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Reempregos da música de Villa-Lobos e intertextualidades entre filmes de Humberto Mauro e o Cinema Novo1 1 Pesquisa realizada com bolsa PNPD-CAPES no Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Reemployment of Villa-Lobos’ music and intertextuality between films of Humberto Mauro and Brazilian Cinema Novo

Resumo

Consideramos as relações intertextuais de filmes de diretores do Cinema Novo de 1959 a 1980 com longas-metragens de Humberto Mauro — O descobrimento do Brasil (1937), Argila (1942) e O canto da saudade (1952) — por meio da análise do reemprego das mesmas obras musicais de Villa-Lobos presentes em filmes do cineasta mineiro, reutilizadas (na mesma ou em diferente versão) em obras de diretores cinemanovistas. Por meio de análise fílmica, identificamos que a presença em si das músicas Suítes O Descobrimento do Brasil, O canto do cisne negro, O canto do pajé e Choro n.3 de Villa-Lobos evoca aspectos de obras anteriores de Mauro em filmes selecionados de Glauber Rocha, Walter Lima Júnior, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade, sobretudo as temáticas indígena, a do nacionalismo, do ambiente rural, a construção da identidade nacional, além de associações mais intricadas, como com a Grécia Antiga.

Palavras-chave
reemprego sonoro; Villa-Lobos; Cinema Novo; Humberto Mauro; intertextualidade

Abstract

We consider the intertextual relationships of films by directors of Cinema Novo between 1959 and 1980 with Humberto Mauro’s feature films — The Discovery of Brazil (193٧), Clay (1942) and O canto da saudade (19٥2) — analyzing the use of the same Villa-Lobos’ musical pieces in Mauro's films, that are reemployed (in the same or in a different version) in selected films by Cinema Novo’s directors. Through film analysis, we identify that the very presence of musical pieces The Discovery of Brazil, O canto do cisne negro, O canto do pajé and Choros n.3 evoke aspects of Mauro’s films in the ones by Glauber Rocha, Walter Lima Júnior, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni and Joaquim Pedro de Andrade, such as: the Indian thematic, nationalism, rural environment, construction of national identity, besides more intricate associations, as those with Ancient Greece.

Key words
sound reemployment; Villa-Lobos; Cinema Novo; Humberto Mauro; intertextuality

Introdução

O cineasta mineiro Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema brasileiro, foi alçado pelos diretores do Cinema Novo nos anos 1960 como um modelo a ser seguido e como um dos patronos do cinema brasileiro, em detrimento das chanchadas da Atlântida ou de tentativas de cinema industrial, como a da Vera Cruz. Mauro chamava a atenção dos diretores cinemanovistas por fazer filmes de baixo custo e por mostrar aspectos da cultura brasileira.

Tal importância da figura de Humberto Mauro para os diretores do Cinema Novo não é novidade (ROCHA, 2003ROCHA, G. Glauber Rocha: revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosaic & Naify, 2003.; SCHWARZMAN, 2000SCHWARZMAN, S. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2000.). O que pretendemos aqui é mostrar como essa mistura de homenagem e relação de filiação vai para além de temáticas, modos de fazer e imagens,2 2 Para saber mais sobre esses aspectos, ver em Schwarzman (2000) e Rocha (2003). mas pode também ser observada pelo constante reemprego de músicas do compositor Heitor Villa-Lobos já presentes em filmes de Humberto Mauro, especialmente, de partes da trilha musical do filme O descobrimento do Brasil (1937), mas também de músicas presentes em Argila (Humberto Mauro, 1942) e em O canto da saudade (Humberto Mauro, 1952).3 3 Em Argila, é muito importante o uso do Concerto para formas brasileiras de Heckel Tavares, música que se destaca também em A grande cidade (1966), de Carlos Diegues. Essa mesma obra de Tavares foi objeto do curta-metragem Ponteio (1941), realizado por Mauro no Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Outros curtas do INCE, O Guarani (1942) e Alberto Nepomuceno (1949), contêm, respectivamente, obras de Carlos Gomes e de Nepomuceno (a Suíte Brasileira) utilizadas por Mauro em seus longas, assim como pelos cinemanovistas. Porém, essas conexões ultrapassam o escopo do artigo, em que nos restringimos ao reemprego de músicas de Villa-Lobos. Por outro lado, as Bachianas n.2 de Villa-Lobos, utilizadas por Glauber Rocha no início de Deus e o diabo na terra do sol (1964), estão no curta Euclides da Cunha (Humberto Mauro, 1944), perfazendo uma relação intertextual interessante. No entanto, vamos nos restringir, aqui, aos longas-metragens de Mauro.

Embora se discuta bastante o reemprego no cinema, a música ainda é pouco estudada nesse sentido de um material reutilizável, um som found footage, como definiu Vasconcelos (2020)VASCONCELOS, A. L. O. Particularidades sonoras no filme-ensaio: proposição para a definição de sons found footage. Lumina, v. 14, n. 2, p. 22-38, 2020.. Defendemos que, mais do que uma simples citação de um filme em outro quanto ao elemento sonoro, a reutilização de músicas conjura também as imagens e temáticas dos filmes evocados por elas, assim como o contexto original extrafílmico dessas músicas, criando uma rede intertextual ainda mais rica.

O conceito de intertextualidade, expresso por Julia Kristeva e apoiado no dialogismo de Mikhail Bakhtin, mostra que todo texto “é um mosaico de citações”, “absorção e transformação de outro texto” (KRISTEVA, 2005KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005., p. 68), estando não só numa relação direta de sujeito da escritura e destinatário, como também orientado para o corpus anterior ou sincrônico das obras, ou seja, leva-se em conta também o contexto como um todo.

Partindo da intertextualidade de Kristeva, Genette (2006, p.8)GENETTE, G. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2006. observava que a “a relação de co-presença de dois ou mais textos” podia ocorrer numa citação por vezes sem referência precisa, numa forma pouco explícita, como alusão, dependente de uma compreensão plena das inflexões dos enunciados pelos destinatários (procedimento bastante utilizado no Cinema Moderno). Genette (2006, p. 9)GENETTE, G. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2006. incluiu a intertextualidade como uma das cinco relações transtextuais, entre as quais está também a paratextualidade, que se refere a títulos e outros “sinais acessórios”.

Em suas teorias, Bakhtin, Kristeva e Genette analisaram textos literários, mas estamos, aqui, considerando “texto” num sentido amplo, referindo- nos a outros materiais artísticos, como filmes e obras musicais. Além disso, defendemos relações intertextuais também a partir de “traços” por vezes imperceptíveis a seu sujeito, como “espectros” (DERRIDA, 1993DERRIDA, J. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993.), algo que não tem substância, mas que nem por isso é ausente. Barthes (1987, p. 83)BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987. também defendia que um texto se faz num “entrelaçamento perpétuo”, em que o sujeito se perde num “tecido”, numa “textura”.

Nessa pesquisa, partimos de um corpus de 75 filmes de oito diretores do Cinema Novo4 4 Essa pesquisa faz parte de um projeto maior, em que mapeamos o uso de música preexistente clássica nos filmes desses diretores entre 1959 e 1980. — Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Carlos Diegues, David Neves, Leon Hirszman, Ruy Guerra e Walter Lima Júnior5 5 Embora considerado de uma “segunda geração” do Cinema Novo (CARVALHO, 2009), Lima Júnior é essencial em nossa pesquisa, inclusive porque foi quem apresentou a música de Villa-Lobos a Glauber Rocha na época da produção de Deus e o diabo na terra do sol, 1964 (MATTOS, 2002; GUERRINI JÚNIOR, 2009). — em que fizemos o mapeamento das músicas de Villa-Lobos neles colocadas e separamos os filmes que continham obras musicais já utilizadas nos filmes de Humberto Mauro para uma análise fílmica mais detalhada. O mapeamento de toda a música no filme O descobrimento do Brasil por Tatyana Jacques (2014)JACQUES, T. O descobrimento do Brasil (1937): Villa-Lobos e Humberto Mauro nas dobras do tempo. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. foi importante para o estudo, aqui feito, do reemprego musical dessas obras pelos cinemanovistas. Também importante foi o livro de Guerrini Júnior (2009)GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009., que apresenta um painel da utilização de Villa-Lobos em alguns dos principais longas-metragens ficcionais do Cinema Novo dos anos 1960, embora não inclua os documentários, curtas-metragens e filmes feitos posteriormente. Todo o restante das obras musicais nos filmes do nosso mapeamento foi identificado, por vezes com o auxílio de programas como Shazam e Soundhound, ou com a busca de materiais da indústria fonográfica da época para uma pista de sua origem. Os reempregos musicais (e, consequentemente, os filmes) a serem aqui considerados para análise estão listados na tabela 1.

Tabela 1
Músicas de Villa-Lobos em filmes de Humberto Mauro e no Cinema Novo.

Cabe dizer que adotamos uma periodização alargada do Cinema Novo, incluindo filmes considerados precursores, como os dois curtas-metragens de 1959 de Joaquim Pedro de Andrade, e filmes realizados nos anos 1970, como A idade da Terra (produzido em 1979), justamente por causa da importância da música de Villa-Lobos neles utilizada, especialmente no último filme de Glauber.

Pode-se objetar que os diretores do Cinema Novo não tenham pensado especificamente nos filmes de Humberto Mauro ao colocarem essas músicas em seus filmes. Eram, simplesmente, obras disponíveis de Villa-Lobos em gravações do mercado e, como observado por Guerrini Júnior (2009)GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009. e por nós, a música de Villa-Lobos foi predominante na trilha musical dos filmes dos anos 1960 do Cinema Novo. No entanto, considerando as teorias de Genette, Barthes e Derrida, não se trata aqui de elencar processos conscientes, mas de redes intertextuais que podem ser tecidas a partir da confrontação de materiais fílmicos e fonográficos, traços que ficam nos filmes do Cinema Novo.

O que nos interessa são os processos de reemprego de materiais musicais de Villa-Lobos (e o próprio Villa-Lobos lançou mão desse procedimento na trilha musical do filme O descobrimento do Brasil, como veremos a seguir) e suas diferentes versões, presentes em filmes de Humberto Mauro e em filmes do Cinema Novo, tal como indicados na tabela 1, além de outras músicas (como o bailado Mandú-Çarará, presente em Argila, mas não utilizado em filmes do Cinema Novo) que se conectem com a temática indígena e o nacionalismo, elementos importantes tanto na obra de Mauro quanto no Cinema Novo.

Para o cotejamento dos significados ou traços movimentados de um filme a outro (no sentido derridiano e dos princípios da intertextualidade já expostos, incluindo a paratextualidade dos títulos de obras), lançamos mão de procedimentos de análise fílmica das relações entre som e imagem nas sequências dos filmes, no esteio das análises de Gorbman (1987)GORBMAN, C. Unheard melodies: narrative film music. Londres: BFI, 1987. e Chion (2011)CHION, M. A audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2011., além de associações com o contexto extrafílmico das obras musicais.

Villa-Lobos nos filmes de Humberto Mauro e o procedimento do reemprego musical

Durante muito tempo, acreditou-se que a trilha musical do filme O descobrimento do Brasil (1937) de Humberto Mauro correspondesse às quatrosuítes homônimas, que receberam diversas gravações. Contribuiu para essa crença que a restauração do filme, realizada em 1997 pelo Centro Técnico Audiovisual (CTAv), tenha utilizado uma dessas gravações (a de 1994) como trilha musical. Porém, Jacques (2014)JACQUES, T. O descobrimento do Brasil (1937): Villa-Lobos e Humberto Mauro nas dobras do tempo. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. demonstrou que a trilha musical do arquivo do filme anterior à restauração não correspondia totalmente às suítes e continha peças bem anteriores de Villa-Lobos.

A hipótese de Jacques (2014)JACQUES, T. O descobrimento do Brasil (1937): Villa-Lobos e Humberto Mauro nas dobras do tempo. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. é que Villa-Lobos teria feito uma mistura de material composto originalmente para o filme com peças preexistentes dele próprio, sendo as suítes gravadas uma reorganização de materiais musicais, feita por Villa-Lobos depois do filme pronto.6 6 Villa-Lobos fazia constantes reempregos de materiais musicais ao longo de sua carreira (CORRÊA DO LAGO, 2015). No entanto, dúvidas ainda permanecem, pois não há certeza sobre qual foi a duração do filme apresentado em 1937. Os arquivos a que se tem acesso hoje, seja antes ou depois da restauração, têm uma hora de duração, e resenhas de jornais da época do lançamento dão a entender que o filme fosse maior. De todo modo, é provável que a apropriação posterior da música de O descobrimento do Brasil nos filmes do Cinema Novo tenha vindo das gravações francesas das suítes de Villa-Lobos do final dos anos 1950, com exceção do tema Canidê Ioune em Capitu (Paulo César Saraceni, 1968), como veremos adiante.

Villa-Lobos e Humberto Mauro ficaram amigos depois da realização de O descobrimento do Brasil, o que talvez explique o fato de que, em Argila (1942), Mauro tenha incluído três peças de Villa-Lobos, algumas com bastante destaque por serem correspondentes a performances instrumentais/vocais dentro da própria narrativa do filme. O filme é a história de uma mulher rica, Luciana (interpretada por Carmen Santos, produtora do filme), que resolve patrocinar um artesão de cerâmica marajoara, Gilberto, e se apaixona por ele.

As duas primeiras músicas de Villa-Lobos no filme estão durante uma festa na casa de Luciana. Ouvimos, primeiramente, Plantio do caboclo do Ciclo Brasileiro para piano (1937), enquanto Luciana passeia com ar melancólico à beira de um tanque cheio de vitórias-régias (plantas típicas da região amazônica). Então, ela diz a um amigo que “vá pedir a Iberê que toque aquela música bonita do Villa-Lobos.” Chama-se, portanto, a atenção para o nome de Villa-Lobos dentro da própria diegese e “Iberê” é o renomado violoncelista Iberê Gomes Grosso, que aparece tocando O canto do cisne negro (1917) ao violoncelo. A peça é pungente, enfatizando a melancolia e a paixão de Luciana por Gilberto, enquanto a imagem começa no plano de Luciana com os olhos fechados e aspecto sonhador, destaca o ouvido da moça (explicitando, assim, o fato de que ela está ouvindo música e sendo inebriada pelo som) e segue com planos da performance de Iberê. Mais adiante, um corte nos mostra Luciana dormindo e uma fusão de imagens em que vemos não Iberê, mas sim Gilberto tocando a música de Villa-Lobos ao violoncelo, além de imagens de um vaso de Gilberto sendo examinado por um dos amigos de Luciana. Desta forma, no sonho de Luciana, Gilberto conjuga Villa-Lobos (a música) e a cultura indígena reelaborada (a cerâmica), uma síntese de um modelo de Brasil propagado pelo próprio Villa-Lobos e semelhante ao modelo depois retomado pelo Cinema Novo de busca de uma identidade nacional, em que o elemento indígena aparece em destaque.

A terceira obra musical de Villa-Lobos no filme está em outra festa na casa de Luciana: é o bailado Mandú-Çarará, dançado por Anita Otero. Embora não tenha sido uma música reempregada nos filmes do Cinema Novo (em Macunaíma, filme de Joaquim Pedro de Andrade de 1969, a letra do Mandú, que aparece no livro original de Mário de Andrade, é musicada, mas sem ter a partitura de Villa-Lobos como referência), consideramos um caso emblemático sobre a dificuldade de se estabelecer o que foi original e o que foi reemprego da música de Villa-Lobos nos filmes de Mauro, além da importância da temática indígena na obra do compositor e, em certa medida, presente também em Argila por meio da cerâmica marajoara (no filme, há até uma palestra do antropólogo indigenista Roquette Pinto sobre o assunto). A música de Villa-Lobos é datada da época de produção do filme, 1940.7 7 O filme foi lançado em 1942, mas sua produção começou em 1940. A data de 1940 consta na partitura, mas a obra só estreou em 1946. De todo modo, a partitura não corresponde à versão que está no filme. Já a bailarina Anita Otero foi uma das principais personagens do bloco “Sôdade do Cordão” (figuras 1 e 2), organizado por Villa-Lobos no Carnaval daquele mesmo ano de 1940. Em fotos de jornais e revistas da época, Otero aparece com trajes de “índia”.

Figura 1
Anita Otero no desfile do “Sôdade do Cordão”.
Figura 2
Desfile do “Sôdade do Cordão”.

Artigos sobre Argila de duas edições do Jornal do Commércio de 1942JORNAL DO COMMERCIO, Rio de Janeiro, 2-3 mai. 1942. pp. 10. indicam que a performance de Otero no filme seria uma recriação estilizada de sua dança durante o desfile do “Sôdade do Cordão”. Fica a dúvida se algo da música desse desfile foi incorporado à partitura de 1940 ou à versão no filme.8 8 A parte do Mandú-Çarará que se encontra no filme corresponde ao terço final da música, num arranjo em que se destaca o elemento percussivo. Em entrevista a Alex Viany (apud ALMEIDA, 1999ALMEIDA, C. A. O cinema como “agitador de almas”: Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Annablume, 1999., p. 204), Humberto Mauro afirmou que Villa-Lobos teria composto a música do bailado especialmente para Argila. Na sequência do filme, Anita Otero está vestida de “índia” (embora sem os penachos que portava no desfile), desenvolve uma dança bastante ritmada, saltitante, em conjunção com o caráter percussivo da música (figura 3).

Figura 3
Anita Otero dançando em Argila.

A temática indígena está também na obra O canto do pajé (composta em 1933), que virou trilha musical de uma das sequências mais citadas do filme O canto da saudade (1952) de Humberto Mauro. Embora a letra seja em português, há menções a diversas entidades indígenas, como Anhangá, Coaraci e Tupã, num panteísmo revestido de nacionalismo, bem próprio do papel pedagógico que Villa-Lobos exerceu no governo Vargas e da inclusão do elemento indígena como essencial para a formação da identidade brasileira.9 9 Villa-Lobos foi chefe da Superintendência Educacional e Artística (SEMA) do governo Vargas, tendo instituído o canto orfeônico como prática pedagógica. Para saber mais sobre o elemento indígena em sua obra, ver em Moreira (2010).

No filme, sugere-se mais a característica pedagógica e coletiva do canto orfeônico de Villa-Lobos e menos as referências indígenas. A música é ouvida em versão para acordeon de Mário Mascarenhas, o protagonista Galdino do filme. Como Villa-Lobos, Mascarenhas também exerceu um papel pedagógico, tendo escrito métodos para o estudo do instrumento na época do filme, incluindo músicas folclóricas brasileiras.

Galdino é um personagem simples, empregado de uma fazenda, apaixonado pela afilhada do fazendeiro e com inclinações artísticas para o acordeon. Durante o filme, Galdino assobia e cantarola a melodia de Villa-Lobos, mas é na sequência do seu sonho que a música é ouvida em sua totalidade. A música da sequência do sonho como um todo é formada por diversos excertos, sempre em versões de acordeon de Mascarenhas, como a abertura O Guarani (de Carlos Gomes) e Odeon (de Ernesto Nazareth), mas a parte do Canto do pajé se destaca pelas imagens de trabalhadores empunhando suas foices e enxadas, cantando coletivamente (figura 4). São imagens e sons que foram muito impactantes para os diretores do Cinema Novo, inclusive, pela sua qualidade eisensteiniana, como Guerrini Júnior e Carlos Diegues evocaram (GUERRINI JR, 2009).

Figura 4
Trabalhadores com enxadas.

Como já mencionado, não há referências indígenas no filme em si (embora seja essa conexão com o elemento indígena o que estará presente nos reempregos da música nos filmes de Walter Lima Júnior, como veremos adiante), sendo, nele, muito mais importante a evocação do mundo rural brasileiro,10 10 Schwartzman (2000) pontua que a centralidade da paisagem rural na obra de Mauro se dá principalmente a partir de 1947, sendo bastante evidente na série “Brasilianas” do INCE. algo também muito presente na primeira fase do Cinema Novo.

O canto do cisne negro: da Grécia ao Brasil tropicalista

Continuando a tecer as redes intertextuais da obra O canto do cisne negro, é importante destacar que ela correspondia, inicialmente, ao final do poema sinfônico O naufrágio de Kleônicos, composto por Villa-Lobos em 1916, com temática da Grécia Antiga11 11 É a história do marinheiro grego Kleônicos, que sofre um naufrágio e, agarrado a um remo, recebe uma investida de um cisne negro em vôo rasante, afogando-se; ferido na luta, o cisne morre também. Disponível em: <https://www.filarmonica.art.br/educacional/obras-e-compositores/obra/o-naufragio-de-kleonicos/>. Acesso em: 28 abr. 2021 e influência musical pós-romântica e impressionista francesa de Vincent d'Indy e Saint-Saëns (podemos pensar numa alusão, presente no paratexto do título, ao Cisne do Carnaval dos animais de Saint-Saëns na versão de Villa-Lobos para piano e violoncelo, a que ouvimos em Argila).

Se, em Argila, referências a uma temática indígena por meio da música podem ser evocadas apenas se levarmos em consideração o conteúdo como um todo do filme (inclusive, a sequência do bailado), em A idade da Terra, Glauber Rocha usa a versão orquestral do Canto do cisne numa sequência com muitas outras referências históricas e culturais para além do elemento indígena. Ouvimos a música quando o personagem do Cristo-Índio (Jece Valadão) está junto ao Diabo (com roupas de colonizador e sotaque espanhol), que segura uma caveira diante de um monitor de televisão. É de se notar que a música de Villa-Lobos está mixada a uma base de percussão e há muitas falas sobrepostas a ela, em um modo de montagem sonora com muitos elementos, no limite da cacofonia, característica da obra de Glauber já a partir de Terra em transe (1967).

Brandão (2017, p. 86)BRANDÃO, Q. A Idade da Terra: Glauber Rocha e seu projeto político-cultural para a América Latina (1965 – 1980). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, 2017. interpreta essa sequência como uma alegoria da história do Brasil e da América Latina: “Cristo Índio e o Diabo são alegorias de dois poderes antípodas que disputam a soberania: o poder colonial (no tempo passado) e imperialista (no passado recente e no tempo presente do filme) frente aos povos indígenas da América Latina”. Mas, levando em conta tantas referências (a Grécia Antiga no título do poema sinfônico de Villa-Lobos, passagens bíblicas nas falas do Diabo e do Cristo-Índio, um coelho e uma árvore de Natal — símbolos associados a festas cristãs — ,a música percussiva evocando origens africanas e a própria Indústria Cultural representada pela televisão), essa cena teatral nos remete também ao tropicalismo como procedimento — e aqui estamos pensando menos na música tropicalista em si e mais na instalação Tropicália de Hélio Oiticica (de 1967), em que caminhos com samambaias levavam a um monitor de televisão, numa junção do arcaico e do moderno.

Há também, na junção de todos esses elementos na sequência de A idade da Terra, um desejo totalizante de Glauber de incluir todo o seu pensamento sobre o Brasil num só filme, tal como o diretor se expressara a respeito da música de Villa-Lobos, que teria sido quem melhor “colocou todo o Brasil em termos de arte” (apud GUERRINI JR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009., p. 127). Voltaremos ao filme de Glauber mais adiante.

O canto do pajé , hit de Villa-Lobos em Walter Lima Júnior

O impacto da sequência do sonho de Galdino de O canto da saudade pode ser inferido já pela sua presença no curta-metragem Mauro, Humberto, de David Neves (1968). No entanto, para além dessa citação direta do material fílmico de Mauro, em duas obras audiovisuais de Walter Lima Júnior há uso de O canto do pajé de Villa-Lobos sem as imagens do filme de Mauro: no longa-metragem de ficção Brasil ano 2000 (1969) e no documentário média- metragem Arquitetura: a transformação do espaço (1972).

Brasil ano 2000 (1969) é o segundo longa-metragem de Walter Lima Júnior. No primeiro, Menino de engenho (1965), a trilha musical foi construída principalmente com obras preexistentes de Villa-Lobos e muitos viram na própria temática do filme e na ênfase nas paisagens rurais uma relação com o cinema maureano.12 12 Por exemplo, em pergunta feita por Valente e Caetano (2000) ao diretor. Já em Brasil ano 2000, Lima Júnior realiza uma ficção futurista distópica a cores e tropicalista. Este último adjetivo pode ser entendido, primeiramente, de maneira mais estrita, considerando que Lima Júnior escreveu letras para Gilberto Gil musicar, além de que o restante da música ficou a cargo de Rogério Duprat, na mesma época em que o compositor escrevia os arranjos do disco “Tropicália ou Panis et circensis” (MATTOS, 2002MATTOS, C. A. Walter Lima Júnior: viver cinema. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.). Mas pode ser compreendido também de maneira mais geral, como um espírito antropofágico da Tropicália no tocante à trilha musical total do filme, levando à inclusão de uma diversidade muito grande de gêneros musicais (GUERRINI JR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009.).

Assim, além do material já mencionado, há, no filme, peças eruditas (Finlândia e Valsa Triste) do compositor finlandês Sibelius, a icônica Marcha Nupcial de Mendelssohn, um arranjo (provavelmente de Duprat) da abertura da ópera Guilherme Tell de Rossini e duas obras de Villa-Lobos, Invocação em defesa da pátria e O canto do pajé. Embora essas peças eruditas estejam no filme de forma muito mais passageira que os números musicais cantados, muitos de seus significados foram considerados pelo diretor para a escolha.13 13 Tal escolha da música feita diretamente pelo diretor sem passar pelo compositor foi designada por Gorbman (2007) como “música de autor”, algo que consideramos pertinente ao reemprego musical feito pelos diretores do Cinema Novo.

O filme conta a história de uma família constituída por mãe, filha e filho que, no ano de 1989, após uma hecatombe nuclear e viajando de Brasília para o norte do país, acaba parando num lugarejo chamado Me Esqueci, onde são acolhidos pelo chefe do Serviço de Educação do Índio na condição de se vestirem e fingirem ser índios.14 14 Walter Lima Jr teve a ideia do filme em 1960, quando viu uma reportagem sobre a campanha do marechal Henrique Lott à presidência, em que se indicava que ele teria colocado figurantes fantasiados de índios num comício em Minas Gerais (MATTOS, 2002). Assim, a relação com o elemento indígena, presente, tanto no título (“pajé”) quanto em palavras da letra da música de Villa-Lobos, está também na temática do filme.15 15 A música inicialmente pensada para refletir as contradições do filme não tinha sido de Villa-Lobos, mas sim, a abertura da ópera O Guarani, de Carlos Gomes (GUERRINI JR, 2009). O que demoveu Lima Júnior foi o fato de que Glauber Rocha já havia se apropriado dessa da obra em Terra em transe. Outro aspecto importante é a relação entre militarismo e modernização conservadora, numa crítica à sociedade da época: o chefe aguarda com ansiedade a visita de um general e o lançamento de um foguete. É no momento em que esses aspectos estão bastante em jogo no filme que as músicas de Villa-Lobos nele se inserem.

O canto do pajé é ouvido a 42min22s. O general (interpretado por Ziembisnki, nascido na Polônia e grande figura do teatro brasileiro) acabara de chegar a Me Esqueci e, nas instalações em que foi hospedado, coloca para ouvir num toca-fitas Finlândia de Sibelius, menciona o nome do compositor mais de uma vez em sua fala (e, no final, lista Schumann, Tchaikovski, Schubert, Mendelssohn, todos compositores europeus associados à estética do romantismo musical, mencionando também a importância de sua conservação) e faz gestos de regente (na sequência anterior, havia dito em entrevista que pretendera, na verdade, ser maestro). Então, o frei que o acompanha anuncia: “É uma homenagem modesta que preparamos para o senhor”, mas o general não lhe dá muita atenção e continua “regendo” Sibelius.

Os planos seguintes mostram o que seria a tal homenagem: vemos um tilt para cima na fachada de uma igreja, cuja porta é ladeada por dois guardas, enquanto ouvimos Sibelius se fundindo ao início do Canto do pajé. Com o corte para dentro da igreja, vemos um coro de crianças e adolescentes cantando, indicando, desta forma, o caráter diegético da música (figura 5). A partir do plano seguinte, que mostra o general adentrando a igreja, há também sons de sinos (algo que poderia pertencer à diegese do filme, já que estamos numa igreja) em volume alto, mas a música de Villa-Lobos só é interrompida pela irrupção da Marcha Nupcial de Mendelssohn tocada ao órgão, supostamente diegético, junto com a entrada de uma moça com um véu branco.

Figura 5
Coro e plano geral da igreja (com os “falsos índios” de costas).

A igreja é, no filme, um dos elementos que concorrem para a sensação de absurdo, pois inclui, tanto elementos religiosos (coro, padre, altar) quanto uma concentração de diversas outras atividades, muitas delas instâncias comerciais e administrativas da cidade: presídio, hospital, palanque para comícios, ringue de boxe. A cacofonia na sequência não é apenas sonora (música de Villa-Lobos, sinos, burburinho), mas também imagética.

Consideramos que o uso no Canto do pajé nessa sequência pode ser remetido não só à temática indígena — os “falsos índios” (mãe e dois filhos) estão na igreja, recebendo o general (figura 5) — como também ao seu caráter cívico e pedagógico do contexto do governo nacionalista de Getúlio Vargas na época de sua composição, já presente, de certo modo, no filme O canto da saudade de Humberto Mauro.

Como pudemos observar na descrição da sequência, a música de Villa-Lobos faz parte de um contínuo de peças diegéticas (Sibelius – Villa-Lobos – Mendelssohn) e podemos nos perguntar se há uma temática nacionalista ligando essas obras. No caso de Sibelius, sua associação ao general e a um tipo de nacionalismo é clara no filme. Lima Júnior conta que teve a ideia do personagem ao se lembrar de uma entrevista da época com um general que, para se mostrar “sensível e culto” e “desfazer a imagem grosseira que se tinha de um militar”, falava de música erudita.

Me ocorreu Sibelius exatamente por isso, porque Sibelius era um compositor extremamente nacionalista e ao mesmo tempo ele produz uma coisa assim tão melancólica, tão triste. E como a cultura musical toda tinha desaparecido, aquele homem supostamente retinha essa sonoridade para si mesmo, para deleite de si próprio. [...] Só que em vez de ouvir Wagner, de ser tão explícito, ele é melancólico, ele é triste e é refinado, ele vai ouvir Sibelius, é uma caricatura do gesto dele; o filme está muito voltado para esse olhar caricatural.

(GUERRINI JR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009., p. 215)

Já a Marcha Nupcial de Mendelssohn foi colocada, segundo Lima Jr, simplesmente porque acontece um rito (GUERRINI JR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009.), com a entrada da moça de véu branco (essa peça musical foi usada e abusada pela indústria cultural desde a época do cinema silencioso). Mesmo que Mendelssohn, como compositor do Romantismo alemão, tenha o nacionalismo como característica geral de suas obras, não é o que chama a atenção nesta peça em particular. Por sua vez, com O canto do pajé de Villa-Lobos, a temática do nacionalismo se faz presente, além de evocar a coletividade presente no filme dos anos 1950 de Humberto Mauro.

A outra peça de Villa-Lobos em Brasil ano 2000, Invocação em defesa da pátria, também tem um caráter nacionalista. Ela acontece igualmente no ambiente da igreja, mas no fim do filme, mixada a uma gravação de aula de inglês. Em entrevista, Lima Júnior comenta que essa junção da “pátria” com a língua estadunidense (e o sotaque é americano) representava uma “descaracterização da identidade” brasileira (GUERRINI JR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009., p. 214).

Voltando à música O canto do pajé, ela provavelmente ficou na memória afetiva de Lima Júnior, que a retomou num filme de três anos depois, Arquitetura, a transformação do espaço (1972). Trata-se de um documentário feito para a Globo Shell, mas Lima Júnior teve bastante liberdade e controle sobre a sua realização.16 16 O Globo Shell foi um programa especial de documentários veiculados semanalmente de 1971 a 1973, do qual participaram vários cineastas ligados ao Cinema Novo (além de Walter Lima Jr, Paulo Gil Soares, Domingos de Oliveira, Geraldo Sarno, Gustavo Dahl e Antonio Calmon). Procedimento comumente adotado em documentários televisivos, o diretor recorre a músicas preexistentes, incluindo, além de Villa-Lobos, composições de Albinoni (em imagens de igreja), Beethoven, Ernesto Nazareth, Gato Barbieri, o jazz de Wes Montgomery (em imagens da cidade moderna de São Paulo), Tom Jobim (em imagens do Rio de Janeiro), Luiz Gonzaga, Gilberto Gil, Ernst Widmer, Jon Appleton e Al Kooper.

O canto do pajé começa a ser ouvido na transição da sequência em que a arquiteta Lina Bo Bardi fala do projeto do Museu da Arte de São Paulo (MASP) e a seguinte, em que o narrador menciona a fundação da capital por José de Anchieta, missionário jesuíta do século XVI, famoso por sua relação com os índios e pela escrita de uma gramática da língua tupi. Assim como as peças de Albinoni e Tom Jobim, é usado num sentido referencial, de simbolizar um local, comum no cinema clássico (GORBMAN, 1987GORBMAN, C. Unheard melodies: narrative film music. Londres: BFI, 1987.), além da associação com a temática indígena. A relação com o tropicalismo e a antropofagia do filme anterior está também no texto do narrador em sua caracterização de São Paulo: “Uma cidade antropofágica, uma cidade devoradora de culturas, São Paulo poucos traços procurou conservar de sua forma original: devorou-se a si própria.”

O descobrimento do Descobrimento do Brasil

No caso do único filme de Humberto Mauro com música totalmente a cargo de Villa-Lobos, O descobrimento do Brasil (1937), acreditamos que as relações intertextuais dele com os filmes do Cinema Novo são ainda mais relevantes, levando-se em conta o caráter histórico do filme e a grande difusão posterior da música em disco na forma das quatro suítes.

Um excerto da “Introdução” da “Primeira Suíte” está nos créditos de cada um dos primeiros curtas-metragens de Joaquim Pedro de Andrade sobre Gilberto Freyre e Manoel Bandeira, O mestre de Apipucos e O poeta do Castelo respectivamente.17 17 Na verdade, como observou Araújo (2013), os dois faziam parte inicialmente de um único filme, mas foram desmembrados e as cartelas dos créditos e a música repetida no segundo. No caso, é a parte da “Introdução” indicada como “Andante”, com um tema melancólico tocado por violinos, tema que é tocado anteriormente pelas flautas na “Introdução”.

No filme de Humberto Mauro antes da restauração de 1997, ouvimos o tema dos violinos junto a imagens do capitão fazendo cálculos e da cartela com o mapa e o percurso das caravelas, terminando com o intertítulo anunciando o desaparecimento de uma das naus. Ouvimos também em dois momentos o tema tocado pelas flautas: quando Pero Vaz de Caminha vê o frei ajoelhado e se junta a ele, sendo que a imagem dá destaque à cruz e aparece o letreiro “Terra de Vera Cruz”; a segunda vez, quando os índios levados ao navio se deitam no chão para dormir e os portugueses colocam cobertores sobre eles.

Assim, o tema tocado pelos violinos está num momento indicativo do caráter científico do descobrimento e dos perigos da empreitada no filme de Mauro.18 18 Schwarzman (2000) indica a ênfase no papel da ciência no filme como proveniente das ideias de Mauro e Roquette Pinto (diretor do INCE na época, que teve participação na concepção do filme). De certo modo, em seus curtas-metragens, Joaquim Pedro também procede a uma investigação de figuras da cultura brasileira, num processo de descoberta/(re)elaboração de uma cultura nacional. Além dos personagens retratados, os créditos possuem grafismos que remetem às vanguardas artísticas da época, como o concretismo.19 19 Araújo (2013) observou que eram semelhantes aos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.

Já os trechos do mesmo tema com as flautas correspondem, no filme de Mauro, a momentos de contemplação ou de descanso, além de se relacionarem à religiosidade e aos primeiros contatos dos povos originários com o colonizador. Por sua vez, nos curtas de Joaquim Pedro, a repetição constante do motivo musical no excerto de Villa-Lobos confere uma sensação de espera, uma contemplação do filme por vir, junto à expectativa própria do momento dos créditos, que são, por si só, a abertura do “texto” a seguir (correspondem a um paratexto, segundo Genette).

Outras partes da “Introdução” da “Primeira Suíte” de Villa-Lobos voltam em Menino de engenho (Walter Lima Júnior, 1965) e A idade da Terra (Glauber Rocha, 1980). Em Menino de engenho, o excerto utilizado é anterior ao tema dos violinos que ouvimos nos curtas de Joaquim Pedro. É um tema desenvolvido por metais, com algumas incursões de madeiras, de caráter anunciativo de algo por vir. No filme de Humberto Mauro, está logo no início, nas imagens das caravelas, do nascer do sol e do mapa indicando o início da viagem. Já no filme de Lima Júnior, está a 9min50s de filme, momento de descoberta do menino Carlinhos das máquinas e do trabalho no engenho, numa espécie de “visita guiada” conduzida pelo tio do menino, também um momento indicativo do “porvir” da estadia de Carlinhos e sua adaptação ao ambiente da fazenda.

Em A idade da Terra, os trechos da “Primeira Suíte” de Villa-Lobos são o final da “Introdução” e início do seu segundo movimento, “Alegria”. A música entra aos 21min43s, na sequência em que vemos o personagem do Cristo-Militar (Tarcísio Meira) em meio a membros da bateria de desfile de Escola de Samba e a música de Villa-Lobos está mixada aos sons da bateria, o que sugere, inicialmente, um caráter marcial, conferido pelos trompetes de Villa-Lobos e pelos instrumentos percussivos da Escola de Samba.

No filme de Humberto Mauro, esse tema do trompete está em imagens de tripulantes com cornetos que anunciam um novo dia (a 4min58s de filme), numa diegetização de uma música extradiegética. Em A idade da Terra, a música de Villa-Lobos se inicia logo depois da passagem de um carro alegórico com a figura histórica de D. Pedro I e Quézia Brandão (2017)BRANDÃO, Q. A Idade da Terra: Glauber Rocha e seu projeto político-cultural para a América Latina (1965 – 1980). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, 2017. associa o Cristo-Militar a ele, como se o personagem, em meio à bateria da Escola de Samba, estivesse passando as tropas em revista. Para a autora, o filme retoma a recriação do primeiro contato com o colonizador já encenado no início de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), numa “recriação alegórica [...] da narrativa de conquista e colonização europeia da América” (BRANDÃO, 2017BRANDÃO, Q. A Idade da Terra: Glauber Rocha e seu projeto político-cultural para a América Latina (1965 – 1980). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, 2017., p. 134), o que torna ainda mais significativa a escolha da música de Villa-Lobos relacionada ao filme de Humberto Mauro, O descobrimento do Brasil. 20 20 Embora o filme de Mauro tenha um caráter oficial, muito diferente do elemento alegórico em Glauber, de certo modo, suas imagens, algumas vezes, vão num sentido diferente a uma celebração oficial (MORETTIN, 2013) — voltaremos a isso mais adiante. Por outro lado, entendemos o reemprego musical mais a partir do caráter simbólico que tanto Mauro quanto Villa-Lobos representavam para o Cinema Novo e menos por aspectos políticos contidos ou não em O descobrimento do Brasil, ainda que elementos de suas imagens pudessem retornar de modo fantasmático, como traços (DERRIDA, 1993), nos filmes cinemanovistas.

Na música de Villa-Lobos, a parte “Alegria” irrompe como uma explosão, com seu ritmo marcado, tonalidade maior, instrumentos agudos em sua maior parte e alto volume. Também no filme de Glauber Rocha, há uma mudança de plano bastante marcante na sua entrada, quando saímos dos instrumentistas da bateria da Escola de Samba vestidos de branco para carros alegóricos bem coloridos, com elementos do Nordeste brasileiro. Depois disso, a montagem fica acelerada, com planos muito curtos da ala das baianas (figura 6) e da personagem de Ana Maria Magalhães, conferindo uma sensação de grande movimentação.

No filme de Humberto Mauro, a relação de “Alegria” é mais com a movimentação e menos com um sentimento de alegria, pois ouvimos a música assim que os marinheiros se deram conta do desaparecimento de uma das caravelas. Há, no corte, o movimento de Pedro Álvares Cabral, que se levanta junto com a música e, depois, a grande movimentação dentro do plano, com marujos subindo escadas para tomarem as providências devidas (figura 6).

Figura 6
“Alegria” e “movimentação” nos filmes de Humberto Mauro (à esq.) e Glauber Rocha (à dir.).

Quanto à “Quarta Suíte” de Villa-Lobos, é importante dizer que a sua primeira parte “Procissão da cruz” não corresponde ao que ouvimos no filme de Humberto Mauro,21 21 Em Menino de engenho, é utilizada a “Procissão da cruz” retirada da “Quarta Suíte” (e não a música contida no filme de Mauro), pouco depois de 41 minutos de filme, quando o menino passeia pelo engenho na garupa do cavalo. parecendo ter sido totalmente concebida pelo compositor especificamente para a suíte, cuja primeira execução em concerto foi apenas em 1952. Jacques (2014)JACQUES, T. O descobrimento do Brasil (1937): Villa-Lobos e Humberto Mauro nas dobras do tempo. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. se refere à música contida durante o momento da procissão da cruz no filme de Humberto Mauro como “A Procissão da Cruz do filme Descobrimento do Brasil”, tendo achado uma partitura específica com esse título, datada de 1937. Assim, diferentemente do que está na “Quarta Suíte”, no filme, ouvimos o tema de Canidê Ioune, originalmente contido no primeiro dos Três Poemas indígenas de Villa-Lobos22 22 A música foi composta em 1926, na estadia do compositor em Paris. Observemos que o título Canidê ioune foi traduzido como “Ave amarela” e ioune faz referência a jaune, amarelo em francês. Os outros dois poemas, Teirú e Iara, estão bem presentes na trilha musical do filme O descobrimento do Brasil na versão antes da restauração. e retomado nessa partitura de 1937.

A versão de Canindê Ioune contida no filme Capitu (Paulo César Saraceni, 1968) não é a do filme de Humberto Mauro, mas sim um arranjo a capella do compositor, contido no disco “A música na corte brasileira, volume 1: o Vice-Reinado” (figura 7), de onde são oriundos outros excertos musicais do filme. Embora não seja a mesma versão do filme de Mauro, o tema é marcante e a intertextualidade entre os dois filmes despertada pela música também se faz nas imagens (no modo da alusão pouco explícita a que se referira Genette): em Capitu, vemos, como no filme de Mauro, uma procissão na praia, só que dos dois casais (Bentinho e Capitu, Escobar e Sancha, além das duas crianças). Há também, como no rito religioso em O descobrimento do Brasil, um sentido de sacrifício em Capitu, já que, pouco depois disso, Bentinho, com a desconfiança cada vez maior de que Ezequiel não seja seu filho, passa a ter um comportamento cada vez mais ríspido com Capitu e o menino, culminando com a separação do casal.

Figura 7
disco Música na Côrte Brasileira, v. 1.Fonte: Disponível em: <https://www.discogs.com/pt_BR/release/7271033-Various-Rio-de-Janeiro-O-Vice-Reinado-Vol-1>. Acesso em: 24 out 2021.

Já a segunda parte da “Quarta Suíte”, “Primeira Missa no Brasil”, tem apenas um pequeno trecho do tema de sua parte final (quando o coro masculino canta o versículo do rito católico “Kyrie eleison”, enquanto o feminino é bastante rítmico e em idioma indígena) no momento da missa no filme de Humberto Mauro e, mesmo assim, com diferenças significativas em termos de instrumentação e desenvolvimento quanto à versão que ficou na “Quarta Suíte”.

Não é exatamente essa parte da música a que está no filme A grande cidade (Carlos Diegues, 1966), em que o diretor utiliza o início e o final (que se segue ao tema descrito) da “Primeira Missa no Brasil” da “Quarta Suíte” gravada. No entanto, a intertextualidade com o filme de Humberto Mauro nos parece significativa,23 23 Aqui levamos em conta o conta o corpus sincrônico das obras (incluindo as gravações das suítes de Villa-Lobos), como indicado por Kristeva (2005), além de associações mais fluidas deixadas nos “traços” de Derrida. pois ouvimos os dois trechos da música de Villa-Lobos no filme de Diegues numa sequência na praia da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro (bem afastada da concentração urbana na época), para onde foram os personagens Inácio e Luzia, e ocorre justamente durante um sonho acordado de Inácio, ao final do qual ele entra no mar e a montagem alterna os planos do personagem com fotos da seca no Nordeste. Inácio é nordestino e tem o sonho do retorno à terra natal, verbalizado no filme, mas Carlos Diegues mostra nas fotos o que talvez o esperasse ao chegar lá. Já o filme de Humberto Mauro, apesar de seu caráter oficial, apresenta também momentos em que transparece a crítica quanto às origens do Brasil, tal como o momento da missa, em que os europeus se apressam a cobrirem as índias com panos, ou no corte das árvores para a confecção da cruz.

Como vimos, várias músicas de Villa-Lobos presentes na versão do filme antes da restauração de 1997 são obras da década de 1920, quando predomina um nacionalismo modernista na obra do compositor. É o caso dos Choros n.3 ouvido, primeiramente, no momento logo antes da primeira missa, quando um religioso português beija o crucifixo e, a seguir, um dos indígenas faz o mesmo. É também a música que fecha o filme,24 24 Numa versão sem o coro cantando “Pica-pau”, como presente na suíte gravada. quando as caravelas voltam a Portugal e três portugueses as observam da terra, junto à cruz. Este último plano do filme é muito significativo, pois o degredado é um dos que ficam no Brasil. Apesar da representação da adesão pelos índios sem maiores conflitos à religião dos colonizadores (SCHWARZMAN, 2000SCHWARZMAN, S. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2000.) durante o primeiro trecho dos Choros n.3, no segundo momento da música no filme, a imagem do degredado, para Morettin (2013, p. 285-286)MORETTIN, E. Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013., vai contra a louvação do empreendimento colonizador português e pode ser entendida até como um “comentário irônico” à “dimensão épica” da música de Villa-Lobos.

Em A Idade da Terra, o canto “Nozani-na” do início do Choros n. 3 irrompe numa pausa da entrevista do analista político Castelinho, quando a câmera foca uma aquarela na parede com imagens de interior brasileiro, lembrando pinturas do Modernismo de 1922. A câmera passa a enquadrar Castelinho e seu entrevistador, o ator Antonio Pitanga, que lhe pergunta se o povo “teve algum benefício com a revolução” (o golpe militar). O volume da música aumenta e diminui durante a resposta de Castelinho que, pessimista, conclui que o povo vai mal. Esse sentimento se confirmará nos planos ficcionais seguintes, com a chegada do personagem do “colonizador” Brahms a Brasília — de certo modo, uma evocação da colonização mostrada no filme de Mauro.25 25 Glauber observou que “Mauro, embora ideologicamente difuso, faz uma política despida de demagogia” (ROCHA, 2003, p. 53). Apesar de Glauber se referir mais ao filme Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) em seu texto, acreditamos que se possa ampliar essa afirmação para a obra de Mauro em geral.

Conclusão

Imagens de praias como as do filme O descobrimento do Brasil de Humberto Mauro, referências à História do Brasil, elementos indígenas nas letras das músicas (por exemplo, em Choros n. 3 e O canto do pajé), ou redes intertextuais ainda mais complexas como as do Canto do cisne negro são evocadas por essas músicas de Villa-Lobos, presentes inicialmente em longas-metragens de Humberto Mauro e depois reempregadas (na mesma ou numa diferente versão) nos filmes de Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, Glauber Rocha, Walter Lima Júnior e Joaquim Pedro de Andrade aqui analisados.

As relações intertextuais encontradas vão além da citação por reemprego de uma mesma música, incluindo traços deixados pelas relações entre imagem, som e contexto dos filmes e das próprias obras musicais em si. Nesses traços, estão presentes elementos importantes tanto para Humberto Mauro quanto para o Cinema Novo, como a temática indígena, o nacionalismo e o ambiente rural. No caso da constante alusão ao filme O descobrimento do Brasil por meio da música de Villa-Lobos, se foi uma homenagem pura ou crítica ao seu caráter oficial por parte dos cinemanovistas, se foi mesmo consciente, é complicado de avaliar com exatidão, ao passo em que o próprio filme de Mauro em si contém alguns aspectos que o afastam de uma celebração oficial, como já observara Morettin (2013)MORETTIN, E. Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013..

A respeito de algumas obras de Villa-Lobos, a dúvida sobre se foram ou não compostas especialmente para os filmes de Humberto Mauro permanece objeto de interesse musicológico e cinematográfico. De todo modo, a utilização das mesmas músicas em décadas posteriores no Cinema Novo, seja na mesma gravação ou não, reafirma o forte vínculo desses cineastas com o pioneiro de Minas também por meio da música e nos sugerem elementos a serem considerados dentro de uma análise intertextual das sequências de filmes. Com efeito, o reemprego de elementos sonoros, e não somente imagéticos, conjura todo um universo fílmico e extrafílmico significativo.

  • 1
    Pesquisa realizada com bolsa PNPD-CAPES no Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • 2
    Para saber mais sobre esses aspectos, ver em Schwarzman (2000)SCHWARZMAN, S. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2000. e Rocha (2003)ROCHA, G. Glauber Rocha: revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosaic & Naify, 2003..
  • 3
    Em Argila, é muito importante o uso do Concerto para formas brasileiras de Heckel Tavares, música que se destaca também em A grande cidade (1966), de Carlos Diegues. Essa mesma obra de Tavares foi objeto do curta-metragem Ponteio (1941), realizado por Mauro no Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Outros curtas do INCE, O Guarani (1942) e Alberto Nepomuceno (1949), contêm, respectivamente, obras de Carlos Gomes e de Nepomuceno (a Suíte Brasileira) utilizadas por Mauro em seus longas, assim como pelos cinemanovistas. Porém, essas conexões ultrapassam o escopo do artigo, em que nos restringimos ao reemprego de músicas de Villa-Lobos. Por outro lado, as Bachianas n.2 de Villa-Lobos, utilizadas por Glauber Rocha no início de Deus e o diabo na terra do sol (1964), estão no curta Euclides da Cunha (Humberto Mauro, 1944), perfazendo uma relação intertextual interessante. No entanto, vamos nos restringir, aqui, aos longas-metragens de Mauro.
  • 4
    Essa pesquisa faz parte de um projeto maior, em que mapeamos o uso de música preexistente clássica nos filmes desses diretores entre 1959 e 1980.
  • 5
    Embora considerado de uma “segunda geração” do Cinema Novo (CARVALHO, 2009CARVALHO, M. do S. Cinema Novo brasileiro. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. 5. ed. Campinas: Papirus, 2009.), Lima Júnior é essencial em nossa pesquisa, inclusive porque foi quem apresentou a música de Villa-Lobos a Glauber Rocha na época da produção de Deus e o diabo na terra do sol, 1964 (MATTOS, 2002MATTOS, C. A. Walter Lima Júnior: viver cinema. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.; GUERRINI JÚNIOR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009.).
  • 6
    Villa-Lobos fazia constantes reempregos de materiais musicais ao longo de sua carreira (CORRÊA DO LAGO, 2015CORRÊA DO LAGO, M. A. Villa-Lobos nos anos 1930 e 1940: transcrições e “work in progress”. Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 87-106, 2015.).
  • 7
    O filme foi lançado em 1942, mas sua produção começou em 1940. A data de 1940 consta na partitura, mas a obra só estreou em 1946. De todo modo, a partitura não corresponde à versão que está no filme.
  • 8
    A parte do Mandú-Çarará que se encontra no filme corresponde ao terço final da música, num arranjo em que se destaca o elemento percussivo.
  • 9
    Villa-Lobos foi chefe da Superintendência Educacional e Artística (SEMA) do governo Vargas, tendo instituído o canto orfeônico como prática pedagógica. Para saber mais sobre o elemento indígena em sua obra, ver em Moreira (2010)MOREIRA, G. F. O elemento indígena na obra de Villa-Lobos: observações musico-analíticas e considerações históricas. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2010..
  • 10
    Schwartzman (2000)SCHWARZMAN, S. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2000. pontua que a centralidade da paisagem rural na obra de Mauro se dá principalmente a partir de 1947, sendo bastante evidente na série “Brasilianas” do INCE.
  • 11
    É a história do marinheiro grego Kleônicos, que sofre um naufrágio e, agarrado a um remo, recebe uma investida de um cisne negro em vôo rasante, afogando-se; ferido na luta, o cisne morre também. Disponível em: <https://www.filarmonica.art.br/educacional/obras-e-compositores/obra/o-naufragio-de-kleonicos/>. Acesso em: 28 abr. 2021
  • 12
    Por exemplo, em pergunta feita por Valente e Caetano (2000)VALENTE, E.; CAETANO, D. Um papo com Walter Lima Júnior. Entrevista em 23 dez. 2000. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/24/entrevistawljr.htm>. Acesso em: 21 set. 2020.
    http://www.contracampo.com.br/24/entrevi...
    ao diretor.
  • 13
    Tal escolha da música feita diretamente pelo diretor sem passar pelo compositor foi designada por Gorbman (2007)______. Auteur music. In: GOLDMARK, D.; KRAMER, L., LEPPERT, R. (Org.). Beyond the soundtrack: representing music in cinema. Los Angeles: University of California Press, 2007. como “música de autor”, algo que consideramos pertinente ao reemprego musical feito pelos diretores do Cinema Novo.
  • 14
    Walter Lima Jr teve a ideia do filme em 1960, quando viu uma reportagem sobre a campanha do marechal Henrique Lott à presidência, em que se indicava que ele teria colocado figurantes fantasiados de índios num comício em Minas Gerais (MATTOS, 2002MATTOS, C. A. Walter Lima Júnior: viver cinema. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.).
  • 15
    A música inicialmente pensada para refletir as contradições do filme não tinha sido de Villa-Lobos, mas sim, a abertura da ópera O Guarani, de Carlos Gomes (GUERRINI JR, 2009GUERRINI JR, I. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009.). O que demoveu Lima Júnior foi o fato de que Glauber Rocha já havia se apropriado dessa da obra em Terra em transe.
  • 16
    O Globo Shell foi um programa especial de documentários veiculados semanalmente de 1971 a 1973, do qual participaram vários cineastas ligados ao Cinema Novo (além de Walter Lima Jr, Paulo Gil Soares, Domingos de Oliveira, Geraldo Sarno, Gustavo Dahl e Antonio Calmon).
  • 17
    Na verdade, como observou Araújo (2013)ARAÚJO, L. de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda, 2013., os dois faziam parte inicialmente de um único filme, mas foram desmembrados e as cartelas dos créditos e a música repetida no segundo.
  • 18
    Schwarzman (2000)SCHWARZMAN, S. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2000. indica a ênfase no papel da ciência no filme como proveniente das ideias de Mauro e Roquette Pinto (diretor do INCE na época, que teve participação na concepção do filme).
  • 19
    Araújo (2013)ARAÚJO, L. de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda, 2013. observou que eram semelhantes aos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.
  • 20
    Embora o filme de Mauro tenha um caráter oficial, muito diferente do elemento alegórico em Glauber, de certo modo, suas imagens, algumas vezes, vão num sentido diferente a uma celebração oficial (MORETTIN, 2013MORETTIN, E. Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013.) — voltaremos a isso mais adiante. Por outro lado, entendemos o reemprego musical mais a partir do caráter simbólico que tanto Mauro quanto Villa-Lobos representavam para o Cinema Novo e menos por aspectos políticos contidos ou não em O descobrimento do Brasil, ainda que elementos de suas imagens pudessem retornar de modo fantasmático, como traços (DERRIDA, 1993DERRIDA, J. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993.), nos filmes cinemanovistas.
  • 21
    Em Menino de engenho, é utilizada a “Procissão da cruz” retirada da “Quarta Suíte” (e não a música contida no filme de Mauro), pouco depois de 41 minutos de filme, quando o menino passeia pelo engenho na garupa do cavalo.
  • 22
    A música foi composta em 1926, na estadia do compositor em Paris. Observemos que o título Canidê ioune foi traduzido como “Ave amarela” e ioune faz referência a jaune, amarelo em francês. Os outros dois poemas, Teirú e Iara, estão bem presentes na trilha musical do filme O descobrimento do Brasil na versão antes da restauração.
  • 23
    Aqui levamos em conta o conta o corpus sincrônico das obras (incluindo as gravações das suítes de Villa-Lobos), como indicado por Kristeva (2005)KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005., além de associações mais fluidas deixadas nos “traços” de Derrida.
  • 24
    Numa versão sem o coro cantando “Pica-pau”, como presente na suíte gravada.
  • 25
    Glauber observou que “Mauro, embora ideologicamente difuso, faz uma política despida de demagogia” (ROCHA, 2003ROCHA, G. Glauber Rocha: revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosaic & Naify, 2003., p. 53). Apesar de Glauber se referir mais ao filme Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) em seu texto, acreditamos que se possa ampliar essa afirmação para a obra de Mauro em geral.

Referências

  • ALMEIDA, C. A. O cinema como “agitador de almas”: Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Annablume, 1999.
  • ARAÚJO, L. de. Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. São Paulo: Alameda, 2013.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2021
  • Aceito
    11 Ago 2021
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