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Ecossistemas do Brasil

Ecosystems of Brazil

RESENHA

Rosemeri Melo e Souza

Pós-doutora em Biogeografia pela Escola de Geografia, Planejamento e Gestão Ambiental da Universidade de Queensland, Austrália. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq e Professora Associada do Departamento de Geografia e dos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) e em Geografia (NPGEO) da Universidade Federal de Sergipe São Cristóvão/SE – Brasil rome@ufs.br

AB'SÁBER, A.; MARIGO, L. C. Ecossistemas do Brasil/Ecosystems of Brazil. São Paulo, Metalivros, 2009, 300p.

À primeira vista, parece tratar-se de mais um livro de arte fotográfica, feito sob encomenda, para encanto de naturalistas amadores ou de turistas um pouco mais interessados em descortinar, com algum aprofundamento, nesta edição bilíngue (português/inglês), as paisagens brasileiras.

Parece. Engana-se, entretanto, quem não observar os créditos autorais que reputam ao conteúdo desta obra, lugar de destaque no rol de leituras obrigatórias dos que se dedicam aos estudos da Paisagem em uma perspectiva (re)integradora entre natureza e ambiência humana, atuando em conjunto, porém através de processos distintos, na esculturação do modelado e na análise evolutiva dos Ecossistemas brasileiros.

Que não seja desprezado o alerta que faz o editor deste livro, Ronaldo Graça Couto, acerca do papel destacado de ambos os autores em prol da conservação da natureza nos trópicos, em patente compromisso não apenas orientado para a preservação no presente mas sobretudo claramente alicerçado na defesa da herança e dos direitos das futuras gerações.

O Emérito Professor Dr. Aziz Nacib Ab' Sáber, atualmente vinculado ao Instituto de Estudos Avançados da USP, após uma trajetória brilhante no Departamento de Geografia da mesma instituição, dispensa apresentações.

Todavia, faz-se mister salientar que a sua contribuição científica vem se debruçando, nos últimos anos, em revelar, a um público mais amplo, os segredos de nossa geografia física em sua intrincada relação com as dinâmicas sociais, em vários domínios geográficos. Cite-se, como exemplo, a notável síntese entre ciência, técnica e arte representada pela obra "Litorais do Brasil" (Metalivros, 2000), reforçando sua tentativa de realizar o que Francisco Mendonca, entre outros, denominou como vertente de análise no debate epistêmico no Brasil, "Geografia Socioambiental".

Para nosso deleite e aprendizado das novas gerações de geógrafos, cientistas sociais e demais interessados na relação sociedade e natureza, o Professor Ab'Saber une-se ao talento indiscutível de Luiz Claudio Marigo, o fotógrafo de natureza com mais trabalhos publicados no exterior, cujos amantes da fotografia artística sobre o quadro natural conhecem de longa data, para fornecer ao leitor uma obra cientificamente rigorosa e visualmente enriquecedora acerca dos mosaicos de paisagens e seus contrastes geoambientais no Brasil.

Desse modo, oferece o emérito Professor Aziz Ab'Sáber, aliado ao talento e à sensibilidade do ambientalista e fotógrafo Luiz Claudio Marigo, um livro cujo rico conteúdo é solidamente alicerçado em décadas de estudos dedicados à dinâmica relação entre sociedade e natureza, sendo as contribuições geográficas de obra em tela a seguir destacadas.

Inicialmente, salienta-se como ponto alto do livro em apreço, a síntese abrangente dos fatores responsáveis pela evolução da vegetação brasileira, dentro de uma démarche geomorfológica, desde o Cretáceo até o Quaternário, tornando acessível a um público mais amplo e não somente acadêmico, um notável esforço empreendido pelo geomorfólogo (não especialista em vegetação, como humildemente reconhece) na década de cinquenta do século passado (capítulo 3).

Outro aspecto digno de destaque neste livro, volumoso pela cuidadosa editoração e denso pelo seu conteúdo rico e fundamental, acerca da temática desenvolvida, consiste na revisão conceitual sobre ecossistema, em termos não apenas terminológicos, mas de abrangência e de enfoque teórico-conceitual.

Em tempos marcados pela plasticidade e pelo polimorfismo adotado por muitos para fugir ao rigor conceitual que deve prezar a atividade científica, em boa hora torna-se acessível esta introdução. Vale ressaltar que o fulcro da mesma e resgatar a visão ecossistêmica mais aproximada da concepção originária de Arthur Tansley, chamando atenção para o fato que, ao esquecerem-se da componente biótica do ecossistema e ao privilegiarem aspectos como função e estrutura ligados exclusivamente à componente abiótica do ecossistema, muitos cientistas não atendem a complexidade desta expressão criada por Tansley nas primeiras décadas do século XX (p. 18 e 19).

Essa introdução retoma ainda a preocupação de Tansley com o fator escala ao afirmar que cada ecossistema "deve ser entendido como o sistema ecológico de um lugar" (p. 20). Assim, ao evocar o pensamento de Tansley, Ab'Saber realça a importância da escolha do sítio escolhido para a pesquisa ecológica visando assegurar a sua verticalidade e representatividade passíveis de obtenção apenas se a componente escalar for contemplada nos estudos ambientais (p. 20 e 21).

Segue a referida Introdução com fartos exemplos acerca da complexidade e do caráter diverso dos ecossistemas do Brasil, aludindo ao reconhecimento, em cada um desses sistemas ambientais, de um dinamismo conceitual desenvolvido, na Geografia Contemporânea, principalmente por Jean Tricart em sua obra Ecodinâmica (1977).

A parte introdutória é concluída com a reafirmação da necessidade de se considerar como componentes indissociáveis dos ecossistemas, "os suportes ecológicos, os componentes bióticos e a caracterização da dinâmica climática mantenedora dos mesmos em âmbito regional" (p. 25).

A obra em questão comporta como elementos pré-textuais, a Nota do Editor e a Introdução, ambos já abordados.

A estrutura dos capítulos remonta, de fato, a três grandes seções, a saber: uma visão geral dos ecossistemas brasileiros, agro e urbanos constitui a primeira parte do livro, seguida da "organização das paisagens inter e subtropicais brasileiras", onde são destacados o estado atual de conhecimento sobre a gênese e os processos de morfoesculturação do relevo e de evolução da flora do Cretáceo ao Quaternário, finalizando com a terceira parte dedicada ao "mosaico dos ecossistemas do Brasil", integrando a visão ecossistêmica às escalas fitogeográficas/geossistêmicas tais como concebidas por Walter e Bertrand, entre outros, isto é, primando por destacar a dimensão da Fitogeografia na composição e dinâmica ambiental desses mosaicos ecossistêmicos.

O livro ainda apresenta como elementos pós-textuais, um glossário extensivo e aprofundador da discussão encetada ao longo das partes antecedentes e uma seleção bibliográfica, antes de iniciar a versão integral em língua inglesa composta em tamanho de fonte reduzido, a partir da página 285. Tal aspecto, em minha opinião, compromete um pouco a fluidez da leitura por revelar um descompasso com o material fotográfico e de imagens orbitais, apresentado pari passu ao texto, em português.

Dado o seu vigor analítico, tais inconvenientes da editoração revelam-se como de menor relevância ao leitor realmente interessado em absorver o conteúdo desta obra. Ambos foram parcialmente atenuados pelas legendas (subtitles) virem traduzidas junto com os respectivos registros fotográficos e de imagens ao longo da obra.

Dentre os elementos pós-textuais, cabe comentário específico sobre a seleção bibliográfica abrangendo Ecossistemas, Paleoclimas e Paleoecologias (sic) do Brasil, com mais de dez páginas e cem referências, envolvendo artigos e livros, além de documentos raros ou de circulação mais restrita.

A primeira parte da obra dedica-se a uma visão geral dos ecossistemas do Brasil. Tem como aspectos-chave o detalhamento das fitofisionomias de cada ecossistema urbano e rural e ainda faz alusões ao metabolismo urbano dos ecossistemas citadinos (p. 34 e 35).

Neste aspecto, Ab' Sáber discute, com grande propriedade, a inadequação de várias soluções postas em prática por gestores descuidados ou desconhecedores das implicações da dinâmica ambiental ao tomarem decisões apressadas no tocante à gestão urbana, como a industrialização desenfreada de bacias urbanas e o encarceramento de córregos, iniciativas apontadas como "experiências de pouco sucesso ambiental" (p.35).

Na segunda parte do livro, merece destaque o esforço de teorizar a evolução da flora nos ecossistemas brasileiros desde o Cretáceo ate o Quaternário, como já referido, a partir de uma visão notadamente geomorfológica.

Dito de outro modo, a "organização das paisagens inter e subtropicais brasileiras" é discutida sob o enfoque de traçar limites espaciais aos domínios da vegetação, com faixas transicionais que revelam, em seu conjunto, a confluência de fatores ligados à gênese e evolução do relevo e do clima.

Após discorrer sobre os grandes domínios paisagísticos do Brasil (p. 40-48), com alentadas informações tornadas de mais fácil compreensão pela feliz combinação entre imagem e texto, os autores seguem na discussão acerca do conhecimento sobre a evolução da flora do Cretáceo ao Quaternário no Brasil. Tal análise é ancorada nas descobertas de depósitos sedimentares que proporcionam a démarche geomorfológica antes aludida.

A originalidade desse fundamento para a discussão encetada é exatamente correlacionar a existência e a tipologia dos depósitos sedimentares ao estabelecimento e a formação dos domínios e das formações vegetais complexas em nosso território, em termos de longa duração.

Esta parte encerra-se com a apresentação dos processos geomorfológicos delineadores das mais significativas alterações das paisagens nos trópicos brasileiros: mamelonização X pedimentação, respectivamente em ambientes úmidos e áridos ou tendentes à aridez. Diz-nos Ab'Sáber acerca do emprego dessas terminologias ( p. 53):

a palavra "mamelonização" está sendo usada por nós no sentido de um conjunto de processos fisiográficos suficientemente capaz de "arredondar" as vertentes de rochas cristalinas ate o nível de uma feição geométrica policonvexa... Mamelonização está ligada, portanto, designando um conjunto de processos fisiográficos e ecológicos, em que, a par com a formação generalizada de vertentes arredondadas e solos tropicais, processa-se a instalação de ambientes tropicais úmidos, incluindo o revestimento da rain forest..

... Os processos de "pedimentação" intertropicais constituem processos de formação de rampas de erosão generalizada, constituem fenômeno oposto ao da mamelonização onde apenas uma mudança climática mais ou menos radical poderá determinar uma fase agressiva de erosão generalizada, onde a semi-aridez se instalou pioneiramente ou que ainda estejam voltadas a uma faixa litorânea ou sublitorânea aridificada

Ao apresentar os mosaicos dos ecossistemas nos domínios da natureza no Brasil, os autores empreendem, pelo uso das linguagens que lhes competem (visual/escrita), um completo enquadramento dos respectivos ecossistemas em compartimentação biogeográfica, ou seja, desde a Biosfera até as zonas e concluem com alguns geótopos como de dunas costeiras e retro terras amazônicas, aplicando, de modo conceitual e empiricamente rigoroso, as escalas taxonômicas dos geossistemas (re)integradas aos conceitos biológicos e sua aplicação ao Brasil, com constante referência aos termos especializados os quais, muitas vezes, são de fraca apreensão e , por vezes, até de precário domínio operacional para a Geografia Aplicada necessário e bem-vindo entre os geógrafos que lidam com as questões socioambientais.

Nesta parte do livro ocorre um nítido predomínio da abordagem visual sobre o texto extensivo das seções antecedentes, num nítido esforço dos autores em enfatizar a apreensão do conteúdo desde um critério didático que combina leitura e visualização no transcurso do livro.

A luta pela sobrevivência nos manguezais, além das graves ameaças sofridas por todos os ecossistemas brasileiros são temas privilegiados na iconográfica visão de Claudio Marigo, em consonância quase sem ruídos entre o renomado geógrafo e o ilustre fotógrafo em um encontro que reflete o rigor científico e a defesa apaixonada da natureza, marcas incontestes de ambos os autores deste livro.

Pelas virtudes e até pelos pequenos senões que a obra comporta, mais do que ser meramente folheada ao sabor de algum raro momento de ócio pela beleza das imagens que contem, 'Ecossistemas do Brasil/Ecosystems of Brazil" deve chamar a atenção dos leitores pela profunda revisão e avanços analíticos que traz em termos de uma visão reintegradora das esferas biológica/ecológica à visão geossistêmica aplicada aos mosaicos da natureza em nosso país.

Não apenas por paixão de ofício, como biogeógrafa que sou, mas, sobretudo pela pertinência, relevância e atualidade desta obra, faço a sua indicação para leitores ávidos por melhores conhecimentos geográficos sobre o território brasileiro, nativos ou estrangeiros (dada a edição bilíngue), enfatizando a dimensão ecossistêmica dos contrastes e processos que comporta a nossa "louca Geografia", na expressão poética de Pablo Neruda, formada por "amorreamentos" X "arrasamentos" como processos esculturadores do relevo e controladores da distribuição fitogeográfica neste país continental e geodiverso.

Resenha recebida para publicação em 20/04/2010 e aceita para publicação em 12/06/2010

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010
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