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Foi/não foi tudo o que pensava: facilidades e dificuldades após o transplante renal

Fue/no fue lo que pensaba: facilidades y dificultades después del trasplante de riñón

RESUMO

Objetivo

Conhecer as facilidades e as dificuldades que as pessoas com doença renal crônica vivenciam após o transplante renal.

Metodologia

Estudo qualitativo e descritivo, realizado com 20 pessoas transplantadas renais em um município do Sul do Brasil, de maio a julho de 2013. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas, analisadas conforme a técnica dos incidentes críticos.

Resultados

As principais facilidades foram apresentadas na categoria “Aproximação do viver ‘normal’: facilidades decorrentes do transplante renal”, estando relacionadas à libertação da diálise, à restrição alimentar e hídrica, entre outras. As dificuldades foram apresentadas na categoria “Permanência da condição crônica e a necessidade de cuidados”.

Considerações finais

As facilidades e as dificuldades dependem da vivência de cada pessoa. Os profissionais da saúde necessitam entender e promover ações de saúde que favoreçam a singularidade e o contexto do transplantado renal.

Insuficiência renal crônica; Transplante de rim; Acontecimentos que mudam a vida; Enfermagem

RESUMEN

Objetivo

Conocer las facilidades y dificultades que las personas con enfermedad renal crónica viven después del trasplante de riñón.

Metodología

estudio cualitativo-descriptivo realizado con 20 personas trasplantadas renales en el sur de Brasil, de mayo a julio de 2013. Se utilizaran entrevistas semiestructuradas, analizadas según la técnica de incidentes críticos.

Resultados

Las principales facilidades se presentaron en la categoría aproximación de la vida “normal”: facilidades consecuentes del trasplante de riñón, estando relacionadas a la liberación de la diálisis, a la restricción alimentaria e hídrica, entre otras. Las dificultades se presentaron en la categoría permanencia de la condición crónica y la necesidad de cuidado.

Consideraciones finales

Las facilidades y dificultades dependen de la vivencia de cada persona. Los profesionales de salud necesitan comprender y promover acciones de salud que favorezcan la singularidad y contexto del trasplantado renal.

Insuficiencia renal crónica; Trasplante de riñón; Acontecimientos que cambian la vida; Enfermería

ABSTRACT

Objective

To know the advantages and difficulties that people with chronic kidney disease experience after renal transplantation.

Methodology

A qualitative and descriptive study with 20 kidney transplant patients in a city in Southern Brazil, from May to July of 2013. Semi-structured interviews were used, analyzed according to the critical incident technique.

Results

The main advantages were presented in the similarity to “normal” living: advantages resulting from the kidney transplant category, related to the patient’s discharge from dialysis, food and water restriction, among others. The difficulties were presented in the permanent chronic condition and the need for care category.

Final considerations

The advantages and disadvantages depend on each person’s experience. The health professionals need to understand and promote health actions that promote the uniqueness and context of renal transplant.

Chronic renal insufficiency; Kidney transplant; Life changing events; Nursing

INTRODUÇÃO

A incidência e a prevalência da Doença Renal Crônica (DRC) têm aumentado no mundo, e o transplante renal é o procedimento cirúrgico utilizado como forma de tratamento indicado a pacientes em estágio final da doença renal(11. Hamilton D. Kidney transplantation: a history. In: Morris SPJ, Knechtle S, organizers. Kidney transplantation. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2014. p. 1-8.), havendo 5.556 cirurgias no ano de 2015(22. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (BR). Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado 2008-2015. RBT Registro Brasileiro de Transplantes. 2015 [citado 2016 ago. 13];XXI(4). Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2015/anual-n-associado.pdf.
http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/fi...
). Esse procedimento consiste na transferência do rim de um doador falecido ou vivo para o corpo do receptor, e é realizado com a finalidade de que o órgão transplantado desempenhe as funções que os rins doentes não conseguem mais manter(33. Manual de transplante renal. Castro MCR, revisora. São Paulo: Associação Brasileira de Transplante de Órgãos; 2010 [citado 2015 mai 22]. Disponível em: http://arquivos.sbn.org.br/leigos/pdf/manual_renal.pdf.
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), como a estabilidade hidroeletrolítica e a excreção endócrina.

Essa forma de tratamento melhora a qualidade de vida do paciente com doença renal e, em muitos casos, aumenta a expectativa de vida(44. Gill P. Stressors and coping mechanisms in live related renal transplantation. J Clin Nurs 2012;21(11-12):1622-31.) quando comparada com os outros tratamentos, como a hemodiálise e a diálise peritoneal. Todavia, a qualidade de vida é subjetiva e muda constantemente em relação aos resultados terapêuticos, bem como às expectativas dos receptores(55. Denhaerynck K, Dobbels F, Steiger J, De Geest S. Quality of life after kidney transplantation. In: Veroux M, Veroux P. Kidney transplantation: challenging the future Sharjah, United Arab Emirates: Bentham Publisher; 2012. p. 71-84.).

Muitas vezes, o transplante renal significa a independência da máquina dialítica, porém não representa a cura da DRC, pois os receptores continuam mantendo uma condição crônica. Dessa forma, eles dependerão de medicamentos imunossupressores e do constante acompanhamento médico ambulatorial. Suas vidas passam a ter algumas restrições, levando-a muitas vezes, ao sofrimento psíquico(66. Fontoura FAP. A compreensão de vida de pacientes submetidos ao transplante renal: significados, vivências e qualidade de vida [dissertação]. Campo Grande (RJ): Universidade Católica Dom Bosco, Programa de Mestrado em Psicologia; 2012.).

O transplante pode provocar impactos emocionais e ser um evento traumático que interrompe o sentido de continuidade e integridade pessoal, provocando emoções fortes que exigem da pessoa a mobilização de todos os seus recursos biopsicossociais durante o processo de adaptação ao novo órgão. Ainda, pode resultar alteração na auto-representação e na identidade, com possíveis repercussões psicopatológicas(77. De Pasquale C, Veroux M, Indelicato L, Sinagra N, Giaquinta A, Fornaro M, et al. Psychopathological aspects of kidney transplantation: efficacy of a multidisciplinary team. World J Transplant. 2014;4(4):267-75.).

Apesar da realização do transplante renal ser uma realidade brasileira comum, pois o Brasil ocupa o segundo lugar em número de transplantes renais(22. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (BR). Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado 2008-2015. RBT Registro Brasileiro de Transplantes. 2015 [citado 2016 ago. 13];XXI(4). Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2015/anual-n-associado.pdf.
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), é experimentado pela pessoa como uma combinação complexa de pontos positivos e negativos. Fatores esses, que podem ser influenciados pela fase do ciclo de vida, pelos níveis de escolaridade e socioeconômico.

Assim, o presente estudo torna-se importante por abordar, segundo as pessoas com doença renal crônica, as facilidades e as dificuldades encontradas em seu dia a dia após terem realizado o transplante renal. Apesar de tê-las tornado independentes da diálise, representar a “cura” de sua doença e o “retorno” às atividades habituais ainda exige que permaneçam em tratamento e em cuidados pelo resto de suas vidas.

Para tanto, a questão norteadora deste estudo foi “Quais as facilidades e as dificuldades que as pessoas com DRC vivenciam após o transplante renal?”, sendo o objetivo conhecer as facilidades e as dificuldades que as pessoas com DRC vivenciam após o transplante renal.

METODOLOGIA

Estudo qualitativo e descritivo, o qual utilizou a Técnica dos Incidentes Críticos (TIC) como referencial metodológico, seguindo os passos: estabelecimento do objetivo geral do estudo; desenvolvimento de um plano para a coleta das informações; coleta dos dados (incidentes críticos); agrupamento e categorização dos incidentes críticos; levantamento das frequências dos incidentes críticos positivos e negativos e interpretação dos dados(88. Flanagan J. La technique de l’incident critique. Rev Psychol Appl.1954;4(2):165-85.).

A TIC envolve toda a atividade humana observável, suficientemente completa, para que por meio dela, se possam fazer previsões sobre a pessoa que realiza a ação. Para ser crítico, um incidente deve ocorrer em uma situação, cuja finalidade da ação apareça com clareza perante o observador e que as consequências das ações sejam evidentes. Quanto ao comportamento, trata-se de uma reação ou de um conjunto de reações observáveis que constituem a resposta de uma pessoa para uma situação vivenciada(88. Flanagan J. La technique de l’incident critique. Rev Psychol Appl.1954;4(2):165-85.-99. Estrela MT, Estrela A. A técnica dos incidentes críticos no ensino. 2. ed. Lisboa: Estampa; 1994.).

Fizeram parte do estudo 20 pessoas transplantadas renais, que se adequaram nos seguintes critérios de inclusão: ter idade igual ou superior a 18 anos; concordar com a gravação das entrevistas; aceitar a divulgação dos dados nos meios científicos; estar com suas faculdades mentais preservadas; não apresentar dificuldades de comunicação verbal; estar vinculada ao serviço de nefrologia; ter, no mínimo, um ano de realização do transplante renal e ter sido submetida a algum tratamento dialítico anterior. Foram excluídas as pessoas que realizaram o transplante renal, mas voltaram a fazer algum tratamento dialítico.

O estudo foi realizado em um município do Sul do Rio Grande do Sul-Brasil, no período de maio a julho de 2013. Após o recebimento da relação das pessoas transplantadas, cedida por três serviços de nefrologia, a primeira abordagem foi realizada mediante o contato telefônico. Momento esse, em que se realizou a identificação do entrevistador, a apresentação do estudo, esclarecendo o seu desenvolvimento e a sua finalidade, apresentando e explicando os objetivos e a operacionalização da coleta com auxílio de um gravador.

Logo, foi lançado o convite para a participação, salientando a não obrigatoriedade e o anonimato. Após o aceite por parte da pessoa, a data, o horário e o local das entrevistas foram acordados, conforme a disponibilidade do participante, em que alguns optaram por realizar em seu domicílio e outros decidiram ser em uma sala disponibilizada pelo serviço de nefrologia. Dessa forma, respeitou-se em seguir o local onde se sentiriam à vontade para responder as questões de pesquisa.

Antes de iniciar a entrevista, foi apresentado por escrito, em forma de documento, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esse foi lido juntamente com o entrevistado, de modo a esclarecer as dúvidas e os procedimentos utilizados para o desenvolvimento do estudo, assegurando que a participação seria voluntária, podendo haver o direito de desistir em qualquer momento. Em seguida, foi solicitada a assinatura em duas vias do TCLE, a qual uma ficou com o entrevistado e a outra com o entrevistador.

Para as entrevistas, utilizou-se um roteiro com questões semiestruturadas e as respostas foram gravadas, possuindo uma duração total de 607 minutos, variando de nove a 82 minutos, sendo realizadas somente com o entrevistado e com um único entrevistador. No final do encontro, explicava-se que as entrevistas poderiam ser divididas em mais dois momentos. Ou seja, o primeiro poderia haver o retorno por parte do entrevistador para o esclarecimento de dúvidas ou para a realização de perguntas que faltaram, e o segundo, era garantido que se retornaria para a apresentação dos principais resultados encontrados no estudo. A coleta de dados encerrou após atingir um número suficiente de entrevistas, pois havia similaridade dos dados obtidos.

Os dados foram transcritos na íntegra e realizadas sucessivas leituras, a fim de analisar o conteúdo por meio de uma leitura minuciosa e contínua, preconizada pela Técnica dos Incidentes Críticos, obedecendo às seguintes etapas: identificação da situação ocorrida, dos comportamentos emitidos e das consequências resultantes; construção das categorias, envolvendo situações similares entre si, contendo a denominação e a definição, o mais operacional possível, do que ela significou ou representou, procedendo-se da mesma forma com os comportamentos e as consequências. Os dados analisados foram registrados em uma ficha (incidentes e dados sobre o entrevistado)(88. Flanagan J. La technique de l’incident critique. Rev Psychol Appl.1954;4(2):165-85.-99. Estrela MT, Estrela A. A técnica dos incidentes críticos no ensino. 2. ed. Lisboa: Estampa; 1994.).

Quanto aos princípios éticos, o projeto do estudo foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa, que emitiu o parecer de aprovação sob o nº 192/2013. Foram respeitados os princípios da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde(1010. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 1996 out. 16;134(201 Seção 1):21082-5.), vigente na época da aprovação da pesquisa. Cada entrevistado foi identificado por um código, a saber, E de entrevistado, seguido de número arábico conforme a sequência das entrevistas, acrescidos da idade (por exemplo: E1, 43 anos).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com a análise dos dados, duas temáticas foram elaboradas, as quais tratam das facilidades e das dificuldades vivencias pelas pessoas com DRC após o transplante renal, descritas a seguir.

Aproximação do viver “normal”: facilidades decorrentes do transplante renal

Nesta categoria, apresentam-se como facilidades adquiridas após o transplante renal, a libertação da diálise, a realização de atividades sociais e domésticas, a não restrição do cuidado alimentar e hídrico, além da não preocupação com o estado de saúde. Para a apresentação dos depoimentos, serão destacados somente os principais.

Assim, a primeira das facilidades foi o fato da pessoa com DRC não precisar mais depender do tratamento dialítico, sendo representado como sinônimo de liberdade. Fato esse que pode ser considerado como a volta da vida antes do estabelecimento da doença renal.

[...] eu acho que tu tem mais liberdade. Eu acho que é bem essa a questão (E5, 30 anos).

A minha vida voltou a ser como era antes. Antes de eu adoecer [...]. Só de estar livre assim, não preciso depender de... “Ai, esse horário, daqui a pouco eu tenho que ir para a diálise”, entendesse? Isso aí, para mim, é muita liberdade (E8, 50 anos).

Evidenciam-se sentimentos positivos com a realização do transplante renal, principalmente com a libertação da terapia dialítica. Essa referência positiva ao procedimento também foi encontrada em uma pesquisa, a saber: o transplante promove a satisfação com a nova maneira de viver, sobretudo, pela independência da diálise, sendo considerado o maior benefício da terapêutica adotada(1111. Sousa AMD, Dutra LMA. Qualidade de vida dos pacientes submetidos a transplante renal no Hospital Regional da Asa Norte. Comun Cienc Saude. 2013;24(1):9-20.).

A representação da liberdade adquirida para as pessoas transplantadas que faziam hemodiálise se deve a não necessidade de estarem restritas ao horário das sessões. Nesse contexto, os participantes também afirmaram que com a independência do tratamento dialítico, houve a oportunidade de realizar atividades como as sociais e/ou de lazer, o que favorece a qualidade de vida.

Melhorou, porque eu não preciso ir para lá [serviço de nefrologia]. Os meus filhos que ficavam comigo lá, o meu marido já está mais tranquilo. Eu posso sair a vontade, só levo o meu remedinho (E8, 50 anos).

Primeiro na qualidade de vida, o transplante me deu. Só o fato de não depender daquela máquina, já é outra vida. [...] Nessa questão assim, de tu não depender daquela máquina, tu não está preocupado com o horário da hemodiálise, com o dia da hemodiálise, esquecer aquilo ali. Isso aí com certeza, essa tranquilidade o transplante me deu. Tu poder sair, tu poder viajar, porque quando tu estás na hemodiálise, a tua vida está restrita àquela máquina. Tu não podes sair, [...] tu não vai à praia porque os teus braços estão feios, as pessoas vão fugir da água. Tu não viajas porque tu tens os teus dias e horários para fazer a hemodiálise, então é complicado. [...] Eu nunca fui um cara assim, de fazer grandes viagens até porque a situação nunca permitiu, mas tu pensas: Eu vou passar três dias lá na casa do meu irmão em Porto Alegre e não podia ir. Então o máximo que podia ir é para passar um dia assim, sabe, então isso aí é complicado. [...] O meu filho teve três anos em Minas [Estado de Minas Gerais], eu ia e passava 20 dias lá, de seis em seis meses, então eu podia ir (E11, 54 anos).

[...] eu convivo mais com a família que eu não convivia antes. Eu ficava três dias por semana fora de casa praticamente. [...] Teve uma vez que eu peguei uma bactéria no capilar lá, que eu fiquei quase 15 dias baixado. Aí já aumenta mais. [...] Para mim, com o transplante o que mudou foi que não tive mais aquele compromisso de ficar três vezes por semana fora de casa, no caso, e que eu faço praticamente tudo o que eu fazia antes, só que agora com mais tempo [...] (E14, 41 anos).

Para os participantes deste estudo, o transplante renal representou a concretização de diversas atividades, anteriormente impossibilitadas pela hemodiálise. Dessa maneira, interferiu positivamente no cotidiano, pela melhora na qualidade de vida, independência da máquina de diálise, viagens, aproximação com a família, dentre outros.

Corroborando com os dados apresentados, um estudo que objetivou conhecer o impacto do transplante renal na qualidade de vida de pessoas com DRC, apontou que o transplante foi positivo em todos os domínios da qualidade de vida, sobretudo, no que tange à percepção geral(1212. Mendonça AEO, Torres GV, Salvetti MG, Alchieri JC, Costa IKF. Mudanças na qualidade de vida após transplante renal e fatores relacionados. Acta Paul Enferm. 2014;27(3):287-92.).

Assim como poder passar mais tempo ao lado de familiares, também houve a oportunidade de realizar tarefas que desempenhavam anteriormente, inclusive as domésticas.

Só de não ter que estar nas máquinas, te trancar três dias da semana na máquina, cinco horas por dia, é uma grande coisa. Então a minha vida, bem dizer, ficou normal. Voltei a fazer a maioria das coisas que eu fazia [...] Eu gosto de estar sempre fazendo uma coisa e outra. Aí quando vem “Ah, tu pode ir lá, botar uma porta?”, “Ah, tu pode lá fazer tal coisa?”, eu ia e fazia (E15, 39 anos).

Depois do transplante, tranquila. Uma vida que eu não preciso mais, vamos dizer, ir lá fazer hemodiálise que nem era antes, era três vezes por semana. [...] Posso andar o resto do dia à vontade [...]. Até fazer uma faxina dentro da cozinha, fazer uma comida, que a minha comida é eu que faço. Faço pão, faço comida, até lavo pouco de roupa também. [...] Não sinto nada. Assim, dizer que eu sinto dor ou alguma coisa, não sinto nada e para mim é uma vida tranquila, não pode ser melhor em vista do que eu estava antes (E12, 45 anos).

Nota-se que a realização de trabalhos domésticos foi um facilitador que os entrevistados destacaram e, muitas vezes, o cumprimento de tais atividades é apontado como normal. Também referem o fato de seus familiares não poderem executar, seja por motivos profissionais ou por motivos de saúde, como apresentado nos seguintes depoimentos.

Eu faço todo o serviço em casa, dirijo, faço tudo. [...] Eu trabalho, eu pego a enxada [...] e subo em telhado, arrumo telhado, prego uma coisa, prego outra, não tem problema nenhum. Varro, faço todo o serviço de casa, porque minha esposa trabalha, então eu fico em casa, faço tudo. Vida normal, não sinto nada. Nada mesmo (E1, 66 anos).

Lavo, cozinho, arrumo casa, varro casa. Normal, que nem uma dona de casa faz. Todo o serviço da casa. Vou no mercado, vou em farmácia, vou em Banco, tudo é eu. Porque tem a mãe, mas a mãe é doente também, meu marido trabalha. [...] (E2, 53 anos).

Percebe-se que a realização de atividades, como as domésticas, reforça o ideário de pessoa ativa e capaz de ser “útil” no meio em que habita. Fato esse que se baseia na construção cultural da sociedade, em que as pessoas para serem reconhecidas devem estar em constante atividade.

Nessa perspectiva, a vida posterior ao transplante renal parece ter ganhos, pois influencia na capacidade da pessoa desenvolver tarefas cotidianas, reduz a dor, melhora o estado geral de saúde, a vitalidade e o âmbito social, o que favorece o dia a dia e o bem-estar da pessoa transplantada(1313. Carvalho MTVF, Batista APL, Almeida PP, Machado DM, Amaral EO. Qualidade de vida dos pacientes transplantados renais do Hospital do Rim. Motricidade. 2012;8(S2):49-57.).

Ainda houve a menção do retorno às atividades relacionadas ao lazer. Dessa forma, a ação de viajar e de sair para dançar foram os elementos que mais se destacaram. Um entrevistado relatou que tais vivências seriam como de uma pessoa normal.

[...] viajar porque aí é só a medicação que eu levo (E8, 50 anos).

Para mim tudo é fácil. Eu faço ginástica, eu vou a baile, eu danço, eu faço tudo. Minha vida é normal, a mesma vida que tu tem, sei lá, se tu fazes ou não faz, mas é vida de uma pessoa normal. Nada te impede. Tu não sentes uma dor. Eu pelo menos, eu não sinto dor de nada, eu não sinto nada [...] (E9, 55 anos).

As atividades de lazer, como viajar, participar de reuniões festivas, ir à academia, têm um sentido importante na vida das pessoas. Conforme ressaltado pelos participantes deste estudo, foram tarefas que o transplante possibilitou serem retomadas.

O transplante renal constituiu a oportunidade de modificação no viver para melhor, para quem o aguarda ou já o fez, de restituição da vida, com bem-estar e aproximação do cotidiano anterior a doença. Nesse sentido, é a partir dele que há possibilidades de maior liberdade, embora existam cuidados(1414. Quintana AM, Weissheimer TKS, Hermann C. Atribuições de significados ao transplante renal. Psico (Porto Alegre). 2011 [citado 2015 ago. 06];42(1):23-30. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/6057/6295.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/...
).

O consumo alimentar e hídrico também acarretaram facilidades para a pessoa após o transplante renal, melhorando o seu modo de viver. Ainda, o fato de ingerir líquido sem limitações foi um grande facilitador.

Tudo que antigamente não podia comer, comparação, uma laranja tinha que comer meia, não podia comer uma. Melancia não podia comer. Essas frutas que tinham líquido, sabe? Nada. Bergamota? Nada. Agora não, agora eu como. Como a vontade. Só alimentação, melhorou muita coisa (E2, 53 anos).

[...] depois do transplante, depois daquela fase inicial após transplante, até o rim começar a trabalhar, quanto mais líquido tomar melhor, que mais o rim trabalha, porque ele desempenha a função de dois. Ele tem que desempenhar a função dos dois e é um só agora. Então é só no início assim, até o rim começar a trabalhar e aí depois é liberado, é água, é líquido normal. [...] Pode se tomar o que eu consegui tomar, porque eu urino normal. Não é como antes que eu não urinava e tinha que controlar o líquido para não chegar pesado para fazer a diálise. Agora não tem limite, o que eu conseguir tomar, o que eu tiver sede, posso tomar à vontade (E3, 40 anos).

Como alimentos apresentados, destaca-se a liberdade em consumir aqueles que possuem alto teor de líquido, podendo ser uma conquista proporcionada pelo transplante renal, já que durante o tratamento dialítico havia a constante restrição dietética e hídrica, de modo a evitar o ganho de peso corporal. Ainda, a conquista em ingerir líquido, no caso a água sem restrição, pode ser uma das maiores facilidades originadas com o transplante renal.

Depois do transplante, conforme já mencionado, a pessoa reconquista sua autonomia, resgata o poder decisório de ir e vir, alimentar-se, ingerir líquidos, de acordo com o que convém, o que promove uma sensação de satisfação(66. Fontoura FAP. A compreensão de vida de pacientes submetidos ao transplante renal: significados, vivências e qualidade de vida [dissertação]. Campo Grande (RJ): Universidade Católica Dom Bosco, Programa de Mestrado em Psicologia; 2012.).

Outro fato apontado foi não ter mais preocupação, principalmente quanto ao estado de saúde, fazendo com que a pessoa não precise mais depender de outros para realizar o que precisa. No depoimento apresentado, possuir o rim funcionando é motivo de amenizar os problemas que a pessoa possa ter.

O que eu considerei fácil? [...] Acho que só o modo de viver mesmo. Ficou bem mais fácil. Então, não tem aquela preocupação, que eu tinha várias preocupações. Os exames dando errados, dando tudo alterado no caso e às vezes até tu não sabia o porquê. E com o transplante renal não, [...] o rim começou a funcionar normal. Não tem mais um problema. Bom, vários problemas. Então ficou bem mais fácil viver, no caso. [...] Só tenho que dizer que ficou bem melhor. Tudo, tudo ficou melhor. Coisas que eu dependia do outro para fazer [...], eu mesmo faço, eu mesmo vou (E15, 39 anos).

Observa-se nessa fala, que as facilidades vivenciadas pelas pessoas após o transplante renal podem refletir na qualidade de vida. Nesse contexto, as situações que levaram à liberdade do tratamento dialítico e do consumo alimentar e hídrico, retornar as atividades de lazer e desenvolver melhor as domésticas, sem ter preocupações que envolvam o estado de saúde, podem contribuir no conhecimento dos benefícios gerados pelo transplante renal.

O transplante renal retoma dimensões importantes da vida, possibilitando maior liberdade e desempenho de atividades cotidianas(1515. Arruda GO, Renovato RD. Uso de medicamentos em transplantados renais: práticas de medicação e representações. Rev Gaúch Enferm. 2012;33(4):157-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n4/20.pdf.
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). Provavelmente por esse motivo, um estudo realizado em unidade de Nefrologia de Pernambuco, que comparou a qualidade de vida entre pessoas transplantadas e as que realizavam hemodiálise, obteve maior pontuação na perspectiva dos participantes que realizaram o enxerto(1616. Teixeira CG, Duarte MCMB, Prado CM, Albuquerque EC, Andrade LB. Repercussão da doença renal crônica na qualidade de vida, função pulmonar e capacidade funcional. J Pediatr. 2014;90(6):580-6.).

Para tanto, concretizar o transplante pode significar a saída da escuridão por meio da recuperação da “visão”, possibilitando a observação da beleza das coisas e o retorno da autonomia. Fato descrito por um participante de uma pesquisa desenvolvida em Hospital Universitário do Sul do Brasil, ao comparar a realização do transplante com a cegueira(1414. Quintana AM, Weissheimer TKS, Hermann C. Atribuições de significados ao transplante renal. Psico (Porto Alegre). 2011 [citado 2015 ago. 06];42(1):23-30. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/6057/6295.
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).

Permanência da condição crônica e a necessidade de cuidados após a cirurgia: dificuldades dos receptores de transplante renal

Embora o transplante renal seja considerado uma das melhores opções terapêuticas para o tratamento da DRC, existe dificuldades vivenciadas pelas pessoas transplantadas, que serão apresentadas nesta categoria. Uma delas foi a rotina de cuidados que precisa manter, podendo afetar a vida social.

[...] A praia não posso ir. Posso ir para ficar na sombra assim, um banhozinho assim e sair já para a sombra. Então para quê eu vou? Eu não vou (E8, 50 anos).

Nota-se nesse depoimento que a pessoa transplantada acaba deixando de participar de determinadas atividades, já que necessita cumprir algumas restrições, como ir à praia e obedecer às limitações impostas, no caso, ter que ficar na sombra. Nesse contexto vivenciado, há o ganho da liberdade, mas ao mesmo tempo as restrições impostas a levam a perdê-la.

As pessoas imaginam que com o transplante renal a vida retornará ao “normal”. Entretanto, esse pensamento se modifica, visto que necessitam da manutenção contínua de uma terapêutica, como restrições dietéticas e físicas, além da dependência de medicamentos. Desse modo, há confronto, novamente, com a patologia e com os seus entraves(1414. Quintana AM, Weissheimer TKS, Hermann C. Atribuições de significados ao transplante renal. Psico (Porto Alegre). 2011 [citado 2015 ago. 06];42(1):23-30. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/6057/6295.
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).

Outra situação manifestada foi a realização de certos cuidados de modo a preservar o órgão transplantado.

Agora com o frio assim é mais difícil, que a gente tem que se agasalhar mais. [...] Já não pode andar muito de chinelinho [...]. Tem que ter mais agasalho [...] (E2, 53 anos).

[...] não pode entrar em contato com pessoas com gripe, com dor de garganta, com doentes assim, não pode ter contato (E10, 46 anos).

Que agora mesmo, quem ia para Porto Alegre seria eu, lá com o meu filho, mas como ele está com a menina no hospital, eu evito de ir por causa de gripe, de infecções, que eu não sei até aonde eu posso [...]. O médico só me disse que eu evitasse contato de qualquer tipo que fosse de doença, inclusive de uma gripe, então é por aí que eu me baseio (E13, 53 anos).

Tais cuidados mostram a necessidade do transplantado se proteger do frio e do contato com as pessoas. Principalmente aquelas que apresentam alguma doença infecciosa, restringindo, ainda mais, o desenvolvimento de atividades.

Tal fato foi apontado em uma revisão integrativa que relacionou os imunossupressores e as intervenções invasivas às complicações infecciosas, sendo que as mais frequentes nas pessoas transplantadas foram a do trato urinário, a sistêmica e da ferida operatória. Dessa maneira, os autores da revisão reforçam que o profissional enfermeiro necessita promover práticas seguras e minimizar a exposição da pessoa às complicações(1717. Lucena AF, Echer IC, Assis MCS, Ferreira SAL, Teixeira CC, Steinmetz QL. Complicações infecciosas no transplante renal e suas implicações às intervenções de enfermagem: revisão integrativa. Rev Enferm UFPE On Line. 2013 [citado 2015 ago 06]; 7(esp):953-9. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/85366/000875872.pdf?sequence=1&locale=pt_BR.
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handl...
).

Acredita-se que a concepção dos participantes desse estudo quanto à prevenção de infecções está relacionada com as informações repassadas pelos profissionais da saúde. Como no estudo supracitado, em que uma das preocupações do transplantado renal deveria ser “permanecer livre” dos processos infecciosos devido aos riscos de perder o enxerto.

Os entrevistados também citaram a dificuldade em desenvolver, ou até mesmo, dar continuidade a alguma tarefa laboral, em virtude do estado físico, mostrando-se, às vezes, debilitados.

Força até pode fazer um pouco, só não pode trabalhar que nem eu que era da agricultura, agricultor [...]. Por causa que hoje em dia, a maior parte é só a base de tratamento de veneno, essas coisas na lavoura, que eles usam herbicida. Aí não pode [...] mais trabalhar nessas coisas assim, em ferramenta, coisa para te pisar. Nem andar de bicicleta também não pode. Se eu [...] cair e bater, aí o rim pode parar. Não pode, então. Pode andar de carro, mas tem que cuidar. Vamos dizer, não pode dar uma batida. Andar de moto não é recomendado, pode dar uma derrapada e bater [...] ali aonde o rim é colocado. [...] Ele pode soltar, pode dar alguma coisa, então não é recomendado [...] (E12, 45 anos).

Eu era balconista de um açougue. Eu acho falta dessa parte também, mas entre os males, o menor. [...] como é que eu vô te dizer, vão os anéis e ficam os dedos, aí não posso trabalhar. [...] pegava um quarto de boi, botava no ombro e carregava, desmanchava, cortava e agora não, porque tem o braço da fístula, tem a cirurgia (E14, 41 anos).

As restrições impostas ou simplesmente executar determinadas tarefas com o máximo de precaução são justificadas pelo cuidado que a pessoa deve manter para a conservação do órgão transplantado. Outro fato, que pode trazer limitações para a vida após o transplante renal, é a necessidade do consumo constante de medicamentos imunossupressores, obedecendo aos horários estabelecidos e, ainda, tendo que conviver com os efeitos colaterais.

[...] não é que seja negativa, mas a medicação pós-transplante é muito pesada, que a gente toma (E3, 40 anos).

Assim, meus remédios que eu sou muito esquecida, aquilo é nove da manhã, nove da noite. São poucos, mas eu acabo esquecendo, mas tomo no mesmo dia, só que em horários atrasados (E8, 50 anos).

[...] Teve uma época também que me deu dor nas pernas por causa do medicamento. Que não é em todas as pessoas que dá a dor nas pernas por causa do medicamento. Eu não conseguia caminhar [...] (E19, 52 anos).

Nesses depoimentos, os entrevistados destacaram o esquecimento dos horários para o uso dos medicamentos imunossupressores, além dos efeitos adversos provocados, como a presença de algia nos membros inferiores. Esses são alguns fatores que acabam dificultando a vida das pessoas após o transplante, podendo comprometer na adesão ao tratamento.

Em um estudo que visou identificar os principais fatores que influenciam na qualidade de vida de 42 pessoas com transplante renal em um Hospital em Montes Claros-Minas Gerais, foi evidenciado que elas permaneceram tendo estresse no que tange à saúde depois do transplante, devido às complicações que podem acontecer e pela necessidade de ajustes, adequação à terapêutica e à convivência com os efeitos adversos dos medicamentos(1313. Carvalho MTVF, Batista APL, Almeida PP, Machado DM, Amaral EO. Qualidade de vida dos pacientes transplantados renais do Hospital do Rim. Motricidade. 2012;8(S2):49-57.).

Em contrapartida, em uma pesquisa com 21 pessoas transplantadas renais em um Hospital do Distrito Federal, houve adaptação após o procedimento, a partir do uso contínuo de medicamentos, do controle da dieta e do acompanhamento ambulatorial, e para a maioria não representou uma dificuldade(1111. Sousa AMD, Dutra LMA. Qualidade de vida dos pacientes submetidos a transplante renal no Hospital Regional da Asa Norte. Comun Cienc Saude. 2013;24(1):9-20.). Acredita-se que embora os participantes do estudo tenham referido algumas adversidades pós-transplante renal, os benefícios se sobressaem, e por isso, algumas pessoas mencionam que não existem dificuldades posteriores ao procedimento, conforme apresentado por esses autores.

Desse modo, as pessoas transplantadas enfatizam que preferem utilizar os medicamentos necessários posteriormente ao transplante de rins em detrimento do retorno para a rotina de hemodiálise, experiência que não traz lembranças positivas(1515. Arruda GO, Renovato RD. Uso de medicamentos em transplantados renais: práticas de medicação e representações. Rev Gaúch Enferm. 2012;33(4):157-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n4/20.pdf.
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).

Ainda, sabe-se que a pessoa necessita atentar-se a alimentação. Apesar de existirem depoimentos referindo que com o transplante renal há melhora na questão alimentar em comparação com a época que realizavam diálise, as pessoas precisam manter restrições, além de intercalar com o horário dos medicamentos imunossupressores, obedecendo a um ritual, o que pode ser considerado um percalço após o transplante.

Só o sal tem que diminuir. O sal quase que nada. O sal tem que ser bem pouquinho, quanto menos, melhor (E2, 53 anos).

[...] a parte difícil só que dá, só que tem que fazer [...], tu começa a tomar medicamento às oito horas da manhã, aí das oito às nove não pode te alimentar. Às nove tem que tomar outro medicamento, aí tu não pode te alimentar até as dez horas da manhã. Às dez horas toma três comprimidos. Três comprimidos, aí sim, te alimenta normal. Aí às oito da noite começa tudo de novo (E2, 53 anos).

Corroborando com o que foi mencionado pelos participantes no que diz respeito à rotina incessante com os medicamentos, em um estudo com receptores renais eles afirmaram que fazem parte da rotina diária assim como os outros compromissos. Ainda, referiram que do momento do procedimento cirúrgico aos dias que vivem com o transplante, o uso dos medicamentos com suas posologias consiste em uma prática que ecoa com naturalidade(1515. Arruda GO, Renovato RD. Uso de medicamentos em transplantados renais: práticas de medicação e representações. Rev Gaúch Enferm. 2012;33(4):157-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n4/20.pdf.
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).

Ainda relacionado à utilização dos medicamentos imunossupressores, outro fator problemático que pode trazer prejuízos às pessoas com transplante renal está atribuído ao risco de sua ausência na distribuição estabelecida pelo sistema público de saúde. A não entrega ou erros prescritos com relação ao tipo de medicamento ou sua dosagem podem interferir no seguimento do tratamento.

Eu cheguei lá para buscar os meus remédios uma vez no mês [...] e não tinha. E digo: Como não tem! Não tem como não ter. Eu tenho um rim que eu custei muito a conseguir, que é a minha vida e você vai me dizer que não tem remédio. Não, não senhor, não saio daqui sem remédio. [...] Dali não tinha, eu fui lá na Secretaria da Saúde do Estado [...]. Aí eu cheguei lá e [...] um rapaz disse: “Ah não, a senhora sabe, são tanta gente”. “Só um pouquinho moço, o senhor um dia vai dar valor, o dia que o senhor tiver alguém da sua família, Deus queira que o senhor não precise. Agora, eu daqui não saio sem o meu remédio”. E uma senhora na minha frente, tinha saído da Farmácia do Estado sem o remédio e eu cheguei lá e tinha remédio. [...] Aí tinha chegado remédio, mas tinha vindo a nota mal e então não entregaram. Então teve gente que ficou um dia ou dois sem o remédio. Isso, eu acho um absurdo, é uma falta de respeito com o ser humano. Isso é vida, podem arrebentar com a vida de uma pessoa. [...] Agora, existe muita falta de vontade de ajudar. As pessoas se esquecem que um dia pode acontecer com elas. Entendesse, ninguém está livre (E7, 58 anos).

[...] agora até está sem esse medicamento [nome do medicamento]. Eu não podia estar sem ele, desde ontem. [...] Eu não sei por quê? Disse, porque a doutora tinha aumentado e não me deu no fim a receita [...] e aí me faltou esse medicamento aqui e eu estou apavorada com esse medicamento, que esse aqui também é para rejeição [...]. Agora eu não sei, o meu irmão disse que tinha conseguido, que eles iriam conseguir umas duas cartelas em Arroio Grande. No fim, eu vou ter que diminuir a quantia dele porque não tinha vindo para o SUS ainda, esse medicamento. Eu vou ter que tomar dois por dia só, coisa que eu tenho que tomar dois de manhã e um a noite. Agora vou ter que tomar um de manhã e um à noite [...]. E se chega a me acontecer alguma coisa? Deus me livre! (E19, 52 anos).

Os depoimentos apresentados expressam a preocupação das pessoas em perder a função renal por ficarem sem seus medicamentos, causado pela não disponibilização pelo governo ou por falhas estabelecidas nas receitas médicas. Esses Fatores podem comprometer o sistema imunológico e atingir o órgão transplantado, o qual por mais que seja compatível é algo estranho no organismo, podendo ser rejeitado. Assim, os entrevistados manifestam estratégias utilizadas para conseguir os medicamentos, tendo muitas vezes que procurarem as Secretarias de Saúde ou se deslocarem em outros municípios.

Problemas em consequência do transplante renal também foram descritos em uma pesquisa com 21 pessoas transplantadas no México, as quais não possuíam acesso ao seguro privado ou público, ou sequer recursos para financiar a terapia renal. Esses participantes referiram que o que estavam vivendo após o transplante era diferente do que os profissionais da saúde haviam prometido, como a redução de despesas, retorno à vida normal e melhora na qualidade de vida, visto a impossibilidade de seguir o tratamento, nomeadamente, em consequência das dificuldades econômicas. Desse modo, o medo da rejeição do enxerto pela falta de medicamentos imunossupressores os afligia(1818. Mercado-Martínez FJ, Hernández-Ibarra E, Ascencio-Mera CD, Díaz-Medina BA, Padilla-Altamira C, Kierans C. Viviendo con trasplante renal, sin protección social en salud: ¿qué dicen los enfermos sobre las dificultades económicas que enfrentan y sus efectos? Cad Saude Publica. 2014;30(10):2092-100.).

Além do mais, novamente um entrevistado afirmou a possibilidade de adoecer em virtude de possuir o sistema imunológico deprimido e ainda tendo que se deslocar à cidade onde realizou o transplante renal para receber atendimento clínico. Tal situação leva a refletir o porquê de os atendimentos de saúde não poderem ser realizados na cidade em que reside.

Então tem aquele detalhe, a pessoa que é transplantada, ela tem as defesas baixas. Então de repente se pegar chuva, pode pegar resfriado. Pega um resfriado, começa sintoma de febre, já tem que procurar atendimento médico. É tudo em Porto Alegre. Infelizmente ainda é tudo em Porto Alegre. [...] Aqui [cidade onde reside] teria que ter um pólo, [...] ao menos nessa primeira triagem. Se a pessoa apresentar algum problema, tudo bem, aí manda para o hospital de origem, que lá eles têm todos os dados, desde que fizeram o transplante. Acho que seria interessante isso, mas a princípio, a gente vai a Porto Alegre para fazer uma consulta. Tu perdes o dia inteiro (E11, 54 anos).

Como também visto nessa fala, as constantes revisões de saúde soaram como um percalço, em virtude de serem realizadas em outra cidade, especificamente onde foi realizado o transplante renal. Assim, um entrevistado apontou o itinerário percorrido no dia da consulta.

O único difícil, para mim, é ir a Porto Alegre de manhã [...], que tu tem que levantar três, duas horas da manhã para te arrumar, tomar um banho. Eu tenho carro, ainda vou de carro, deixo lá no pátio da Secretaria [Secretaria de Saúde], pego o ônibus, volto, pego de volta. Mas quem não tem, tem que ir de ônibus ou tem que chamar um táxi ou coisa assim, então já fica difícil. [...] Só é ruim porque tu não dormes, tu ficas cansada. É claro, tu saí três horas da manhã para pegar um ônibus, tu vais até Porto Alegre, eu durmo a viagem inteira, quando eu acordo, eu já estou chegando lá [local da consulta]. E lá tu tens que ficar o dia inteiro, porque tu tiras sangue de manhã. Quando tu chegas, tu fazes a coleta e aí tu só vai mesmo consultar lá pelas duas, três horas, às vezes até quatro e tanto, cinco horas [horário da tarde], depende do horário que tu é agendada [horários da tarde]. Então tu tens que ficar o dia inteiro em Porto Alegre sem fazer nada (E9, 55 anos).

As idas e vindas dos participantes do estudo para os serviços de referência na capital do Estado ocasionam desconfortos, pela distância, pelo tempo ocioso perdido e pela rotina cansativa. Corroborando, em outro estudo foi evidenciado que as pessoas transplantadas necessitavam afastar-se do local de origem para realizarem acompanhamento em outros municípios, uma vez que precisavam de profissionais habilitados(1515. Arruda GO, Renovato RD. Uso de medicamentos em transplantados renais: práticas de medicação e representações. Rev Gaúch Enferm. 2012;33(4):157-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n4/20.pdf.
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).

Além da distância entre as cidades onde os entrevistados residem e realizam as revisões de saúde, ainda convivem com a ausência de informação, principalmente vinculada ao tratamento realizado. Tal carência se constitui em um fator problemático vivenciado pelas pessoas que desejam preservar os cuidados necessários com a terapêutica estabelecida.

[...]. Aqui está muito difícil. Aqui falta muita, muita coisa. A cidade aí está difícil. [...] Nós estamos precisando de muita informação aqui [...] sobre transplantado, muita informação. [...] Não, não tem nada aqui. [...] nosso problema, a falta de informação [...] (E4, 55 anos).

Observa-se que o participante gostaria de ser melhor informado, principalmente sobre o transplante. Desse modo, ficam implícitas possíveis falhas no sistema de saúde, em que a comunicação efetiva, de acordo com as necessidades das pessoas, nem sempre ocorre.

Diante desta situação, autores mencionam que os profissionais da saúde acreditam que há necessidade de se melhorar o sistema de comunicação e educação direcionado aos pacientes e cuidadores, a fim de melhorar a gestão dos sintomas, por exemplo, o que seria benéfico para os envolvidos neste processo(1919. Feldman R, Berman N, Reid MC, Roberts J, Shengelia R, Christianer K, et al. Improving symptom management in hemodialysis patients: identifying barriers and future directions. J Palliat Med. 2013;16(12):1528-33.). Para tanto, a pessoa que obtiver maiores informações quanto a sua patologia e tratamento, consequentemente, apresentará uma qualidade de vida melhor(2020. Guedes KD, Guedes HM. Qualidade de vida do paciente portador de insuficiência renal crônica. Rev Cienc Saude. 2012;5(1):48-53.).

As dificuldades apresentadas nesta categoria soam como alerta a ser conhecido pelas pessoas com o transplante renal, como também pelos profissionais da saúde que os atendem. Nota-se que, apesar de conviver com os obstáculos estabelecidos pela doença renal, e logo pelo transplante, elas enfrentam situações que precisam atentar ao cuidado, além daquelas que lhes causam preocupações e estresse.

A despeito das dificuldades enfrentadas por quem vivencia o transplante renal, como ter a condição crônica, a necessidade de medicamentos ininterruptos e o acompanhamento frequente, esse se mantém como a melhor alternativa terapêutica para a doença, uma vez que permite melhora na qualidade de vida, a partir da independência da diálise e da possibilidade de retorno a vida social e profissional(1313. Carvalho MTVF, Batista APL, Almeida PP, Machado DM, Amaral EO. Qualidade de vida dos pacientes transplantados renais do Hospital do Rim. Motricidade. 2012;8(S2):49-57.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao conhecer as facilidades que as pessoas com DRC vivenciam após o transplante renal, destacou-se a libertação da diálise e da restrição alimentar e hídrica, a aproximação com as atividades cotidianas anteriormente realizadas como as sociais e as domésticas, e a não preocupação com o estado de saúde, que podem refletir positivamente na sua qualidade de vida. Em contrapartida, a idealização de cura da doença foi rompida, a partir do momento que as pessoas perceberam que as limitações e as dificuldades permeavam o seu viver.

Assim, esses entraves estavam relacionados, principalmente, ao fato de permanecer com a doença crônica, necessitando de medicamentos ininterruptos e de acompanhamento frequente, aos efeitos colaterais dos medicamentos e ao medo de sua falta, à rotina de cuidados para preservar o órgão transplantado como os cuidados com a dieta quanto ao uso de sal, à restrição para desenvolver algumas tarefas como as laborais, e à ausência de informação vinculada ao transplante e ao tratamento, causando preocupação e estresse. Fatores esses que faz haver ambiguidades nas respostas, pois por um lado está o ganho da liberdade, e por outro, o cuidado imposto a ser seguido para a manutenção do órgão transplantado.

Percebe-se que as mesmas situações entendidas como facilidades para algumas pessoas podem ser consideradas percalços para outras, o que ressalta a subjetividade e o modo de vivenciar de cada uma. Portanto, acredita-se que os profissionais da saúde, em especial a enfermagem, necessitam entender e promover ações de saúde que favoreçam a singularidade e o contexto da pessoa com transplante renal.

Como limitação do estudo considera-se o fato de ser uma pesquisa qualitativa, já que não pode ser generalizada e trabalha com os aspectos subjetivos do ser. Dessa maneira, reforça-se a necessidade de mais estudos qualitativos enfocando esta temática, a fim de aprofundar os conhecimentos apresentados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2015
  • Aceito
    26 Set 2016
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