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Dança de Urso, dança de Salomé: sobre "Atta Troll", de Heinrich Heine

Bear Dancing, Salome Dancing: about "Atta Troll", de Heinrich Heine

Resumo

Neste artigo se investiga a linguagem do poema satírico "Atta Troll - ein Sommernachtstraum" (Atta Troll - sonho de uma noite de verão), escrito em 1841 por Heinrich Heine. A investigação se volta a dois aspectos profundamente entrelaçados preponderantes no poema, que suscitam este estudo literário: primeiramente a exigência do poeta, a qual percorre o longo poema como Leitmotiv, de uma arte sem fins, sem influências de motivações morais, religiosas ou políticas, fundamentada em leis próprias, emergente da noção do belo, e cujos fins estejam inerentes na arte mesma. O segundo viés que se releva no poema é a relação metafórica da poesia com a dança, arte essa que em suas diversas manifestações formais e informais é observada por um crivo rigoroso ao longo do poema. A partir desses dois aspectos se indicia através de trechos traduzidos ao português afinidades importantes dessa literatura, que tanto se inclina ao romantismo, quanto à passagem para a modernidade, a cujas transformações ela aponta quando aborda questões sobre estética e sobre o papel do poeta.

Palavras-chave:
Atta Troll; Heinrich Heine; poesia; dança; modernidade

Abstract

This paper proposes an investigation into the language of the satiric poem "Atta Troll - ein Sommernachtstraum" (Atta Troll - sonho de uma noite de verão), composed by Heinrich Heine in 1841. Two deeply woven aspects stand out in the poem and motivate this literary research: first the poet's requirement, which runs throughout the lengthy poem as a Leitmotiv, asking for an art without moral, religious or political influences, based on its own laws, emerging from the notion of beauty, and whose reasons are inherent in themselves. The second perspective that the poem reveals is the metaphoric relationship of poetry and dance, the art form in its various manifestations both formal and informal, which are observed with strict scrutiny throughout the poem. From both aspects, taken from translated parts in Portuguese, the paper indicates important affinities of this literature that lean towards both romanticism and the transition to modernity, and whose transformations it points at, with respect to aesthetics and the role of the poet.

Keywords:
Atta Troll; Heinrich Heine; dance; poetry; modernity

Zusammenfassung

In diesem Aufsatz wird die Sprache innerhalb des Spottgedichtes "Atta Troll - ein Sommernachtstraum" (Atta Troll - sonho de uma noite de verão) von Heinrich Heine untersucht. Die Untersuchung richtet sich auf zwei Aspekte, die das Gedicht beherrschen und zu dieser literarischen Studie führen: erstens die Forderung, die sich als Leitmotiv durch das gesamte Werk erstreckt, nämlich eine Kunst ohne Einflüsse durch moralische, religiöse oder politische Motivationen zu schaffen, die sich ihrerseits auf eigene Gesetze aus dem Begriff des Schönen besinnt. Der zweite Aspekt in dem Gedicht ist die metaphorische Beziehung von Poesie und Tanz, der in seinen verschiedenen formellen und informellen Manifestationen streng beobachtet wird. Aus diesen beiden Aspekten ergeben sich wichtige Affinitäten dieser Literatur, die sowohl zur Romantik neigt, als auch zum Übergang zur Moderne, deren Transformationen in Bezug auf Ästhetik und auf die Rolle des Dichters sie zeigt.

Stichwörter:
Atta Troll; Heinrich Heine; Tanz; Modernität

1 Introdução

Dois aspectos preponderam no poema "Atta Troll" de Heinrich Heine e suscitam este estudo literário. Primeiramente a postulação, apresentada no prefácio e que percorre o longo poema como Leitmotiv, de uma arte sem fins, sem influências de motivações morais, religiosas ou políticas, constituída sobre leis próprias, emergente da noção do belo, e cujos fins estejam em si mesma inerentes.

Essa postulação coincide com o conceito de "L'art pour l'art", que Victor Cousin formulou (Du vrai, du beau, du bien, 1836) e Theophile Gautier desenvolveu no prefácio ao seu romance Mademoiselle de Maupin (1835), ascendendo com o Simbolismo, o Parnasianismo, Baudelaire, Flaubert, Oscar Wilde e Stefan George a um patamar de artifícios com formas estéticas (Wilpert 1969Wilpert, Gero von. Sachwörterbuch der Literatur. Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1969.: 47). É importante ressaltar que se trata de uma irônica contradição, tendo em vista que Heine se tornou conhecido justamente por ser um poeta combativo. A ambivalência do poema "Atta Troll", porém, se configura e se mantém até o fim como paródia. De modo geral, esta tese é confirmada por Häntzschel:

Sob a perspectiva hodierna reconhece-se que Heine, embora tenha profetizado o fim do período artístico (Ende der Kunstperiode) com Goethe, refuta isso com a própria obra. Pois ao encontro de todo o movimento "Jovem Alemanha" ou discurso direto e não-artístico de "Vormärz" Heine se ateve sempre ao caráter de arte de sua obra, desde os primórdios até os últimos dias de trabalho (Häntzschel 2003Häntzschel, Günter. Das Ende der Kunstperiode? Heinrich Heine und Goethe. (15 dez. 2003). Goethezeitportal. Disponível em: <Disponível em: http://www.goethezeitportal.de/db/wiss/epoche/haentzschel_kunstperiode.pdf >. Acesso em: 12 fev. 2017.
http://www.goethezeitportal.de/db/wiss/e...
: 7).

O segundo viés de relevo no poema "Atta Troll" é a relação metafórica da poesia com a dança, que entranha na fabulação e dissemina-se em alegorias concernentes à leveza e à graciosidade poéticas.

"Atta Troll", escrito em 1841, foi publicado primeiramente em fragmentos no Elegante Welt, jornal editado pelo amigo de Heine, Heinrich LaubeHeine, Heinrich. Atta Troll - ein Sommernachtstraum. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1847..1 Gerhart Hoffmeister, no livro Heine in der Romania, traça o percurso da recepção de "Atta Troll", de Heine, na França. Em 1855 "Atta Troll" integra a antologia Poëmes e légendes. Helen Grace Zagona em The Legend of Salome (1960) mostrou a fecunda profusão do mito despertado pelo poema, tanto durante a vida do poeta, sobretudo após sua morte (Hoffmeister 2002: 38). A imagem de Salomé exibindo a cabeça decapitada de São João Batista, a quem ela (ou a mãe, Herodias, em Heine) teria amado e matado, teria inspirado Baudelaire, Mallarmé (Fragmente zu Hérodiade, 1864-68), Flaubert (novela: Herodiade, 1877), além da ópera Herodias de Milliet, composições de Gremont e Massenet, a peça de O. Wilde e a pintura de Gustave Moreau que J.-K. Huysmanns descreve em Às Avessas. No prefácio escrito a posteriori para a edição em livro de 1847, que reuniu os capítulos dispersos, o escritor Heine (1960Baudelaire, Charles. L' Art Romantique (1885). In: Oeuvres Complètes. Paris: Arvensa Editions. Disponível em: < Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Art_romantique >. Acesso em: 23 ago. 2016.
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: 538) se antecipa às críticas e contesta a intenção de fazer proselitismo político com o longo poema satírico. Justamente pelo contrário, seu objetivo era legar um protesto contra a arte característica daquela época e que tanto abominava no Bardenhain/bosque de bardos (1960: 538) entusiasmados, que exaltavam a pátria com rima e ritmo. A mediocridade teria enfim, após milênios, compreendido a antítese entre talento e caráter. Com isso era ao leere Kopf/cabeça oca (1960: 538) quase um alívio a afirmação de que homens honrados em geral não eram bons músicos e que comumente bons músicos não eram senão homens honrados, considerando que no mundo o que importa de fato é a honradez e não a música: "As cabeças ocas puseram-se a partir daí a palpitar cadenciadas pelo coração e a ética era o grande trunfo." (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 538).

Nos anos 1830,2 2 As questões motivadoras da sátira "Atta Troll" se mantêm presentes nos debates acerca da linguagem poética no decurso do século XX. Alterada pela tecnologia, a percepção sensorial que se exacerbava dentro dessa proposta de uma "arte pela arte" tantas vezes se transformou em alienação. Essa seria a origem da estetização da política, manipulada pelo movimento fascista. Uma bibliografia imprescindível para orientar o leitor no prosseguimento dessa discussão sobre o desenvolvimento do termo estética e as implicações do seu emprego seria o ensaio "Estética e Anestética: o 'ensaio sobre a obra de arte' de Walter Benjamin reconsiderado" (Travessia - revista de literatura - n. 33, UFSC - Ilha de Santa Catarina, ago.-dez. 1996; p. 11-41.), no qual a autora norte-americana Susan Buck-Morss interpreta as colocações de Benjamin em "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", escrito em 1936. o desenvolvimento do mercado literário possibilitava ao livro e aos jornais um alcance mais rápido e efetivo em amplos âmbitos da sociedade de língua alemã. A formação e a ampliação de um público interessado, potenciais consumidores e leitores, garantia aos escritores mais críticos uma liberdade inédita em relação aos senhores feudais e aos mecenas para manifestarem suas posições. Essa emancipação, contudo, coincidia com a reação da Confederação Germânica, que em 1835 editou um decreto proibindo a publicação de obras dos envolvidos no movimento Junges Deutschland (Jovem Alemanha). Era uma polêmica confrontação com obras de escritores da nova geração, cujos esforços, segundo o decreto, "explicitamente se dão no sentido de agredir em escritos beletrísticos acessíveis a todas as classes de leitores a religião cristã da maneira mais insolente, desprezar as relações sociais vigentes e atacar toda a ordem e os bons costumes." (Wellberry 2007: 702). Para a geração do Junges Deutschland, a literatura deveria coincidir com o seu próprio tempo, envolver-se nos problemas políticos, e a linguagem, assim, deveria refletir os processos contemporâneos, o que colocava em xeque a poesia tradicional. (Wellberry 2007, p. 715). Ludwig Börne e Heine, ambos refugiando-se da censura no exílio parisiense e escrevendo como correspondentes para o Allgemeine Zeitung,3 3 As colaborações de Heine para o jornal de Augsburg, Allgemeine Zeitung, são publicadas em duas partes (Lutetia 1 e Lutetia 2 - relatos sobre Política, Arte e Vida Popular), dentro dos três volumes Vermischte Schriften (miscelânea), em 1854. eram as referências dessa oposição política. Mas Heine considerava ilusão fundar a política no entusiasmo. E a poesia fundada no entusiasmo político, ele via com ceticismo.

2 A sátira de Heine

Atta Troll vive como refugiado na floresta dos Pirineus. Ao lado dos filhotes em sua caverna, profere discursos políticos exaltados contra a arte subserviente e hipócrita que a seu ver corresponde à dança indigna de urso por praças urbanas.

A interpretação da figura do urso como um animal rebelde que avant la lettre se subleva perante o antropocentrismo é uma remota probabilidade em meados do século XIX. Antes, o urso Atta Troll é criado com incorporações de valores; lhe são conferidos pronunciamentos e expressões característicos do humano:

Atta Troll, urso engajado; moralista religioso; como marido ardente; Seduzido pelo espírito do tempo, Um sans-culotte original da floresta; Dançando muito mal, porém, Portando caráter no peito peludo, que fede uma vez ou outra; sem talento algum, Mas de ilibada postura.4 4 Com exceção do poema com crédito de outro tradutor, as demais traduções constantes neste artigo são de minha autoria. Atta Troll, Tendenzbär; sittlich/ Religiös; als Gatte brünstig;/ Durch Verführtsein von dem Zeitgeist,/ Waldursprünglich Sanskülotte;//Sehr schlecht tanzend, doch Gesinnung/ Tragend in der zottigen Hochbrust;/ Manchmal auch gestunken habend;/Kein Talent, doch ein Charakter. (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 599).

Mas no capítulo 6 trata-se da questão dos animais; Atta Troll recomenda ao homem que volte seu olhar aos outros animais: "Porém, seria talvez produtivo/ Para o homem, que compõe a mais elevada/ Categoria animal, se soubesse/ O que se pensa lá embaixo" (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 552). Defendendo os direitos de unidade, de igualdade, os versos se referem, no capítulo, a vários humilhados, inclusive nesse contexto aos próprios judeus, sempre através do gênero literário fábula antropomórfica.

Discurso poético de urso tinha mesmo de ser fala insípida, considerando que esse é um animal que se expressa através de urros. Especificamente, o protagonista Atta Troll é moralista, todavia alardeia aos quatro ventos que tem caráter. Nesse sentido, dança conforme a música e se assemelha ao objeto de sua crítica, o urso bailarino submisso.

Tudo leva a crer que "Atta Troll" evidencia, sim, não obstante as contestações do escritor no prefácio do poema, questões sociais que dialogam com denúncias pós-colonialistas atuais. A começar pela epígrafe com um verso da balada "O Príncipe Mouro", de Ferdinand Freiligrath, poeta seu contemporâneo.

D' alva tenda ofuscante saía Negro príncipe d'armas munido Feito Tor, a Lua, de súbito, Dentre claras nuvens, surgia.5 5 Trecho de "Der Maurerfürst", de Ferdinand Freiligrath: Aus dem schimmernden, weißen Zelte hervor/ Tritt der schlachtgerüstete, fürstliche Mohr;/ So tritt aus schimmernder Wolken Tor/ Der Mond, der verfinsterte, dunkle, hervor. (Freiligrath apud Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 537)

Na balada de Freiligrath, o africano e príncipe guerreiro mouro é subjugado na guerra, vendido como escravo, e lhe é impingida a tarefa de rufar tambores anunciando a largada dos cavalos num hipódromo da Europa. A epígrafe, que poderia sugerir a consciência política de Heine e sua empatia com povos subjugados, é, de fato, uma troça acerca do nobre pathos do colega poeta. A maneira ousada como parodia a balada épica e epopeica do contemporâneo não se abranda, mais se acentua quando de antemão no prefácio ele adverte que não se trata definitivamente de desvalorização. A poesia de Freiligrath era a seu ver meritória das loas que lhe foram consagradas: essa "Produktion wird übrigens als die gelungenste gerühmt" (1960, 539). Ao prefaciador Heine, porém, soara engraçada a história acerca do mouro africano que abandona a bela amada na tenda africana e, perfilando-se como a lua por trás das nuvens, se aventura, bravo guerreiro, à batalha, que será o avatar da derrota e em cuja esteira advém o papel subalterno no mundo do entretenimento dos oponentes. O príncipe africano citado na epígrafe ressurge no final do poema como guarda do Jardin des plantes de Paris, onde casualmente conversa com o caçador e narrador, e é ele quem dá notícias do desfecho da lendária aventura sobre o urso dançarino rebelde - que se recusa a dançar conforme a música do domador e acaba servindo de pele aconchegante que cobre o leito de dormir de Juliette, a amante parisiense. O príncipe africano da epígrafe, além disso, é quem conta da caçada insana que Laskaro empreendeu contra o urso e sua poesia engajada.

A dimensão paródica de "Atta Troll" é evidente e se aproxima bastante de procedimentos e arremedos realizados pela poesia pós-moderna, o que atualiza esse texto de Heine e justifica sua leitura 174 anos após sua criação.

A história da balada é a seguinte. Quando se apresentava ao ritmo das chicotadas do indigno domador para o populacho que se apinhava no mercado de Cauteret, o urso não se deixava adestrar. Após sua fuga, a parceira ursa Mumma permaneceu submissa. Assim como o príncipe mouro rufava em percussão de escravo, o número coreográfico de Atta Troll na praça provocava risos, porque ao contrário da parceira ele se movimentava inconformado na dança imposta e às vezes dava vazão ao sofrimento com bramidos lancinantes que repercutem até os confins da floresta. Certo dia, não suportando mais tamanha dor e servidão, rompeu as cadeias, livrou-se das risadas, da música e da rotina de apresentações públicas. Com saltos assustados alvoroçou a multidão. Saiu em busca da liberdade, rumo às selvagens montanhas distantes. O domador se enfureceu, queixou-se da prova de ingratidão com a generosidade que sempre demonstrara através de ensinamentos, insultou Mumma.

Tanto a coreografia ensaiada quanto a frivolidade da plateia entusiasmada são criticadas pelo sombrio urso, tendo em vista que outrora a dança fora um gesto devoto: "Antes da arca da aliança/ Outrora dançava o Rei Davi;/ Dançar era uma celebração/ Era uma prece com as pernas." (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 555).

No prefácio o escritor Heine não admite que seu poema seja um desdém que se contrapõe às ideias sobre preciosas realizações da humanidade, pelas quais ele próprio teria se batido e sofrido (1960: 539). Entretanto essas ideias e conquistas, ao serem apresentadas de maneira tão "crua, desajeitada e inábil" (roh, plump, täppisch), tornam-se cômicas: "existem espelhos tão mal lavrados que até mesmo um Apolo se projeta neles como caricatura e é isso o que provoca o riso. Rimos da caricatura, não do deus." (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 539).

Atta Troll passa a ser considerado fera perigosa, foragida, figura que põe em risco a segurança dos homens. Por conseguinte, sua cabeça é posta a prêmio. O caçador Laskaro está decidido a perseguir, derrotar e decapitar6 6 Em Bruxelas, o Museu Antoine Wiertz é dedicado às mais esdrúxulas obras, e do catálogo consta o texto "Pensamentos e visões de um decapitado". Não obstante a violência do gesto da decapitação, a cabeça destituída do corpo se mantém pensante (Benjamin 1972-1999). a qualquer preço o urso revolucionário de ideias contagiantes. Seria o caçador-poeta um devotado patriota que persegue quem ousou insurgir-se?

Aliando porções de fantasia e de consciência, o eu-lírico desse poema satírico admite em si uma porção urso e passa a entremear os pontos de vista do urso Atta e do caçador/narrador:

Sonho de uma noite de verão! Fantástica Minha canção prossegue sem rumo, Como o amor, como a vida, Como o criador junto à criatura! [...] Leve-me por vales calmos Onde graves carvalhos se elevam Ressequidas raízes sorvem Fontes antigas de doces sagas! Deixe-me lá beber e molhar Meus olhos - ah, tenho sede Da límpida água milagrosa Que torna vidente e sábio. Toda cegueira cede! Meu olhar Perscruta a mais funda grota Na caverna de Atta Troll Compreendo sua fala! Curioso! quão familiar Me soa a linguagem dos ursos! Não ouvi em minha cara terra, Talvez os mesmos tons de ursos? (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 537)

De modo intermitente se alternam os pensamentos do doutrinário poeta Atta Troll e do febril perseguidor em seu encalço. A natureza circundante espelha essa projeção dos personagens. Laskaro desenvolve uma coreografia de balé regrado e comedido, como que petrificado em natureza antropomorfa:

Sim, sou um homem, sou melhor Que os outros animais; [...] Imensos blocos de pedra Informes e deformados, Miram-me feito monstros Petrificados desde os primórdios. Estranho! Cinzentas nuvens no alto engendram toscos retratos São feito duplos ingênuos Das tais figuras de pedra. A meu lado cavalga Laskaro, Pálido, quieto, e eu mesmo Tenho 0a aparência da insensatez Que a dor sofrida acompanha. (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 570)

No capítulo 11 há uma guinada na situação do ponto de vista. O autor do poema passa a ingerir na história da caça juntamente com o caçador que recorre aos poderes encantatórios de sua mãe, a feiticeira Uraka: "Bem cedo, de manhãzinha/ Eu partira com Laskaro/ À caça de Atta Troll." (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 561). No capítulo 12 eles prosseguem a busca: "Ao meu lado vai Laskaro,/ Fino e pálido como uma vela/ Nunca fala, nunca sorri,/ Ele, o filho morto da bruxa." (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 564). A fábula contida em "Atta Troll" entremeia as porções de poeta-caçador e poeta engajado se completando como duplos.

3 "Alemanha: um conto de inverno"

Em 27 capítulos com um número diferenciado de estrofes em quartetos, contendo sequências de versos sem rima métrica, a forma de "Atta Troll" se assemelha à do outro longo poema satírico, que Heine do mesmo modo denomina Epus (épico), escrito em 1843/44: "Alemanha: um conto de inverno". Outro elo entre os dois "épicos" é a citação de dramas de Shakespeare nos subtítulos: "Conto de inverno", peça escrita em 1610, "Sonho de uma noite de verão", peça escrita aproximadamente em 1590. Se temporalmente a aventura do urso "acontece em uma bela e quente tarde de verão, conforme o capítulo 2, a road-adventure, a aventura da viagem de retorno do poeta ao seu país natal, sucede às vésperas do inverno, "no triste mês de novembro", como situa a primeira estrofe do poema "Alemanha: um conto de inverno".

Como seus livros de poesia e artigos jornalísticos estavam sujeitos à rigorosa censura na Alemanha, Heine se estabelece na França a partir de 1831. Após treze anos distante, de outubro a dezembro de 1843, ele viaja no anonimato de Paris a Hamburg, a fim de visitar a mãe. Durante a viagem, o narrador conta os incidentes do percurso e reconstrói a crônica histórica de cada cidade, vindo da França e passando pela Bélgica. Os capítulos constituem o itinerário do narrador: I - II: fronteira entre a França e a Alemanha; III: Aachen; IV - VII: Colônia; VIII - XIII: Mülheim, Hagen, Unna, Paderborn; XIV - XVII: digressão sobre o Imperador Barbarossa; XVIII: Minden; XIX: Bückeburg e Hannover; XX - XXVI: Hamburg; XXVII: Epílogo.

A viagem de ida não aconteceu em novembro, de acordo a primeira estrofe, porém no mês de outubro, e o roteiro foi mais abreviado: Bruxelas, Münster, Osnabrück e por Bremen a Hamburg. O atributo "invernal", além da referência literal à estação do ano, corresponde à aridez espacial e humana descrita. Somente o retorno a Paris, em sentido inverso, equivale à rota traçada diegeticamente.

Quando da publicação do livro que integra os fragmentos dispersos, em setembro de 1844, Heine escreve e acrescenta igualmente a posteriori um sarcástico prefácio, no qual lança a desafiadora flechada contra os enciumados que o acusavam de negligenciar a pátria e de se aliciar aos franceses. A posse do Rio Reno ou o descaso com a relevância da propriedade desse rio limítrofe, se torna emblema do afrancesamento:

Calma! Não hei jamais de ceder o Reno aos franceses, não o farei por um simples motivo: porque o Reno me pertence. Sim, o rio me pertence graças ao inalienável direito de nascimento. Eu sou do Reno livre seu filho mais livre ainda. Sua margem foi meu berço e não admito que o rio a alguém doutro pertença, senão a seus filhos diletos (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 608).

A aversão de Heine contra aquele patriotismo falso que se expressava em forma de poesia em versos sentimentais está presente também em "um conto de inverno", o grau de desprezo e de zombaria neste caso, porém, é bem mais ácido e direto que em "sonho de uma noite de verão".

"Alemanha: um conto de inverno" começa com a descrição de uma toada familiar que o poeta-narrador distingue logo ao entrar no país. Pela primeira vez, depois de anos em exílio, o viajante se depara novamente com a língua alemã:7 7 O alemão era a língua materna de Heine. Sua mãe, informa em conversa o estudioso Vallias, recebeu uma educação acima dos padrões médios femininos daquela época e falava inclusive latim. O escritor, que era de família judia, se converteu ao cristianismo luterano em 1825, para poder exercer a profissão de advogado. Em 1841 seu casamento com Mathilde é realizado no rito católico, em Paris, após ele levar um tiro devido a uma briga decorrente de declarações no livro Sobre Ludwig Börne (1840). "Escute, escute, eu sou um urso, nunca me envergonho de minha origem, e tenho orgulho disso, de descender de Moses Mendelssohn!" (Heine 1960: 558). O Terceiro Livro do Romanzero, seu último livro de poemas se entitula "Hebräische Melodien". Esse livro, por sua vez, é composto de três poemas com temas judaicos. Romanzero teve a primeira edição em Hamburg: Hoffmann und Campe, 1851. ele ouve uma canção entoada por uma moça. A canção fala do sofrimento humano terreno, que encontra lenimento noutra dimensão, onde as almas plainam leves, sem peias de dor. A doçura dessa promessa vindoura ele chama de hipócrita, fazendo uma analogia com a epopeia celeste usada para embalar o povo insatisfeito. A revolta que esse canto em falsete lhe instila suscita a proposta do poeta de, então, escrever uma canção diferente para seu país. Mesmo porque ao tocar novamente a terra-mãe novas forças o estimulam, ele se sente "estranhamente fortalecido, seria capaz de derrubar carvalhos" (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 610)

A sátira corrosiva se mantém no segundo capítulo, quando o narrador zomba dos controladores da alfândega que controlam as bagagens à procura de livros censurados e confiscáveis:

Tolos, que os procuram na mala! Entre camisas, lenços e calças, O contrabando que comigo levo, Encontra-se oculto em minha cabeça. (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 612)

Nada escapa às farpas de Heine nesses versos: ele as desfecha contra todos os valores de seu tempo: o militarismo, o nacionalismo, a fraternidade e a xenofobia contra os franceses, o entusiasmo em relação ao passado medievo. Não obstante o chiste zombeteiro, irônico, Heine enterra finalmente a estirpe hipócrita de outros tempos e se alegra com a perspectiva de uma nova geração que crescerá sem disfarces ou pecados, com pensamentos livres, vontade livre. Depositando sua esperança numa juventude que há de entender a poesia, se dirige no final ao rei, a quem roga o respeito à poesia.

A crítica cáustica explica o desprezo que marca a recepção da poesia de Heine na Alemanha, não obstante o enorme sucesso comercial: é a "Ferida Heine" de que trata Adorno no ensaio de 1956. As ofensivas do poeta a antagonistas conservadores, antissemitas, intransigentes geraram grande desconfiança quanto à sua vilipendiada lírica. No estudo sobre o século XIX, Benjamin registra o seguinte trecho do livro de Engels que menciona uma carta com data de 7 de julho de 1838, que G. E. Guhrauer escreveu a Varnhagen a respeito de Heine:

Ele sofria muito, na primavera, com problemas nos olhos. Da última vez, acompanhei-o em um trecho dos boulevards. O esplendor e a vida desta via única em seu gênero provocavam em mim uma admiração incansável, à qual Heine desta vez contrapôs o que havia de horrível naquele centro do mundo (Benjamin 2006Benjamin, Walter. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.: 495).

4 A juventude romântica

No prefácio a "Atta Troll" Heine insiste em afirmar que com o poema está retornando aos modelos da sua poesia romântica. Ilustramos os versos desse período com a tradução de um trecho de "Crepúsculo dos Deuses", que integra sua coletânea mais bem-sucedida na juventude, o Livro das Canções (Buch der Lieder 1823-1824):

Eis o mês de maio com suas luzes douradas E ares sedosos e olores de especiarias; E amigável seduz com alvas florescências, E saúda em milhares de brotos de violetas roxas, E se espalha do verde tapete bordado de flores, Tecido com raios de sol e o orvalho matinal E convida pelos caminhos as amáveis crianças. O povo ingênuo obedece ao primeiro chamado. Os homens vestem calças de algodão E casacas de domingo com reluzentes botões dourados [...] A mim também vem o mês de maio. Bate três vezes à porta e chama: é maio, Pálido sonhador, venha, quero beijá-lo! Mantenho aferrolhada a porta e digo: Em vão me atrai, oh inconveniente visita. Eu o observei, eu observei A construção do mundo, eu observei demais, Bem profundamente, e finda é toda alegria, E dor eterna avassalou-me o peito. Eu vejo através da couraça dura pétrea Das casas humanas e dos corações humanos E distingo em ambos mentira, enganação, miséria. (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 119-120)

Mas não somente na juventude seu espírito se inclinava ao romântico, mesmo em 1837 escreve Espíritos Elementares bem ao gosto de certo Hoffmann (que possuía, esse sim, pendor para a vida urbana) que escrevera um equivalente, no qual os seres da mitologia escandinava vêm configurar contos maravilhosos estilizados que repousam em misteriosas lendas. Segredos que os velhos da região da Westfalen8 8 Heine nasceu em Düsseldorf (atual capital da Westfalen) em 1797, morreu em 1856, em Paris. A universidade de Düsseldorf tem o nome de Heinrich Heine. no leito de morte revelam ao neto mais velho: "na Westfalen nem tudo que está enterrado está morto". Andando pelos carvalhais percebe-se as vozes do além, ouve-se ainda as palavras mágicas nas quais a plenitude da vida jorra mais intensamente que na literatura inteira da região de Brandenburg, reza o primeiro parágrafo de Espíritos Elementares.

Nesse livro de elfos e sílfides, conta-se que a virtude desses últimos seres se manifesta através de sua tão etérea natureza, que seus movimentos não se assemelham a nossos passos prosaicos. Deslizam, isso sim, por este mundo, em sutis passadas que deixam rastros nas relvas, círculos de elfos, como são chamados tais vestígios das noites de baile. E lembram "A Noiva de Corinto" resvalando como numa dança da meia-noite ao quarto do ateniense.

Nas tentativas de articular uma crítica à crescente sujeição da poesia que se deixava ofuscar pelo prestígio e pela fama, Heine volta e meia retoma as tradições da linhagem de Chamisso, Fouqué,9 9 Friedrich de la Motte Fouqué e Adelbert von Chamisso foram escritores do romantismo de expressão alemão, em Berlim. dos delírios de seres elementares. No último capítulo, dedicado a Varnhagen von Ense,10 0 Karl August Varnhagen von Ense, jornalista e diplomata, foi casado com a Rahel Levin, a poeta cujo nome remete ao seu importante salão literário do início do século XIX. o poeta se desculpa desolado:

É, meu amigo, são ecos De uma época de sonhos há muito perdidos; Só que às vezes os tons modernos Se insinuam picantes no velho tom da base. [...] Ah! é talvez a última Canção livre do romantismo, Nesses dias de incêndio e lutas Seu som esmaecerá insignificante. Outros Tempos! Outros pássaros! Outros pássaros, outras canções! Talvez elas me agradassem Outros ouvidos eu tivesse!" (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 605-606)

O vínculo que o poeta insiste em reforçar, ao mencionar seu passado literário, é questionado no verso seguinte quando os inevitáveis laivos dos "tons modernos se insinuam" na retomada da tradição do romantismo "clássico". O mesmo acontece no verso que acentua a dicotomia entre "Outros Tempos! Outros pássaros! Outros pássaros, outras canções!" O tempo transformou os apurados ouvidos do poeta; era-lhe impossível perceber "nesses dias de incêndio e lutas" como ouvira na juventude. A síntese dessa dialética é que estabelece a ambivalência da sátira "Atta Troll", se se leva em conta que a composição poética estendeu-se durante uma vida inteira, acompanhando toda a biografia de Heinrich Heine:

[...] eu nutria a intenção de publicar a íntegra com uma posterior complementação, mas isso permaneceu como um propósito louvável, e como todas as grandes obras dos alemães, a catedral de Colônia, a noção teológica de Schelling, a constituição prussiana e outras, sucedeu também com "Atta Troll" - o poema nunca ficou pronto. (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 537)

5 Dança de urso - dança de Salomé

O agravamento da reação da censura sobre a poesia se deveu principalmente ao artigo "Unmoralische Literatur" (Literatura imoral), através do qual Wolfgang Menzel se batia numa campanha sem tréguas a favor de princípios morais, nacionalistas, religiosos. Esse artigo foi a gota d'água que redundou na intervenção devastadora contra a literatura com o decreto de 1835. Os autores atingidos pela perseguição, até então dispersos, alçam-se então à categoria de "escola" Jovem Alemanha.

Os cortes da censura de 1835 serão responsáveis por uma total descaracterização da narrativa Noites Florentinas, de Heine, publicada primeiramente no jornal Cottas Morgenblatt für gebildete Stände.11 A partir de 1837 sem o genitivo Cottas referente ao editor, foi um jornal de ponta na primeira metade do século XIX, com uma tiragem de seis exemplares semanais de aproximadamente 2.500 números, sendo 1.500 destinados a assinantes. Somente em 1837 a obra viria integralmente a público pela Hoffmann und Campe, n. 3. Volume de Salão. (cf. Heine 1960: 1144s). Num trecho da "2a. Noite" dessa prosa narra-se a saga eslava das dançarinas enfurecidas:

é a saga das dançarinas fantasmas, que lá longe são conhecidas sob o nome de Willis. As Willis são noivas que morreram antes do casamento. As pobres criaturas não podem descansar tranquilamente em seus túmulos, em seus corações mortos, em seus pés mortos, reside aquela ânsia de dançar que em vida jamais conseguiram satisfazer, e à meia-noite elas aparecem, reúnem-se em bandos pelos caminhos e, ai do jovem que flagrem por aí afora. Tem de dançar junto, elas o enlaçam em voluptuosa loucura, e ele dança com elas, infrene e célere, até cair morto. Enfeitadas com seus trajes de noiva, coroas de flores e fitas esvoaçantes sobre a cabeça, anéis brilhantes nos dedos, as Willis dançam ao brilho da lua, assim como os elfos. Sua face apesar de pálida como a neve, é bela e jovem, elas riem tão terrivelmente desvairadas, tão alucinadamente amorosas, acenam tão misteriosamente voluptuosas, sedutoras; essas bacantes são irresistíveis (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 99).

É nessa saga das Willis que Theophile Gautier se inspira para escrever o libreto do balé "Giselle", que estreia com êxito em Paris. Essa experiência bem-sucedida leva Benjamin Lumley, no inverno de 1846, a desafiar Heine à composição de um balé para ser encenado no Teatro de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra, do qual ele era o diretor. Levado pela provocação, Heine escreve Doktor Faust, ein Tanzpoem, nebst kuriosen Bericht über Teufel, Hexen und Dichtkunst (Doutor Fausto, um poema-dança, além de curiosos relatos sobre diabos, bruxas e arte poética). O "comentário introdutório" apresenta as razões pelas quais a promessa jamais fora cumprida: a cantora sueca Nachtigall (Rouxinol) fazia inédito sucesso e monopolizava todas as atenções e, além disso, o libreto não agradou ao mestre de balé da companhia. Sem realização no palco o libreto é publicado em Hamburg: Hoffmann und Campe, 1851. Mesfistófeles recorre aos artifícios de uma dança fantasmagórica para a sedução do Fausto e o pacto que proporciona ao mago os prazeres terrenos em troca da subjugação eterna de sua alma é selado com um "balé diabólico". O terceiro ato é um sabat de bruxas nas profundezas do Inferno, onde se realizam danças idólatras em frente a uma estátua de bode. Reza o lema do poema-dança: "o diabo estimulou a arte da dança para incomodar os pios." (1851: 91).

Ora, tornou-se lendário o encontro de Heine, durante a viagem ao Harz em 1824, com Goethe. Na oportunidade o jovem disse ao consagrado escritor que se dedicava a escrever uma versão do Fausto, o que teria gerado um constrangimento na conversa dos poetas. Todavia esse propósito de Heine se dissemina com efeito, para além do poema-dança, através de esparsas alusões por sua obra. Um exemplo disso é a seguinte remissão à cozinha da bruxa (Cf. Goehte, 2007).

Com o caçador pálido e magro como um cadáver no colo, a feiticeira mãe tramava encantamentos na clara noite de São João. Assim como a bruxa do Fausto proferia no círculo de giz as palavras mágicas do livro com grande ênfase, em "Atta Troll", Uraka ungia o filho, retirando do pote que lhe portara o cão um unguento de ervas encantadas, ao mesmo tempo em que sussurrava uma canção de ninar à luz das chamas. Um fantasmagórico espetáculo sobrevém, então, ao narrador em seus delírios como um cortejo de "caçada selvagem" do qual participam Diana, Abunde e Herodias:

Realmente era uma princesa A princesa da Judeia A formosa mulher de Herodes Que a cabeça do Batista cobiçara. Por essa culpa de sangue se tornou Amaldiçoada; fadada como um fantasma A cavalgar nas noites até o juízo final Na caçada selvagem. Nas mãos ela sempre carrega A bandeja com a cabeça De João Batista, e ela o beija; Sim, ela beija a cabeça com ardor. Pois ela outrora o amou Na Bíblia não está escrito, Mas entre os povos a saga vive Do amor sanguinário de Herodias. (Heine 1960Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine. Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.: 581)

A essa sedutora figura o poeta confessa um amor incondicional e afirma que a seguiria em todas as noites enluaradas de folia.12 2 Dentro da recepção mais recente da poesia de Heine no Brasil, que é significativa, destaco o livro Heine, hein?, de Vallias, porque para efeito desta reflexão interessa um poema de 1844-1845, nele publicado com destaque, "Ela dança", cuja tradução cito abaixo: Ela dança. E como gira o corpo!/ Cada membro se contorce solto!/ Esvoaça - o que será que a impele/ Desejar se desprender da pele?//Ela dança. E quando se revira/ Num pé só, e para, e enfim respira,/ Braços estirados para o chão -/ Protegei, ó Deus, minha razão!// Ela dança. A tal coreografia/ Que teria a filha de Herodias/ Feito para o rei judeu Herodes,/ Tanto ardeu nos olhos dela a morte.// Ela dança. Eu fico alucinado!/ O que queres em sinal de agrado?/ Tu sorris? Soldados, em revista!/ Tragam-me a cabeça do Batista! (Vallias 2011: 272). Em seus sonhos misturavam-se as valsas de urso e outros bailados, vez ou outra entrevia a bandeja com a cabeça decapitada.

A Salomé, bailarina perversa e libertina, passa a ser a musa da poesia no final do século XIX, Heine denunciou essa subordinação da arte do seu tempo a propósitos outros. A arte que existe por si mesma e não visa benefícios, "arte pela arte", fora o lema do prefácio-manifesto a Mademoiselle de Maupin (1835) de Gautier, que Baudelaire citou com ênfase:

a poesia [...] não tem outro fim senão ela mesma; ela não pode ter outro, e poema algum será tão grande, tão nobre, tão verdadeiramente digno do nome de poema, que aquele que tenha sido escrito unicamente pelo prazer de escrever um poema. Eu não quero dizer que a poesia não enobrece os costumes [...] Eu digo que se o poeta perseguiu um fim moral, ela diminuiu sua força poética; e não é imprudente falar que sua obra será má. A poesia não pode, sob pena de morte ou de degradação se assimilar à ciência ou à moral, ela não tem a verdade por objeto, ela não tem mais que a si mesma (Baudelaire 1885: 906).13 3 La Poésie ... n'a pas d'autre but qu'Elle-même; elle ne peut pas en avoir d'autre, et aucun poème ne sera si grand, si noble, si véritablementdigne du nom de poème, que celui qui aura été écrit uniquement pour le plaisir d'écrire un poème. Je ne veux pas dire que la poésie n'ennoblisse pas les mœurs.... Je dis que si le poète a poursuivi un but moral, il a diminué sa force poétique; et il n'est pas imprudent de parier que son œuvre sera mauvaise. La poésie ne peut pas, sous peine de mort ou de déchéance, s'assimiler à la science ou à la morale; elle n'a pas la Vérité pour objet, elle n'a qu'Elle-même.

A dança dissoluta sedutora de plateias é a arte que conquista o prêmio da cabeça do inimigo com a performance lasciva de Herodias (em Heine Herodias se mescla com Salomé) pela cabeça do cobiçado João Batista. A poesia e a dança cheias de intenções são contrapostas à poesia e à dança desprendidas, prazerosas, generosas. Numa apreciação que Heine, o poeta-cronista de seu tempo, faz do corpo de balé da Academia Real Francesa, ele deprecia o valor da coreografia regrada e comedida que se apresenta em descompasso com o olhar dissoluto da dançarina. Antes valoriza tanto o cancã e as danças populares, como também as danças das indianas, cujas faces sérias elevam suas danças à categoria de culto sagrado. E as pródigas descrições de danças e coreografias na obra de Heine multiplicam-se como alegorias dos modos de comprometimento ou de emancipação da poesia.

Referências bibliográficas

  • Baudelaire, Charles. L' Art Romantique (1885). In: Oeuvres Complètes Paris: Arvensa Editions. Disponível em: < Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Art_romantique >. Acesso em: 23 ago. 2016.
    » https://fr.wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Art_romantique
  • Benjamin, Walter. Antoine Wiertz: Gedanken und Gesichte eines Geköpften. In: Gesammelte Schriften, IV. Frankfurt: Suhrkamp, 1972-1999. fls. 805-808.
  • Benjamin, Walter. Passagens Tradução de Irene Aron e Cleonice Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
  • Goethe, Johan Wolfgang von. A cozinha da bruxa. In: Fausto uma tragédia Tradução de Jenny Kabin Segall. São Paulo: Editora 34, 2007, fls. 238-267.
  • Häntzschel, Günter. Das Ende der Kunstperiode? Heinrich Heine und Goethe. (15 dez. 2003). Goethezeitportal. Disponível em: <Disponível em: http://www.goethezeitportal.de/db/wiss/epoche/haentzschel_kunstperiode.pdf >. Acesso em: 12 fev. 2017.
    » http://www.goethezeitportal.de/db/wiss/epoche/haentzschel_kunstperiode.pdf
  • Heine, Heinrich. Werke. Heinrich Heine Editado por Paul Stapf. Wiesbaden: Vollmer, 1960. 1168 p.
  • Heine, Heinrich. Atta Troll - ein Sommernachtstraum Hamburg: Hoffmann und Campe, 1847.
  • Hoffmeister, Gerhart. Heine in der Romania Berlin: Erich Schmidt Verlag, 2002.
  • Vallias, André. Heine, hein? São Paulo: Perspectiva, 2011.
  • Wilpert, Gero von. Sachwörterbuch der Literatur Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1969.
  • Gerhart Hoffmeister, no livro Heine in der Romania, traça o percurso da recepção de "Atta Troll", de Heine, na França. Em 1855 "Atta Troll" integra a antologia Poëmes e légendes. Helen Grace Zagona em The Legend of Salome (1960) mostrou a fecunda profusão do mito despertado pelo poema, tanto durante a vida do poeta, sobretudo após sua morte (Hoffmeister 2002: 38). A imagem de Salomé exibindo a cabeça decapitada de São João Batista, a quem ela (ou a mãe, Herodias, em Heine) teria amado e matado, teria inspirado Baudelaire, Mallarmé (Fragmente zu Hérodiade, 1864-68), Flaubert (novela: Herodiade, 1877), além da ópera Herodias de Milliet, composições de Gremont e Massenet, a peça de O. Wilde e a pintura de Gustave Moreau que J.-K. Huysmanns descreve em Às Avessas.
  • 2
    As questões motivadoras da sátira "Atta Troll" se mantêm presentes nos debates acerca da linguagem poética no decurso do século XX. Alterada pela tecnologia, a percepção sensorial que se exacerbava dentro dessa proposta de uma "arte pela arte" tantas vezes se transformou em alienação. Essa seria a origem da estetização da política, manipulada pelo movimento fascista. Uma bibliografia imprescindível para orientar o leitor no prosseguimento dessa discussão sobre o desenvolvimento do termo estética e as implicações do seu emprego seria o ensaio "Estética e Anestética: o 'ensaio sobre a obra de arte' de Walter Benjamin reconsiderado" (Travessia - revista de literatura - n. 33, UFSC - Ilha de Santa Catarina, ago.-dez. 1996; p. 11-41.), no qual a autora norte-americana Susan Buck-Morss interpreta as colocações de Benjamin em "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", escrito em 1936.
  • 3
    As colaborações de Heine para o jornal de Augsburg, Allgemeine Zeitung, são publicadas em duas partes (Lutetia 1 e Lutetia 2 - relatos sobre Política, Arte e Vida Popular), dentro dos três volumes Vermischte Schriften (miscelânea), em 1854.
  • 4
    Com exceção do poema com crédito de outro tradutor, as demais traduções constantes neste artigo são de minha autoria. Atta Troll, Tendenzbär; sittlich/ Religiös; als Gatte brünstig;/ Durch Verführtsein von dem Zeitgeist,/ Waldursprünglich Sanskülotte;//Sehr schlecht tanzend, doch Gesinnung/ Tragend in der zottigen Hochbrust;/ Manchmal auch gestunken habend;/Kein Talent, doch ein Charakter.
  • 5
    Trecho de "Der Maurerfürst", de Ferdinand Freiligrath: Aus dem schimmernden, weißen Zelte hervor/ Tritt der schlachtgerüstete, fürstliche Mohr;/ So tritt aus schimmernder Wolken Tor/ Der Mond, der verfinsterte, dunkle, hervor.
  • 6
    Em Bruxelas, o Museu Antoine Wiertz é dedicado às mais esdrúxulas obras, e do catálogo consta o texto "Pensamentos e visões de um decapitado". Não obstante a violência do gesto da decapitação, a cabeça destituída do corpo se mantém pensante (Benjamin 1972-1999).
  • 7
    O alemão era a língua materna de Heine. Sua mãe, informa em conversa o estudioso Vallias, recebeu uma educação acima dos padrões médios femininos daquela época e falava inclusive latim. O escritor, que era de família judia, se converteu ao cristianismo luterano em 1825, para poder exercer a profissão de advogado. Em 1841 seu casamento com Mathilde é realizado no rito católico, em Paris, após ele levar um tiro devido a uma briga decorrente de declarações no livro Sobre Ludwig Börne (1840). "Escute, escute, eu sou um urso, nunca me envergonho de minha origem, e tenho orgulho disso, de descender de Moses Mendelssohn!" (Heine 1960: 558). O Terceiro Livro do Romanzero, seu último livro de poemas se entitula "Hebräische Melodien". Esse livro, por sua vez, é composto de três poemas com temas judaicos. Romanzero teve a primeira edição em Hamburg: Hoffmann und Campe, 1851.
  • 8
    Heine nasceu em Düsseldorf (atual capital da Westfalen) em 1797, morreu em 1856, em Paris. A universidade de Düsseldorf tem o nome de Heinrich Heine.
  • 9
    Friedrich de la Motte Fouqué e Adelbert von Chamisso foram escritores do romantismo de expressão alemão, em Berlim.
  • 0
    Karl August Varnhagen von Ense, jornalista e diplomata, foi casado com a Rahel Levin, a poeta cujo nome remete ao seu importante salão literário do início do século XIX.
  • A partir de 1837 sem o genitivo Cottas referente ao editor, foi um jornal de ponta na primeira metade do século XIX, com uma tiragem de seis exemplares semanais de aproximadamente 2.500 números, sendo 1.500 destinados a assinantes.
  • 2
    Dentro da recepção mais recente da poesia de Heine no Brasil, que é significativa, destaco o livro Heine, hein?, de Vallias, porque para efeito desta reflexão interessa um poema de 1844-1845, nele publicado com destaque, "Ela dança", cuja tradução cito abaixo: Ela dança. E como gira o corpo!/ Cada membro se contorce solto!/ Esvoaça - o que será que a impele/ Desejar se desprender da pele?//Ela dança. E quando se revira/ Num pé só, e para, e enfim respira,/ Braços estirados para o chão -/ Protegei, ó Deus, minha razão!// Ela dança. A tal coreografia/ Que teria a filha de Herodias/ Feito para o rei judeu Herodes,/ Tanto ardeu nos olhos dela a morte.// Ela dança. Eu fico alucinado!/ O que queres em sinal de agrado?/ Tu sorris? Soldados, em revista!/ Tragam-me a cabeça do Batista! (Vallias 2011Vallias, André. Heine, hein?. São Paulo: Perspectiva, 2011.: 272).
  • 3
    La Poésie ... n'a pas d'autre but qu'Elle-même; elle ne peut pas en avoir d'autre, et aucun poème ne sera si grand, si noble, si véritablementdigne du nom de poème, que celui qui aura été écrit uniquement pour le plaisir d'écrire un poème. Je ne veux pas dire que la poésie n'ennoblisse pas les mœurs.... Je dis que si le poète a poursuivi un but moral, il a diminué sa force poétique; et il n'est pas imprudent de parier que son œuvre sera mauvaise. La poésie ne peut pas, sous peine de mort ou de déchéance, s'assimiler à la science ou à la morale; elle n'a pas la Vérité pour objet, elle n'a qu'Elle-même.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2016
  • Aceito
    06 Fev 2017
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