2017/rbttrim3-leitura.pdf .
http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/fi...
.

Pesquisadores44. Bianchia M, Accinellia LG, Silva MA, Menegócio AM. Identificação dos diagnósticos de enfermagem ao paciente potencial doador de órgãos. Uniciências 2015;19(2):174-80. relatam que cuidar do paciente em morte encefálica potencial doador exige demanda física e mental maior dos profissionais quando comparados com outros pacientes internados na UTI.

No tocante a ME, os estudos55. Cavalcante LP, Ramos IC, Araújo MAM, Alves MDS, Braga VAB. Nursing care to patients in brain death and potential organ donors. Acta Paul Enferm. 2014;27(6):567-72.

6. Almeida AM, Carvalho ESS, Cordeiro GM. Cuidado ao potencial doador: percepções de uma equipe de enfermagem. Rev Baiana Enferm. 2015;29(4):328-38.

7. Vieira MS, Nogueira LT. O processo de trabalho no contexto da doação de órgãos e tecidos. Rev enferm UERJ. 2015;23(6):825-31.
-88. Freire ILS, Mendonça AEO, Freitas MB, Melo GSM, Costa IKF, Torres GV. Compreensão da equipe de enfermagem sobre a morte encefálica e a doação de órgãos. Enfermeria global. 2014;36:194-207.) têm dedicado mais atenção aos cuidados com o potencial doador de órgãos e com processo fisiopatológico da morte encefálica em detrimento da percepção do enfermeiro quanto aos cuidados ao paciente nesta condição. Destaca-se que o cuidado de enfermagem a esse paciente é essencial principalmente no manejo das alterações fisiopatológicas inerentes da morte encefálica e na monitorização hemodinâmica e, isso estará diretamente associado à efetivação da doação de órgãos.

Outros estudos destacam que as diferentes percepções de enfermeiros que cuidam de pacientes em ME podem afetar a chance de converter o potencial doador de órgãos em doador efetivo99. Flodén A, Berg M, Forsberg A. ICU nurses' perceptions of responsibilities and organisation in relation to organ donation: a phenomenographic study. Intensive Crit Care Nurs. 2011;27(6):305-16.-1010. Flodén A, Forsberg A. A phenomenographic study of ICU-nurses' perceptions of and attitudes to organ donation and care of potential donors. Intensive Crit Care Nurs . 2009;25(6):306-13..

Além disso, estudo realizado no Irã1111. Keshtkaran Z, Sharif F, Navab E, Gholamzadeh S. Lived Experiences of Iranian nurses caring for brain death organ donor patients: caring as “Halo of Ambiguity and Doubt”. Glob J Health Sci. 2016;8(7):281-92. refere que as enfermeiras estão envolvidas em halo de ambiguidade e dúvida ao cuidar do paciente em morte encefálica potencial doador de órgãos. Existe confusão e hesitação sobre o diagnóstico de morte encefálica a ponto de possuírem esperança na reversão do quadro do paciente. É como se esperassem por um milagre.

Dessa forma o problema de pesquisa foi delimitado a partir do seguinte questionamento: Que significados os enfermeiros atribuem ao cuidado ao paciente em morte encefálica potencial doador?

Neste sentindo, este estudo procurou preencher esta lacuna do conhecimento buscando compreender os significados do cuidado ao paciente em morte encefálica potencial doador para enfermeiros e, a partir desta compreensão, construir um modelo teórico.

MÉTODO

Trata-se de um artigo extraído da dissertação de mestrado intitulada “Desvelando relações e interações múltiplas do ser enfermeiro na complexidade do cuidado ao ser em morte encefálica na unidade de terapia intensiva1212. Magalhães ALP. Gerenciando o cuidado de enfermagem no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos na perspectiva do pensamento Lean [tese]. Florianópolis (SC): Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; 2015.” apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina.

Pesquisa qualitativa que utilizou a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como referencial metodológico que busca a compreensão do significado das relações e interações nos dados com base na exploração dos fenômenos sociais. O processo de coleta e análise de dados é interdependente e acontece concomitantemente com o objetivo de identificar, desenvolver e relacionar conceitos permitindo ao pesquisador maior envolvimento com o problema de pesquisa1313. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2008..

A pesquisa foi realizada com enfermeiros envolvidos em práticas assistenciais da terapia intensiva ou no processo de captação de órgãos e tecidos de um Hospital Universitário do nordeste brasileiro, no período de dezembro de 2010 a junho de 2011. Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista aberta, sendo norteada pela seguinte pergunta: O que significa para você cuidar do paciente em morte encefálica?

O processo para compor a amostra denomina-se amostragem teórica. Nesse processo o pesquisador coleta, codifica e analisa seus dados, decidindo quais dados coletará em seguida e onde encontrá-los. Os grupos de participantes ou grupos amostrais são selecionados progressivamente para integrar a amostra e são formados de acordo com a análise dos dados, as hipóteses geradas e a construção das categorias1313. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2008.. Nesse estudo foram formados três grupos amostrais.

Para a seleção dos participantes adotou-se como critério de inclusão ter tido experiência em cuidar de paciente com diagnóstico de ME e de exclusão se estivessem de férias, atestado ou de licença maternidade ou saúde. Destaca-se que nenhum participante foi excluído.

O primeiro grupo amostral foi composto por quatro enfermeiras assistenciais da UTI do Hospital Universitário. As participantes desse grupo tinham idades entre 24 e 39 anos e com tempo de experiência no referido setor entre um e sete anos.

O segundo grupo amostral foi composto por quatro enfermeiros que desenvolviam suas atividades no serviço de captação de órgãos e transplante do referido hospital, que estavam na faixa etária de 25 a 49 anos e tinham tempo de experiência na UTI de seis meses a 19 anos.

No terceiro grupo amostral, foram entrevistados quatro enfermeiros que haviam trabalhado na UTI em período anterior à implantação do serviço de transplante no referido hospital. Assim, a definição dos grupos amostrais foi norteada pelo processo de indução e dedução e, em especial pela construção de hipóteses tendo em vista a construção de conceitos e a saturação teórica, sendo esta alcançada com 12 entrevistas.

As entrevistas foram individuais, gravadas em dispositivo digital, realizadas no ambiente de trabalho ou em outro local escolhido pelo participante. Posteriormente, foram transcritas e reapresentadas aos participantes do estudo no intuito de permitir que os dados fossem validados por eles, para correções e acréscimos, caso julgassem necessários. A coleta e análise dos dados ocorreram simultaneamente, pautadas pela análise comparativa, seguindo as etapas propostas pela TFD de codificação aberta, axial e seletiva1313. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2008..

Na codificação aberta, os dados foram analisados linha a linha com o objetivo de identificar cada ideia/incidente/evento. Nessa etapa, formaram-se os códigos preliminares. Em seguida, estes foram reunidos, por similaridades e diferenças, elaborando-se os códigos conceituais. Na codificação axial, os códigos conceituais foram reagrupados, visando compor subcategorias que, após nova etapa de reagrupamento, compuseram categorias de análise, no sentido de obter-se uma explicação abrangente sobre o fenômeno do cuidado ao paciente em ME. Na fase da codificação seletiva, as subcategorias e categorias encontradas foram comparadas e reordenadas com o objetivo de integrá-las, associá-las e assim, refinar o modelo teórico, fazendo emergir, dessa forma, a categoria central1313. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2008..

Para classificar e organizar as associações emergentes entre as categorias utilizou-se o modelo paradigmático de Strauss e Corbin. Esse modelo estabelece uma relação entre as categorias, a partir dos seguintes componentes: fenômeno, contexto, condições causais e intervenientes, estratégias e as consequências1313. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2008..

A partir do processo de análise preconizado pela TFD, surgiram cinco categorias e doze subcategorias que inter-relacionadas sustentam o fenômeno “Desvelando relações e interações múltiplas do enfermeiro na complexidade do cuidado ao paciente em morte encefálica”.

O estudo seguiu as recomendações da Resolução 196/961414. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 1996 out 16;134(201 Seção 1):21082-5. (vigente na aprovação do projeto) e 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, recebendo parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário onde o estudo foi realizado, sob o protocolo 3936/2010. A obtenção da anuência dos participantes se deu por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para preservar o anonimato dos participantes, seus nomes foram substituídos por um código, ou seja, pela letra “E” seguida do número de ordem da entrevista (E1, E2, E3, ... E12).

RESULTADOS

A compreensão do significado do cuidado do paciente em ME para os enfermeiros de um hospital universitário permitiu revelar o fenômeno “Desvelando relações e interações múltiplas do enfermeiro na complexidade do cuidado ao paciente em morte encefálica potencial doador sendo definido pela inter-relação de cinco categorias, conforme descrito na Figura 1.

Figura 1
Representação gráfica do modelo paradigmático. Florianópolis, SC, 2011.

Cuidando em Unidade de Terapia Intensiva

Esta categoria foi considerada o contexto onde o fenômeno se desenvolve, sendo constituída pela subcategoria “Reconhecendo o ambiente de UTI como um serviço de referência para manutenção do paciente em ME potencial doador”. O enfermeiro reconhece que a UTI é um serviço de referência para manutenção do paciente em ME potencial doador. Enfatiza que a parceria com a Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) é fundamental, pois o cuidar deste paciente torna-se mais fácil com a presença do enfermeiro da Comissão, visto que ele acompanha e sistematiza a assistência, prestando o cuidado ao paciente, permitindo com que os objetivos de captar órgãos e salvar vidas sejam alcançados.

Então, eu acho que essa parceria, essa presença da Comissão é algo importante porque acompanha, sistematiza o cuidado e atinge o objetivo que é captar órgãos e salvar vidas (E9).

Tendo que organizar as práticas de cuidado em UTI ao paciente em morte encefálica

Esta categoria leva ao desencadeamento do fenômeno, sendo delimitada a partir das seguintes subcategorias: “Estabelecendo a diferença de cuidado entre o paciente em ME e o paciente crítico” e “Organizando as práticas de cuidado em UTI”.

O enfermeiro afirma que para estabelecer as relações cuidativas necessita identificar e diferenciar os pacientes que ali estão internados. Nesse ambiente de UTI, concentram-se vários tipos de pacientes, sejam aqueles críticos, potencialmente recuperáveis ou com prognóstico negativo, como o paciente em ME, que necessitam de cuidados contínuos.

A diferença em cuidar do paciente em ME e do paciente crítico está atrelada ao estímulo que motivam os enfermeiros. Essa motivação para o cuidado está vinculada à possibilidade de vida, no prognóstico do paciente, como descrito na fala:

[...] quando sabemos que um paciente tem um prognóstico, a equipe como um todo, investe em prescrição ou em medicamentos. [...] E, quando você vê que um paciente está em ME a gente percebe que vai se deixando de investir naquele paciente (E2).

O cuidado ao paciente em ME é definido pelo enfermeiro como delicado, de difícil execução e que exige atenção integral. Além disso, o cuidado deve ser prestado no momento exato para que não ocorra o insucesso no processo de doação de órgãos.

No paciente em ME temos sempre que estar fazendo alguma coisa. E tem que se fazer rápido, pois a cada momento que se perde e não se cuida, o insucesso do processo de doação e transplante é mais provável. ME exige muito cuidado, muita atenção o tempo todo (E5).

Diante das diferenças estabelecidas entre o cuidado ao paciente em ME e ao paciente crítico faz-se necessário que o enfermeiro realize a organização das práticas de cuidado em UTI. Para manter a estabilidade hemodinâmica do paciente em ME potencial doador, tanto o enfermeiro da UTI como o enfermeiro da CIHDOTT organizam as práticas de cuidado a esse paciente.

Condições intervenientes no cuidado ao paciente em morte encefálica

Esta categoria apresenta-se como condição interveniente no processo de cuidado do paciente em ME, sendo composta pelas subcategorias: “Identificando os elementos facilitadores do cuidado ao paciente em ME” e “Elencando os elementos dificultadores do cuidado ao paciente em ME”.

Os relatos dos enfermeiros apontam diversos elementos que facilitam o cuidado ao paciente em ME, destacando principalmente a capacitação profissional, interação e acolhimento da família do paciente, a motivação para o cuidar, o suporte da legislação brasileira para a doação e transplantes de órgãos, a presença da CIHDOTT na UTI e a sensibilização para doação de órgãos dos profissionais de saúde conforme os relatos a seguir:

E para que a estabilidade do paciente em ME seja efetivada, além das drogas e aparelhos, a atenção e a percepção do profissional são extremamente importantes [...] E essa estabilidade também depende da atenção, da percepção, da agilidade e das atividades que você vai realizar com ele (E1).

Eu acredito que exercer bem o papel enquanto enfermeiro é uma questão de capacitação, em termos de técnicas e procedimentos (E2).

Para mim ainda é mais fácil cuidar quando o paciente em ME é doador. [...] Quando ele é potencial doador, quando a família aceita, é mais fácil porque eu tenho um estímulo. Ele vai beneficiar outras pessoas (E3).

A legislação sobre a ME foi uma maneira do Ministério da Saúde padronizar para que todos falem a mesma língua. Padronizou para facilitar o serviço (E5).

Na minha concepção teve um avanço no cuidado ao paciente em ME. Primeiro, pela sensibilização dos enfermeiros por parte da comissão de captação de órgãos para doação e transplante e a presença dessas comissões na UTI. [...] As pessoas estão mais sensibilizadas e estão assimilando mais essa rotina da sistematização dos cuidados a esse paciente em ME (E9).

Os enfermeiros referem à sobrecarga emocional e física, a inadequação do dimensionamento de recursos humanos na UTI, a dualidade do ser enfermeiro (a pessoa e o profissional), a falta de preparo técnico e emocional para lidar com a situação da ME, a logística do processo de doação e a formação dos profissionais de saúde como aspectos que dificultam o cuidado ao paciente em ME.

Eu tenho certa dificuldade em cuidar do paciente em ME [...] Quando é um paciente que existe um vínculo, é pior. E eu tinha dificuldade porque eu não sabia muito que fazer. Que parâmetro deixar? Quanto que eu tenho que deixar essa pressão? Qual é o normal da diurese dele a cada hora? Qual é o bom? Não somos preparadas para cuidar do paciente em ME quando fazemos a faculdade. [...] Na faculdade o que eu vi sobre o cuidado do paciente em ME foi muito superficial (E3).

O primeiro entrave no processo de cuidado do paciente em ME é a falta de médicos intensivistas. O segundo entrave é a falta de equipamentos para fazermos a monitorização do paciente (E8).

Outro elemento apontado como dificuldade é que o processo de cuidado é permeado pelo distanciamento entre o profissional e o paciente em ME. Existem situações em que esses pacientes são colocados “de lado”, sendo prestado cuidado parcial e periférico. Utilizam a expressão “paciente jogado” para expressar a pobreza do vínculo e do compromisso profissional de cuidado intensivo e contínuo do enfermeiro. Esta situação ocorre principalmente quando o paciente não é doador, sendo caracterizada pelos enfermeiros como uma falha no cuidado.

O que eu percebi ao chegar na UTI foi esse cuidado ao paciente em ME jogado. Com o tempo eu fui percebendo que não era esse o cuidado adequado e correto. O cuidado jogado seria, talvez, não se investir tanto naquele paciente por saber que ele se encontra na situação de ME. É a falta de investimento na assistência dele (E2).

Os enfermeiros da UTI reconhecem que não é por negligência que (des)cuidam do paciente em ME, mas por desconhecimento, despreparo psicológico e emocional em lidar com a situação. Ressaltam ainda que a consequência do descuidado ao paciente em ME é o comprometimento do processo de doação de órgãos.

Incorporando estratégias para cuidar do paciente em morte encefálica

As subcategorias “Incorporando o conhecimento científico ao cuidado do paciente em ME”, “Apontando atitudes de cuidado do enfermeiro e da equipe ao paciente em ME”, “Incorporando atitudes para amenizar as frustrações do processo de cuidado do paciente em ME” e “Efetivando o cuidado ao paciente em ME pelo serviço de captação de órgãos” são considerados elementos estratégicos que o enfermeiro incorpora para desenvolver o cuidado a este paciente.

O enfermeiro da UTI incorpora o conhecimento científico e atitudes em sua prática assistencial para oferecer um cuidado de qualidade no intuito de manter a estabilidade do paciente em ME. Os profissionais destacam a responsabilidade, dedicação e esmero profissional em todas as atividades para conservar as condições hemodinâmicas favoráveis ao transplante. Afirmam que fazem o “máximo que podem” para que este cuidado seja efetivo. Cuidam do paciente em ME com dignidade e respeito, buscando ter atitude profissional e estar “forte emocionalmente” para proporcionar um melhor cuidado.

Nós temos em nossas mãos o compromisso de mantê-lo estável. [...] o sucesso do transplante vai depender obviamente do que nós vamos fazer. Temos que ter o compromisso de manter todas as condições vitais favoráveis a realização do transplante, temos que fazer o máximo. [...] No caso do paciente em morte encefálica que é um candidato a transplante de órgão, eu me sinto com essa responsabilidade, com essa preocupação de mantê-lo e estabilizá-lo sempre. Nos esforçamos, nos esmeramos. Fazemos tudo que está ao nosso alcance (E1).

Então, eu tive que estudar e procurar me inteirar para poder manter aquela vida (E3).

E para esses casos de ME é necessário que se esteja bem mais forte emocionalmente (E10).

A subcategoria “Efetivando o cuidado ao paciente em ME pelo serviço de captação de órgãos” aborda sobre atuação do enfermeiro na CIHDOTT e na Central de Transplantes, e em síntese, retratam as estratégias que são incorporadas para organizar as práticas de cuidado ao paciente em ME como a busca ativa deste paciente na UTI, a interação com a equipe multiprofissional, implantação de protocolos de cuidado, discussão de caso em equipe e atividades educativas sobre ME. Os enfermeiros reconhecem que a educação é a principal estratégia para a organização do cuidado.

As estratégias utilizadas para organizar as práticas de cuidado ao paciente em ME é o dia a dia, a busca ativa [...] A educação é a principal estratégia para organizar a prática de cuidado ao paciente em ME. A gente já deu algumas aulas na UTI e a gente sente a diferença do atendimento prestado pela equipe (E5).

Existem outras estratégias para se organizar as práticas do cuidado ao paciente em ME como as discussões de caso; não só palestras, como também aula sobre esse assunto. [...] Acho que a discussão em equipe é essencial. A educação é importante (E6).

O protocolo contribui para a sistematização da assistência ao paciente em ME. Então, no momento em que eu tenho um protocolo para seguir, sei o que tem que ser feito com esse paciente (E9).

Emergindo a complexidade do cuidado ao paciente em ME potencial doador

Esta categoria configura-se como consequência do fenômeno sustentada pelas seguintes subcategorias: “Emergindo sentimentos e reações do enfermeiro no processo de cuidado ao paciente em ME potencial doador”, “Apontando a complexidade do cuidado ao paciente em ME potencial doador” e “Avançando nas práticas de cuidado ao paciente em ME potencial doador”.

Na subcategoria “Emergindo os sentimentos e reações do enfermeiro no processo de cuidado ao paciente em ME potencial doador”, o enfermeiro da UTI admite que nessa relação de cuidado emergem sentimentos de bem-estar, frustração, tristeza, angústia e reações diversas, denominando este momento de “miscelânea de sentimentos”, conforme descrito na fala seguinte:

Lá [na UTI] realmente não dá para chorar porque é tanta coisa para ser feita e nós acabamos nos detendo naquelas atividades [...] Ao mesmo tempo em que fazemos, nos sentimos bem de está cuidando, tem o momento de tristeza, mas na verdade é uma miscelânea de sentimentos que apresentamos (E1).

Na subcategoria “Apontando a complexidade do cuidado ao paciente em ME potencial doador” identifica-se que a complexidade está em compreender como um paciente morto exige tantos cuidados dos profissionais de saúde. Além disso, esse ser complexo exige a atuação complementar de diversos profissionais da equipe de saúde que atuam no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Este trabalho em equipe é valorizado pelo enfermeiro que faz analogia do trabalho em equipe com uma engrenagem.

[...] trabalhamos em conjunto, quer queiramos ou não. Então, a gente precisa dessa engrenagem para cuidar do paciente em morte encefálica potencial doador. É uma engrenagem que uma coisa só funciona dependendo da outra e de toda uma equipe. E quando isso não acontece atrapalha. É como se algo interrompe aquele movimento e perde-se todo um serviço. E perde-se ainda um paciente que poderia ter futuramente ajudado outras pessoas também (E1).

O processo complementar para mim é chegar junto. Sempre você tem que chegar fazendo juntamente com a equipe [...] Porque a sistematização tem que partir dos médicos. A gente precisa deles. É um trabalho que não anda só. Primeiro porque o médico tem que identificar. Eu preciso cuidar e manter (E5).

Compreende-se, deste modo, que a complexidade do cuidado ao paciente em ME potencial doador exige a interdependência das práticas de cuidado, e quando isso não acontece o processo de cuidado ou é interrompido ou é ineficaz comprometendo a condição do potencial doador e, consequentemente a doação de órgãos e tecidos.

“Avançando nas práticas de cuidado ao paciente em ME potencial doador” é uma subcategoria na qual os enfermeiros referem crescimento profissional com as experiências de cuidado ao paciente em ME e admitem que existiram mudanças na postura dos profissionais ao cuidar do potencial doador. Os enfermeiros da CIHDOTT reconhecem que os profissionais da UTI estão mais comprometidos com o cuidado deste paciente. Associam este avanço com o fato da CIHDOTT estar mais presente no setor. Além da mudança na postura do profissional, houve alteração na concepção do cuidado ao paciente em ME.

O paciente em ME deixou de ser um paciente tranquilo e que iria parar a qualquer hora, para ser um paciente que requer muitos cuidados. Houve uma mudança na concepção do paciente em ME. Eu lembro que antigamente eram apenas condutas de suporte. Era apenas soro para manutenção da veia e o ventilador. [...]. Agora é hidratação rigorosa e reposição hidroeletrolítica sempre que necessário. Quer dizer mil cuidados. Muito mais cuidados do que determinados pacientes críticos (E5).

Hoje eu percebo que as pessoas têm outra visão sobre o cuidado do paciente em ME. Eu acho que melhorou muito. Antigamente, as pessoas não queriam muitos contatos com esse potencial doador (E6).

DISCUSSÃO

Os enfermeiros participantes do estudo apontam a UTI como um ambiente propício para manutenção do paciente em ME potencial doador. Estudos corroboram com este achado da pesquisa e evidenciam que o cuidado a este paciente deve ser realizado, preferencialmente, neste setor, por oferecer atenção especializada de forma contínua, materiais e tecnologias necessárias para realizar o diagnóstico, monitoração e tratamento22. Freire ILS, Vasconcelos QLDAQ, Torres GV, Araujo EC, Costa IKF, Melo GSM. Structure, process and outcomes of organ and tissue donation for transplantation. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):555-63.,1515. Dell Agnolo CM, Freitas RA, Toffolo VJO, Oliveira MLF, Almeida DF, Carvalho MDB, et al. Causes of organ donation failure in Brazil. Transplant Proc. 2012;44(8):2280-2..

Os enfermeiros do estudo relataram que a motivação em cuidar do paciente em ME está na expectativa de gerar vida, por meio da doação de órgãos. No entanto, a não definição sobre a possibilidade de doação implica numa tendência menor de investimento cuidativo por parte da equipe. Para garantir a manutenção adequada é necessário a organização das práticas de cuidado, o que inclui o gerenciamento do cuidado e da equipe de trabalho.

A organização das práticas de cuidado pelo enfermeiro da CIHDOTT constitui-se em identificar as necessidades do potencial doador; implementar, avaliar e acompanhar os resultados dos cuidados. Essas etapas não diferem das convencionalmente empregadas a um paciente crítico. Porém, o diferencial está na agilidade e na “corrida contra o tempo” que o profissional tem que enfrentar no processo de cuidado a este paciente, pois as alterações fisiopatológicas e hemodinâmicas relacionadas a ME, são variáveis e estão diretamente relacionadas com o sucesso do processo de doação de órgãos e transplante55. Cavalcante LP, Ramos IC, Araújo MAM, Alves MDS, Braga VAB. Nursing care to patients in brain death and potential organ donors. Acta Paul Enferm. 2014;27(6):567-72.-66. Almeida AM, Carvalho ESS, Cordeiro GM. Cuidado ao potencial doador: percepções de uma equipe de enfermagem. Rev Baiana Enferm. 2015;29(4):328-38..

Os cuidados realizados ao paciente em ME são comuns aos realizados a outros pacientes e requerem dos profissionais de saúde, neste caso, o enfermeiro, sensibilidade, envolvimento, empatia, olhar atento, percepção aguçada e conhecimento científico. Agindo deste modo, o paciente e a família podem ser assistidos com eficiência e resolutividade 55. Cavalcante LP, Ramos IC, Araújo MAM, Alves MDS, Braga VAB. Nursing care to patients in brain death and potential organ donors. Acta Paul Enferm. 2014;27(6):567-72.. Outra forma de facilitar a assistência é a capacitação dos profissionais da UTI, bem como o aprendizado e o aperfeiçoamento na prática1616. Jawoniyi OO, Gormley K. How critical care nurses’ roles and education affect organ donation. Br J Nurs. 2015;24(13):698-700.

17. Collins T. Strategies to increase organ donation: the role of critical care practitioners. Nurs Crit Care. 2012;17(3):112-4.
-1818. Lima CSP, Batista ACO, Barbosa SFF. Percepções da equipe de enfermagem no cuidado ao paciente em morte encefálica. Rev Eletr Enf. 2013;5(3):780-9..

Uma questão conflitante para os enfermeiros entrevistados foi o diagnóstico da ME. É difícil compreendê-lo, bem como aceitar a ME, pois o paciente nesta condição está morto, mas apresenta sinais de vida - batimentos cardíacos, calor e movimento dos pulmões - mesmo que seja por meio de tecnologia de suporte vital.

Esta realidade gera um sentimento de confusão, sendo uma grande fonte de estresse ao enfermeiro, podendo até mesmo interferir em suas ações, conforme evidenciado em outros estudos 44. Bianchia M, Accinellia LG, Silva MA, Menegócio AM. Identificação dos diagnósticos de enfermagem ao paciente potencial doador de órgãos. Uniciências 2015;19(2):174-80.,1111. Keshtkaran Z, Sharif F, Navab E, Gholamzadeh S. Lived Experiences of Iranian nurses caring for brain death organ donor patients: caring as “Halo of Ambiguity and Doubt”. Glob J Health Sci. 2016;8(7):281-92..

Aliado a isso, alguns enfermeiros destacam não priorizar o paciente potencial doador de órgãos e tecidos por considerar que os outros pacientes internados, com prognóstico de vida, são mais importantes. O fato do paciente em ME não possuir possibilidade de restabelecimento faz com que os profissionais se distanciem dele55. Cavalcante LP, Ramos IC, Araújo MAM, Alves MDS, Braga VAB. Nursing care to patients in brain death and potential organ donors. Acta Paul Enferm. 2014;27(6):567-72..

Além disso, o cuidado a este paciente incorpora a dicotomia entre a vida e a morte. O enfermeiro ao vivenciar esse processo de cuidado do paciente em ME se depara com a fragilidade de sua existência e recorda-se de sua própria finitude e da possibilidade de viver essa situação com seus familiares e pessoas próximas44. Bianchia M, Accinellia LG, Silva MA, Menegócio AM. Identificação dos diagnósticos de enfermagem ao paciente potencial doador de órgãos. Uniciências 2015;19(2):174-80.,1111. Keshtkaran Z, Sharif F, Navab E, Gholamzadeh S. Lived Experiences of Iranian nurses caring for brain death organ donor patients: caring as “Halo of Ambiguity and Doubt”. Glob J Health Sci. 2016;8(7):281-92.,1919. Arcanjo RA, Oliveira LC, Silva DD. Reflexões sobre a comissão intra-hospitalar de doação de órgãos e tecidos para transplantes. Rev Bioét. 2013;21(1):119-25.. Logo, torna-se difícil aceitar a morte como parte da condição humana. Esta dificuldade é potencializada quando existem vínculos entre enfermeiro e paciente.

A falta de recursos materiais, de equipamentos, de medicamentos e até mesmo de profissionais qualificados impede a equipe de prestar o cuidado adequado. A falta de um bom relacionamento médico-enfermeiro também interfere diretamente na assistência prestada. Esses elementos dificultadores aqui revelados corroboram com os achados na literatura1616. Jawoniyi OO, Gormley K. How critical care nurses’ roles and education affect organ donation. Br J Nurs. 2015;24(13):698-700.,1818. Lima CSP, Batista ACO, Barbosa SFF. Percepções da equipe de enfermagem no cuidado ao paciente em morte encefálica. Rev Eletr Enf. 2013;5(3):780-9..

Na prática profissional, o enfermeiro, da UTI e da CIHDOTT juntamente com os demais membros da equipe de saúde devem ter conhecimento técnico e científico para garantir a manutenção da estabilidade hemodinâmica do potencial doador, possibilitando um melhor cuidado, com dignidade e respeito, de modo que ele se torne um doador efetivo. Além disso, deve ter conhecimento do processo e a execução adequada de suas etapas possibilitando a obtenção de órgãos e tecidos com mais segurança e qualidade1818. Lima CSP, Batista ACO, Barbosa SFF. Percepções da equipe de enfermagem no cuidado ao paciente em morte encefálica. Rev Eletr Enf. 2013;5(3):780-9.,2020. Pestana AL, Santos JLG, Erdmann RH, Silva EL, Erdmann AL. Lean thinking and brain-dead patient assistance in the organ donation process. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(1):258-64.. A educação é fator determinante para o sucesso ou insucesso do processo de doação e transplante, sendo os treinamentos, cursos e palestras estratégias fundamentais para instrumentalizar a assistência.

A experiência de cuidar do paciente em ME faz emergir nos enfermeiros uma “miscelânea de sentimentos”, na qual estão implícitas emoções que permeiam todas as ações de cuidado. Dados semelhantes foram identificados em estudo realizado no Sul do Brasil1818. Lima CSP, Batista ACO, Barbosa SFF. Percepções da equipe de enfermagem no cuidado ao paciente em morte encefálica. Rev Eletr Enf. 2013;5(3):780-9..

A ambiguidade dos sentimentos pode estar relacionada com a multidimensionalidade do enfermeiro, um ser que incorpora em si aspectos físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, e que ao conceber a articulação e a diferença entre todos esses aspectos, revela sua complexidade, não havendo, dessa forma, possibilidade de separá-los no momento do cuidar.

Para o enfermeiro participante do estudo, o paciente em ME potencial doador é um ser que está morto, mas que deve permanecer conectado a diferentes aparelhos e equipamentos, exigindo dos profissionais cuidados de paciente grave, sem distinções, com a finalidade de assegurar sua estabilidade hemodinâmica para doação. O desafio para o enfermeiro se impõe em transpor a visão reducionista deste paciente como morto, mas reconhecê-lo como potencial para salvar vidas. A complexidade do cuidado ao paciente em ME está em conscientizar-se que este paciente não é um ser dicotômico, ou seja, ou morto ou vivo, mas, incorpora em si a vida e a morte simultaneamente.

Para cuidar de um ser tão complexo, como o paciente em ME potencial doador, é indispensável que o enfermeiro da CIHDOTT atue de modo complementar e interdisciplinar com a equipe da UTI, que interajam e atentem para especificidades deste paciente, para não fragmentar a assistência. Na verdade, o enfermeiro precisa extrapolar os limites do saber disciplinar e caminhar em busca da perspectiva dialógica e complementar em relação aos profissionais da saúde, pois nenhum profissional individualmente é capaz de responder pelas diferentes dimensões que envolvem o cuidado ao paciente em ME em sua totalidade.

Desta forma, o fenômeno “Desvelando relações e interações múltiplas do enfermeiro na complexidade do cuidado ao paciente em morte encefálica” emerge como síntese e resposta as ações de cuidado executadas no contexto de um hospital universitário. O enfermeiro admite que as experiências de cuidar do paciente em ME proporcionam mudanças na concepção do cuidado e na postura profissional, uma vez que incorporaram novas atitudes, conhecimentos e destrezas para cuidar do paciente em condição de ME, potencial doador de órgãos.

CONCLUSÃO

O estudo alcançou a compreensão do significado do cuidado do paciente em ME potencial doador para os enfermeiros de um hospital universitário, permitindo formular o modelo teórico explicativo do fenômeno “Desvelando relações e interações múltiplas do enfermeiro na complexidade do cuidado ao paciente em morte encefálica”.

Este é definido pelo contexto do cuidado em UTI, motivado pela organização das práticas de cuidado em UTI ao paciente em ME. Tem como condições intervenientes que facilitam o cuidado ao paciente em ME a capacitação profissional, interação e acolhimento da família do paciente, a motivação para o cuidar, o suporte da legislação brasileira para a doação e transplantes de órgãos. A maior dificuldade está no distanciamento entre o profissional e o paciente em ME. Como estratégia, enfatizou-se a incorporação de atitudes de responsabilidade e dedicação para cuidar da complexidade do paciente em ME. A consequência é identificada a partir da revelação da complexidade do paciente em ME e a necessidade de interdependência das práticas de cuidado.

A complexidade deste cuidado aponta para uma mudança de paradigma na forma como o paciente em ME potencial doador é visto e cuidado, sendo possível enxergá-lo para além de um ser morto, mas como um ser gerador de vida por meio da doação de órgãos. Dessa forma, a complexidade do cuidado ao paciente em ME permite o enfermeiro visualizar novos caminhos e assumir atitudes diferentes frente ao cuidado deste paciente, potencializando sua atuação.

Embora, a importância deste estudo esteja ancorada na experiência dos profissionais de saúde, o aspecto limitante da pesquisa é de ordem metodológica, considerando que envolveu o contexto específico, de um hospital universitário do nordeste brasileiro, não permitindo generalizar seus resultados.

Acredita-se que futuras pesquisas envolvendo outros cenários com características diferentes considerando as dimensões continentais do nosso país, possam fomentar discussões a respeito da influência desses resultados nas relações cuidativas do paciente em ME, principalmente potencial doador de órgãos, proporcionando a elaboração de um referencial teórico sólido que norteie as práticas de ensino, pesquisa e assistência a este paciente, permitindo também o avanço em termos de conhecimento teórico para a enfermagem e saúde e melhores práticas ao paciente nesta condição e ao processo de doação de órgãos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2017
  • Aceito
    26 Mar 2018
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